Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
17440/23.0T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RODRIGUES PIRES
Descritores: ARRENDAMENTO NÃO HABITACIONAL
ARRENDAMENTO PARA COMÉRCIO OU INDÚSTRIA
CONTRATO DE ARRENDAMENTO
DURAÇÃO
PRAZO
RENOVAÇÃO DO CONTRATO
Nº do Documento: RP2024071017440/23.0T8PRT.P1
Data do Acordão: 07/10/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - No que respeita aos anteriormente designados contratos de arrendamento urbano para comércio e indústria, o RAU, em vigor à data da celebração do contrato dos autos, estatuía no seu art. 117º, nº 1 que as partes podiam estipular um prazo para a sua duração efetiva, desde que a respetiva cláusula fosse inequivocamente prevista no texto do contrato, assinado pelas partes.
II - Constando de cláusula contratual que o prazo de arrendamento é de um ano, renovando-se por iguais e sucessivos períodos, daí não decorre qualquer indicação, ainda que implícita, de que as partes pretenderam que o contrato celebrado pudesse ser denunciado livremente pelo senhorio, findo que fosse o prazo indicado, mas apenas que o prazo de um ano é prorrogável por iguais e sucessivos períodos.
III - Para que se considere que as partes quiseram sujeitar um contrato de arrendamento urbano ao regime dos contratos de duração limitada não se exige qualquer forma convencional; exige-se, porém, que do texto do contrato resulte que as partes o quiseram sujeitar a esse regime, de duração limitada.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 17440/23.0T8PRT.P1

Comarca do Porto – Juízo Local Cível do Porto – Juiz 3

Apelação

Recorrente: AA

Recorrido: “A..., Lda.”

Relator: Eduardo Rodrigues Pires

Adjuntos: Desembargadores Maria da Luz Teles Menezes de Seabra e Fernando Vilares Ferreira

Acordam na secção cível do Tribunal da Relação do Porto:

RELATÓRIO

A autora AA propôs a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra a ré “A..., Lda.”, tendo formulado os seguintes pedidos:

1. Reconhecer o direito de propriedade da autora sobre o imóvel aqui reivindicado – sito na rua ..., ..., na freguesia ..., concelho do Porto, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ... e descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto sob o n.º...;

2. Declarar a cessação do contrato de arrendamento celebrado entre a autora e a ré, a que se refere o documento n.º 3, por caducidade do mesmo;

3. Deve a ré ser condenada a proceder à desocupação do imóvel arrendado, entregando-o à autora, livre e devoluto de pessoas e bens e no estado em que o recebeu;

4. Deve ser a ré condenada a pagar à autora uma quantia de €100,00 (cem euros) por dia, desde a data da citação para os presentes autos até à data da efetiva desocupação e entrega do prédio à autora, a título de sanção pecuniária compulsória, ao abrigo do previsto no art. 829º-A do Cód. Civil.

Alegou, para tanto, ser proprietária do imóvel que identificou e que a sua antecessora celebrou com a ré um contrato em 1.10.2003, que reduziram a escrito, pelo qual lhe cederam o gozo do imóvel, para fins comerciais, pelo prazo de um ano, e que, tendo comunicado à ré o propósito de não renovar o contrato, esta manifestou a sua discordância, recusando a entrega do imóvel.

A ré contestou. Defendeu-se por exceção, invocando a nulidade decorrente do erro na forma do processo, por ter sido preterido o procedimento especial de despejo, forma especial prevista no art. 15.º do NRAU e, no mais, sustentou que o contrato de arrendamento em causa foi celebrado por tempo indeterminado, não assistindo à autora o direito de se opor à renovação do contrato.

Foi realizada audiência prévia, com os fins previamente elencados no despacho que agendou esta diligência.

Frustrada a conciliação, a autora exerceu o contraditório quanto aos fundamentos de defesa, tendo sido permitido às partes tomarem posição quanto às demais questões enunciadas.

No despacho saneador foi julgada improcedente a exceção invocada, mas considerou-se verificada nulidade processual decorrente de erro na forma do processo, tendo-se aproveitado todo o processado e determinado apenas a retificação da autuação em conformidade com a espécie especial prevista para a ação de despejo.

Seguidamente, proferiu-se decisão, na qual se julgou a ação improcedente e se absolveu a ré do pedido.

Inconformada com o decidido, interpôs recurso a autora, a qual finalizou as suas alegações com as seguintes conclusões:

1.º Cumpre apurar se o contrato de arrendamento in casu celebrado em 2003 é ou não um contrato de arrendamento vinculistico ou se, por outro lado, estamos perante um contrato de duração limitada, isto é, a termo certo, tendo transitado para o Novo Regime de Arrendamento Urbano.

2.º A Recorrente é da opinião de que estamos perante um contrato de arrendamento, não habitacional, celebrado em outubro de 2003 (não se pode confundir como o faz, a requerente, a pessoa singular com a pessoa coletiva. Ainda que fisicamente a pessoa singular seja quem represente a pessoa coletiva, tratam-se de duas pessoas juridicamente distintas), pelo prazo de 1 ano, renovável, subsumível às regras previstas no art.º 1097.º do Código Civil de acordo com o preceituado pelo art.º 59.º do NRAU.

3.º Até porque, cumpre realçar que este contrato de arrendamento foi celebrado depois do DL 257/95, 30 de Setembro, pelo que se terá de aplicar a norma transitória prevista no artigo 26º do NRAU, onde se refere que:

4.º Os contratos para fins habitacionais celebrados na vigência do Regime do Arrendamento Urbano (RAU), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de outubro, bem como os contratos para fins não habitacionais celebrados na vigência do Decreto-Lei n.º 257/95, de 30 de setembro, passam a estar submetidos ao NRAU.

5.º Considerando a matéria de facto dada como provada e acima alegada, entendemos que este contrato de arrendamento transitou para o NRAU de acordo com o disposto na norma transitória prevista no artigo 26º do NRAU, pelo que o disposto no artigo 1094º e seguintes do Código Civil é aplicável aos presentes autos.

6.º Deverá, assim, entender-se que estamos perante um contrato de duração limitada onde a oposição à renovação comunicada pela Recorrente à Recorrida foi lícita e produziu os seus efeitos jurídicos em 01/10/2023.

