Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
4035/21.1T8VNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANA LUÍSA LOUREIRO
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL POR ACIDENTE DE VIAÇÃO
CIRCULAÇÃO EM AUTOESTRADA
ULTRAPASSAGEM
Nº do Documento: RP202407044035/21.1T8VNG.P1
Data do Acordão: 07/04/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O facto de circular em autoestrada não dispensa o condutor do dever de ter em consideração, em cumprimento do dever de cuidado, a possibilidade de surgimento de obstáculos pouco frequentes, como um veículo imobilizado na faixa de rodagem, por avaria ou acidente.
II - A realização de uma manobra de ultrapassagem em autoestrada exige do condutor, antes de a iniciar, não só que se certifique que nenhum veículo que circula atrás de si ou na via imediatamente à esquerda sinalizou ou iniciou manobra para o ultrapassar (art. 38.º, n.º 2, als. c) e d) do Cód. da Estrada) mas também que a faixa que vai ocupar e onde vai passar a circular para efetuar tal manobra se se encontra livre na extensão e largura necessárias à realização da manobra de ultrapassagem com segurança (arts. 38.º, n.º 1 e n.º 2 al. a), do Cód. da Estrada).
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo 4035/21.1T8VNG.P1 – Apelação

Tribunal a quo Juízo Local Cível de Vila Nova de Gaia – Juiz 4

Recorrente(s) AA

Recorrido(a/s) Companhia de Seguros A..., S.A.

Sumário

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Acordam na 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:

I – Relatório:

Identificação das partes e indicação do objeto do litígio

AA intentou a presente ação declarativa, com processo comum, contra Companhia de Seguros A..., S.A., pedindo que a ré seja condenada:

“a) A proceder à reparação do automóvel sinistrado, da marca BMW, modelo ..., do ano de 1991, com a matrícula ..-..-ML, propriedade do Autor.

Subsidiariamente,

b) Em caso de impossibilidade por parte da Ré de proceder à reparação do referido automóvel, deve aquela ser condenada a pagar ao Autor, a título de danos patrimoniais, a quantia de 27.204,38 (vinte e sete mil duzentos e quatro euros e trinta e oito cêntimos), correspondente ao custo estimado de reparação do mesmo, sem prejuízo de outro valor que se venha a apurar no âmbito da realização de uma perícia ao referido automóvel, ao abrigo do disposto nos arts. 467º e ss. do CPC, bem como após desmontagem do mesmo; quantia à qual deverão acrescer juros à taxa legal, desde a citação até efetivo e integral pagamento.

c) (…) a pagar ao Autor uma indemnização pelo dano resultante da privação temporária do gozo e fruição do referido bem móvel, que deve ser fixada por V. Ex.ª, com recurso à equidade, no montante de, pelo menos, 9,00 (nove euros) /dia, desde a data da ocorrência do acidente, isto é, 15/08/2020, até efetiva reparação do referido automóvel pela Ré; o que, na presente data, ascende ao montante de 2.502,00 (dois mil quinhentos e dois euros); quantia à qual deverão acrescer juros à taxa legal, desde a citação até efetivo e integral pagamento.”

Para tanto, alegou que foi interveniente num acidente de viação, que se ficou a dever a culpa exclusiva do condutor segurado da ré, pelo que esta é responsável pelos danos que lhe advieram do aludido acidente, incluindo o dano decorrente da privação do uso do veículo.

A ré apresentou contestação, impugnando a responsabilidade do condutor do veículo segurado, atribuindo a responsabilidade do acidente ao autor, alegando ainda que o custo da reparação, acrescido do valor do salvado, ultrapassa o valor comercial do veículo, não havendo lugar à reparação natural, impugnando o direito a indemnização por privação do uso.

Após realização da audiência final, o tribunal a quo decidiu:

«Face ao exposto, julgo a presente ação parcialmente procedente, por provada, e em consequência, condeno a ré Companhia de Seguros A..., SA, a pagar ao autor AA a quantia de 15.341,39€, acrescida dos juros de mora à taxa legal civil desde a data da presente decisão até integral pagamento, e ainda da quantia de 4,50€ por dia desde a data da presente decisão até pagamento da indemnização acima fixada, absolvendo do demais peticionado.»

