Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
15212/21.5T8PRT.P2
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RODRIGUES PIRES
Descritores: INEPTIDÃO DA PETIÇÃO INICIAL
INCOMPATIBILIDADE DE PEDIDOS
REIVINDICAÇÃO
NULIDADE POR SIMULAÇÃO
Nº do Documento: RP2024091015212/21.5T8PRT.P1
Data do Acordão: 09/10/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: Só ocorre incompatibilidade substancial dos pedidos quando os efeitos jurídicos que com eles se pretendem obter estão, entre si, numa relação de oposição ou contrariedade, de tal modo que o reconhecimento de um é a negação dos demais.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 15212/21.5T8PRT.P2

Comarca do Porto – Juízo Central Cível do Porto – Juiz 4

Apelação

Recorrente: “A..., Unipessoal, Lda.”

Relator: Eduardo Rodrigues Pires

Adjuntos: Desembargadores Lina Baptista e Artur Dionísio Oliveira

Acordam na secção cível do Tribunal da Relação do Porto:

RELATÓRIO

Os autores AA e BB e “A..., Unipessoal, Lda.” intentaram a presente ação de processo comum contra os réus CC, DD, EE, FF e GG, tendo formulado os seguintes pedidos:

A) Serem declarados os 1ºs Autores como donos e legítimos proprietários de um prédio rústico denominado “...”, situado no lugar de ..., Freguesia ..., do concelho de Gondomar, descrito na Conservatória do Registo Predial de Gondomar sob o número ..., da Freguesia ..., e inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ... (anterior artigo ... da Freguesia ...), da União de Freguesias ... e ..., com a área total de 1.161m2 e melhor identificado com a letra B no levantamento topográfico anexo como doc. n.º 4.

B) Serem declarados os 1ºs Autores como donos e legítimos proprietários de um prédio rústico, omisso na matriz e na conservatória do Registo Predial, melhor identificado com a letra E no levantamento topográfico anexo como doc n.º 4, com a área de 355m2, a qual adquiriram ao 2º Réu, conforme declaração notarial outorgada por este em 17/09/2018.

C) Ser declarada a 2ª Autora como dona e legítima proprietária de um prédio rústico denominado “...”, situado no lugar de ..., Freguesia ... e ..., do concelho de Gondomar, descrito na Conservatória do Registo Predial de Gondomar sob o número ..., da Freguesia ..., e inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ... (anterior artigo ... da Freguesia ...), da União de Freguesias ... e ..., com a área total de 3.973m2 e melhor identificado com a letra F no levantamento topográfico anexo como doc n.º 4.

D) Serem os Réus condenados a reconhecer o direito de propriedade dos Autores sobre os imóveis melhor identificados em A) a C) deste pedido;

E) Ser o 1º Réu condenado a restituir aos Autores os imóveis em causa, livres e devolutos de pessoas e bens, em bom estado de conservação e em perfeitas condições;

F) Ser declarada a simulação do negócio celebrado entre o 1º e 2º Réus e, em consequência, ser declarada a nulidade do documento particular autenticado de doação, outorgado em 11/05/2019 pelos 1º e 2º Réus perante o Senhor Solicitador HH titular da cédula profissional n.º ..., com domicílio profissional na Rua ..., ..., Valongo, pelo mesmo provir de negócio simulado;

G) Ser o 1º Réu condenado ao pagamento de uma indemnização pela privação do uso dos Autores dos seus imóveis, no valor diário de €200,00 (duzentos euros), até à entrega do mesmo, e que nesta data ascende a €29.000,00 (vinte e nove mil euros);

H) Ser o 1º Réu condenado ao pagamento de uma indemnização em valor não inferior a €14.000,00 (quatorze mil euros) no cômputo total de danos patrimoniais e não patrimoniais, pelos prejuízos e danos sofridos pelos Autores;

I) Ser o 2º réu condenado ao pagamento de uma indemnização em valor não inferior a €20.000,00 (vinte mil euros) no cômputo total de danos patrimoniais e não patrimoniais, pelos prejuízos e danos sofridos pelos 1ºs Autores, caso se prove que este transmitiu direitos conflituantes entre si;

J) Ser declarada a confinância dos prédios descritos em 1, 4, 9, 12 a 16 da Petição Inicial, constantes no levantamento topográfico junto como doc n.º 4;

K) Serem os Réus condenados a demarcar as estremas entre o seu próprio prédio e os prédios confinantes.

O réu CC apresentou contestação, na qual, para além de impugnar os factos, se defendeu por exceção e formulou reconvenção, em que peticiona se declare nula e de nenhum efeito a doação da parcela de terreno que resulta do documento 8 junto com a petição inicial.

O réu DD também apresentou contestação, pugnando pela improcedência da ação.

Apresentou igualmente contestação o réu EE, sustentando a improcedência da ação relativamente a qualquer pedido indemnizatório e a sua procedência quanto à demarcação, tal como sustentou a procedência da reconvenção que deduziu, sendo:

a) Os contestantes declarados como donos e legítimos proprietários de um prédio rústico denominado “...” situado no lugar de ..., Freguesia da União das Freguesias ... e ..., Concelho de Gondomar, descrito na Conservatória do Registo Predial de Gondomar sob o número ..., da Freguesia ..., inscrito na matriz predial respectiva sob o artigo ... (anterior artigo matricial rústico n.º ... da Freguesia ...) da referida União de Freguesias, com a área total de 1.579m2 e melhor identificado com a letra C no levantamento topográfico anexo à Petição Inicial - Vide documentos n.ºs 4, 9, 10 e 11 da Petição Inicial;

b) Os contestantes declarados como donos e legítimos proprietários de um prédio rústico omisso na matriz predial rústica e não descrito na Conservatória do Registo predial, com a área de 73m2, melhor identificado como H no levantamento topográfico junto com a Petição Inicial, o qual adquiriram ao 2º Réu, conforme declaração notarial outorgada por este em 25/10/2019;

c) Os Autores e demais Réus condenados a reconhecer o direito de propriedade dos Contestantes sobre os imóveis melhor identificados em a) e b) deste pedido;

d) O 1º Réu condenado a restituir aos Autores os imóveis em causa, livres e devolutos de pessoas e bens, em bom estado de conservação e em perfeitas condições;

e) O 1º Réu condenado ao pagamento de uma indemnização pela privação do uso dos Autores dos seus imóveis, no valor diário de €150,00 (cento e cinquenta euros), até à entrega do mesmo, e que nesta data ascende a €27.300,00 (vinte e sete mil e trezentos euros);

f) O 1º Réu condenado ao pagamento de uma indemnização em valor não inferior a €9.100,00 (nove mil e cem euros) no cômputo total de danos patrimoniais e não patrimoniais, pelos prejuízos e danos sofridos pelos Autores;

g) O 2º réu condenado ao pagamento de uma indemnização em valor não inferior a €23.000,00 (vinte e três mil euros) no cômputo total de danos patrimoniais e não patrimoniais, pelos prejuízos e danos sofridos pelos 1ºs Autores, caso se prove que este transmitiu direitos conflituantes entre si;

h) Todos os Réus condenados a demarcar as estremas entre o seu próprio prédio e os prédios confinantes.

Os autores apresentaram réplica.

Em sede de audiência prévia efetuada em 20.6.2022 consignou-se o seguinte na respetiva ata:

“(…) pela Mma. Sra. Juiz, foi tentada a conciliação das partes que não se logrou alcançar, tendo os Ilustres mandatários das partes declarado que, não lhes é possível efectuar neste momento qualquer acordo, tendo em conta a necessidade de promoverem uma visita conjunta ao local, em ordem a efectuar medições no terreno para que a transação nos presentes autos possa ser eventualmente concretizada, tendo então conjuntamente apresentado requerimento nos termos seguintes:

Afigura-se às partes que, uma deslocação ao local, na companhia de topógrafo e das partes, com intuito de visualizar os marcos existentes no local, permitirá a possibilidade séria de se alcançar um acordo entre os litigantes e, evitar que o processo prossiga para julgamento.

Com este propósito e com o acordo de todos, solicita-se ao tribunal a suspensão da instância, por 30 dias, para os mandatários acompanharem a diligência que se impõe e, do resultado da mesma darão nota ao tribunal.

Pela Mma. Juiz [foi] então proferido o seguinte DESPACHO:

Face ao alegado e, revelando-se até oportuno face à matéria alegada, que tal diligência seja realizada antes da produção da prova a ter eventualmente lugar no âmbito do julgamento, ao abrigo 272 nº 4 do CPC suspendo a instância pelo prazo de 30 dias.

Findo o decurso do prazo e, caso nada seja requerido pelas partes, determina-se que os autos sejam feitos conclusos para ser proferido despacho saneador.”