7.º Não restam quaisquer dúvidas de que foi esta a vontade real das partes intervenientes – senhoria e arrendatário – caso contrário não tinham estipulado que o contrato ficava sujeito ao Decreto-Lei 64-A/2000, já com com a redação que lhe havia sido dada pelo Decreto-Lei nº 257/95, que permitiu os arrendamentos de duração limitada para fins comerciais, nem estipulado qualquer prazo, transita-se para o NRAU e a duração do contrato fosse aquela prevista no artigo 1094º do CC, permitindo o disposto no artigo 1097º do CC.

8.º Assim, considerando que este contrato foi celebrado em 2003, subsumível às regras previstas no art.º 1097.º do Código Civil de acordo com o preceituado pelo art.º 59.º do NRAU.

9.º Sendo ainda este contrato de arrendamento subsumível às regras previstas no artigo 1094º, de acordo com o preceituado pelo art.º 26.º do NRAU.

10.º Por isso merece ser objecto de censura o facto de o tribunal a quo qualificar o contrato de arrendamento não habitacional como sendo de duração indeterminada ou ilimitada.

11.º Este contrato foi celebrado pelo prazo de um ano, antes da entrada em vigor do NRAU (novo regime do arredamento urbano) e destinado a fim não habitacional (arrendamento para comércio ou indústria, na nomenclatura do RAU – regime do arrendamento urbano)..

12.º Cumpre realçar que o referido Decreto-Lei nº 257/95 já estava em vigor, tendo alterado a redacção inicial do RAU.

13.º Era já assim à luz do RAU, pois que o prazo era um elemento do conteúdo do contrato, sob pena de nulidade, tal-qual resultava do disposto no art. 8.º, n.º2, al. g), do NRAU, ainda sendo previsto no art. 10.º um prazo supletivo, designadamente para a hipótese de as partes não o convencionarem (tal-qual decorre actualmente do disposto no arts. 1026.º e 1094.º do Código Civil.

14.º Esta sentença é nula, ao abrigo do disposto no artigo 615º, nº 1, alínea c), do Código de Processo Civil, uma vez os fundamentos utilizados estão em oposição com a decisão.

Toda a matéria de facto dada como provada aponta e obriga a que a decisão seja oposta àquela que foi proferida pelo Tribunal a quo.

15.º Nulidade de sentença que para os devidos e legais efeitos desde já se invoca e se requer que seja declarada.

16.º Importa referir que foi apresentada uma providência cautelar por parte da aqui Recorrida, no âmbito do processo nº 1648/23.0T8PRT, que correu os seus termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Local Cível do Porto, Juiz 9, alegando o sério risco de um direito estar em perigo de ser lesado, no que concerne à carta enviada com a oposição à renovação do contrato pela Recorrente, tendo sido considerada improcedente, uma vez que para uma providência cautelar não especificada ser decretada é necessário a existência provável de um direito e o perigo de não ser satisfeito, o que, evidentemente, não aconteceu no caso concreto.

17.º Por outro lado, a sentença que considerou a providência cautelar improcedente referiu o seguinte: “(…) ao contrário do afirmado pela requerente, não resultou estarmos perante um contrato de arrendamento do ano de 1982, mas antes de um contrato de arrendamento, não habitacional, celebrado em outubro de 2003 (não se pode confundir como o faz, a requerente, a pessoa singular com a pessoa coletiva. Ainda que fisicamente a pessoa singular seja quem represente a pessoa coletiva, tratam-se de duas pessoas fisicamente distintas), pelo prazo de 1 ano, renovável, subsumível às regras previstas no art.º 1097.º do Código Civil de acordo com o preceituado pelo art.º 59.º do NRAU.

18.º Cumpre também realçar que o contrato celebrado em Outubro de 2003, como já foi referido, foi celebrado entre BB e A..., Limitada, pessoa colectiva, ou seja, como se pode verificar, aqui a inquilina não se trata de CC, pessoa singular e arrendatário no contrato de arrendamento celebrado em 1982 e posteriormente em 2003.

19.º Isto é, ainda que um dos representantes legais da A..., Limitada seja CC, são personalidades jurídicas distintas, ou seja, um contrato foi celebrado com uma pessoa singular e o outro contrato foi celebrado com uma pessoa colectiva, não se podendo confundir estes dois conceitos.

20.º É um facto que não tem contradição possível, porque é evidente que os contratos são celebrados com partes diferentes.

21.º Nestes termos, se foi celebrado um novo contrato de arrendamento entre as partes em 2003, foi porque as mesmas entenderam que o contrato de arrendamento anterior já não se aplicava e por isso considerava-se revogado, tendo, como é sabido, celebrado novo contrato de arrendamento, isto é, manifestaram a sua vontade numa nova declaração a esse respeito com duração de um (1) ano e renovável no silêncio das partes por idênticos períodos, abrangido pela norma transitória prevista no artigo 26º do NRAU dado que foi celebrado depois da vigência do Decreto-Lei n.º 257/95, de 30 de setembro.

22.º Ora, aquando da entrada em vigor do NRAU, criou-se uma norma transitória para os contratos de arrendamento para fins não habitacionais – como acontece no caso em concreto – o capítulo II da Lei 6/2006, de 27 de Fevereiro, é referente precisamente às normas transitórias, tendo no seu artigo 26º, nº 1 o seguinte. “Os contratos para fins habitacionais celebrados na vigência do Regime do Arrendamento Urbano (RAU), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de outubro, bem como os contratos para fins não habitacionais celebrados na vigência do Decreto-Lei n.º 257/95, de 30 de setembro, passam a estar submetidos ao NRAU, com as especificidades dos números seguintes.” (…)

23.º Assim, se anteriormente se aplicava um Decreto-Lei, neste caso o 257/95, de 30 de Setembro, aplica-se, pela entrada em vigor de uma nova Lei (NRAU), o novo regime de arrendamento urbano, caindo por terra a aplicação do anterior decreto-lei aquando da celebração do contrato de arrendamento.

24.º Assim, se o Decreto-Lei é de 1995 e a Lei supra mencionada é de 2006, irá aplicar-se a mesma, até porque existe precisamente uma norma transitória que acautela a situação do caso em apreço.

