Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | RUI MOREIRA | ||
Descritores: | PROCESSO DE INSOLVÊNCIA RESOLUÇÃO DOS NEGÓCIOS EM BENEFÍCIO DA MASSA INSOLVENTE RESOLUÇÃO OPERADA PELO ADMINISTRADOR DA INSOLVÊNCIA FUNDAMENTOS DA RESOLUÇÃO | ||
Nº do Documento: | RP20240618649/23.3T8STS-J.P1 | ||
Data do Acordão: | 06/18/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | REVOGADA | ||
Indicações Eventuais: | 2ª SECÇÃO | ||
Área Temática: | . | ||
Sumário: | Ao comunicar a resolução de um negócio em benefício da massa insolvente, o administrador da insolvência deve indicar os concretos factos que fundamentam essa resolução, por tal ser essencial à possibilidade de o impugnante a contestar. A deficiência de fundamentação do acto não poderá ser suprida ulteriormente, em sede de contestação à acção de impugnação, com indicação de novo quadro factual ou outros vícios. | ||
Reclamações: | |||
Decisão Texto Integral: | PROC. 649/23.3T8STS-J.P1 Tribunal Judicial da Comarca do Porto Juízo de Comércio de Santo Tirso - Juiz 6 REL. N.º 876 Juiz Desembargador Relator: Rui Moreira 1º Adjunto: Juiz Desembargador: Alberto Eduardo Monteiro de Paiva Taveira 2º Adjunto: Juiz Desembargador: Fernando Vilares Ferreira * ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:1 - RELATÓRIO AA, residente na Travessa ..., ..., Maia, instaurou acção de impugnação de resolução de negócio em benefício da massa insolvente de A..., LDA contra esta, tendo por objecto um contrato de compra e venda que titulou o registo de propriedade da viatura com a matrícula ..-XC-.. a favor da autora. Pediu que se declare a invalidade da pretensa resolução do contrato em questão reconhecendo-se a sua posse e propriedade plena sobre o veículo. Em caso de improcedência da impugnação, pede que se lhe reconheça um crédito sobre a massa insolvente correspondente ao valor do preço da aquisição, de 13.400€, cujo pagamento deverá ser precípuo, bem como o direito de retenção sobre o veículo, até ao encerramento da liquidação e pagamento. A Ré Massa Insolvente de A..., Lda. contestou a ação, concluindo pela improcedência da impugnação, bem como que até ao trânsito em julgado da decisão da presente impugnação se ordene a imobilização do veículo com a matrícula ..-XC-.., sob pena de o mesmo perder o seu valor comercial ou mesmo de perecer por completo, prejudicando a Ré e os seus credores. O processo foi saneado e, depois de instruído e discutido em audiência de julgamento, obteve sentença que concluiu pela improcedência da acção e pela validade do acto de resolução, sem prejuízo de ter condenado a ré a restituir à autora a quantia de €13.400,00. É desta sentença que vem interposto recurso pela autora, que o termina formulando as seguintes conclusões: “A- Andou mal o Tribunal a quo na decisão de que se recorre, nomeadamente no que respeita aos factos dados como provados. B- No entender da Recorrente, devia o Tribunal ter dado como provados outros factos que (por motivo que não compreende) não foram por si considerados e alterado factos que, tendo sido dados como provados, no entender da Recorrente, não deveriam tê-lo sido. C- Assim, devem ser expurgados do elenco dos factos assentes, passando a não provados, os elencados nos artigos 3, 10, 11, 13 e 14. D- Quanto ao facto 13 deve o mesmo ser expurgado pois que, tratando-se de uma ação de simples apreciação negativa de impugnação de resolução em benefício da massa insolvente, não tendo este facto sido alegado pelo Senhor AJ tal matéria na carta de resolução; a mesma não deveria ter sido trazida à instrução nos autos. E- O mesmo se diga a propósito dos restantes factos dados como provados e supra enunciados, pois que não se encontram alegados na aludida carta de resolução e, por ser assim, não poderiam tais factos ter sido considerados na decisão recorrida. F- Por outro lado, não vem o Tribunal a quo dar como provados factos