Inconformado, o autor apelou desta decisão, concluindo, no essencial:

1.ª- Com a propositura da presente ação o Autor pretendeu ver indemnizados os danos que sofreu em consequência de um acidente de viação em que se viu envolvido no dia 15.08.2020, pelas 15.35 horas, quanto circulava pela Autoestrada ..., no sentido Norte/Sul e ao iniciar uma ultrapassagem a um outro veículo, deparou-se com o veículo com a matrícula ..-..-FD imobilizado na faixa central da referida via, sem qualquer sinalização que alertasse os restantes condutores para a sua presença ali, o que tornou inevitável o embate.

2.ª- (…) a razão da discordância do autor em relação ao julgado centra-se no facto de o Tribunal ter considerado que existiu um comportamento ilícito e culposo do autor que contribuiu, em proporção correspondente a 50%, para a ocorrência do acidente, justificando com isso uma redução em igual medida do valor da indemnização que o autor tem o direito a receber da ré para reparação dos danos resultantes do sinistro.

(…)

4.ª- O conceito de excesso de velocidade deve ser aferido pela incapacidade de executar as manobras cuja necessidade seja previsível, uma das quais é a de fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente, dependendo o apuramento de excesso de velocidade dos contornos peculiares de cada caso concreto, sendo que não basta embater para se concluir pelo excesso de velocidade;

5.ª- E para que exista culpa do autor é necessário que tenha ficado demonstrada a violação por ele regras de conduta estradal.

6ª- No caso em apreço (…) da simples leitura articulada da matéria de facto valorizada como “provada” pelo Tribunal recorrido se concluiu não ser possível imputar qualquer grau de responsabilidade do autor na causação do acidente em apreciação nos autos;

7.ª- O n.º 1 do artigo 24.º do C. E. ao prescrever que o condutor deve regular a velocidade de modo que, atendendo às características e estado da via e do veículo, à carga transportada, às condições meteorológicas ou ambientais, à intensidade do trânsito e a quaisquer outras circunstâncias relevantes, possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente, implica que se perceba que se pode circular dentro dos limites legalmente previstos e ainda assim circular em excesso de velocidade, sendo então o critério normativo de qualificação da velocidade como excessiva, o da possibilidade do condutor da viatura de detenção da marcha desta no espaço livre e visível à sua frente.

8.ª- Espaço livre e visível à sua frente é a porção de estrada isenta de obstáculos à frente do veículo abrangida pelas possibilidades visuais do condutor; mas “para a determinação do espaço livre e visível à frente do veículo não contam os obstáculos ou outras circunstâncias que surjam inopinadamente, cuja previsão não seja especialmente exigível ao condutor prudente, entendendo-se este como todo o indivíduo que conduz no respeito escrupuloso de todas as regras estabelecidas para o transito rodoviário, prevendo com tempo os obstáculos razoavelmente previsíveis e regulando a marcha por forma a ser detida, sempre que necessário, em condições de segurança” (cfr. A. A. Tolda Pinto, Código da Estrada e Legislação Complementar, 2ª ed., pág. 59).

9.ª- O conceito de excesso de velocidade deve ser aferido pela incapacidade de executar as manobras cuja necessidade seja previsível, uma das quais é a de fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente, dependendo o apuramento de excesso de velocidade dos contornos peculiares de cada caso concreto.

10.ª- Ou seja, este dispositivo estradal só funciona perante situações previsíveis para o condutor que com elas se depara e não em casos imprevisíveis, não se vendo como é que um condutor pode adequar a marcha do veículo que tripula, de modo a parar no espaço livre e visível à sua frente, quando o obstáculo lhe surge repentinamente e/ou de modo imprevisto ( Cfr. Ac. do TRE de 12.01.2023, proferido no processo n.º 9103/17.1T8STB.E1, acessível em www.dgsi.pt ).

11.ª- Seria claramente desproporcionado que o condutor tivesse de contar com o súbito aparecimento de peões a correr numa autoestrada, pois trata-se de um obstáculo absolutamente imprevisível, tanto mais que se trata de uma autoestrada.

12.ª- De acordo com os critérios de normalidade, de justa medida, da prudência necessária, não se pode atribuir culpa a um agente relativamente a consequências totalmente imprevistas para um homem médio.