25.º Desta forma, como poderá ser possível, e com todo o respeito, que se entenda que estamos perante uma extensão de um contrato de arrendamento de 1982, uma vez que além da tipologia do contrato ter sido alterada, as partes não eram as mesmas, e além disso e por força da evolução histórica da sociedade, as leis alteram-se, tendo-se revogado um decreto-lei anterior, com a entrada em vigor do NRAU, havendo, nesse sentido e como já foi amplamente referido, uma norma transitória que aplica a Lei 6/2006, de 27 de Fevereiro.

26.º O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, processo nº 971/08.9TVPRT.P1.S1, datado de 27 de Outubro de 2010, refere o seguinte: “Todos os contratos para fins não habitacionais - arrendamento para comércio, indústria e outros fins - sem qualquer excepção, constituídos antes da data do início de vigência do NRAU, são susceptíveis de vir a ser regulados por este diploma legal, caindo no domínio da lei nova os efeitos futuros das respectivas relações jurídicas que vierem a produzir-se já no âmbito temporal da mesma.

27.º Mais, se entendermos, o que não se concebe, mas ainda assim se expõe – a não existência de um prazo na celebração de um contrato – iriamos aplicar o artigo 1110º do Código Civil, que refere o seguinte: “1 - As regras relativas à duração, denúncia e oposição à renovação dos contratos de arrendamento para fins não habitacionais são livremente estabelecidas pelas partes, aplicando-se, na falta de estipulação, o disposto quanto ao arrendamento para habitação, sem prejuízo do disposto no presente artigo e no seguinte. 2- Na falta de estipulação, o contrato considera-se celebrado com prazo certo, pelo período de cinco anos, não podendo o arrendatário denunciá-lo com antecedência inferior a um ano. 3 - Salvo estipulação em contrário, o contrato celebrado por prazo certo renova-se automaticamente no seu termo e por períodos sucessivos de igual duração ou de cinco anos se esta for inferior, sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 1096.º 4 - Nos cinco primeiros anos após o início do contrato, independentemente do prazo estipulado, o senhorio não pode opor-se à renovação.”

28.º Ora, se partimos do pressuposto que não existe um prazo estabelecido no contrato de arrendamento, e tendo em conta que este já se encontra abrangido pelo NRAU, iria renovar-se sucessivamente de 5 em 5 anos, até alguma das partes se opor a essa mesma renovação – o que aconteceu.

29.º Em 2003 renovou-se até 2008, de 2008 renovou-se até 2013, de 2013 renovou-se até 2018 e de 2018 renovou-se até 2023, tendo, dentro do devido prazo, a aqui Recorrente, enviado uma missiva com a oposição à renovação do contrato de arrendamento.

30.º Mais, a Recorrente na convicção de que o contrato de arrendamento realmente tem um prazo estabelecido – o de um ano com renovações sucessivas - e de forma a cessar o contrato de arrendamento, socorreu-se do direito substantivo, concretamente do artigo 1097º, alínea b), do Código Civil.

31.º Ora, ainda que nos socorramos do artigo 1110º do Código Civil que estipula os cinco (5) anos de renovação, seria sempre uma renovação automática, e não uma duração de um contrato vitalício, pela clara leitura das normas, e, entendendo-se assim, o contrato poderia terminar em 2023, até porque, e como já foi exaustivamente referido, o contrato transitou para o NRAU, de acordo com a norma nº 26 do mesmo diploma.

32.º Mais, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, do processo nº 1085/22.4YLPRT.P1.S1, datado de 11-01-2024, refere o seguinte: “A norma do n.º 4 do art. 1110.º do CC, introduzida pela L. n.º 13/2019, de 12.02, é de interpretar no sentido de que a declaração de oposição à renovação pode ter lugar antes de terminado o prazo mínimo de vigência do contrato de arrendamento para fins não habitacionais para produzir efeitos na data em que, sem a oposição, o contrato se renovaria, concluindo-se, assim, no caso dos autos, pela validade e eficácia da declaração da locadora de oposição à renovação do contrato de arrendamento celebrado pelo prazo de cinco anos.”

33.º Por fim, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, processo nº 8536/14.0T8LSB.L1.S1, datado de 15-11-2017, decidiu o seguinte: “Todos os contratos celebrados até ao momento em que a lei passou a permitir a celebração de contratos com duração limitada, ou seja, até 1990 (DL n.º 321-B/90, de 15-10) – para os arrendamentos destinados à habitação – e até 1995 (DL n.º 257/95, de 30-09) – para os arrendamentos comerciais, eram contratos sem prazo certo. V - A oposição à renovação é exclusiva dos contratos de prazo certo. Consequentemente, reserva-se a denúncia para fazer cessar um contrato sem prazo certo. Esta distinção tornou-se clara com o NRAU (Lei n.º 6/2006, de 27-02), usando a lei vigente à época da celebração do contrato dos autos, a palavra denúncia, sem o sentido técnico que esta assume em direito.”

34.º Foram violados, por erro de aplicação e interpretação, o disposto nos artigos seguintes:

Artigo 26º do NRAU;

Artigo 59º do NRAU;

Artigo 1094º e 1097º do Código Civil.

Pelo exposto, e pelo mais que for doutamente suprido, deverá a sentença recorrida ser substituída por outra que aplique o Direito e, em consequência disso, ser o recurso interposto (…) julgado procedente (…).

A ré apresentou resposta, pronunciando-se pela confirmação do decidido.

Formulou as seguintes conclusões:

1. Vem a Recorrente arguir, ainda que de forma processualmente inadequada, a nulidade da sentença, nos termos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea c), do CPC, alegando que os fundamentos invocados pelo Tribunal a quo estão em oposição com a decisão proferida.

2. Ora, determina o artigo 615.º, n.º 1, alínea c), do CPC que a sentença é nula quando “os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível”.

3. Existe oposição entre os fundamentos e a decisão quando, na fundamentação da sentença, o julgador seguir determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão, e, a final, decidir em sentido oposto.

4. In casu, considerou o Tribunal a quo que o contrato de arrendamento celebrado entre a Recorrente e a Recorrida deve ser qualificado como celebrado por tempo indeterminado.

5. Para justificar tal decisão, o Tribunal a quo especificou tanto os fundamentos de facto, como os de direito.

6. Atenta a matéria de facto assente, considerou o Tribunal a quo que o contrato de arrendamento celebrado em 2003, entre a Recorrente e a Recorrida, trata-se de um novo contrato.