que parecem suficientemente demonstrados para tal. G- Devem ser dados como provados, e assim aditados aos factos assentes, aqueles elencados sob os pontos a) e b) dos factos não provados. H- Com efeito, na presença do depoimento do diretor financeiro da sociedade e de prova documental no mesmo sentido - contrato celebrado com a mercedes, e com o respetivo comprovativo de pagamento por parte da Recorrente - ainda assim, entendeu o Tribunal a quo não haver prova suficiente do facto dado como não assente no item a). I- Já o item b) resulta provado por documento, designadamente esclarecimento prestado pela B..., Lda. a fls… J- Não o tendo feito o Tribunal de Primeira Instância, deve sempre a tal proceder a Relação do Porto, nos termos dos poderes que a lei lhe confere, v.g. artigo 662 do CPC, visto estarem reunidos nos autos todos os pressupostos legais para o efeito – o que se requer e no que se confia. K- A Recorrente sustenta o presente recurso quanto à questão sobre a decisão de facto, no essencial: a. Na melhor aplicação das normas atinentes à distribuição do ónus da prova; b. No depoimento da testemunha BB citius: Diligencia_649-23.3T8STS-J_2023-12- 19_14-26-55 Início: 14:26; Final: 14:43; Duração: 00:16:57; c. No teor do documento junto aos autos pela B..., Lda. aos 28/11/2023 e referência: 37419951 L- Também quanto à questão de Direito merece a decisão a quo reparo. M- Ora, logo se diga que carta resolutiva in caso jamais seria idónea a fazer operar a resolução do ato pelo qual se transmitiu o veículo aqui em causa à ora Recorrente. N- Na carta de resolução de negócio em benefício da massa insolvente, deve – tem que - o senhor AJ elencar todos os factos em que se sustenta a dita resolução. O- Isto para dizer que: a) a comunicação dirigida à Recorrente é absolutamente vazia quanto aos seus fundamentos; b) da mesma desde logo não resulta em que medida o negócio aqui em causa foi prejudicial para a Insolvente e, consequentemente, em que medida obsta, dificulta ou impossibilita a realização pelos credores dos seus créditos; c) a comunicação dirigida à Recorrente é absolutamente inconclusiva quanto ao facto que pretende servir de base ao enquadramento da Recorrente como especialmente relacionada com a Insolvente; P- É entendimento maioritário da jurisprudência no sentido de que a ação prevista no art. 125º do CIRE é uma ação de simples apreciação negativa, visando a demonstração da inexistência ou a não verificação dos pressupostos legais da resolução declarada pelo A.I. na carta resolutiva, cabendo por isso à massa insolvente o ónus da prova da verificação de tais pressupostos e não ao impugnante a prova de que tais pressupostos não se verificam, em consonância com o que dispõe o art. 343º do C. Civil. Q- A comunicação em causa nestes autos não preenche quaisquer requisitos legais para a respetiva validade. R- Assim, sempre é de concluir não existir fundamento para a pretendida “resolução” nem estarem, de facto, reunidos os seus indispensáveis pressupostos legais. S- Ao decidir como decidiu, por erro de interpretação ou de aplicação do Direito, o Tribunal A quo violou o disposto nos Artigos 343º do Código Civil, 120.º, 123.º e 125.º do CIRE. Termos em que e nos demais de direito doutamente supridos, por todas as invocadas razões, a decisão recorrida deverá ser revogada in totum, julgando-se procedente a ação, nos termos do pedido nela formulado.” * O Magistrado do MºPº junto do tribunal recorrido ofereceu resposta ao recurso, concluindo pela confirmação da decisão recorrida, designadamente por se dever ter por suficientemente explicitada a fundamentação enunciada pelo administrador de insolvência para a resolução do negócio que declarou.A ré também ofereceu resposta ao recurso, afirmando a ausência de razão da apelante, quer quanto à impugnação da decisão sobre a matéria de facto, quer sobre o respectivo tratamento jurídico, concluindo pela confirmação da sentença recorrida. O recurso foi admitido como de apelação, com subida nos próprios autos e efeito devolutivo. Foi, depois, recebido, nesta Relação, considerando-se devidamente admitido, no efeito legalmente previsto. 