Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | MARIA LUÍSA ARANTES | ||
Descritores: | INQUIRIÇÃO DE TESTEMUNHA COM OCULTAÇÃO DE IMAGEM | ||
Nº do Documento: | RP2023062122/18.5GGVNG-A.P1 | ||
Data do Acordão: | 06/21/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | CONFERÊNCIA | ||
Decisão: | CONCEDIDO PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO. | ||
Indicações Eventuais: | 1. ª SECÇÃO CRIMINAL | ||
Área Temática: | . | ||
Sumário: | A inquirição de testemunha por teleconferência com ocultação de imagem/distorção de voz, regulada na Lei n.º 93/99, de 14 de julho, só pode ter lugar quando razões ponderosas de proteção da testemunha o justifiquem, concretamente, quando são alegados factos concretos dos quais resulte que a sua inquirição presencial em audiência de julgamento coloca em perigo a integridade física, a vida, a liberdade ou bens patrimoniais de valor consideravelmente elevado daquela. | ||
Reclamações: | |||
Decisão Texto Integral: | Proc. n.º 22/18.5GGVNG-A.P1 Sumário do acórdão: ………………………. ………………………. ………………………. ***** Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto: I – RELATÓRIO No processo comum n.º22/18.5GGVNG a correr termos no Juízo Local Criminal de Vila Nova de Gaia, Juiz 2, por despacho proferido em 16/12/2022, foi deferido o requerimento apresentado pelo Comando Metropolitano do Porto da PSP, tendo sido autorizado, ao abrigo do art.1.º, n.ºs 1 e 4, da Lei n.º93/99, de 14-7 que dois agentes policiais prestassem depoimento por videoconferência e com ocultação de imagem. Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso, extraindo da motivação, as seguintes conclusões: 1. O comando da PSP não tem legitimidade para requerer, “em nome” de testemunhas/agentes policiais que o não fizeram, que as mesmas deponham por videoconferência com ocultação de imagem; 2. O perigo de perturbação de outras investigações não está compreendido no âmbito de aplicação da lei n.º 93/99; 3. Não são elencados no requerimento, nem no douto despacho recorrido, quaisquer factos concretos dos quais se extraia a existência de real perigo para a vida, integridade física ou psíquica ou bens patrimoniais de valor consideravelmente elevado das testemunhas, assentando tal conclusão em argumentos de natureza meramente genérica. 4. O recurso à teleconferência encontra-se limitado às audiências a decorrer perante tribunal coletivo ou de júri, o que não é o caso; 5. A teleconferência e a ocultação de imagem são medidas excecionais que dependem da verificação de ponderosas, logo concretas/reais razões de proteção e, no caso, não são elencados quaisquer factos que concretizem/consubstanciem a sua verificação, consistindo o objeto do processo no mero tráfico de rua, de reduzida dimensão, sem que haja notícia ao longo dos autos, de qualquer violência, ou tentativa de violência física ou psíquica, por parte dos arguidos, a quem quer que seja, ou de fazerem os mesmos parte de alguma organização/associação criminosa de consabida perigosidade; 6. Para além de não terem, eles próprios, requerido a aplicação das medidas, jamais as testemunhas mencionadas, ao longo do processo, referiram terem sido ameaçadas pelos arguidos ou a existência de qualquer perigo/risco, para a sua vida, integridade física ou demais bens jurídicos protegidos pela Lei n.º 93/99; 7. Ao que acresce o facto de a testemunha AA já ter tido, no decurso do inquérito, contato quer com os arguidos, quer com todas as testemunhas, dado ter sido ele quem procedeu aos respetivos interrogatórios e inquirições, o que retira qualquer pertinência e consequentemente proporcionalidade ao solicitado; 8. Não estando, assim, verificados os pressupostos legais de que depende a aplicação da teleconferência com ocultação de imagem. 9. Mostram-se violados os artigos 1.º, 4.º, 5.º e 6.º da Lei n.º 93/99 de 14.7. Os arguidos não responderam ao recurso. Remetidos os autos ao Tribunal da Relação e aberta vista para efeitos do art.416.º, n.º1, do C.P.Penal, o Exmo.Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer em que, acompanhando os argumentos aduzidos no recurso, se pronunciou pela sua procedência (referência 16888150). Cumprido o disposto no art.417.º, n.