Por outro lado,

13.ª- O Tribunal recorrido considerou como “não provado” que:

“27) O autor circulava em cumprimento dos limites de velocidade e de forma poder em condições de segurança executar uma manobra para evitar o embate com o veículo de matrícula ..-CI-..”;

14.ª- Qualquer tentativa de extrair conclusões acerca da velocidade de circulação de um veículo com base nos elementos da natureza daqueles de que o Tribunal se serviu para valorar “não provado” o transcrito facto, não passa de um exercício de adivinhação desprovido, sem qualquer suporte, seja nas regras da experiencia e da normalidade do acontecer, seja nas regras cientificas;

15.ª- No caso concreto que nos ocupa a única pessoa que pode falar com conhecimento de causa acerca da velocidade a que seguia foi o autor, aquando das suas “declarações de parte” na sessão de julgamento do dia 19.10.2023;

16.ª- Concretamente, nas passagens do seu depoimento compreendidas entre os minutos 00-03-10 e os minutos 00-03-16 e os minutos 00.03.30 e 00-03-40, o autor explicou toda a dinâmica do acidente, designadamente que, quando decidiu iniciar a ultrapassagem ao veículo que seguia à sua frente, tomou as cautelas necessárias em relação aos veículos que o precediam, e no preciso momento em que iniciou a ultrapassagem foi surpreendido pela presença na faixa central da autoestrada do veículo seguro pela ré.

17.ª- O que é corroborado, em termos das regras da experiência e da normalidade do acontecer, pelo facto de oi autor nem ter esboçado uma tentativa de travagem antes do embate.

18.ª-Mais explicou que circulava a uma velocidade normal para o local, no máximo a 120 quilómetros horas, e que não foi propriamente a velocidade que motivou o acidente, mas sim o caráter inopinado da presença do ..-..-FD no meio da faixa central da autoestrada (cfr. passagens do seu depoimento compreendidas entre os minutos 00-03-10 e os minutos 00-03-16 e os minutos 00.03.30 e 00-03-40).

19.ª- Não vendo razões para pôr em causa o depoimento do autor, que nos pareceu credível em tudo o que disse, julgamos que o Tribunal recorrido deveria ter dado como provado que:

“O autor circulava em cumprimento dos limites de velocidade e de forma poder em condições de segurança executar uma manobra para evitar o embate com o veículo de matrícula ..-CI-..”, assim essa manobra fosse previsível;

Ainda que assim se não entenda,

20.ª- Não será pelo facto de, no entendimento do Tribunal, ter dado como “não provado” que a o autor circulava em cumprimento dos limites de velocidade e de forma poder em condições de segurança executar uma manobra para evitar o embate com o veículo de matrícula ..-CI-.., que se pode concluir que o autor

“não circulava em cumprimento dos limites de velocidade, assim como não circulava de forma poder em condições de segurança executar uma manobra para evitar o embate com o veículo de matrícula ..-CI-..”.

21.ª- Em termos de distribuição do ónus da prova, ao autor cabia fazer prova dos pressupostos da responsabilidade civil: o facto ilícito e culposo do condutor do ..-..-FD, e o nexo de causalidade adequada entre aquele facto e o dano sofrido;

22.ª- Já o ónus da prova do caracter ilícito e culposo da conduta do autor no momento do acidente recaia sobre a companhia de seguros ré, que não logrou demonstrá-lo;

A apelada contra-alegou, pugnando pela manutenção de decisão do tribunal a quo recorrida.

II – Questões a decidir:

Face às conclusões das alegações de recurso da apelante (que – exceto quanto a questões de conhecimento oficioso – delimitam o objeto e âmbito do recurso, nos termos do disposto nos arts. 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1 e n.º 2, ambos do Cód. Proc. Civil), são as seguintes as questões suscitadas no recurso interposto:

– Impugnação da decisão respeitante à matéria de facto: consideração como provada da matéria vertida no n.º 27. dos factos não provados, aditando-se a tal matéria a seguinte expressão: “assim essa manobra fosse previsível”

– Responsabilidade causal pela ocorrência do sinistro (imputação exclusiva ao condutor do veículo seguro na ré por inexistência de ilicitude e de culpa do autor);

– Responsabilidade pelas custas.