2- FUNDAMENTAÇÃO O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (cfr. art. 639º e nº 4 do art. 635º, ambos do CPC). Cumprirá conhecer as seguintes questões: - Se deve alterar-se a decisão sobre os factos provados, passando a ter-se como não provados os descritos sob os pontos 3, 10, 11, 13 e 14; - E se devem ter-se por provados os avaliados negativamente sob as als. a) e b). - Se a carta de resolução é inapta para esse fim. * A decisão das questões identificadas supra torna útil a atenção à matéria apreciada pelo tribunal recorrido, que consta do seguinte:Factos provados Estão provados os seguintes factos: 1. Por sentença proferida no âmbito dos autos principais, em 20.3.2023, foi declarada a insolvência de “A..., LDA.”, com os demais sinais identificadores constantes dos autos, sentença que veio a transitar em julgado em 17.4.2023, tudo como flui dos referidos autos principais. 2. Na sentença referida em 1 foi nomeado administrador da insolvência o Sr. Dr. CC. 3. A sociedade indicada em 1 tem como gerente DD. 4. Entre a A..., Lda. e a C..., S.A. foi celebrado acordo a que foi atribuído o número “Contrato n.º ...”, através do qual esta lhe concedeu um empréstimo no valor de €53.600,00, a 48 meses, devendo o capital e juros ser integralmente reembolsado em 4 prestações anuais no valor de €13.400 cada uma. 5. Concomitantemente, a A..., Lda. celebrou com a B..., S.A. um contrato de compra e venda do veículo automóvel com a matrícula ..-XC-.., através do qual comprou o indicado veículo automóvel e esta vendeu-lho, atuando esta sociedade como intermediária de crédito no acordo referido em 4 e sendo o preço pago com o valor mutuado referido neste facto. 6. Para garantia do mútuo referido em 4, a C..., S.A. constituiu reserva de propriedade cujo objeto foi o veículo automóvel Mercedes Benz, modelo ..., matrícula ..-XC-... 7. O veículo automóvel com a matrícula ..-XC-.. foi registado na Conservatória do Registo Automóvel em nome da A..., Lda. em 14/10/2019. 8. A A..., Lda. procedeu ao pagamento de 3 prestações anuais de €13.400,00, referidas em 4. 9. Em janeiro de 2023, a A..., Lda. não procedeu ao pagamento da 4ª prestação anual, de €13.400,00, referida em 4, que se venceria a 20.1.2023. 10. Por acordo com a A..., Lda., AA procedeu ao pagamento da quantia de €13.400,00 à C..., a título de antecipação da mensalidade de 20.1.2023, relativa ao contrato referido em 4. 11. Na sequência do referido em 10 e por acordo com a A..., Lda., o veículo automóvel com a matrícula ..-XC-.. foi registado na Conservatória do Registo Automóvel em nome de AA em 24.1.2023, sucedendo nessa titularidade àquela sociedade. 12. Por carta registada datada de 21 de abril de 2023, recebida pela ora Autora, o Sr. Administrador da Insolvência indicado em 2 comunicou o seguinte: “Assunto: processo insolvência n.º 649/23.3T8STS / A..., Lda. / Notificação nos termos do disposto no art. 123º, n.º 1 do Código de Insolvência e Recuperação de Empresas (CIRE) para resolução do contrato de compra e venda de viaturas O signatário, na qualidade de representante da Massa Insolvente de A..., Lda. e ao abrigo do disposto nos artigos 120º a 127º do CIRE, vem notificar V/Exa. do seguinte: 1. Tive conhecimento nesta data que no dia a seguir indicado foi registado em v/ nome a aquisição de propriedade da viatura também de seguida identificada, conforme consta do registo automóvel e cuja anterior proprietária era a insolvente em assunto: a) em 4/1/2023 – ..-XC-.. – MERCEDES BENZ ... 2. Esta viatura fazia parte dos ativos da insolvente desde 14/10/2019, conforme se atesta pelas certidões de registo automóvel obtidas 3. Como determina o art. 12º, n.