7. Para tal conclusão, concorreu ainda o teor das declarações de vontade contidas no dito contrato.

8. Ora, tendo por referência o contrato de arrendamento celebrado em 1 de outubro de 2003, o Tribunal a quo delimitou, então, o regime jurídico aplicável ao mesmo.

9. Expondo as razões de direito que fundamentam a qualificação do contrato de arrendamento como celebrado por tempo indeterminado.

10. Assim, in casu, não se verifica qualquer oposição entre os fundamentos e a decisão.

11. Pelo que improcede a arguição de nulidade, devendo, por isso, manter-se a decisão recorrida.

Ademais,

12. Alega a Recorrente que o contrato de arrendamento celebrado entre as partes tem duração limitada, pelo que o Tribunal a quo não o poderia qualificar como um contrato por tempo indeterminado.

13. Ora, resultou provado que o contrato de arrendamento foi celebrado antes da entrada em vigor do NRAU, destinando-se a comércio e indústria.

14. Assim, quanto ao regime aplicável, é necessário atender às normas do Código Civil – com as alterações ao regime do arrendamento introduzidas pela Lei n.º 6/2007, de 27 de fevereiro – e às normas transitórias previstas no artigo 26.º da Lei n.º 6/2007, de 27 de fevereiro.

15. Como bem esclareceu o Tribunal a quo, todos os contratos de arrendamento são celebrados com um prazo.

16. E compreende-se que assim seja, porquanto a natureza temporária é um elemento essencial do contrato de arrendamento.

17. Tal já resultava do artigo 8.º, n.º 2, alínea g), do RAU, ao determinar que “o contrato de arrendamento urbano deve mencionar, também, quando o seu objecto ou o seu fim o impliquem (…)

g) O prazo”.

Acresce que,

18. Determinava o n.º 1 do artigo 117.º do RAU que “as partes podem convencionar um prazo para a duração efectiva dos arrendamentos urbanos para comércio ou indústria, desde que a respectiva cláusula seja inequivocamente prevista no texto do contrato, assinado pelas partes” (…).

19. Deste modo, a mera fixação de um prazo no contrato de arrendamento não é, por si só, decisiva para a sua qualificação como contrato de duração limitada, porquanto tal elemento é aplicável a todos os contratos, tanto aos de duração limitada, como aos contratos sem duração limitada.

20. É, pois, necessária a manifestação inequívoca da vontade das partes em fixar um prazo para a duração efetiva do arrendamento.

21. Assim, bem andou o Tribunal a quo ao concluir que o contrato objeto dos presentes autos trata-se de um arrendamento urbano para fim não habitacional celebrado por tempo indeterminado.

Ainda,

22. Alega a Recorrente que a comunicação de oposição à renovação do contrato foi lícita e produziu os seus efeitos jurídicos em 1 de outubro de 2023.

23. Ora, as formas de cessação do arrendamento urbano estão previstas no artigo 1079.º do Código Civil: por acordo das partes, resolução, caducidade, denúncia ou outras causas previstas na lei.

24. A cessação do contrato de arrendamento por caducidade só opera quanto aos contratos celebrados por tempo determinado, sendo que, nestes casos, não basta verificar-se o termo do prazo fixado,

25. Necessário se torna a manifestação de vontade do senhorio – ou do arrendatário – no sentido de se opor à renovação do arrendamento, tal como decorre do disposto no n.º 1 do artigo 1054.º do Código Civil.

26. O contrato de duração indeterminada, por sua vez, cessa por denúncia de uma das partes, conforme disposto no artigo 1099.º do Código Civil.

27. Para cessar o contrato de arrendamento – objeto dos presentes autos – teria a Recorrente de lançar mão à figura da denúncia contratual, nos termos do disposto no artigo 1101.º do Código Civil.

28. Assim, tratando-se de um contrato de arrendamento sem duração limitada, celebrado antes da vigência do NRAU, não assiste à Recorrente o direito de pôr termo ao mesmo mediante oposição à renovação,

29. Pelo que a comunicação dirigida à Recorrida, em 15 de maio de 2023, não produz os efeitos pretendidos pela Recorrente, designadamente, a cessação do contrato de arrendamento.

30. Atento o supra exposto, bem andou o Tribunal a quo ao julgar improcedente a pretensão da Recorrente, devendo, por isso, manter-se inalterada a decisão doutamente proferida.

O recurso foi admitido como apelação, com subida imediata, nos autos e efeito suspensivo.

A Mmª Juíza “a quo”, para os efeitos do art. 617º, nº 1 do Cód. de Proc. Civil, consignou o seguinte:

“Nos presentes autos de acção declarativa, que segue a forma de processo comum, a autora interpôs recurso, tendo, entre outros fundamentos, arguido a nulidade da sentença por oposição entre os fundamentos e a decisão.

Cumpre apreciar.

Retornando à sentença, concretamente ao segmento decisório e aos fundamentos em que assenta, não se alcança a referida contradição.

Argumentou a recorrente:

“Não restam quaisquer dúvidas de que foi esta a vontade real das partes intervenientes – senhoria e arrendatário – caso contrário não tinham estipulado que o contrato ficava sujeito ao Decreto-Lei 64-A/2000, já com com a redação que lhe havia sido dada pelo Decreto-Lei nº 257/95, que permitiu os arrendamentos de duração limitada para fins comerciais, nem estipulado qualquer prazo.”.

Mas veja-se: aquele Diploma de 2020 mencionado no documento que titula o contrato respeita tão-só à forma do contrato, dispensando a escritura pública, e não foi alterado pelo DL n.º257/95, que é naturalmente anterior.

A este de 95 não é feita qualquer menção no contrato.

Assim, da mera circunstância de ter sido estipulado um prazo, o que constitui um elemento essencial do contrato, não se conclui que o mesmo tenha sido celebrado como contrato de duração limitada (hoje contrato com prazo certo), o que se explicou com apoio na interpretação das declarações negociais vertidas no contrato e do disposto nos arts. 98.º e 117.º do RAU, Diploma em vigor à data da celebração do contrato.

Desta forma, não se antevê qualquer contradição entre os fundamentos e a decisão que importe a nulidade da sentença, reconduzindo-se antes a argumentação da recorrente à mera discordância quanto àqueles fundamentos.