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III – Fundamentação:

É o seguinte o teor da fundamentação de facto da sentença recorrida, na parte que releva para o conhecimento do objeto do recurso:

Factos provados

1. No dia 15 de agosto de 2020, pelas 15,35 horas, na Autoestrada ..., cerca do Km 294,200 atento o sentido norte-sul, ocorreu um embate entre os veículos ligeiros de passageiros da marca BMW, ..., do ano de 1991, com a matrícula ..-..-ML e Fiat ..., com a matrícula ..-..-FD.

2. O veículo com a matrícula ..-..-ML pertence ao autor e era conduzido por este no momento do embate, ao passo que a propriedade do veículo com a matrícula ..-..-FD está registada a favor de BB, sendo na altura conduzido por CC.

3. Naquele local, atento o sentido de circulação norte-sul, a ... é composta por três vias de trânsito, configurando uma reta em sentido ascendente.

4. Na altura, o tempo estava bom.

5. Nos momentos que precederam o embate referido em 1), por o condutor do veículo de matrícula ..-CI-.., que circulava naquele local, atento o mesmo sentido, ter ficado encadeado pelo sol vem a embater com a frente do seu veículo na traseira do veículo de matrícula ..-..-FD que circulava a sua frente.

6. Após esse primeiro embate, o condutor do veículo de matrícula ..-CI-.., desviou-se para a direita tendo imobilizado essa viatura na berma do lado direito, atento o seu sentido de marcha.

7. Tendo o veículo de matrícula ..-..-FD deixado de funcionar e ficado parado na faixa de rodagem central da autoestrada.

8. Cujo condutor saiu do seu interior e se deslocou para a berma do lado direito da autoestrada.

9. A imobilização do veículo de matrícula ..-..-FD era visível para os condutores que circulavam atrás de si a mais de 100 metros.

10. Naquele momento, o autor circulava na via de trânsito localizada mais à direita da referida autoestrada e pretendia fazer uma ultrapassagem a um veículo que circulava na mesma via imediatamente à sua frente.

11. Constatando que o podia fazer em segurança por nenhum veículo circular atrás de si, o autor efetuou a devida sinalização luminosa da mudança de via para a esquerda.

12. E passou a circular na via de trânsito central.

13. Nessa altura vendo à sua frente o veículo de matrícula ..-..-FD que ali se encontrava parado.

14. Sem que estivesse colocado na faixa de rodagem qualquer sinal de pré-sinalização de perigo, designadamente o triângulo ou estivessem ligados os sinais intermitentes de mudança de direção, vulgo piscas-piscas, do veículo de matrícula ..-..-FD.

15. Tornando inevitável a colisão, que se deu entre a parte dianteira esquerda do automóvel do autor e a parte traseira direita do Fiat ....

16. Na altura outros veículos circulavam pelo local, atento o sentido de marcha norte-sul.

17. Por força do embate, o veículo de matrícula ..-..-FD foi arrastado para a frente cerca de 38 metros, ficando imobilizado na faixa da esquerda.

18. E tendo o veículo de matrícula ..-..-ML sofrido extensos danos, designadamente no para-choques, capot, ópticas, guarda-lamas, periféricos do motor, radiador, admissão, eletrónicas e outros, tendo a sua reparação sido orçada em 30.277,77€, tudo conforme termos do anexo ao relatório pericial junto a 15 de março de 2023, cujo teor aqui se dá por reproduzido.

19. Danos que impossibilitam o veículo de matrícula ..-..-ML de circular.

20. Por carta datada de 30 de setembro de 2020, enviada pela ré à autora, por esta foi dito declinar a responsabilidade pela reparação dos danos decorrentes do sinistro, acrescentando que o custo estimado de reparação do veículo ascendia a 27.204,38€, o que ultrapassa o valor de 25.000€ que tinha antes daquele acidente, tudo conforme termos do documento 4 junto com a petição inicial, cujo teor se dá por reproduzido.

21. A ré estimou o valor dos salvados em 3.251€.

22. O veículo de matrícula ..-..-ML é um modelo com um motor de 12 cilindros (motor BMW), modelo de série limitada com apenas aproximadamente 20 mil exemplares produzidos, não sendo fácil encontrar e adquirir um automóvel da mesma marca e modelo, com caraterísticas semelhantes.