º 1 do CIRE, podem ser resolvidos em benefício da massa insolvente os atos prejudiciais à massa praticados dentro dos 2 (dois) anos anteriores à data do início do processo de insolvência 4. Uma vez que o processo de insolvência se iniciou em 22/2/2023 com a apresentação do pedido de declaração de insolvência da devedora A..., LDA., os efeitos previstos naquele artigo retroagem a 22/2/2021 5. Pelo que todos os atos praticados depois desta data e que se considerem prejudiciais da massa insolvente poderão ser resolvidos em benefício desta. 6. “Consideram-se prejudiciais à massa os atos que diminuam, frustrem, dificultem, ponham em perigo ou retardem a satisfação dos credores da insolvência” (art. 120º, n.º 3 do CIRE) 7. No caso concreto, a transmissão da propriedade das viaturas, para uma entidade terceira, neste caso a sociedade D..., Lda., frustra e dificulta a satisfação dos credores da insolvente, a A..., LDA. 8. No mais, dita o n.º 4 do artigo 120º que “… a resolução pressupõe a má fé do terceiro, a qual se presume quanto a atos cuja prática ou omissão tenha ocorrido dentro dos 2 (dois) anos anteriores ao início do processo de insolvência e em que tenha participado ou de que tenha aproveitado pessoa especialmente relacionada com o insolvente, ainda que a relação especial não existisse a essa data”. 9. Por via da al. d) do n.º 3 do art. 49º são considerados especialmente relacionados com o(s) sócio(s), ou administrador(es) de direito ou de facto, do devedor pessoa coletiva, o seu cônjuge e as pessoas de quem se tenha divorciado nos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência; os ascendentes, descendentes ou irmãos do devedor ou de qualquer das pessoas referidas na alínea anterior; Os cônjuges dos ascendentes, descendentes ou irmãos do devedor; As pessoas que tenham vivido habitualmente com o devedor em economia comum em período situado dentro dos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência. 10. Pela consulta à certidão comercial da sociedade insolvente é possível verificar que se encontram preenchidos os requisitos para qualificar como especialmente relacionadas a sociedade “A..., Lda.” e V/ Exa., atendendo às relações familiares que é possível constatar. Assim, Preenchidos que estão todos os pressupostos DECLARO, COM EFEITOS IMIEDIATOS, RESOLVIDOS, EM BENEFÍCIO DA MASSA INSOLVENTE, O CONTRATO DE COMPRA E VENDA QUE TITULOU O REGISTO DE PROPRIEDADE DA VIATURA COM A MATRÍCULA ..-XC-.. A FAVOR DE AA, NIF ......, REGISTADA EM 04/01/2023. Pelo que, Deve V. Exa. proceder à entrega da viatura, com as respetivas chaves e documentos, no prazo máximo de 2 dias a contar da receção desta carta, à guarda deste administrador da insolvência ou a quem este indicar. Sem outro assunto de momento, subscrevo-me, …” 13. AA é filha de DD. 14. O veículo automóvel referido em 5 apresentava, em janeiro de 2023, um valor de mercado na ordem dos €37.000,00. 15. Em resposta à carta referida em 12, a Autora enviou ao Sr. Administrador da Insolvência a carta datada de 5.2.2023, junta com a petição inicial e que aqui se dá por integralmente reproduzida. 16. (acrescentado como infra se determina): No âmbito do acordo referido em 4, acordaram as partes que: “8º. 1. Em caso de mora no pagamento pelo mutuário de quaisquer quantias devidas ao mutuante por força deste contrato, aquele pagará ao mutuante juros de mora calculados à taxa nominal contratada, agravada da sobretaxa máxima permitida por lei, acrescidos das despesas e comissões exigíveis nos termos da legislação aplicável. (…) 5. No caso de rescisão do presente Contrato pelo mutuante, ou de vencimento antecipado de todas as prestações do mesmo emergentes, o mutuário deverá proceder à imediata restituição do veículo em perfeito estado de conservação. 