Desta forma, não há razão para suprir a nulidade apontada.

Pelo exposto e de acordo com o disposto no art. 617.º, n.º1, do nCPC, indefiro a arguição da nulidade da sentença.”

Cumpre então apreciar e decidir.


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FUNDAMENTAÇÃO 

O âmbito do recurso, sempre ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, encontra-se delimitado pelas conclusões que nele foram apresentadas e que atrás se transcreveram – cfr. arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do Cód. do Proc. Civil.


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As questões a decidir são as seguintes:

I. Apurar se a sentença recorrida enferma da nulidade prevista no art. 615º, nº 1, al. c) do Cód. de Proc. Civil;

II. Apurar se o contrato de arrendamento em causa nos autos foi corretamente considerado como não tendo duração limitada.


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Na sentença recorrida foram considerados provados os seguintes factos:

1) O prédio urbano composto de rés-do-chão e primeiro andar sito na rua ..., da freguesia ..., concelho do Porto, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ... e descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto sob o n.º..., está registado a favor da autora por sucessão de BB.

2) No dia 9 de Março de 1982, DD e EE celebraram um contrato com CC, mediante escritura pública, pelo qual lhe trespassaram o estabelecimento comercial de taberna instalado no rés-do-chão do n.º... do prédio sito na Rua ..., com a menção de tal prédio pertencer a BB a quem era paga a renda anual de 12 mil escudos.

3) BB celebrou com CC um contrato, em 1 de Junho de 2002, que reduziram a escrito e intitularam “contrato de arrendamento comercial/Elaborado nos termos do Decreto-Lei 64-A/2000, publicado no Diário da República n.º95 de 22/09/2000”, pelo qual “como complemento do já arrendado rés-do-chão (estabelecimento) com entrada pelo n.º...”, lhe cedeu o gozo do primeiro andar, excepto a sala da frente do mesmo.

4) Ficou estipulado que:

- “O contrato continua a ser feito por um ano e tem o seu início, devido à renda complementar, no dia 1 de Julho de 2002, renovando-se sucessivamente e por iguais períodos nos termos da legislação em vigor.”.

- “A renda agora acordada, para o rés-do-chão e primeiro andar (excepto a sala da frente) é de 448,92 euros (…) mensais, pago antecipadamente no primeiro dias útil do mês anterior a que disser respeito, no domicílio do senhorio ou de quem legalmente o represente, e será actualizada anualmente de acordo com os coeficientes de actualização fixados por Portaria Regulamental.”.

- “O arrendado destina-se ao exercício de qualquer actividade comercial.”.

5) BB celebrou com a “A..., Lda.”, representada por CC, um contrato, em 1 de Outubro de 2003, que reduziram a escrito e intitularam “contrato de arrendamento comercial/Elaborado nos termos do Decreto-Lei 64-A/2000, publicado no Diário da República n.º95 de 22/09/2000”, pelo qual aquela cedeu a esta o gozo do rés-do-chão e do primeiro andar do prédio identificado em 1), com excepção da sala da frente do mesmo.

6) Ficou estipulado que:

- “O contrato continua a ser feito por um ano e tem o seu início, devido à renda complementar, no dia Um de Outubro de 2003, renovando-se sucessivamente e por iguais períodos nos termos da legislação em vigor”.

- “A renda agora acordada, para o rés-do-chão e primeiro andar (excepto a sala da frente) é de 448,92 Euros (…), mensais, paga antecipadamente no primeiro dias útil do mês anterior a que disser respeito, no domicílio do senhorio ou de quem legalmente o represente, e será actualizada anualmente de acordo com os coeficientes de actualização fixados por Portaria Regulamental”.

- “O arrendado destina-se ao exercício de qualquer actividade comercial.”.

7) A autora remeteu à ré a carta datada de 15 de Maio de 2023, registada e com aviso de recepção, mediante a qual lhe comunicou a oposição à renovação do contrato celebrado em 1 de Outubro de 2003 e a interpelou para restituir o imóvel locado em 1 de Outubro de 2023.

8) A carta foi recepcionada pela ré.


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Passemos à apreciação do mérito do recurso.

I. Apurar se a sentença recorrida enferma da nulidade prevista no art. 615º, nº 1, al. c) do Cód. de Proc. Civil

1. A autora/recorrente, nas suas alegações, veio invocar a nulidade da sentença recorrida, ao abrigo do art. 615º, nº 1, al. c) do Cód. de Proc. Civil, por entender que os fundamentos utilizados estão em oposição com a decisão, pois, na sua perspetiva, toda a matéria de facto dada como provada aponta no sentido de a decisão ser oposta à que foi proferida.

Com efeito, a circunstância de no contrato de arrendamento se ter estipulado o prazo de um ano para a sua duração, e depois, na sentença recorrida, se ter concluído que esse contrato não era de duração limitada, configura a arguida nulidade.

Vejamos.

2. Dispõe-se no art. 615º, nº 1, al. c) do Cód. de Proc. Civil que a sentença é nula quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão.

Sobre esta nulidade escreve o seguinte LEBRE DE FREITAS (in “A Ação Declarativa Comum”, 4ª ed., pág. 381/2): “Entre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica; se, na fundamentação da sentença, o julgador segue determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão, e, em vez de a tirar, decide noutro sentido, oposto ou divergente, a oposição é causa de nulidade da sentença. Esta oposição não se confunde com o erro na subsunção dos factos à norma jurídica ou, muito menos, com o erro na interpretação desta: quando, embora mal, o juiz entende que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação, ou dela decorre, encontramo-nos perante o erro de julgamento e não perante oposição geradora de nulidade; mas já se o raciocínio expresso na fundamentação apontar para determinada consequência jurídica e na conclusão for tirada outra consequência, ainda que esta seja a juridicamente correta, a nulidade verifica-se.”

Por seu turno, ALBERTO DOS REIS (in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, 1984, reimpressão, pág. 141) em relação a esta nulidade diz-nos que “o juiz escreveu o que queria escrever; o que sucede é que a construção da sentença é viciosa, pois os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam logicamente, não ao resultado expresso na decisão, mas ao resultado oposto.”