23. Tende a valorizar de forma inconstante devido ao seu estatuto de clássico, que não obedece às regras de desvalorização do mercado regular.

24. Antes do acidente, tinha um valor aproximado de 39.950€.

25. O autor utilizava o veículo de matrícula ..-..-ML essencialmente quando saía em lazer, incluindo com os seus familiares diretos.

26. À data do embate a responsabilidade civil pela circulação do veículo automóvel de matrícula ..-..-FD havia sido transferido para a ré, através da apólice n.º ..., tudo conforme termos do documento 11 junto com a contestação, cujo teor aqui se dá por reproduzido.

Factos não provados

27. O autor circulava em cumprimento dos limites de velocidade e de forma poder em condições de segurança executar uma manobra para evitar o embate com o veículo de matrícula ..-CI-...

28. O autor utilizava o veículo de matrícula ..-..-ML diariamente e também para se deslocar para o seu local de trabalho e realizar tarefas domésticas.

29. Após o embate com o veículo de matrícula ..-CI-.., CC começou a sinalizar com os braços a imobilização da viatura de matrícula ..-..-FD que conduzia.

30. O condutor do veículo de matrícula ..-..-ML circulava a uma velocidade superior a 140kms/hora.

31. O veículo de matrícula ..-..-ML valia antes do acidente 25.000€.


Impugnação da decisão sobre a matéria de facto

Pretende o apelante se considere provada a matéria incluída no ponto 27. dos factos não provados – «O autor circulava em cumprimento dos limites de velocidade e de forma poder em condições de segurança executar uma manobra para evitar o embate com o veículo de matrícula ..-CI-..» –, aditando-se-lhe «assim essa manobra fosse previsível». Indica como meio de prova justificativo da pretendida alteração as declarações de parte prestadas pelo autor.

Pretende, assim, o autor que, eliminando-se o n.º 27. dos factos não provados, se adite aos factos provados o seguinte:

O autor circulava em cumprimento dos limites de velocidade e de forma poder em condições de segurança executar uma manobra para evitar o embate com o veículo de matrícula ..-CI-.., assim essa manobra fosse previsível.

O texto que o apelante entende que seja incluído nos factos provados constitui uma conclusão desprovida do necessário e competente suporte factual. Para se poder concluir que o autor circulava em cumprimento dos limites de velocidade, era necessário estarem alegadas e provadas a velocidade a que o autor circulava e o limite de velocidade vigente naquele local.

A previsibilidade ou imprevisibilidade da manobra necessária a evitar o embate também é uma conclusão, a retirar da factualidade apurada.

Nos termos do disposto no art. 607.º, n.º 4 e n.º 5, do Cód. Proc. Civil, na sentença o juiz declara os factos que julga provados e quais os que julga não provados.

Factos são «(…) acontecimentos concretos da vida, reais ou hipotéticos, que sirvam de pressuposto às normas legais aplicáveis, não obstando, por conseguinte, que se considere, como realidades suscetíveis de averiguação e demonstração, as ocorrências virtuais ou factos hipotéticos quando constituem uma consequência lógica retirada de factos simples e apreensíveis, não decorram da interpretação e aplicação de regras de direito e não contenham, em si, uma valoração jurídica que, de algum modo, represente o sentido da solução final do litígio (…)»[1].

O desaparecimento no atual Cód. Proc. Civil do art. 646.º, n.º 4, do anterior Cód. Proc. Civil de 95/96 – que dispunha que “Têm-se por não escritas as respostas do tribunal coletivo sobre questões de direito e bem assim as dadas sobre factos que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes.” – deveu-se unicamente à expressa consagração, na reforma de 2013, do fim do tribunal de estrutura coletiva nos julgamentos em sede de primeira instância (que já praticamente não operava, desde a alteração legislativa do DL n.º 183/2000, de 10 de agosto); dessa eliminação não se retira qualquer alteração quanto ao que pode e deve integrar a decisão de facto, nem quanto à inadmissibilidade de inclusão na decisão da matéria de facto da sentença de afirmações genéricas, conclusivas ou que comportem matéria de direito.