Em 30.8.2022 os autores vieram reduzir o pedido nos termos do art. 265º, n.º 2 do Cód. de Processo Civil, consubstanciando-se a referida redução na eliminação da alínea k) do seu pedido e, consequentemente, na absolvição da instância da 4ª e 5º réus, porquanto passam a ser partes ilegítimas nos autos.

Em 17.10.2022 o réu EE veio reduzir o seu pedido, fundando-se no disposto no art. 265º, n.º 2 do Cód. de Processo Civil, através da eliminação da alínea h) do pedido reconvencional, com a consequente absolvição da instância dos 4.ª e 5.º réus, porquanto foram chamados à instância unicamente em função desse pedido.

Em 21.10.2022 a Mmª Juíza “a quo” proferiu o seguinte despacho:

“Ref. 43133997: admite-se a redução do pedido formulada pelos Autores, absolvendo os RR. do pedido formulado em k).

Notifique.


*

Admite-se a redução do pedido reconvencional - al. H) - formulado pelos RR. EE e II.

Notifique.


*

Compulsados os autos para elaboração de despacho saneador, e após as reduções dos pedidos formuladas pelas partes cumpre salientar o seguinte:

Atentos os pedidos formulados e os factos que os suportam, constata-se que estamos em presença de duas relações jurídicas autónomas:

- por um lado a alegada violação do direito de propriedade dos AA., mediante a invasão de uma faixa do seu terreno pelo 1º R.;

- por outro lado o alegado negocio celebrado entre o 1º e º 2 R. (uma doação que esconde uma compra e venda) feita com o intuito de negar ao autor o direito de preferência previsto no artº 1380º do CCivil.

Ora, sendo diversas as causas de pedir e não estando os pedidos formulados de A) a E) e G) a J) numa relação de prejudicialidade ou dependência com o pedido identificado em F, não dependendo a procedência deste último da apreciação dos mesmos factos que suportam os outros, nem implicando a interpretação e aplicação das mesmas regras de direito, verifica-se ocorrer coligação ilegal de réus (cfr. o citado art. 36º do Código de Processo Civil).

Uma vez que o tribunal pondera conhecer oficiosamente da excepção dilatória referida, concede-se o prazo de 10 dias para as partes, querendo, se pronunciarem sobre a mesma.”

Em 4.11.2022 os autores pronunciaram-se no sentido da improcedência da exceção de coligação ilegal de réus, devendo os autos prosseguir os seus termos.

Em 7.11.2022 o réu CC pronunciou-se no sentido de que se deve conhecer da ilegalidade da coligação e decidir-se em conformidade.

Também em 7.11.2022 o réu EE se pronunciou, sustentando que a exceção de coligação ilegal de réus deve ser julgada improcedente, prosseguindo os autos a sua tramitação com vista à apreciação dos pedidos formulados pelas partes.

Em 12.2.2023 a Mmª Juíza “a quo” proferiu a seguinte decisão:

“Dispenso a audiência prévia- artº 592º nº1 b) do CPC.


*

Fixa-se o valor da acção em € 198.403,73 (artº 297º n1, 299º e 306 º n2 do CPC).

*

O tribunal é competente em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia.

Excepção dilatória de ineptidão da petição inicial:

Por entender que os AA. no requerimento com a ref. 43133997 já ponderaram e se manifestaram sobre a cumulação de pedidos efectuados nos autos (e da sua compatibilidade) o tribunal passará a apreciar a questão, antes de apreciar a coligação ilegal dos RR., que pode desde logo ficar prejudicada pela apreciação da questão enunciada.

Vejamos então.

O pedido, na sua vertente substantiva, consiste no efeito jurídico que o autor pretende obter com a ação. É a afirmação postulativa do efeito prático-jurídico pretendido, (nº 3 do artigo 581º do Código de Processo Civil).

O autor pode, como é sabido, deduzir vários pedidos cumulativos contra o réu, desde que, eles sejam entre si substancialmente compatíveis, não se verifiquem as circunstâncias que impedem a coligação (...), de harmonia com a disciplina impressa no nº 1 do artigo 555º do CPC.

Para a avaliação da (in)compatibilidade substancial dos pedidos formulados na ação só relevam os pedidos que são formulados em simultâneo. É que o juiz tem de conhecer da totalidade das pretensões assim deduzidas o que já não acontece quando estamos perante pretensões alternativas ou subsidiárias.

Os pedidos dizem-se substancialmente incompatíveis quando nos efeitos jurídicos que visam produzir, com a procedência da ação, cada um deles exclua a possibilidade de verificação de cada um dos outros. Em tal caso, há ininteligibilidade da petição.

Esta incompatibilidade tanto pode resultar de pedidos que mutuamente se excluam, como de pedidos que assentam em causas de pedir inconciliáveis. Neste sentido Alberto dos Reis, “Comentário ao Código de Processo Civil”, vol. 2º, Coimbra Editora, pág. 389.

No mesmo sentido, o Professor Antunes Varela sustenta que “devem considerar-se incompatíveis não só os pedidos que mutuamente se excluem, mas também os que assentam em causas de pedir inconciliáveis” (Manual de Processo Civil, 2ª ed., Coimbra Editora, 1985, pág. 246).

São exemplos académicos de pedidos substancialmente incompatíveis, o pedido de anulabilidade do contrato cumulado com o pedido de condenação do réu na prestação contratual, (como se este permanecesse válido) ou o pedido de divórcio cumulado com o pedido de anulação do casamento.

Vejamos então os pedidos concretos formulados na presente acção pelos Autores:

A) Serem declarados os 1ºs Autores como donos e legítimos proprietários de um prédio rústico denominado “...”, situado no lugar de ..., Freguesia ..., do concelho de Gondomar, descrito na Conservatória do Registo Predial de Gondomar sob o número ..., da Freguesia ..., e inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ... (anterior artigo ... da Freguesia ...), da União de Freguesias de ... ... e ..., com a área total de 1.161m2 e melhor identificado com a letra B no levantamento topográfico anexo como doc. n.º 4.

B) Serem declarados os 1ºs Autores como donos e legítimos proprietários de um prédio rústico, omisso na matriz e na conservatória do Registo Predial, melhor identificado com a letra E no levantamento topográfico anexo como doc n.º 4, com a área de 355m2, a qual adquiriram ao 2º Réu, conforme declaração notarial outorgada por este em 17/09/2018.

C) Ser declarada a 2ª Autora como dona e legítima proprietária de um prédio rústico denominado “...”, situado no lugar de ..., Freguesia ... e ..., do concelho de Gondomar, descrito na Conservatória do Registo Predial de Gondomar sob o número ..., da Freguesia ..., e inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ... (anterior artigo ... da Freguesia ...), da União de Freguesias ... e ..., com a área total de 3.973m2 e melhor identificado com a letra F no levantamento topográfico anexo como doc n.º 4.

D) Serem os Réus condenados a reconhecer o direito de propriedade dos Autores sobre os imóveis melhor identificados em A) a C) deste pedido;

E) Ser o 1º Réu condenado a restituir aos Autores os imóveis em causa, livres e devolutos de pessoas e bens, em bom estado de conservação e em perfeitas condições;

F) Ser declarada a simulação do negócio celebrado entre o 1º e 2º Réus e, em consequência, ser declarada a nulidade do documento particular autenticado de doação, outorgado em 11/05/2019 pelos 1º e 2º Réus perante o Senhor Solicitador HH titular da cédula profissional n.º ..., com domicílio profissional na Rua ..., ..., Valongo, pelo mesmo provir de negócio simulado;

G) Ser o 1º Réu condenado ao pagamento de uma indemnização pela privação do uso dos Autores dos seus imóveis, no valor diário de € 200,00 (duzentos euros), até à entrega do mesmo, e que nesta data ascende a €29.000,00 (vinte e nove mil euros);

H) Ser o 1º Réu condenado ao pagamento de uma indemnização em valor não inferior a €14.000,00 (quatorze mil euros) no cômputo total de danos patrimoniais e não patrimoniais, pelos prejuízos e danos sofridos pelos Autores;

I) Ser o 2º réu condenado ao pagamento de uma indemnização em valor não inferior a €20.000,00 (vinte mil euros) no cômputo total de danos patrimoniais e não patrimoniais, pelos prejuízos e danos sofridos pelos 1ºs Autores, caso se prove que este transmitiu direitos conflituantes entre si.