Como exemplos desta nulidade LEBRE DE FREITAS (ob. cit., pág. 382) apresenta os seguintes: “o juiz justifica, na fundamentação, a condenação do réu no pagamento da dívida por ele contraída, mas, sem qualquer outra explicação, absolve-o; o juiz acolhe um fundamento de nulidade do contrato, mas acaba condenando o réu no seu cumprimento.”

Diferenciando a contradição entre os fundamentos e a decisão, prevista no art. 615º, nº 1, al. c) do Cód. de Proc. Civil, do erro de julgamento escreve-se no Acórdão do STJ de 4.2.2021 (proc. 22/17.2T8CLB.C1.S1, relator NUNO PINTO OLIVEIRA, disponível in www.dgsi.pt.) que “a contradição entre os fundamentos e a decisão corresponde a um vício formal, na construção lógica da decisão e o erro de julgamento, a um vício substancial, concretizado, p. ex., na errada subsunção dos factos concretos à correspondente hipótese legal.

3. Retornando à situação concreta, o que se verifica é que na sentença recorrida a Mmª Juíza “a quo” qualificou o contrato de arrendamento aqui em causa como celebrado por tempo indeterminado e, para chegar a tal conclusão, foram especificados os respetivos fundamentos de facto e de direito, que assentaram na interpretação do clausulado nesse contrato. 

Explicada a interpretação efetuada, verifica-se que nenhuma oposição existe entre os fundamentos e a decisão, estando esta em plena sintonia com a argumentação que a ela conduziu.

Certo é que a autora poderá não concordar com o decidido em 1ª Instância, com o percurso argumentativo que foi seguido na sentença recorrida e com a subsunção jurídica que nela se efetuou, sustentando que a decisão proferida deveria ter sido outra, mas temos por seguro que nenhuma contradição existe entre aquela que se mostra proferida e os fundamentos em que a mesma assentou.

Tanta basta, pois, para que a nulidade invocada pela autora, ao abrigo do art. 615º, nº 1, al. c) do Cód. de Proc. Civil, não se verifique.  


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II. Apurar se o contrato de arrendamento em causa nos autos foi corretamente considerado como não tendo duração limitada

1. Na sentença recorrida o contrato de arrendamento celebrado em 1.10.2023 foi qualificado como celebrado por tempo indeterminado, entendimento que teve a discordância da autora em via recursiva, a qual entende, com apoio no clausulado nesse contrato, que o mesmo é de duração limitada, de tal modo que a oposição à renovação comunicada à ré foi lícita e produziu os seus efeitos em 1.10.2023.

Vejamos.

2. No referido contrato de arrendamento foi estipulado que este continua a ser feito por um ano e tem o seu início no dia 1.10.2003, renovando-se sucessivamente e por iguais períodos nos termos da legislação em vigor.

A resposta à questão aqui em análise – este contrato é de duração limitada ou ilimitada? – passa então pela interpretação do que nele se mostra clausulado, o que convoca o estatuído nos arts. 236º e segs. do Cód. Civil.

Nas palavras de MANUEL DE ANDRADE (in “Teoria Geral da Relação Jurídica”, vol. II, pág. 305, Coimbra, 2003, reimpressão, pág. 305) “interpretar um negócio jurídico – isto é, a declaração ou declarações de vontade que o integram – equivale a determinar o sentido com que ele há-de valer, se valer puder. Trata-se de saber quais os efeitos a que ele tende conforme tal declaração, e que realmente produzirá se e na medida em que for válido; qual o conteúdo decisivo dessa declaração de vontade.”

Na formulação de MOTA PINTO (in “Teoria Geral do Direito Civil”, 4ª ed., pág. 441) “a interpretação nos negócios jurídicos é a actividade dirigida a fixar o sentido e alcance decisivo dos negócios, segundo as respectivas declarações integradoras. Trata-se de determinar o conteúdo das declarações de vontade e, consequentemente, os efeitos que o negócio visa produzir, em conformidade com tais declarações, e virá a produzir, se não houver qualquer motivo de invalidade.”

No nosso direito positivo, o art. 236º, nº 1 do Cód. Civil estatui que «a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele.»

Releva assim o sentido que seria considerado por uma pessoa normalmente diligente, sagaz e experiente em face dos termos da declaração e de todas as circunstâncias situadas dentro do horizonte concreto do declaratário, isto é, em face daquilo que o concreto destinatário da declaração conhecia e daquilo até onde ele podia conhecer.[1]

Atendendo a que nos encontramos no presente caso perante um negócio formal há que ter mais particularmente em atenção o que se acha preceituado no art. 238º, nº 1 do Cód. Civil.

Aí se estabelece que «nos negócios formais não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respetivo documento, ainda que imperfeitamente expresso.»

Constata-se, por conseguinte, neste caso, relativamente aos princípios gerais que regem em matéria de interpretação dos negócios jurídicos, um desvio no sentido de um maior objetivismo.        

Com efeito, nos negócios solenes ou formais o sentido objetivo correspondente à impressão do destinatário não pode valer se não tiver um mínimo de correspondência, embora imperfeita, no texto do respetivo documento, o que constitui um corolário natural – se não mesmo inevitável – do caráter solene destes negócios.[2]

Porém, mesmo no âmbito dos negócios formais, em que, pretendendo-se salvaguardar a razão de ser da exigência de forma, se determina que “a declaração não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso”, aquele sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do documento poderá valer “se corresponder à vontade real das partes e as razões determinantes da forma do negócio se não opuserem a essa validade” – cfr. art. 238º, n.º 2 do Cód. Civil.

Conforme acertadamente se afirma na sentença recorrida, “ultrapassada uma concepção positivista do contrato como um mero facto social constituído à margem do direito, hoje o problema interpretação não pode ser senão compreendido como um problema normativo, isto é, de averiguação das vontades expressas com vista a criar um conjunto de regras entre as partes em articulação com o quadro normativo geral ou sistema jurídico já constituído (Ana Mafalda Miranda Barbosa, “O problema da integração das lacunas contratuais à luz de considerações de carácter metodológico – algumas reflexões”, Comemorações dos 35 anos do Código Civil, Vol. II, p. 374).”

“O mesmo é dizer que uma cláusula contratual não pode ser interpretada senão no contexto em que as declarações contratuais são emitidas, impondo-se interpretá-las por referência à normatividade criada pelas partes, sem deixar de tomar em consideração a ordem jurídica constituída, no seu conjunto, e que o declarante e o declaratório não poderão deixar de ter tido como horizonte.”