Assim, mantém-se no atual Código de Processo Civil a inadmissibilidade de inclusão na decisão de facto de afirmações genéricas, conclusivas ou que comportem matéria de direito, quando  “(…) um ponto da matéria de facto integre uma afirmação ou valoração de factos que se insira na análise das questões jurídicas que definem o objecto da acção, comportando uma resposta, ou componente de resposta àquelas questões, o mesmo deve ser eliminado. (…)[2].

Improcede – porque não se está aqui perante matéria de facto, mas antes perante juízos conclusivos, que não podem nem devem integrar a decisão de facto –, a requerida alteração dos factos provados (sendo que, não assumindo os factos não provados nenhum papel ou relevância na decisão da causa, é despicienda, porque inconsequente no âmbito do recurso, a eliminação do referido ponto 27. dos factos não provados).


Análise dos factos e aplicação da lei

1. Contributo causal para o sinistro

Insurge-se o autor contra a decisão do tribunal recorrido no sentido de considerar que o autor teve um contributo causal de 50% para a ocorrência do sinistro, defendendo que da matéria de facto apurada não resulta ter havido qualquer violação pelo autor de regras de conduta estradal, uma vez que era absolutamente imprevisível para o autor a circunstância de, ao iniciar uma ultrapassagem a um outro veículo, ter-se deparado com o veículo com a matrícula ..-..-FD imobilizado na faixa central, uma vez que para «(…) para a determinação do espaço livre e visível à frente do veículo não contam os obstáculos ou outras circunstâncias que surjam inopinadamente, cuja previsão não seja especialmente exigível ao condutor prudente, entendendo-se este como todo o indivíduo que conduz no respeito escrupuloso de todas as regras estabelecidas para o transito rodoviário, prevendo com tempo os obstáculos razoavelmente previsíveis e regulando a marcha por forma a ser detida, sempre que necessário, em condições de segurança” (cfr. A. A. Tolda Pinto, Código da Estrada e Legislação Complementar, 2ª ed., pág. 59).».
A sentença recorrida considerou que o autor também contribuiu para a produção do acidente, formulando o juízo de que a velocidade – não apurada – e o modo como o mesmo circulava não lhe permitiam que pudesse, em condições de segurança, executar uma manobra para evitar o embate com o veículo de matrícula ..-CI-... Fundamentou tal conclusão nos seguintes termos: “A esta conclusão chega-se pela fraca convicção do depoimento prestado pelo autor (o tribunal refere-se a esta questão concreta da velocidade), ao facto do Fiat ... ser visível a mais de 100 metros de distancia, do autor não ter travado, de não ter procurado evitar o embate, designadamente desviando-se para a esquerda, do embate ter ocorrido numa reta em sentido ascendente e do veículo do autor ter arrastado o Fiat ... por cerca de 38 metros até se imobilizarem no separador central.” E considerou que “também o autor contribuiu para a produção do acidente, agindo em contravenção ao disposto no artigo 24.º, 1, do CE, que impõe um princípio geral do condutor regular a velocidade de modo a que possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever, comportamento omitido pelo autor que podia e devia ter evitado, razão pela qual a presente situação deve ser vista à luz do artigo 570.º, do CC, considerando o tribunal uma repartição de culpas de 50% para cada condutor, na impossibilidade de estabelecer uma ponderação diferenciada das culpas e por recurso ao critério oferecido pelo artigo 506.º, 2, do CC.