º2, do C.P.Penal, não foi apresentada resposta. Colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência. II – FUNDAMENTAÇÃO Decisão recorrida O despacho recorrido tem o seguinte teor: “Vieram duas das testemunhas indicadas, os agentes principais AA e BB, solicitar que sejam admitidos a prestar depoimento por videoconferência do Tribunal, mas com ocultação de imagem. Fundamentam tal pedido no facto de exercerem funções de investigação em contexto de ocultação da qualidade de opc e que eventual comparência física em audiência, possa contribuir para romper a ocultação da sua condição profissional junto de determinado segmento social, hipotecando quer as funções de investigação, e tornando-os vulneráveis a eventuais represálias. O M.P. emitiu parecer que antecede, pugnando pelo indeferimento do requerido, com os fundamentos que se dão por reproduzidos. O Il. Mandatário do arguido CC também se veio opor. Cumpre apreciar. Quanto ao risco de represálias, tendo em conta a atividade de investigação desenvolvida no âmbito do processo, bem como o número de intervenientes processuais, e ainda o facto das testemunhas laborarem em área conexionada com o objeto dos autos na área da Comarca Judicial, o mesmo não pode deixar de se considerar fundamentado, retendo que muitas das testemunhas por vezes surgem indicadas em vários processos. De facto, pese embora a excecionalidade da medida, a mesma permite de todo o modo assegurar adequadamente o contraditório e a oralidade, e sendo necessário o confronto das mesmas com documentos, o mesmo será possível, no caso de depoimento por videoconferência a partir do Tribunal, pelo que a ponderação de interesses implica o seu deferimento, que ainda garante o justo equilíbrio entre as necessidades de combate ao crime e o direito de defesa. Assim, face ao disposto no artigo 1.º, 1 e 4 da Lei 93/99, de 14.7, e nos termos do disposto no artigo 4.º da mesma lei, defere-se o requerido, determinando-se que os mesmos prestem depoimento por videoconferência a partir do Tribunal e com ocultação de imagem. Notifique.” Apreciação É entendimento uniforme da jurisprudência dos tribunais superiores que o âmbito do recurso é delimitado pelo teor das conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, sem prejuízo da apreciação das questões de conhecimento oficioso. Lidas as conclusões formuladas, a questão trazida à apreciação deste tribunal é a de saber se há fundamento legal para a inquirição de duas das testemunhas arroladas pelo Ministério Público, os agentes policiais DD e BB, ter lugar por videoconferência com ocultação de imagem, conforme foi requerido pelo Comando Metropolitano da PSP .... Em termos gerais, a tomada de declarações às testemunhas deve ser presencial, com vista a garantir o respeito pelos princípios da oralidade, imediação e do contraditório. No entanto, a Lei n.º93/99, de 14-7, que regula a aplicação de medidas para proteção de testemunhas em processo penal, prevê um regime excecional, enquanto medida de proteção das testemunhas, de inquirição com recurso a meios tecnológicos (teleconferência), desde que verificados determinados requisitos. Dispõe o artigo 1.º da citada Lei n.º93/99, de 14-7, sob a epígrafe Objeto: “1 - A presente lei regula a aplicação de medidas para proteção de testemunhas em processo penal quando a sua vida, integridade física ou psíquica, liberdade ou bens patrimoniais de valor consideravelmente elevado sejam postos em perigo por causa do seu contributo para a prova dos factos que constituem objeto do processo. 2 - As medidas a que se refere o número anterior podem abranger os familiares das testemunhas, as pessoas que com elas vivam em condições análogas às dos cônjuges e outras pessoas que lhes sejam próximas. 3 - São também previstas medidas que se destinam a obter, nas melhores condições possíveis, depoimentos ou declarações de pessoas especialmente vulneráveis, nomeadamente em razão da idade, mesmo que se não verifique o perigo referido no n.º 1. 4 - As medidas previstas na presente lei têm natureza excecional e só podem ser aplicadas se, em concreto, se mostrarem necessárias e adequadas à proteção das pessoas e à realização das finalidades do processo. 5 - É assegurada a realização do contraditório que garanta o justo equilíbrio entre as necessidades de combate ao crime e o direito de defesa.” E o artigo 4.º [Ocultação da testemunha] estabelece: “1 - Oficiosamente ou a requerimento do Ministério Público, do arguido, do assistente ou da testemunha, o tribunal pode decidir que a prestação de declarações ou de depoimento que deva ter lugar em ato processual público ou sujeito a contraditório decorra com ocultação da imagem ou com distorção da voz, ou de ambas, de modo a evitar-se o reconhecimento da testemunha. 