3. De regresso ao caso dos autos, tomando como referência as declarações de vontade que se mostram vertidas no contrato de arrendamento datado de 1.10.2023, constata-se que as partes que o outorgaram – BB e a ora ré “A..., Lda.” - pretenderam, através dele, operar uma novação subjetiva, ao abrigo do art. 858º do Cód. Civil[3], e não uma mera cessão da posição contratual do arrendatário, que antes era CC.

É certo que todo o conteúdo contratual se mantém idêntico, mas o contrato reflete agora um novo encontro de vontades, no sentido da obrigação de cedência do gozo do locado e da correspondente obrigação de pagamento da renda, uma vez que as pessoas jurídicas nele intervenientes são diferentes.

Terá então que se considerar que existe aqui um novo contrato, com a cessação do anterior, conclusão esta que não é afastada pela menção constante da sua cláusula 2ª – “o contrato continua a ser feito…”, atendendo a que esta se justifica tão-só pelo histórico dos antecedentes contratos.

4. Prosseguindo, há a assinalar que o presente contrato de arrendamento se destina a fim não habitacional e, datando o mesmo de 1.10.2003, tal significa que foi celebrado antes da entrada em vigor do NRAU.

Sucede que o art. 26º, nº 1 da Lei nº 6/2007, de 27.2. [NRAU] estatui que os contratos para fins não habitacionais celebrados na vigência do Decreto-Lei nº 257/95, de 30.9, passam a estar submetidos ao NRAU, com as especificidades que resultam dos números seguintes.        

Sabido é que o contrato, conforme flui do seu clausulado, foi celebrado pelo prazo de um ano e, por isso, a questão que se colocará é a de saber se a fixação desse prazo é o bastante para o poder qualificar como contrato de duração limitada ou com prazo certo.

No âmbito do RAU[4], no seu art. 8º, nº 2, al. g), preceituava-se que o contrato de arrendamento deve mencionar o prazo, sendo estabelecido no art. 10º, para a hipótese das partes nada convencionarem a esse respeito, o prazo supletivo de seis meses.

Por seu turno, no Cód. Civil, após a reforma decorrente da entrada em vigor do NRAU, passou a estabelecer-se no nº 1 do seu art. 1095º que o prazo deve constar de cláusula inserida no contrato, mostrando-se também previstos prazos supletivos nos seus arts. 1026º e 1094º.      

Já no RAU, na subsecção referente aos “contratos de duração limitada”, no art. 98º estatuía-se o seguinte:

«1 - As partes podem estipular um prazo para a duração efetiva dos arrendamentos urbanos para habitação desde que a respetiva cláusula seja inserida no texto escrito do contrato, assinado pelas partes.

2 - O prazo referido no número anterior não pode, contudo, ser inferior a cinco anos.»

Ao passo que no respeitante aos contratos de arrendamento urbano para comércio e indústria, como é o dos presentes autos, se preceituava no seu art. 117º, nº 1[5] que «as partes podem convencionar um prazo para a duração efetiva dos arrendamentos urbanos para comércio ou indústria, desde que a respetiva cláusula seja inequivocamente prevista no texto do contrato, assinado pelas partes», sendo aplicável neste âmbito aos contratos de duração limitada, com as necessárias adaptações, o regime dos arts. 98º a 101º do RAU.

Ora, conforme se refere na sentença recorrida, a mera circunstância das partes, no contrato datado de 1.10.2023, preverem um prazo de vigência para o contrato de arrendamento não era bastante para o qualificar como contrato de duração limitada - hoje como contrato com prazo certo.

Com efeito, para que essa conclusão se pudesse extrair impunha-se uma previsão contratual da qual resultasse que os contraentes pretenderam que o prazo estipulado fosse o previsto para a duração efetiva do contrato.

Tal significa que no caso “sub judice” da simples indicação do prazo de um ano não se extrai a conclusão de que as partes pretenderam celebrar o contrato de arrendamento com um prazo efetivo - ou certo - e, por isso, como contrato de duração limitada. 

Em sintonia com a decisão recorrida, entendemos que para assim se concluir “necessário seria a manifestação inequívoca de tal vontade pela menção à expressão “duração limitada” ou a referência, por qualquer forma, à suscetibilidade de qualquer das partes poder pôr termo ao contrato no termo do prazo.”

5. Nesta linha há que ter em conta o Ac. STJ de 10.1.2023 (p. 2857/19.2T8OER.L1.S1, relator MANUEL CAPELO, disponível in www.dgsi.pt.), onde se escreveu o seguinte, embora no contexto de um contrato de arrendamento habitacional, mas transponível para os presentes autos:

“(…) se o estabelecimento do prazo de cinco anos no contrato pode ser um indicador seguro de que se pretendeu uma duração limitada, na falta de uma indicação que não desautorize esta conclusão (v.g. dizer-se expressamente que o contrato era de duração ilimitada), desde que não conste em cláusula este prazo de 5 anos e as partes não tenha[m] inequivocamente estipulado que pretendiam uma duração limitada, a fixação de qualquer outro prazo concreto (de seis meses como no caso se verifica[6]) não pode ter-se à luz das regra da boa interpretação enunciadas antes como indicador de um contrato de duração limitada. Porque os contratos de arrendamentos são “ontologicamente” temporários (a lei fixa-lhes um prazo máximo) por oposição a vitalícios, a circunstância de neles se indicar um período de vigência preenche a vontade das partes de fazerem figurar esse elemento indicativo tendo a lei previsto prazos supletivos quando a indicação não ocorra. Contudo, essa indicação expressa não permite que baste para a decisão de um contrato ser de duração limitada ou ilimitada nos termos da RAU que se tenha feito constar um prazo, seja ele qual seja. Nestes casos a quase totalidade dos contratos de arrendamento seria de duração limitada, transformando-se um regime especial num regime regra e impondo a adoção de formulação muito exigente para que o regime aplicável fosse o vinculístico, invertendo-se a exigência legal quanto à forma por que se deve manifestar a cláusula relativa ao estabelecimento de um prazo efetivo (veja-se o já citado artigo 98º, nº 1, do Regime do Arrendamento Urbano). Veja-se que no caso dos autos seria transformar a alusão a um prazo de vigência de seis meses (o mais curto nas previsões habituais em contratos de arrendamento) num contrato de duração limitada quando o mínimo exigível para essa limitação era de 5 anos.”