J) Ser declarada a confinância dos prédios descritos em 1, 4, 9, 12 a 16 da Petição Inicial, constantes no levantamento topográfico junto como doc n.º 4;

K) Serem os Réus condenados a demarcar as estremas entre o seu próprio prédio e os prédios confinantes;

Depois dos AA. terem desistido do pedido formulado em K), subsistem, a nosso ver, dois pedidos al F) e J) que importa analisar.

Não restam dúvidas de que a acção intentada pelos Autores configura uma típica acção de reivindicação.

Como é consabido a ação de reivindicação vem prevista no artigo 1311º do Código Civil o qual inserido no Livro III, Titulo II, Secção II, que tem por epígrafe “Defesa da Propriedade”.

É uma ação petitória e condenatória. Destina-se à defesa da propriedade e tem por fim obter a restituição da coisa, daquele que contra a vontade e sem autorização do proprietário, é seu possuidor ou detentor.

Essencial à sua caracterização é a presença da dupla finalidade típica da reivindicatio: o reconhecimento do direito de propriedade do autor sobre a coisa (imóvel ou móvel) e a consequente restituição da coisa pelo possuidor ou detentor dela.

Nesta tipologia de ação não há incerteza sobre o direito de propriedade, que é condição do pedido de restituição da coisa.

Os pedidos formulados na petição inicial, com excepção dos pedidos formulados nas alíneas F) e J) são, conforme decorre do exposto, pedidos próprios duma típica ação de reivindicação.

Os AA. formulam, no entanto e ainda, sob a alínea F) o seguinte pedido: Ser declarada a simulação do negócio celebrado entre o 1º e 2º Réus e, em consequência, ser declarada a nulidade do documento particular autenticado de doação, outorgado em 11/05/2019 pelos 1º e 2º Réus perante o Senhor Solicitador HH titular da cédula profissional n.º ..., com domicílio profissional na Rua ..., ..., Valongo, pelo mesmo provir de negócio simulado;

Ora, com este pano de fundo o pedido formulado em F) não tem qualquer conexão e compatibilidade com a causa de pedir formulada nos autos, pois o que interessa discutir na acção é o imóvel (s) (sobre o qual não há incerteza) de que os autores são proprietários e não discutir sobre os prédios que podem vir a pertencer aos autores (com o inevitável caracter de incerteza) por via da declaração de nulidade do negócio alegado pelos Autores.

Mas mais.

Os autores formulam ainda sobre a al J) o seguinte pedido: Ser declarada a confinância dos prédios descritos em 1, 4, 9, 12 a 16 da Petição Inicial, constantes no levantamento topográfico junto como doc n.º 4;

Os proprietários de prédios confinantes e contíguos estão reciprocamente obrigados a concorrer para a demarcação dos respectivos prédios – o que bem se compreende pois a determinação dos limites de um prédio tem implicações sobre os dos prédios vizinhos que com ele confinam – quer a linha divisória seja pacífica e indiscutida ou controvertida.

A demarcação tanto almeja a definição e fixação das estremas cujos limites não são conhecidos – ou pelos menos são discutíveis – como, simplesmente, a aposição de marcos, quando os limites não são disputados e apenas se pretende torná-los mais visíveis.

Assim, desde que se verifique a confinância de prédios pertencentes a diferentes proprietários e inexista linha divisória entre eles (seja porque ela, embora indiscutida, não está marcada, seja porque é objecto de controvérsia ou até porque desconhecem a sua localização) está aberta a porta para a actuação do direito de demarcação.

Portanto, desde logo se pode concluir que este pedido está indelevelmente ligado ao pedido K) objecto de desistência pelos autores.

Com efeito, as ações de demarcação têm como pressuposto o domínio.

O seu fim específico é o de fazer funcionar o direito, (reconhecido ao proprietário pelo artº. 1353º do Código Civil), de obrigar os donos de prédios confinantes a concorrerem para a demarcação das estremas dos seus prédios.

Nesta ação não se discute o título, mas apenas os termos em que deve ser feita a medição ou a extensão do prédio de que se é dono.

A demarcação não visa a declaração do direito real, mas apenas pôr fim a um estado de incerteza sobre o traçado da linha divisória entre dois prédios.

“Na ação de demarcação a causa de pedir é complexa e consiste na existência de prédios confinantes pertencentes a donos diferentes e de estremas incertas. O direito de demarcação pressupõe a incerteza ou a dúvida sobre a linha divisória entre prédios confinantes, por falta de marcos ou outros sinais exteriores que indiquem as estremas de cada prédio (cfr. António Carvalho Martins, “A ação de demarcação”, Coimbra Editora, 1988, pág. 24). A incerteza ou indefinição sobre os limites dos prédios tanto pode resultar do desconhecimento sobre os limites dos prédios como do desacordo sobre os mesmos (cfr. acórdãos TRP de 13/10/2009, e de 16/01/2006, acórdão do TRG de 05.04.2018 todos em www.dgsi.pt.).

Em conclusão, se não estão em causa os títulos aquisitivos e há apenas incerteza quanto aos limites de prédios confinantes, entre si, então a ação é de demarcação, mas se o tribunal é convocado a reconhecer o domínio sobre a coisa em litígio com a apreciação do titulo aquisitivo, estamos na presença de uma ação de reivindicação.

Em face do exposto, não subsistem dúvidas que, o pedido formulado sob a alínea J) é um pedido de demarcação.

São tais pedidos compatíveis?

Como ficou expresso, a reivindicação funda-se na discussão do título aquisitivo de um prédio identificado no mesmo titulo e de que o proprietário está desapossado, (sendo que este possuidor ou detentor não tem de ser proprietário de prédio confinante ou doutro), portanto supõe a definição certa, segura e concreta do limite da propriedade reivindicada cujo titulo é discutido, o que não se coaduna com a causa de pedir sustentada para o pedido formulado na al F).

Por outro lado, a demarcação subjacente á al J) do pedido supõe a certeza e indiscutibilidade do título de propriedades confinantes, havendo dúvidas quanto aos seus limites.

A cumulação de tais pedidos é substancialmente incompatível, pois as causas de pedir em que, estes, assentam são inconciliáveis. Não se pode discutir, sem contradição, a existência do titulo e requerer a restituição da coisa (a qual tem de ser concretamente delimitada, artigo 581º nº 4 do CPC), e simultaneamente afirmar-se a existência dos títulos (e discutir mais títulos) dos Autores e Réus por modo a requerer a confinância a qual supõe a incerteza dos limites.

São, por isso, pedidos decorrentes de causas de pedir inconciliáveis o que determina a incompatibilidade substancial dos mesmos.

Neste sentido decidiu o Acórdão do TRP de 25.01.2021 in www.dgsi: “O efeito jurídico da procedência do pedido de restituição da parcela de terreno reivindicada pela autora (e do implícito pedido de reconhecimento do direito de propriedade) será o de excluir qualquer necessidade de demarcação, pois tal significa que inexiste incerteza ou indefinição quanto aos limites dos dois prédios confinantes, pressuposto da ação de demarcação. (…) Assim se evidencia a incompatibilidade substancial, não só dos pedidos formulados pela autora, mas também das causas de pedir em que se sustentam.”

Quanto á incompatibilidade substancial dos pedidos constitui vício processual declarado no artigo 186º, norma que tem a seguinte redação:

(nº 1) “É nulo todo o processo quando for inepta a petição inicial.

(Nº 2). Diz-se inepta a petição:

a). Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir;

b). Quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir;

c). Quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis.”

O artigo 186º/3 trata da sanação do vício da ineptidão. Apesar deste número se referir especificamente à alínea a) aplica-se também à alínea b).

No nº 4 vem fixar-se que: “No caso da alínea c) do nº 2 a nulidade subsiste, ainda que um dos pedidos fique sem efeito por incompetência do tribunal ou por erro na forma de processo”

A cumulação de pedidos substancialmente incompatíveis é um vício insuprível que gera a ineptidão da petição (neste sentido o acórdão do TRL de 12/07/2018; e ainda os Acórdãos do TRP de 24-01-2019,TRP e de 13-07-2021; do TRE de 17.11.2016,todos em www.dgsi.) sendo que não se opta pela sanação do vicio pois os autores já sustentaram nos autos a legalidade da cumulação perfilhada pelos mesmos, não adiantando nem subsidiariamente, qualquer disponibilidade para desistir de uma das pretensões formuladas.

Conclui-se pois que se verifica a nulidade de todo o processado por via da procedência da exceção da ineptidão por cumulação de pedidos substancialmente incompatíveis a qual configura exceção dilatória que obsta ao conhecimento do mérito da causa e que dá lugar à absolvição dos Réus da instância (cfr. art. 576º, nºs 1 e 2, 577º, al. b) do CPC), ficando com tal decisão prejudicado o conhecimento dos pedidos reconvencionais deduzidos pelo R. CC, e R. EE porque dependiam do conhecimento do pedido deduzido pelos Autores (o pedido dependente não subsiste se não subsiste o pedido principal).