6. Sem prejuízo do disposto no número anterior, em caso de rescisão do Contrato pelo mutuante, este terá o direito a conservar suas as prestações vencidas e pagas, a receber as prestações vencidas e não pagas, acrescidas de juros, e ainda a um montante indemnizatório igual a 20% da soma das prestações vincendas, sem prejuízo do direito do mutuante de exigir a reparação integral dos seus prejuízos”. * Factos não provadosAtenta a prova produzida, não resultou provado que: a) O referido em 9 sucedeu porquanto a A..., Lda. não dispunha de meios para proceder ao indicado pagamento. b) (a matéria que aqui constava transitou para o rol de factos provados, como infra se determina). * Começou o apelante por impugnar a inclusão da matéria descrita sob os pontos 3, 10, 11, 13 e 14 no elenco dos factos provados.Não contesta, todavia, a realidade dos factos em questão, designadamente: - Que a sociedade insolvente tem como gerente DD (ponto 3). - Que AA, por acordo com a A..., Lda., pagou €13.400,00 à C..., a título de antecipação da mensalidade de 20.1.2023, relativa ao contrato de financiamento para aquisição do veículo em causa; (ponto 10). - Que, por efeito disso, o veículo ..-XC-.. foi registado na Conservatória do Registo Automóvel em nome de AA em 24.1.2023, sucedendo nessa titularidade àquela sociedade. (ponto 11). - Que AA é filha de DD. (ponto 13). - Que o veículo, em janeiro de 2023, tinha um valor de mercado na ordem dos €37.000,00. (ponto 14). Porém, conclui que o tribunal não poderia lançar mão de tal factualidade, por ela não constar da carta de resolução remetida pelo administrador de insolvência. Sendo certo que a questão em causa não se prende com a reavaliação de qualquer meio de prova, mas sim com os termos de aplicação dos princípios do dispositivo e do inquisitório, nesta concreta acção – uma acção de impugnação de resolução de negócio em benefício da massa insolvente, que segue os termos do processo comum - não deixaremos de a apreciar desde já, isto é, mesmo antes da apreciação da questão respeitante à decisão negativa sobre os factos descritos nas als. a) e b) da sentença, essa sim referente à controvérsia sobre a comprovação de factos em discussão. Dispõe o art. 11º do CIRE: “No processo de insolvência, embargos e incidente de qualificação de insolvência, a decisão do juiz pode ser fundada em factos que não tenham sido alegados pelas partes.” Como referem Carvalho Fernandes e João Labareda (CIRE Anotado, 3ª ed, pg. 118) “O poder de fundar a decisão em factos não alegados contém implícita a faculdade de o juiz, por sua própria iniciativa, os investigar livremente, bem como recolher as provas e informações que entender convenientes, (…)”. Porém, no caso sub judice, não nos encontramos no âmbito de qualquer um daqueles expedientes processuais previstos na norma citada, o que exclui a possibilidade de recurso a um poder inquisitório. Por consequência, ao caso aplica-se o regime do art. 5º, nº 2, do CPC: o juiz poderá considerar: - Os factos articulados pelas partes; - Os factos instrumentais que resultem da instrução da causa; - Os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar; - Os factos notórios e aqueles de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções. Como se referiu em acórdão anterior (proc. nº 129/18.9YRPRT.P1), a doutrina define factos instrumentais como aqueles que interessam indirectamente à solução do litígio por servirem para demonstrar a verdade ou falsidade dos actos pertinentes. Neste sentido, refere Rui Pinto (Notas ao Código de Processo Civil, Coimbra Ed., 2014, pg. 22), que factos instrumentais são factos indiciários ou presuntivos dos factos integrantes da causa de pedir; são factos conhecidos que permitem à parte firmar um facto constitutivo, desconhecido. Isso mesmo se extrai da definição constante do Ac. do STJ de 23-09-2003, proc nº 03B1987: “Factos instrumentais são os que interessam indirectamente à solução do pleito, por servirem para demonstrar a verdade ou