Vejamos.
Resulta da fundamentação de facto que o embate ocorreu no dia 15 de agosto de 2020, pelas 15h35m, na ..., num dia em que o tempo estava bom.
No local, atento o sentido de circulação norte-sul, a ... é composta por três vias de trânsito, configurando uma reta em sentido ascendente.
Em consequência de um anterior embate, o condutor de um dos dois veículos nele intervenientes havia imobilizado a sua viatura na berma do lado direito, atento o seu sentido de marcha, sendo que o outro veículo embatido, de matrícula ..-..-FD, por ter deixado de funcionar, ficou parado na faixa de rodagem central da autoestrada, tendo o respetivo condutor saído do seu interior e deslocado-se para a berma do lado direito da autoestrada.
A imobilização do veículo de matrícula ..-..-FD era visível para os condutores que circulavam atrás de si a mais de 100 metros.
É nestas circunstâncias que o autor, que circulava na via de trânsito localizada mais à direita da referida autoestrada e pretendia fazer uma ultrapassagem a um veículo que circulava na mesma via imediatamente à sua frente, decide executar tal manobra, tendo antes verificado que a podia iniciar por nenhum veículo circular atrás de si, sinalizando a manobra de mudança de via para a esquerdar e passando a circular na via de trânsito central, altura em que vê à sua frente o veículo de matrícula ..-..-FD.
O autor não consegue evitar o embate – que se deu entre a parte dianteira esquerda do automóvel do autor e a parte traseira direita do veículo imobilizado na faixa central – e, por força do referido embate, o veículo que se encontrava imobilizado na faixa central foi arrastado para a frente cerca de 38 metros, ficando imobilizado na faixa da esquerda.
São estes os factos, e é perante estes factos que há que determinar se houve concorrência causal de uma conduta do autor ilícita e culposa para a ocorrência do acidente.
Nas autoestradas, o limite geral de velocidade para os veículos como o do autor – veículo ligeiro de passageiros – é de 120 km/h (art. 27.º do Cód. da estrada). No entanto, como resulta da leitura articulada do disposto neste art. 27.º e do disposto no art. 24.º, ambos do Cód. da Estrada, este limite geral de velocidade – velocidade máxima a que um veículo está autorizado a circular em autoestrada – não significa que o condutor não esteja obrigado a circular a velocidade inferior. Tal resulta claramente da ressalva efetuada no n.º 1 do art. 27.º do Cód. da Estrada: «(…) 1 - Sem prejuízo do disposto nos artigos 24.º e 25.º e de limites inferiores que lhes sejam impostos, os condutores não podem exceder as seguintes velocidades instantâneas (em quilómetros/hora): (…)».
O art. 24.º do Cód. da Estrada dispõe sobre os princípios gerais referentes a velocidade, nos seguintes termos:
SECÇÃO III
Velocidade
Artigo 24.º
Princípios gerais
1 – O condutor deve regular a velocidade de modo a que, atendendo à presença de outros utilizadores, em particular os vulneráveis, às características e estado da via e do veículo, à carga transportada, às condições meteorológicas ou ambientais, à intensidade do trânsito e a quaisquer outras circunstâncias relevantes, possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente.