Custas a cargo dos Autores.

Registe e Notifique.”

A autora “A..., Unipessoal, Lda.” interpôs recurso deste despacho e na sua sequência foi proferido acórdão pelo Tribunal da Relação do Porto, em 26.9.2023, que anulou a decisão recorrida e determinou que o tribunal recorrido agendasse data para a realização de audiência prévia ao abrigo do art. 591º do Cód. de Proc. Civil, a fim de se proceder à discussão da exceção dilatória suscitada oficiosamente - nulidade de todo o processado decorrente da ineptidão da petição inicial por cumulação de pedidos substancialmente incompatíveis -, decidindo-se depois em conformidade no sentido da procedência desta exceção ou do prosseguimento dos autos.

Regressados os autos à 1ª Instância, em 26.1.2024 os autores vieram reduzir o seu pedido nos termos do art. 265º, nº 2 do Cód. de Proc. Civil, eliminando do mesmo a respetiva alínea J).

Nesse mesmo dia realizou-se audiência prévia, para os efeitos determinados pelo Tribunal da Relação do Porto, tendo a Mmª Juíza “a quo” proferido nesta o seguinte despacho:

“Vieram os Autores, no dia de hoje, reduzir o pedido nos termos do art 265º nº 2 do CPC consubstanciando-se a referida redução na eliminação da alínea J) do pedido.

O Tribunal não teve por isso tempo de apreciar os reflexos eventuais de tal desistência, na decisão anteriormente formulada.

Não obstante, e uma vez que que se mantêm o pedido formulado na alínea F), o tribunal ao abrigo do artº 591º do CPC, porque pondera eventualmente conhecer da ineptidão da Petição Inicial por cumulação de pedidos substancialmente incompatíveis - neste caso só a alínea F) pelos motivos expostos na decisão já anteriormente proferida, concede-se a palavra às partes a palavra para querendo alegarem.”

As partes alegaram oralmente e em 11.2.2024 a Mmª Juíza “a quo” proferiu o seguinte despacho:

«Fixa-se o valor da acção em €198.403,73 (artº 297º nº 1, 299º e 306 º nº 2 do CPC).


*

O tribunal é competente em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia.

Excepção dilatória de ineptidão da petição inicial:

O pedido, na sua vertente substantiva, consiste no efeito jurídico que o autor pretende obter com a ação. É a afirmação postulativa do efeito prático-jurídico pretendido, (nº 3 do artigo 581º do Código de Processo Civil).

O autor pode, como é sabido, deduzir vários pedidos cumulativos contra o réu, desde que, eles sejam entre si substancialmente compatíveis, não se verifiquem as circunstâncias que impedem a coligação (...), de harmonia com a disciplina impressa no nº 1 do artigo 555º do CPC.

Para a avaliação da (in)compatibilidade substancial dos pedidos formulados na ação só relevam os pedidos que são formulados em simultâneo. É que o juiz tem de conhecer da totalidade das pretensões assim deduzidas o que já não acontece quando estamos perante pretensões alternativas ou subsidiárias. Os pedidos dizem-se substancialmente incompatíveis quando nos efeitos jurídicos que visam produzir, com a procedência da ação, cada um deles exclua a possibilidade de verificação de cada um dos outros. Em tal caso, há ininteligibilidade da petição.

Esta incompatibilidade tanto pode resultar de pedidos que mutuamente se excluam, como de pedidos que assentam em causas de pedir inconciliáveis. Neste sentido Alberto dos Reis, “Comentário ao Código de Processo Civil”, vol. 2º, Coimbra Editora, pág. 389.

No mesmo sentido, o Professor Antunes Varela sustenta que “devem considerar-se incompatíveis não só os pedidos que mutuamente se excluem, mas também os que assentam em causas de pedir inconciliáveis” (Manual de Processo Civil, 2ª ed., Coimbra Editora, 1985, pág. 246).

São exemplos académicos de pedidos substancialmente incompatíveis, o pedido de anulabilidade do contrato cumulado com o pedido de condenação do réu na prestação contratual, (como se este permanecesse válido) ou o pedido de divórcio cumulado com o pedido de anulação do casamento.

Vejamos então os pedidos concretos formulados na presente acção pelos Autores:

A) Serem declarados os 1ºs Autores como donos e legítimos proprietários de um prédio rústico denominado “...”, situado no lugar de ..., Freguesia ..., do concelho de Gondomar, descrito na Conservatória do Registo Predial de Gondomar sob o número ..., da Freguesia ..., e inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ... (anterior artigo ... da Freguesia ...), da União de Freguesias ... e ..., com a área total de 1.161m2 e melhor identificado com a letra B no levantamento topográfico anexo como doc. n.º 4.

B) Serem declarados os 1ºs Autores como donos e legítimos proprietários de um prédio rústico, omisso na matriz e na conservatória do Registo Predial, melhor identificado com a letra E no levantamento topográfico anexo como doc n.º 4, com a área de 355m2, a qual adquiriram ao 2º Réu, conforme declaração notarial outorgada por este em 17/09/2018.

C) Ser declarada a 2ª Autora como dona e legítima proprietária de um prédio rústico denominado “...”, situado no lugar de ..., Freguesia ... e ..., do concelho de Gondomar, descrito na Conservatória do Registo Predial de Gondomar sob o número ..., da Freguesia ..., e inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ... (anterior artigo ... da Freguesia ...), da União de Freguesias ... e ..., com a área total de 3.973m2 e melhor identificado com a letra F no levantamento topográfico anexo como doc n.º 4.

D) Serem os Réus condenados a reconhecer o direito de propriedade dos Autores sobre os imóveis melhor identificados em A) a C) deste pedido;

E) Ser o 1º Réu condenado a restituir aos Autores os imóveis em causa, livres e devolutos de pessoas e bens, em bom estado de conservação e em perfeitas condições;

F) Ser declarada a simulação do negócio celebrado entre o 1º e 2º Réus e, em consequência, ser declarada a nulidade do documento particular autenticado de doação, outorgado em 11/05/2019 pelos 1º e 2º Réus perante o Senhor Solicitador HH titular da cédula profissional n.º ..., com domicílio profissional na Rua ..., ..., Valongo, pelo mesmo provir de negócio simulado;

G) Ser o 1º Réu condenado ao pagamento de uma indemnização pela privação do uso dos Autores dos seus imóveis, no valor diário de €200,00 (duzentos euros), até à entrega do mesmo, e que nesta data ascende a €29.000,00 (vinte e nove mil euros);

H) Ser o 1º Réu condenado ao pagamento de uma indemnização em valor não inferior a €14.000,00 (quatorze mil euros) no cômputo total de danos patrimoniais e não patrimoniais, pelos prejuízos e danos sofridos pelos Autores;

I) Ser o 2º réu condenado ao pagamento de uma indemnização em valor não inferior a €20.000,00 (vinte mil euros) no cômputo total de danos patrimoniais e não patrimoniais, pelos prejuízos e danos sofridos pelos 1ºs Autores, caso se prove que este transmitiu direitos conflituantes entre si.

J) Ser declarada a confinância dos prédios descritos em 1, 4, 9, 12 a 16 da Petição Inicial, constantes no levantamento topográfico junto como doc n.º 4;

K) Serem os Réus condenados a demarcar as estremas entre o seu próprio prédio e os prédios confinantes;

Depois dos AA. terem desistido do pedido formulado em K) e J), subsiste, a nosso ver, um pedido al F) que importa analisar.

Não restam dúvidas de que a acção intentada pelos Autores configura uma típica acção de reivindicação.

Como é consabido a ação de reivindicação vem prevista no artigo 1311º do Código Civil o qual inserido no Livro III, Titulo II, Secção II, que tem por epígrafe “Defesa da Propriedade”.

É uma ação petitória e condenatória. Destina-se à defesa da propriedade e tem por fim obter a restituição da coisa, daquele que contra a vontade e sem autorização do proprietário, é seu possuidor ou detentor.

Essencial à sua caracterização é a presença da dupla finalidade típica da reivindicatio: o reconhecimento do direito de propriedade do autor sobre a coisa (imóvel ou móvel) e a consequente restituição da coisa pelo possuidor ou detentor dela.

Nesta tipologia de ação não há incerteza sobre o direito de propriedade, que é condição do pedido de restituição da coisa.

Os pedidos formulados na petição inicial, com excepção do pedido formulado na alínea F) são, conforme decorre do exposto, pedidos próprios duma típica ação de reivindicação.