falsidade dos factos pertinentes; não pertencem à norma fundamentadora do direito e são-lhe, em si, indiferentes, servindo apenas para, da sua existência, se concluir pela existência dos próprios factos fundamentadores do direito ou da excepção.” Por sua vez, factos complementares são os têm um “papel completador de uma causa de pedir, ou excepção, de natureza complexa, por congregante de diversos elementos”; e concretizadores são os que tendem a “pormenorizar ou decompor os factos nucleares, em moldes indispensáveis para a procedência da acção ou da excepção dos alegados pelas partes” (ac. do TRC de 25/10/2016, proc. nº 96/14.8TBVZL.C1) Verifica-se, assim, que estabelecida a causa de pedir em função da alegação suficiente dos factos essenciais, o juiz pode importar para a decisão outros que resultem da instrução da causa: se forem instrumentais, pode fazê-lo sem mais – nº 2 , al. a); se forem complemento ou concretização daqueles essenciais, o seu aproveitamento exige que sobre eles a parte tenha tido oportunidade de se pronunciar – nº 2, al. b). Numa acção de impugnação de resolução de um negócio em benefício da massa, o substrato fáctico que constitui a causa de pedir há-de resultar da carta de resolução (art. 123º do CIRE), a qual terá, pois, de conter os fundamentos da própria resolução. Subsequentemente, a impugnação da resolução, em acção a intentar contra a massa insolvente (art. 125º do CIRE) terá por alvo esses mesmos fundamentos. Foi neste contexto que o juiz, no despacho saneador, logo fixou como temas de prova: 1. Apurar da prejudicialidade / não prejudicialidade do negócio de compra e venda referido para a Massa Insolvente de A..., LDA.; 2. Apurar da má-fé da Autora na celebração do indicado negócio; 3. Apurar do preço efetivamente pago pela Autora para comprar o veículo automóvel com a matrícula ..-XC-.. através no negócio resolvido e ora impugnado.” No caso, a carta de resolução invoca a especial relação entre os representantes da empresa e a adquirente (pontos 9 e 10 da carta). O concreto parentesco entre a autora e o gerente da insolvente será facto concretizador e, como se referiu, passível de utilização pelo tribunal. Por isso, os pontos 3 e 13 devem ter-se por devidamente inseridos na decisão. Quanto aos pontos 10 e 11, verifica-se que a correspondente matéria – respeitante à concretização do negócio celebrado entre a autora e a insolvente – logo foi referida no ponto 1 da carta, em relação ao qual a matéria daqueles itens 10 e 11 é complementar. Por isso, também passível de utilização pelo tribunal. Por fim, a matéria do ponto 14 (valor de mercado do veículo, adquirido pela autora contra o pagamento de 13.400,00€), é ela igualmente complementar relativamente à alegação constante da carta segundo a qual o negócio “frustra e dificulta a satisfação dos credores da insolvente, a A..., LDA.” – ponto 7 da carta de resolução. Acresce que a definição dos temas de prova operada no saneador (que não tem de ser absolutamente estanque, pois que a causa de pedir é o que define o objecto da discussão da causa) mais ajudou a concretizar a factualidade que haveria de ser discutida e apreciada pelo tribunal. De resto, é notório que a apelante não invoca que a utilização de tal factualidade tenha constituído surpresa, por não ter tido oportunidade de se pronunciar sobre ela. Conclui-se, assim, que nada impedia o tribunal de incluir, entre os factos provados, aqueles que agora são alvo da impugnação da apelante. Improcede, pois, a apelação quanto a esta questão. * De seguida, a apelante impugna a decisão negativa de que foi alvo a matéria descrita nas als. a) e b) dos factos não provados, isto é:al. a) que em Janeiro de 2023, a A..., Lda. não procedeu ao pagamento da 4ª prestação anual, de €13.400,00, (…), que se venceria a 20.1.2023, porquanto não dispunha de meios para o efeito. al. b) que se reporta a algumas das cláusulas