No mesmo sentido também aponta o Ac. Rel. Guimarães de 26.11.2022 (p. n.º5363/19.1T8GMR.G1, relator PAULO REIS, disponível in www.dgsi.pt.), onde se consignou o seguinte no respetivo sumário:

“(…)

II - O artigo 98.º do RAU, aplicável à data da celebração do contrato em análise, prevê a inserção de uma cláusula inequívoca de duração do contrato de «duração limitada» que tem de ser escrita e não pode ser inferior a cinco anos.

III - Da cláusula do contrato que estabelece que «o prazo de arrendamento é de um ano, prorrogável por iguais e sucessivos períodos», não decorre qualquer indicação, ainda que implícita, de que as partes pretenderam que o contrato celebrado pudesse ser denunciado livremente pelo senhorio, findo que fosse o prazo indicado, mas apenas e só que o prazo de um ano é prorrogável por iguais e sucessivos períodos, o que de resto é o normal nos contratos de duração indeterminada os quais implicam a renovação automática e ilimitada do vínculo contratual.

IV - A referência expressa, no contrato, ao prazo de um ano, prorrogável por iguais e sucessivos períodos, exclui a inequivocidade da declaração exigida pelo artigo 98.º do RAU para a qualificação do contrato como contrato de «duração limitada».”

Por seu turno, no Ac. Rel. Porto de 26.6.2017 (p.3974/16.6YLPRT.P1, relator CARLOS GIL, disponível in www.dgsi.pt.) escreve-se que «[a] indicação do prazo que consta do contrato de arrendamento é uma formulação habitual nos contratos de arrendamento de duração indeterminada, não se ajustando sequer esse prazo ao mínimo legalmente estabelecido para os contratos de duração limitada e que é de cinco anos.

O acordo das partes no contrato objeto destes autos no sentido da renovação do arrendamento por prazos iguais ao inicial aponta no sentido de se tratar de um contrato de arrendamento urbano sujeito ao regime geral e não ao regime dos arrendamentos de duração limitada (veja-se o nº 2, do artigo 1054º do Código Civil e confronte-se com o artigo 100º, nº 1, do Regime do Arrendamento Urbano), pois que no regime dos arrendamentos de duração limitada, as renovações são trienais, no mínimo.

Se acaso a interpretação da recorrente fosse correta, a quase totalidade dos contratos de arrendamento seria de duração limitada, transformando-se um regime especial num regime regra e impondo a adoção de formulação muito exigente para que o regime aplicável fosse o vinculístico, assim se invertendo a exigência legal quanto à forma por que se deve manifestar a cláusula relativa ao estabelecimento de um prazo efetivo (veja-se o já citado artigo 98º, nº 1, do Regime do Arrendamento Urbano).”

6. Assim, tendo-se em atenção tudo o que se deixou exposto e o corpo legislativo em vigor à data da celebração do contrato, teremos que concluir que, na falta de indicação no texto contratual de qualquer acordo das partes no sentido deste poder ser livremente denunciado pelo senhorio findo certo prazo, ou de se opor livremente à renovação do contrato, este não tem duração limitada. 

Aliás, face ao contexto descrito, esta é a interpretação que melhor se coaduna com as regras constantes dos arts. 236º a 238º do Cód. Civil, assim se concordando com a decisão recorrida, cuja argumentação largamente se seguiu.

7. O contrato de arrendamento urbano cessa por acordo das partes, resolução, caducidade, denúncia ou outras causas previstas na lei – cfr. art. 1079º do Cód. Civil.

Mas se estamos perante um contrato de arrendamento urbano para fim não habitacional com duração indeterminada, prescreve o art. 1099º do Cód. Civil que este cessa por denúncia de uma das partes, nos termos dos artigos seguintes.

Deste modo, face a este preceito legal, e uma vez que o contrato de arrendamento aqui em apreciação não tem duração limitada, a vontade do senhorio no sentido de lhe pôr termo apenas é relevante nos casos de denúncia previstos no art. 1101º do Cód. Civil, com as limitações decorrentes do art. 26º, nº 4, al. c) do NRAU[7], e não já através da mera oposição à renovação.

Consequentemente, não tem a autora o direito de fazer cessar o contrato de arrendamento celebrado entre as partes em 1.10.2023 por oposição à renovação, de tal forma que a carta que a autora dirigiu à ré, com esse propósito, em 15.5.2023 não é adequada à pretendida cessação do contrato.

Improcede, pois, o recurso interposto, o que implica a confirmação da sentença recorrida.


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Sumário (da responsabilidade do relator – art. 663º, nº 7 do Cód. de Proc. Civil):

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DECISÃO

Nos termos expostos, acordam os juízes que constituem este Tribunal em julgar improcedente o recurso de apelação interposto pela autora AA e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida.

Custas, pelo seu decaimento, a cargo da recorrente.


Porto, 10.7.2024
Rodrigues Pires
Maria da Luz Seabra
Fernando Vilares Ferreira
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[1] Cfr. MOTA PINTO, ob. cit., pág. 444.
[2] Cfr. MOTA PINTO, ob. cit., págs. 448/9; MANUEL DE ANDRADE, ob. cit., pág. 315.
[3] Estatui-se nesta norma que «A novação por substituição do credor dá-se quando um novo credor é substituído ao antigo, vinculando-se o devedor para com ele por uma nova obrigação; e a novação por substituição do devedor, quando um novo devedor, contraindo nova obrigação, é substituído ao antigo, que é exonerado pelo credor.»
[4] Dec. Lei nº 321-B/90, de 15.10.
[5] Redação introduzida pelo Dec. Lei nº 257/95, de 30.9.
[6] No nosso caso foi de um ano.
[7] Dispõe-se nesta norma que «4 - Os contratos sem duração limitada regem-se pelas regras aplicáveis aos contratos de duração indeterminada, com as seguintes especificidades: (…) c) O disposto na alínea c) do artigo 1101º do Código Civil não se aplica se o arrendatário tiver idade igual ou superior a 65 anos ou deficiência com grau comprovado de incapacidade igual ou superior a 60%.»