Os AA formulam, sob a alínea F) o seguinte pedido: Ser declarada a simulação do negócio celebrado entre o 1º e 2º Réus e, em consequência, ser declarada a nulidade do documento particular autenticado de doação, outorgado em 11/05/2019 pelos 1º e 2º Réus perante o Senhor Solicitador HH titular da cédula profissional n.º ..., com domicílio profissional na Rua ..., ..., Valongo, pelo mesmo provir de negócio simulado;

Ora, com este pano de fundo o pedido formulado em F) não tem qualquer conexão e compatibilidade com a causa de pedir formulada nos autos, pois o que interessa discutir na acção é o imóvel (s) (sobre o qual não há incerteza) de que os autores são proprietários e não discutir sobre os prédios que podem vir a pertencer aos autores (com o inevitável caracter de incerteza) por via da declaração de nulidade do negócio alegado pelos Autores.

É tal pedido compatível?

Como ficou expresso, a reivindicação funda-se na discussão do título aquisitivo de um prédio identificado no mesmo título e de que o proprietário está desapossado, (sendo que este possuidor ou detentor não tem de ser proprietário de prédio confinante ou doutro), portanto supõe a definição certa, segura e concreta do limite da propriedade reivindicada cujo título é discutido, o que não se coaduna naturalmente com a causa de pedir sustentada para o pedido formulado na al F).

A cumulação real de tais pedidos é substancialmente incompatível, pois as causas de pedir em que, estes, assentam são inconciliáveis. Não se pode discutir, sem contradição, a existência do título e requerer a restituição da coisa (a qual tem de ser concretamente delimitada, artigo 581º nº 4 do CPC), e simultaneamente afirmar-se a existência dos títulos (e discutir mais títulos) dos Autores e Réus.

São, por isso, pedidos decorrentes de causas de pedir inconciliáveis o que determina a incompatibilidade substancial dos mesmos.

Quanto á incompatibilidade substancial dos pedidos constitui vício processual declarado no artigo 186º, norma que tem a seguinte redação:

(nº 1) “É nulo todo o processo quando for inepta a petição inicial.

(Nº 2). Diz-se inepta a petição:

a). Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir;

b). Quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir;

c). Quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis.”

O artigo 186º/3 trata da sanação do vício da ineptidão. Apesar deste número se referir especificamente à alínea a) aplica-se também à alínea b).

No nº 4 vem fixar-se que: “No caso da alínea c) do nº 2 a nulidade subsiste, ainda que um dos pedidos fique sem efeito por incompetência do tribunal ou por erro na forma de processo”

A cumulação de pedidos substancialmente incompatíveis é um vício insuprível que gera a ineptidão da petição (neste sentido o acórdão do TRL de 12/07/2018; e ainda os Acórdãos do TRP de 24-01-2019, TRP e de 13-07-2021; do TRE de 17.11.2016, todos em www.dgsi.) sendo que não se opta pela sanação do vício pois os autores já sustentaram nos autos a legalidade da cumulação perfilhada pelos mesmos, não adiantando nem subsidiariamente, qualquer disponibilidade para desistir de uma das pretensões formuladas.

Conclui-se pois que se verifica a nulidade de todo o processado por via da procedência da exceção da ineptidão por cumulação de pedidos substancialmente incompatíveis a qual configura exceção dilatória que obsta ao conhecimento do mérito da causa e que dá lugar à absolvição dos Réus da instância (cfr. art. 576º, nºs 1 e 2, 577º, al. b) do CPC), ficando com tal decisão prejudicado o conhecimento dos pedidos reconvencionais deduzidos pelo R. CC, e R. EE porque dependiam do conhecimento do pedido deduzido pelos Autores (o pedido dependente não subsiste se não subsiste o pedido principal).

Custas a cargo dos Autores.

Registe e Notifique.»

Inconformada com o decidido, interpôs recurso a autora “A..., Unipessoal, Lda.”, tendo esta finalizado as suas alegações com as seguintes conclusões:

1. A legitimidade é aferida pela pretensa relação material controvertida, tal como a configura o Autor (tese de JJ) posição esta que acabou por ser transferida para o actual artigo 30º do CPC.

2. Nessa perspectiva a legitimidade deve ser apreciada e determinada pela utilidade ou prejuízo que da procedência ou improcedência da acção possa derivar para as Partes, face aos termos em que o Autor configura o direito invocado e a posição que as partes, considerando o pedido e a causa de pedir, assumem na relação jurídica controvertida, tal como a apresenta o Autor.

3. A simulação traduz-se numa divergência intencional entra a vontade real e a declaração, ou seja, entre o “querido” e o “declarado”, sendo 3 os seus requisitos, positivados no artigo 240º do CC: a) a divergência entre a declaração negocial e a vontade real do declarante; b) o acordo simulatório entre declarante e declaratário; c) o intuito de enganar terceiros.

4. Sobre a legitimidade para arguir a simulação, o artigo 242º do CC remete, desde logo, para a regra geral do artigo 286º do CC, ou seja, a simulação, para além da possibilidade conhecimento oficioso pelo Tribunal, pode ser invocável a todo o tempo por “qualquer interessado”.

5. Ao prever a invocação da nulidade “por qualquer interessado”, o art. 286º do CC deve ser interpretado no sentido de que tem legitimidade qualquer pessoa que seja interessada na declaração da nulidade, o que implica aferir “se a pessoa que a invoca obtém alguma utilidade ou remove alguma desvantagem com a declaração de nulidade”, coincidindo com o interesse em agir (Cf. Pedro Pais Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 3ª edição, página 585 e seguintes).

6. A Autora em 61º a 81º do seu articulado (Petição inicial) apresentou as suas razões de facto e de direito para arguir a simulação do negócio.

7. A Autora explicita bem a sua razão de invocação da simulação (Vide 80º da sua PI) porquanto entende que o negócio foi simulado com vista a impedi-la de exercer o seu direito de preferência na aquisição do referido imóvel previsto no artigo 1380º do CC.

8. Se a Autora viesse a exercer o seu direito de preferência, então, não seria possível ao 1º Réu arrogar-se de proprietário de qualquer imóvel naquele local por falta de título.

9. Somente com o negócio que a Autora configura como simulado é que o 1º Réu consegue sustentar a sua tese minimamente de forma segura, procurando confundir os limites da propriedade que adquiriu no negócio que efectuou com o 2º Réu com a propriedade da Autora arrogando-se titular daqueles imóveis.

10. Se não fosse o negócio simulado em questão, o 1º Réu carecia de qualquer fundamento para importunar a Autora.

11. A sua posse passaria a ser considerada de Má Fé pois o 1º Réu deixaria de beneficiar da presunção do artigo 1260º nº 2 do Código Civil, bem como perderia também a presunção e protecção do artigo 7º do C. R. Predial.

12. É mais do que evidente que a Autora tem interesse na declaração de simulação daquele negócio e demonstrada fica a sua conexão com o pedido de reivindicação da posse.

13. O esquema da acção de reivindicação preenche-se através de duas finalidades, que correspondem aos dois pedidos que integram e caracterizam a acção (comum) de reivindicação (sujeita ao regime previsto nos artigos 1311º e seguintes do CC): a) Um é o reconhecimento/declaração do direito de propriedade (pronuntiatio); b) Outro, a restituição a coisa (condemnatio).

14. A acção de reivindicação tem como causa de pedir o acto ou o facto jurídico concreto que gerou o direito de propriedade (ou outro direito real – Vide artigo 1315º do CC) na esfera jurídica do peticionante e, ainda, os factos demonstrativos da violação desse direito.

15. Ao reivindicante cabe o ónus de alegação e o, correlativo, ónus da prova de que é proprietário da coisa e de que esta se encontra em poder do Réu.

16. A tarefa dos reivindicantes é facilitada, pela consagração legal de presunções, designadamente: a presunção de titularidade do direito de propriedade derivada da posse, prevista no n.º 1 do artigo 1268º do CC e a presunção decorrente do artigo 7º do C. R. Predial.

17. Ao Réu, detentor da coisa e caso pretenda evitar a restituição, cabe, em sua defesa, o ónus de alegar e provar o facto jurídico em que assenta a sua detenção legítima (Vide art. 342º, do Código Civil, que estabelece as regras do ónus da prova, sendo que àquele que invoca um direito cabe fazer a prova do direito alegado e àquele contra quem a invocação é feita cabe a prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos desse direito).

18. Apesar de o Autor da reivindicação demonstrar o seu direito, pode não lograr obter a restituição da coisa se o Réu invocar na contestação (em defesa por excepção ou mediante reconvenção) e demonstrar que dispõe de título que legitime a sua detenção, conforme dispõe o nº 2, do artigo 1311º do CC.