do contrato de financiamento descrito no ponto 4 dos factos provados, celebrado entre a insolvente e a C..., S.A., respeitantes a juros de mora e efeitos da resolução do contrato de financiamento para a insolvente. Quanto à matéria da al. a), constata-se inexistir motivação expressa para a não dar por provada, atenta a sua enunciação pela testemunha BB. Mas o tribunal assinalou a insuficiência do seu depoimento, designadamente em relação ao conteúdo do contrato de financiamento celebrado entre a insolvente e a C.... BB, marido da autora e director financeiro da insolvente, limitou-se a referir, a esse propósito, assertivamente e sem qualquer explicação, que a insolvente não tinha possibilidades de pagar a última prestação e que foi por isso que acordaram que fosse a autora a pagar o valor e ficar com a viatura. Na ausência de qualquer outra prova e sem prejuízo de se saber que a sociedade de construções foi declarada insolvente pouco depois, temos de concordar com o juízo do tribunal recorrido quanto ao juízo negativo imposto sobre a matéria. A prova produzida sobre a matéria, de óbvia parcialidade, é claramente insuficiente para, sem mais, se dar por provada tal factualidade. Já quanto à matéria da al. b), designadamente quanto às cláusulas de um contrato necessariamente celebrado por escrito, o tribunal justificou a sua decisão em face da não apresentação do contrato de financiamento, único meio tido por eficaz para a correspondente comprovação. Não atentou, porém, em que tal contrato foi junto aos autos, em 28/11/2023, remetido pela B..., que havia vendido o veículo, e que o próprio tribunal notificara para o efeito. Desse contrato consta o clausulado invocado pela apelante e descrito na al b) dos factos não provados, designadamente sob a cláusula 8ª. Tem, pois, razão a apelante, devendo essa matéria passar a constar como provada. Para o efeito, deixará de constar entre os factos não provados, transitando para o elenco dos factos provados, como item 16, operação que se realizará de imediato, graficamente e no lugar próprio. * Fixada que está a matéria de facto, com a alteração que acaba de se determinar, importa indagar se se verificam os pressupostos da resolução do negócio em causa, à luz das questões colocadas pela apelante.Com efeito, alega esta que a carta de resolução não é clara, precisa e absoluta inteligível, desde logo porque, no seu ponto 7 refere: “7. No caso concreto, a transmissão da propriedade das viaturas, para uma entidade terceira, neste caso a sociedade D..., Lda., frustra e dificulta a satisfação dos credores da insolvente, a A..., LDA.” Afirmando não ter qualquer conhecimento de quem seja a referida D..., Lda,, invoca também com esse fundamento a ineficácia da carta resolutiva. Tem razão a apelante ao apontar a impertinência da referência a uma sociedade designada D..., Lda. Não se pode justificar a referência, pelo administrador de insolvência, a tal entidade, pois que a mesma não aparece envolvida em qualquer negócio conexo com aqueles que foram referidos nos autos: o contrato de financiamento para aquisição do veículo; o contrato de venda do veículo à insolvente; a transferência da propriedade do veículo para a apelante, mediante o pagamento da última prestação daquele financiamento. Em tal contexto, torna-se fácil aceitar como boa a explicação oferecida na contestação desta acção, pelo próprio administrador da insolvência: tratou-se de um mero lapso na redacção da carta. O lapso é evidente, como resulta do que anteriormente se referiu sobre a impertinência da referência à mencionada D..., Lda. Certo é, todavia, que esse lapso foi inconsequente, pois de forma alguma prejudicou a inteligibilidade da carta de resolução, estando claramente demonstrado que esse lapso não prejudicou a compreensão, pela ora apelante, do obectivo da carta e de que a si ser dirigida. Por conseguinte, nenhuma razão