2 - A decisão deve fundar-se em factos ou circunstâncias que revelem intimidação ou elevado risco de intimidação da testemunha e mencionará o âmbito da ocultação da sua imagem ou distorção de voz.” Por sua vez, o artigo 5.º[Teleconferência] dispõe: “1 - Sempre que ponderosas razões de proteção o justifiquem, tratando-se da produção de prova de crime que deva ser julgado pelo tribunal coletivo ou pelo júri, é admissível o recurso à teleconferência, nos atos processuais referidos no n.º 1 do artigo anterior. 2 - A teleconferência pode ser efetuada com a distorção da imagem ou da voz, ou de ambas, de modo a evitar-se o reconhecimento da testemunha.” O artigo 6.º estabelece [Requerimento]: “1 - A utilização da teleconferência é decidida a requerimento do Ministério Público, do arguido ou da testemunha. 2 - O requerimento contém a indicação das circunstâncias concretas que justificam a medida e, se for caso disso, a distorção da imagem e do som. 3 - A decisão é precedida da audição dos sujeitos processuais não requerentes.” O recurso à teleconferência com ocultação de imagem/distorção da voz é possível no âmbito desta lei quando está em causa julgamento por tribunal coletivo e ponderosas razões de proteção o justifiquem, conforme prevê o art.5.º, sendo que este dispositivo tem de ser conjugado com o disposto no art.1.º, n.ºs 1 e 3, no qual estão definidos os requisitos da aplicação de medidas de proteção às testemunhas. Revertendo ao caso presente, atento o disposto no art.6.º, n.º1, o requerimento para utilização da teleconferência na inquirição das testemunhas tinha de ser apresentado pelo Ministério Público, pelo arguido ou pelas testemunhas em causa. Por outro lado, o julgamento dos presentes autos é efetuado por tribunal singular e não por tribunal coletivo ou de júri, conforme prevê o art.5.º, n.º1, da Lei n.º93/99, de 14-7. Para além do mais, há fundamento de ordem substantiva para afastar a inquirição por teleconferência com ocultação de imagem/distorção de voz, porquanto as razões invocadas no requerimento apresentado não preenchem a previsão do art.1.º, n.ºs 1 e 4 da Lei n.º93/99, de 14-7. Nos termos do requerimento apresentado, as testemunhas em causa exercem funções de investigação em contexto de ocultação da qualidade de órgão de polícia criminal e a sua comparência física em audiência, poderá afetar futuras investigações por se tornar conhecida a sua condição profissional junto de determinado segmento social, para além de as tornar vulneráveis a eventuais represálias. Quanto ao primeiro fundamento, nada tem a ver com a proteção das próprias testemunhas mas antes com eventual prejuízo para futuras investigações, caindo por isso fora do âmbito de aplicação da Lei n.º93/99, de 14 -7. Em relação ao segundo fundamento, não foram alegados factos concretos de que resulte que a inquirição presencial das testemunhas na audiência de julgamento pode pôr em perigo a integridade física, a vida, a liberdade ou bens patrimoniais de valor consideravelmente elevado daquelas. Com efeito, é insuficiente a afirmação genérica de que a sua inquirição presencial as torna vulneráveis a eventuais represálias de caráter pessoal, sem que tal afirmação encontre respaldo em factos objetivos, concretos. Como se salienta no Ac.R.Coimbra de 7/4/2016, proc. n.º367/14.3JACBR-E.C1, disponível in www.dgsi.pt e citado pelo recorrente “(…)a lei ora em causa contém medidas de natureza excecional. Ora, tais medidas só devem ter por base uma pressão ou ameaça consistente, por isso mesmo assente em dados reais que possam ser ponderados e que vão para além de um sentimento de medo manifestado, sem mais, em determinado momento, sob pena da exceção se tornar a regra, o que vai contra o espírito da lei.” Pelas razões expostas, não se mostram verificados os requisitos para a inquirição por teleconferência das indicadas testemunhas e por consequência revoga-se o despacho recorrido. III – DISPOSITIVO Pelo exposto acordam os Juízes na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em julgar procedente o recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência, revogar o despacho recorrido. Sem custas. (texto elaborado pela relatora e revisto por todos os signatários) Porto, 21/6/2023 Maria Luísa Arantes Luís Coimbra Raúl Esteves |