19. Se a Autora através do pedido de nulidade do título por simulação, que o Tribunal recorrido considera incompatível com o pedido de reivindicação da posse, conseguir provar que o título em que o 1º Réu assenta a reivindicação dos seus direitos é nulo, então, a Autora logra ilidir mais do que uma das presunções que favorecem o Réu, nomeadamente as presunções decorrentes de titularidade do direito de propriedade derivada da posse, previstas no n.º 1 do artigo 1268º do CC e a presunção decorrente do artigo 7º do C. R. Predial.

20. Não se vislumbra assim onde é que o Tribunal recorrido consegue encontrar a incompatibilidade destes dois pedidos, pois só ocorre ineptidão da petição inicial com fundamento em cumulação de pedidos incompatíveis quando, em cumulação real, são deduzidos pedidos cujos efeitos jurídicos mutuamente se repelem, isto é, pedidos que mutuamente se excluem ou que assentam em causas de pedir inconciliáveis.

21. O que na realidade se vislumbra é um interesse na declaração de simulação daquele negócio que aliado à procedência do pedido de reivindicação da posse farão o referido imóvel ser restituído à Autora.

22. A nulidade é de conhecimento oficioso do Tribunal – Vide artigo 286º do CC – motivo pelo qual até por força desta norma inexiste incompatibilidade do pedido de declaração de nulidade decorrente da arguição e pedido de reconhecimento da simulação do negócio e do pedido de reivindicação da posse.

Por todo o exposto, a decisão recorrida violou, entre outros, o disposto no artigo 30º, 240º, 242º, 286º, 1260º do Código Civil; artigo 7º do C. R. Predial;

Termos em que:

Deve o recurso ser julgado procedente e, em consequência, revogar-se a douta sentença, e em sua substituição a prolação de nova decisão que determine o conhecimento dos pedidos e ordene o prosseguimento dos presentes autos.

Não foi apresentada resposta ao recurso e este foi admitido como apelação, com subida nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.

Cumpre então apreciar e decidir.


*

FUNDAMENTAÇÃO

O âmbito do recurso, sempre ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, encontra-se delimitado pelas conclusões que nele foram apresentadas e que atrás se transcreveram – cfr. arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do Cód. do Proc. Civil.


*

A questão a decidir é a seguinte:

Apurar se ocorre ineptidão da petição inicial por terem sido cumulados pedidos substancialmente incompatíveis.


*

Para além dos elementos factuais e processuais decorrentes do precedente relatório há ainda que ter em conta o que se mostra alegado pelos autores na petição inicial quanto à “reivindicação e reintegração da posse” e à “simulação do negócio da doação da parcela A” que se passa a transcrever:

“(…)

16. O 1º Réu adquiriu em 11/5/2019, por doação outorgada por documento particular autenticado, exarado perante o Senhor Solicitador HH, um prédio rústico denominado “...”, situado no lugar de ..., da União de Freguesias ... e ..., do concelho de Gondomar, descrito na Conservatória do Registo Predial de Gondomar sob o número ..., da Freguesia ... e inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ... (anterior artigo ... da Freguesia ...), da União de Freguesias ... e ..., com a área de 7.000m2, melhor identificado com a letra A no levantamento topográfico anexo – cf documentos n.ºs 17, 18 e 19 que ora aqui se juntam e aqui se dão por integralmente reproduzidos e vide doc n.º 4.

Sucede porém que,

17. Recentemente, o 1º Réu veio pôr em causa os limites da demarcação dos referidos terrenos dos Autores e 3º a 5º Réus,

18. Alegando que os marcos estariam mal colocados,

19. E ocupando a propriedade dos Autores, nomeadamente o imóvel identificado no levantamento topográfico com a letra E,

20. Bem como alegando que o imóvel dos Autores identificado no levantamento topográfico com a letra B não teria aquelas dimensões e ocupando parte do mesmo.

Face ao exposto,

21. O 1º Réu entrou com máquinas nos terrenos propriedade dos Autores e do 3º Réu, destruindo e arrancando as plantações aí existentes - Cf documento n.º 20 que ora aqui se junta e aqui se dá por integralmente reproduzido.

22. Afundando e arrasando um poço, propriedade dos 1ºs Autores, existente na parcela B do levantamento topográfico, propriedade dos Autores conforme resulta dos documentos n.ºs 21 a 25 que ora aqui se juntam e aqui se dão por integralmente reproduzidos.

23. E arrancando os marcos que sempre existiram a demarcar devidamente todos os imóveis ali existentes.

24. Com tal comportamento, que bem sabia ser ilegal e de génese criminosa, vem o 1º Réu forçar os Autores a solicitar a reivindicação e reintegração da posse dos imóveis (já que possuem a propriedade destes), bem como a devida re-demarcação dos referidos imóveis e, finalmente, a reparação dos danos causados através do pagamento da competente indemnização.

“B) DA REIVINDICAÇÃO E REINTEGRAÇÃO DA POSSE:

25. Conforme supra alegado, os 1ºs Autores são proprietários do imóvel melhor identificado com a letra B do levantamento topográfico anexo, desde 30/6/2008,

26. E a 2ª Autora proprietária do imóvel F melhor identificado no levantamento topográfico anexo, desde 29/6/2018.

27. Bem como, têm a posse titulada do imóvel melhor identificado com a letra E no levantamento topográfico anexo, desde 17/09/2018.

Ou seja,

28. Além de beneficiarem da presunção do artigo 7º do Código de Registo Predial, que desde já expressamente invocam,

29. Até ao dia 05/05/2021 sempre tiveram também a posse dos referidos imóveis.

30. Estando os mesmos devidamente demarcados,

31. Motivo pelo qual, os Autores, quer individualmente, quer o Autor varão como legal representante da 2ª Autora, sempre praticaram vários actos de posse, nomeadamente,

32. Provendo ao seu cultivo e manutenção,

33. Semeando e plantando,

34. Regando,

35. Tendo os 1ºs Autores aberto inclusivamente um poço no imóvel,

36. E autorizando, por sua expressa vontade, o pasto de animais.

37. Beneficiando de frutos e proveitos.

38. Tudo isto com o alcance e animus que os Réus bem conhecem.

Ora,

39. É manifesto que a posse sobre os imóveis advém pela forma aqui descrita sem violarem qualquer direito de quem quer que fosse.

Desta forma,

40. E por uma questão de cautela, vêm os Autores aqui fundar a sua propriedade e posse no instituto da usucapião,

41. Porquanto, o direito de propriedade de que os Autores são titulares funda-se na posse que sobre os referidos imóveis vêm exercendo desde, pelo menos, 30/6/2008 (parcela B), 29/6/2018 (parcela F), e 17/9/2018 (parcela E) até à data de hoje.

42. Ou seja, há pelo menos, 13 anos (parcela B) e 3 anos (parcela F e parcela E), sempre o fizeram de forma pública, por ser à vista de todos,

43. Pacífica, por não se traduzir em actos violentos, ou contra a vontade, ou oposição de terceiros,

44. Contínua e ininterrupta, por não se conhecer qualquer solução de continuidade;

45. E de Boa-fé,

46. Desconhecedores de que das respectivas condutas resultassem, como efectivamente não resulta, qualquer prejuízo para quem quer que fosse.

Além do que,

47. Tal posse funda-se e advém, anteriormente, também, da posse (desde pelo menos 1985 para a parcela B, pelo menos 2004 para a parcela F e desde pelo menos 1990 para a parcela E) que os proprietários antecedentes exerceram sobre os referidos imóveis desde que os adquiriram até à data da venda.

Desta forma,

48. E nos termos dos artigos 1255º e 1256º do Código Civil, os Autores, por uma questão de cautela, invocam aqui, expressamente, a usucapião e a acessão da posse dos antepossuidores, mais especificamente os transmitentes de tais direitos aos Autores, nos termos dos artigos supra mencionados e artigos 1287º e 1294º, alínea b) do Código Civil,

Acresce ainda que,

49. Tal posse tem sido exercida nas dimensões e conforme até aqui foi relatado, independentemente das áreas inscritas nos respectivos documentos legais, porquanto as mesmas jamais foram medidas com rigor, encontrando-se os referidos terrenos devidamente demarcados, conforme já foi explanado,

50. Até ao momento em que o 1º Réu veio arrancar tais marcos.

Não será demais salientar que,

51. A propriedade e posse que adveio ao 1º Réu adveio da doação efectuada pelo 2º Réu.

52. Doação esta bem posterior aos documentos de aquisição da propriedade e posse dos Autores.

Porquanto,

53. Relativamente ao imóvel identificado com a letra E, a sua aquisição por parte dos Autores ao 2º Réu ocorreu em 17/9/2018, enquanto a doação da parcela A ao 1º Réu somente foi efectuada em 11/5/2019.