O apelante centra a sua argumentação recursiva no facto de, por ser imprevisível para o autor a presença do veículo parado na via central da auto estrada, não se encontrar o obrigado a adequar a sua velocidade de circulação ao possível aparecimento de tal obstáculo.
Como é referido na transcrição parcial efetuada na decisão recorrida do Acórdão deste Tribunal da Relação do Porto de 25-03-2021, Proc. n.º 2716/19.9T8PRD.P1, relatado pelo aqui 2.º adjunto, que subscrevemos e reiteramos, «(…) a ideia de que os condutores não têm de contar com (de conformar a sua actuação em função de) eventos imprevistos, como o aparecimento de obstáculos na faixa de rodagem, sejam eles peões, veículos parados, líquidos que reduzam ou eliminem a aderência ou animais, não pode ser levada longe de mais. Aligeirar o dever dos condutores de serem cautelosos e prudentes e evitarem avaliações temerárias e conduções ousadas é, com todo o devido respeito por opinião contrária, contribuir para os enormes custos humanos que a circulação rodoviária tem no mundo actual e em particular no nosso país.
A auto-estrada não é uma pista automóvel, não é um circuito fechado destinado à circulação de um veículo de cada vez. É uma via, como todas as outras, cuja utilização deve ser regida pelo cuidado, pela precaução, pela atenção, pelo bom senso, pela consciência dos perigos e dos riscos. Sendo certo que é pouco frequente (e por isso menos previsível) que os condutores que circulam nas auto-estradas se deparem com algum daqueles elementos, tal circunstância não é de todo invulgar ou improvável. Os acidentes com a presença deles são bem conhecidos, divulgados nos meios de comunicação e muito frequentemente geradores de impressionantes danos pessoais e materiais pelo número de pessoas e veículos envolvidos.
A afirmação de que o condutor não tem de prever que se vai deparar com a presença de um veículo a obstruir a faixa de rodagem não pode pois afastar a exigência de que ele imprima ao seu veículo uma velocidade que, em caso de necessidade, lhe permita imobilizar-se antes do obstáculo.
Pensar diferentemente é, cremos, olvidar que as regras jurídicas visam essencialmente a imposição de regras de conduta, ajustando a liberdade de cada um ao necessário à coexistência e convivência da colectividade. Nas actividades de risco o objectivo do direito é mesmo o de reduzir esse risco a valores aceitáveis, o que se procura alcançar impondo aos agentes deveres de actuação para diminuir o risco, designadamente responsabilizando-os independentemente de culpa para que a ameaça dessa consequência os leve a adoptar os cuidados indispensáveis para a eliminação ou redução do risco.
A previsibilidade está associada ao desconhecido, à probabilidade de um evento incerto ocorrer, mas o dever de actuação, rectius, a amplitude do dever de actuação, é dependência dos factores que se conhecem e dominam. Não há razão para que numa actividade de risco, numa situação em que as velocidades e as dimensões dos veículos podem causar elevados danos pessoais e materiais, seja permitido ao condutor, perante o desconhecido, confiar sem mais, ao invés de se lhe exigir que seja prudente e cauteloso. Se o condutor não tem visibilidade para além de determinado ponto (v.g. é uma curva, está nevoeiro, chove muito) não deve confiar que para além dele tudo estará livre; pelo contrário, deve ser mais cauteloso, prudente, previdente. (…)».
Mas acresce ainda o seguinte.
Nas circunstâncias concretas do caso sub judice, o autor circula numa autoestrada com 3 vias de trânsito, pela faixa mais à direita, e decide efetuar uma manobra de ultrapassagem do veículo que circula à sua frente.
Resulta do disposto no art. 35.º, n.º 1, do Cód. da Estrada, que o condutor só pode efetuar a manobra de ultrapassagem em local e por forma que da sua realização não resulte perigo ou embaraço para o trânsito.
Por seu turno, resulta do disposto no art. 38.º, n.º 1, do Cód. da Estrada – que dispõe sobre a realização da manobra de ultrapassagem – que «O condutor de veículo não deve iniciar a ultrapassagem sem se certificar de que a pode realizar sem perigo de colidir com veículo que transite no mesmo sentido ou em sentido contrário.».
Daqui resulta que o autor estava obrigado, antes de iniciar a manobra de ultrapassagem, a certificar-se que a  faixa central se encontrava livre na extensão e largura necessárias à realização da manobra com segurança (art. 38.º, n.º 2, al. a), do Cód. da Estrada), e não apenas a certificar-se que nenhum veículo circulava atrás de si (art. 38.º, n.º 2, als. c) e d) do Cód. da Estrada, e n.º 11. dos factos provados).
Da leitura conjugada dos n.os 10. a 13. com o n.º 9. dos factos provados resulta provado o incumprimento pelo autor, aqui apelante, do disposto nos citados arts. 35.º, n.º 1, e 38.º, n.º 1 e n.º 2, al. a), todos do Cód. da Estrada, o que integra uma violação das regras de conduta estradal, ilícita e culposa, e causal ao embate que veio a ocorrer.

Concluímos, assim, pela improcedência do recurso,

2. Responsabilidade pelas custas

A decisão sobre custas da apelação, quando se mostrem previamente liquidadas as taxas de justiça que sejam devidas, tende a repercutir-se apenas na reclamação de custas de parte (art. 25.º do Reg. Cus. Proc.).

A responsabilidade pelas custas do recurso cabe ao apelante, por ter ficado vencido (art. 527.º do Cód. Proc. Civil).

IV. Dispositivo

Pelo exposto, acorda-se em negar provimento ao recurso, confirmando-se a sentença apelada.

Custas a cargo do apelante, por ter ficado vencido (art. 527.º do Cód. Proc. Civil).

Notifique.


Porto, 4 de julho de 2024
Ana Luísa Loureiro
Manuela Machado
Aristides Rodrigues de Almeida
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[1] Assim, Ac. do STJ de 18-10-2018, processo n.º 3499/11.6TJVNF.G1.S2, acessível na íntegra na base de dados de jurisprudência do IGFEJ - http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/
[2] Assim, Ac. do Tribunal da Relação de Évora de 28-06-2018, processo n.º 170/16.6T8MMN.E1 - http://www.dgsi.pt/jtre.nsf/.