Ou seja,

54. Oito meses depois.

55. Relembramos aqui o Princípio da Prioridade Temporal da Constituição.

Assim,

56. “Sempre que, mediante contratos sucessivos, se estabelecem a favor de diversas pessoas, sobre a mesma coisa, direitos pessoais de gozo entre si incompatíveis, «prevalece o direito mais antigo em data, sem prejuízo das regras próprias do registo» (art. 407º).”

(…)

Face ao aduzido,

57. É mais do que evidente que a doação da parcela A ao 1º Réu não podia incluir as parcelas E (pois já era dos Autores 8 meses antes), nem a parcela H dos 3ºs Réus, na medida em que se assim fosse, o 2º Réu estaria a transmitir direitos totalmente conflituantes entre si.

Além do que,

58. Ainda que tivesse dito ao 1º Réu que tais áreas estavam incluídas, o que não se crê ser verosímil, sempre se diga que tais transmissões seriam ineficazes perante os Autores porquanto nemo plus juris ad alium transferre potest, quam ipse habet.

No entanto,

59. Se o tiver feito, sempre incorrerá potencialmente em conduta criminosa e em responsabilidade indemnizatória, razão pela qual figura nos presentes autos enquanto Réu, como adiante se demonstrará e justificará.

Desta forma,

60. Dúvidas não restam que devem os 1ºs Autores ser declarados proprietários:

a) De um prédio rústico denominado “...”, situado no lugar de ..., Freguesia ..., do concelho de Gondomar, descrito na Conservatória do Registo Predial de Gondomar sob o número ..., da Freguesia ..., e inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ... (anterior artigo ... da Freguesia ...), da União de Freguesias ... e ..., com a área total de 1.161m2 e melhor identificado com a letra B no levantamento topográfico anexo como doc n.º 4.

b) De um imóvel, omisso na matriz e na conservatória do Registo Predial, melhor identificado com a letra E no levantamento topográfico anexo como doc n.º 4, com a área de 355m2 o qual adquiriram conforme declaração notarial do seu proprietário outorgada em 17/09/2018.

61. E a 2ª Autora deve ser declarada proprietária de um prédio rústico denominado “...”, situado no lugar de ..., Freguesia ... e ..., do concelho de Gondomar, descrito na Conservatória do Registo Predial de Gondomar sob o número ..., da Freguesia ..., e inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ... (anterior artigo ... da Freguesia ...), da União de Freguesias ... e ..., com a área total de 3.973m2 e melhor identificado com a letra F no levantamento topográfico anexo como doc n.º 4.

C) DA SIMULAÇÃO DO NEGÓCIO DA DOAÇÃO DA PARCELA A:

62. Estão os Autores convencidos que na realidade não houve qualquer doação por parte do 2º Réu ao 1.º Réu da parcela A, mas sim uma venda.

Ora,

63. Dispõe o artigo 240º do Código Civil que se do acordo entre declarante e declaratário existir uma divergência entre a declaração real e a vontade real do declarante, com vista ou com o intuito de enganar terceiro, o negócio diz-se simulado.

Conforme se vem alegando,

64. Esta simulação concretizou-se com a outorga da escritura de doação, feita com o intuito de não ser dado aos Autores proprietários da parcela B (e/ou aos 3ºs Réus proprietários da parcela C), o direito de preferência previsto no artigo 1380º do Código Civil.

65. Sendo o negócio real uma compra e venda.

66. E a suportar tal tese, entre outros argumentos, está o facto de o 3º Réu ter pago €300,00 (trezentos euros) pela parcela H do levantamento topográfico que tem 73m2,

67. E o facto de os 1ºs Autores terem pago €2.500,00 (dois mil e quinhentos euros) pela parcela E que tem 355m2.

68. Levantando a questão de quanto terá cobrado então o 2º Réu pela “doação” do imóvel identificado com a letra A no levantamento topográfico com 7.000m2?

69. Pois se 73m2 valem €300,00 (trezentos euros) ….

70. Se 355m2 valem €2.500,00 (dois mil e quinhentos euros) …

71. Quanto valem 7.000m2?

72. Desta forma estão os 2ºs Réus convictos que não foi celebrado formalmente um negócio de compra e venda para esconder o preço,

73. Sendo facilmente demonstrável tal facto, através da junção dos extractos bancários dos 1º e 2º Réus, no período compreendido entre 01/03/2019 e 30/6/2019, requerendo-se desde já que os 1º e 2º Réus sejam intimados a fazê-lo, nos termos do artigo 429º do Código Processo Civil.

74. Estando os Autores convictos que encontrarão um depósito ou transferência efectuados pelo 1º Réu para a conta do 2º Réu comprovando-se assim a simulação aqui aventada como real e concreta.

Destarte,

75. Somente com a consulta dos movimentos das referidas contas com alguma margem temporal, será possível aferir e verificar, sem qualquer dúvida, que não existiu simulação do negócio.

Desta forma,

76. E nos termos da necessidade da descoberta da verdade material, do princípio da cooperação, e no sentido de um célebre princípio do direito americano “Follow the Money” ou na nossa concepção romanística do direito cui bono?, importa pois solicitar ao Douto Tribunal a quo que sejam juntos aos autos os referidos extractos bancários, ao abrigo do princípio da cooperação e/ou nos termos do artigo 429º do Código Civil.

Ademais,

77. Invocam os Autores, nos termos do artigo 286º do Código Civil e do artigo 240º, n.º 2 do Código Civil a nulidade do contrato de doação porquanto são partes interessadas.

(…)

Face ao exposto,

80. Estão assim reunidos os pressupostos para demonstrar que o negócio foi simulado entre o 1º e 2º Réus, com vista a negar aos 1ºs Autores (e/ou aos 3ºs. Réus) o direito de preferência previsto no artigo 1380º do Código Civil.

81. Devendo ser declarada a simulação do negócio celebrado entre o 1º e 2º Réus e, em consequência, ser declarada a nulidade do documento particular autenticado de doação, outorgado em 11/05/2019 pelos 1º e 2º Réus perante o Senhor Solicitador HH, titular da cédula profissional n.º ..., com domicílio profissional na Rua ..., ..., Valongo, pelo mesmo provir de negócio simulado.”


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Passemos à apreciação jurídica.

1. Estatui o art. 186º do Cód. de Proc. Civil, no seu nº 1, que «é nulo todo o processo quando for inepta a petição inicial», sucedendo que a petição inicial se diz inepta «quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis».

Por conseguinte, a petição inicial é inepta quando se cumulem causas de pedir substancialmente incompatíveis. “Sendo a causa de pedir o fundamento da pretensão deduzida em juízo, se o autor invoca em simultâneo dois ou mais fundamentos incompatíveis entre si, eles acabam por se excluir reciprocamente (assim sucede quando é pedido o reconhecimento do direito de propriedade sobre uma coisa, afirmando-se que tal direito tem origem numa compra e venda e numa disposição testamentária); tal como ocorre com a incompatibilidade de pedidos, se as causas de pedir incompatíveis forem invocadas, não cumulativamente, mas a título subsidiário, isto é, apenas para a hipótese de o primeiro fundamento não vingar, já não haverá risco de ineptidão” – cfr. ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e PIRES DE SOUSA, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. I, 2ª ed., págs. 233/234.

Também é inepta quando se cumulem pedidos substancialmente incompatíveis. “Se é certo que o autor pode visar obter, numa única demanda, a satisfação de mais do que uma pretensão, formulando tantos pedidos quantos os efeitos desejados, o art. 555º, nº 1, faz depender tal cumulação da compatibilidade substancial entre os pedidos formulados; caso haja incompatibilidade substancial dos pedidos, isso significa que os mesmos se excluem reciprocamente, levando a que, no limite, inexista pedido algum (haverá ineptidão se, perante o incumprimento de um contrato-promessa pelo promitente vendedor, for pedida a execução específica do contrato e a restituição do sinal em dobro; outrossim quando o autos, com base nos mesmos factos, peça a declaração de nulidade do contrato e o cumprimento de uma cláusula do mesmo; ou ainda quando se cumula o pedido de reconhecimento do direito de preferência com o da anulação da compra e venda a que se refere a preferência) …” - cfr. ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e PIRES DE SOUSA, ob. cit., pág. 234.

Por seu turno, MANUEL DE ANDRADE (in “Noções Elementares de Processo Civil”, 1979, pág. 179) escreve que “quanto à cumulação de pedidos incompatíveis, só releva o antagonismo intrínseco ou substancial entre os pedidos cumulados, e não já o antagonismo meramente extrínseco ou formal, derivante de lhes corresponderem formas processuais distintas.

“A dedução cumulativa de pedidos entre si incompatíveis implica contradição no objeto do processo que impede a sua necessária identificação, algo de semelhante acontecendo quando, fora de uma relação de subsidiariedade, se baseie o mesmo pedido em causas de pedir entre si incompatíveis” – cfr. LEBRE DE FREITAS e ISABEL ALEXANDRE, Código de Processo Civil Anotado, vol. 1º, 4ª ed., pág. 379.

Sobre a mesma questão escreve o seguinte JACINTO RODRIGUES BASTOS (in “Notas ao Código de Processo Civil”, Vol. I, págs. 388/389): A incompatibilidade substancial dos pedidos verifica-se quando os efeitos jurídicos que com eles se pretendem obter estão, entre si, numa relação de oposição ou contrariedade, de tal modo que o reconhecimento de um é a negação dos demais.

Como o autor os apresenta a todos simultaneamente, e no mesmo plano, torna-se impossível discernir qual é, na realidade, a pretensão que pretende ver judicialmente reconhecida.”

Na jurisprudência, sobre esta matéria e a título exemplificativo, referem-se os seguintes acórdãos, todos disponíveis in www.dgsi.pt:

- Rel. Porto de 24.1.2019, proc. 2804/17.6T8VFR.P1 (Madeira Pinto): “Os pedidos são incompatíveis quando o sejam os efeitos jurídicos derivados da procedência de cada um deles, ou quando o reconhecimento de um excluir a possibilidade de verificação dos restantes, sejam eles emergentes ou não da mesma causa de pedir.”;

- Rel. Évora de 11.5.2017, proc. 74/14.7T8LAG.E1 (Mata Ribeiro): “Existe incompatibilidade substancial de pedidos quando os efeitos jurídicos que com eles se pretendem obter estão, entre si, numa relação de oposição ou contraditoriedade, de tal modo que o reconhecimento de um é a negação dos demais.”;

- Rel. Guimarães de 16.1.2020, proc. 5533/18.0T8GMR.G1 (Margarida Almeida Fernandes): “A incompatibilidade substancial de pedidos, geradora de ineptidão da petição inicial, verifica-se quando as pretensões se excluem mutuamente, sejam contrárias entre si de tal forma que uma impede o exercício da outra, que o juiz se veja impossibilitado de decidir face à ininteligibilidade do pensamento do autor.”

2. Feitas estas considerações doutrinárias e jurisprudenciais, há que regressar ao caso concreto, de modo a indagar se na situação “sub judice” ocorre cumulação de pedidos substancialmente incompatíveis, como se entendeu na decisão recorrida, ou se esta não se verifica, conforme sustenta a autora/recorrente “A... Unipessoal, Lda.”.

Os pedidos formulados pelos autores nas suas alíneas A) a F) são os seguintes:

A) Serem declarados os 1ºs Autores como donos e legítimos proprietários de um prédio rústico denominado “...”, situado no lugar de ..., Freguesia ..., do concelho de Gondomar, descrito na Conservatória do Registo Predial de Gondomar sob o número ..., da Freguesia ..., e inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ... (anterior artigo ... da Freguesia ...), da União de Freguesias ... e ..., com a área total de 1.161m2 e melhor identificado com a letra B no levantamento topográfico anexo como doc. n.º 4.

B) Serem declarados os 1ºs Autores como donos e legítimos proprietários de um prédio rústico, omisso na matriz e na conservatória do Registo Predial, melhor identificado com a letra E no levantamento topográfico anexo como doc n.º 4, com a área de 355m2, a qual adquiriram ao 2º Réu, conforme declaração notarial outorgada por este em 17/09/2018.

C) Ser declarada a 2ª Autora como dona e legítima proprietária de um prédio rústico denominado “...”, situado no lugar de ..., Freguesia ... e ..., do concelho de Gondomar, descrito na Conservatória do Registo Predial de Gondomar sob o número ..., da Freguesia ..., e inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ... (anterior artigo ... da Freguesia ...), da União de Freguesias ... e ..., com a área total de 3.973m2 e melhor identificado com a letra F no levantamento topográfico anexo como doc n.º 4.

D) Serem os Réus condenados a reconhecer o direito de propriedade dos Autores sobre os imóveis melhor identificados em A) a C) deste pedido;

E) Ser o 1º Réu condenado a restituir aos Autores os imóveis em causa, livres e devolutos de pessoas e bens, em bom estado de conservação e em perfeitas condições;

F) Ser declarada a simulação do negócio celebrado entre o 1º e 2º Réus e, em consequência, ser declarada a nulidade do documento particular autenticado de doação, outorgado em 11/05/2019 pelos 1º e 2º Réus perante o Senhor Solicitador HH titular da cédula profissional n.º ..., com domicílio profissional na Rua ..., ..., Valongo, pelo mesmo provir de negócio simulado.

Os pedidos formulados, pelos autores, sob as alíneas A) a E) são característicos de uma ação de reivindicação, a qual se desenha como uma ação petitória que tem por objeto o reconhecimento do direito de propriedade por parte do autor e a consequente restituição da coisa por parte do possuidor ou detentor dela. É assim integrada por dois pedidos: o reconhecimento do direito de propriedade (pronuntiatio), por um lado, e a restituição da coisa (condemnatio).[1]

No caso dos autos, os autores, além do mais, alegaram na petição inicial, como fundamento dos seus pedidos A) a E), que o 1º réu entrou com máquinas nos terrenos de sua propriedade, destruindo e arrancando as plantações aí existentes, afundando e arrasando um poço e arrancando os marcos que sempre existiram a demarcar devidamente todos os imóveis ali existentes.

Mas para lá dos pedidos característicos da ação de reivindicação, os autores peticionaram ainda em F) que fosse declarada a simulação do negócio celebrado entre o 1ª e o 2º réus, com declaração de nulidade do documento particular autenticado de doação, outorgado em 11.5.2019, em virtude do mesmo provir de negócio simulado.

Sucede pois que os autores, invocando a sua qualidade de interessados (cfr. arts. 240º, nº 2, 242º, nº 1 e 286º todos do Cód. Civil), vieram arguir tratar-se de negócio simulado a doação realizada, em 11.5.2019, pelo 2º réu DD ao 1º réu CC através de documento particular autenticado.

Nesse sentido mais alegaram estarem convencidos de que não houve qualquer doação por parte do 2º réu ao 1º réu, mas sim uma venda, o que tudo foi feito com o intuito de não lhes ser dado o direito de preferência previsto no artigo 1380º do Cód. Civil.

Em suma, entendem os autores que o negócio real foi uma compra e venda e não uma doação.

Ora, do que flui dos autos, o litígio entre os autores e o 1º réu só surge na sequência da relação de confinância que resulta desta doação, a qual se reporta ao prédio identificado no art. 16º da petição inicial.

Independentemente de outras considerações que possam ser feitas sobre o fundo da questão, mas que não se mostram oportunas neste momento processual, o que importa indagar tão-somente é se existe incompatibilidade substancial entre os pedidos formulados, por um lado, nas alíneas A) a E) [reivindicação de propriedade] e, por outro, na alínea F) [declaração de nulidade por simulação] e as respetivas causas de pedir.

Acontece que, a nosso ver e salvo melhor entendimento, da leitura atenta da petição inicial que atrás se deixou transcrita na sua quase totalidade, não se vislumbra que exista incompatibilidade entre os pedidos formulados pelos autores, acima referidos, e as correspondentes causas de pedir.

Com efeito, as pretensões que os autores deduziram no sentido da reivindicação da propriedade e da declaração de nulidade por simulação da doação efetuada em 11.5.2019 não se excluem reciprocamente, não são contrárias entre si, a ponto de uma impedir o exercício da outra.

Por conseguinte, inexistindo incompatibilidade substancial de pedidos, procede o recurso interposto, o que implica a revogação da decisão recorrida, devendo os autos prosseguir a sua tramitação.


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Sumário (da responsabilidade do relator – art. 663º, nº 7 do Cód. de Proc. Civil):

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DECISÃO

Nos termos expostos, acordam os juízes que constituem este Tribunal em julgar procedente o recurso de apelação interposto pela autora “A..., Unipessoal, Lda.” e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida e determina-se o prosseguimento dos autos.

As custas do presente recurso serão suportadas conforme proporção de vencimento a final.


Porto, 10.9.2024
Rodrigues Pires
Lina Baptista
Artur Dionísio Oliveira
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[1] Cfr. PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, “Código Civil Anotado”, vol. III, 2ª ed., págs. 112/113.