lhe assiste quando invoca a ineficácia da comunicação da resolução, pelo administrador de insolvência, em razão de um tal erro. * Para além disso, alega a apelante que a citada carta de resolução não pode ter-se por válida e eficaz, por não ser clara na identificação dos pressupostos da resolução. Afirma a apelante que a mesma é “inidónea”, “vazia quanto aos seus fundamentos”, “inconclusiva”.Antes de mais, importa afirmar que a questão que agora cabe resolver é diferente daquela que anteriormente se decidiu, sobre a possibilidade de o tribunal aproveitar factos, em sede de discussão e decisão, que sejam instrumentais, complementares ou concretizadores de outros que tenham sido alegados. Com efeito, o que agora importa é averiguar se, independentemente dessa actividade que é consentida ao tribunal nos termos do art. 5º, nº 2 do CPC (questão de direito adjectivo), a carta de resolução, sem mais, continha em si mesma os elementos necessários a produzir o efeito que lhe era proposto: o de explicitar aos destinatários quais os pressupostos factuais que, sucessivamente subsumidos a uma previsão legal, justificavam a resolução do negócio. Com relevância para a resolução da questão, dispõe o art. 120º do CIRE: 1 - Podem ser resolvidos em benefício da massa insolvente os actos prejudiciais à massa praticados dentro dos dois anos anteriores à data do início do processo de insolvência. 2 - Consideram-se prejudiciais à massa os actos que diminuam, frustrem, dificultem, ponham em perigo ou retardem a satisfação dos credores da insolvência. 3- Presumem-se prejudiciais à massa, sem admissão de prova em contrário, os actos de qualquer dos tipos referidos no artigo seguinte, ainda que praticados ou omitidos fora dos prazos aí contemplados. 4 - Salvo nos casos a que respeita o artigo seguinte, a resolução pressupõe a má fé do terceiro, a qual se presume quanto a actos cuja prática ou omissão tenha ocorrido dentro dos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência e em que tenha participado ou de que tenha aproveitado pessoa especialmente relacionada com o insolvente, ainda que a relação especial não existisse a essa data. 5 - Entende-se por má fé o conhecimento, à data do acto, de qualquer das seguintes circunstâncias: a) De que o devedor se encontrava em situação de insolvência; b) Do carácter prejudicial do acto e de que o devedor se encontrava à data em situação de insolvência iminente; c) Do início do processo de insolvência. Como referimos em acórdão anterior desta secção do TRP (ac. de 7/4/2016, proc. nº 2418/12.7T2AVR-E.P1, disponível em dgsi.pt) “O que deva conter essa carta é alvo de alguma controvérsia, nem tanto na doutrina, mas sobretudo na jurisprudência. Gravato de Morais, in “Resolução em Benefício da Massa Insolvente” pág. 54, aponta a necessidade de uma motivação específica, compreendendo os factos que originam a resolução, pois caberá ao administrador da insolvência “fazer a prova da natureza do acto, caso haja impugnação do mesmo, nos termos do artigo 125.º CIRE. Realce-se que se impõe, de todo o modo, que as circunstâncias que fundam a prejudicialidade do acto sejam invocadas quando se declara a resolução”. E prossegue o autor “Para além da invocação do acto em concreto há ainda que enunciar, quando não funcionar a presunção inilidível do art.º 120.º, n.º 3 do CIRE, a causa que leva a considerar aquele acto como prejudicial, assim como, o circunstancialismo que envolve a má-fé, quando não funcione a presunção juris tantum do art.º 120.º n.º 4 do CIRE.” Já a jurisprudência, naquilo que se pode designar como posição mais moderada, afirma que o terceiro tem o direito de impugnar o acto de resolução, pelo que ele não pode deixar de conhecer os concretos factos ou fundamentos que contra ele foram invocados. Sem prejuízo, a declaração de resolução apenas carece da indicação genérica e sintética dos pressupostos que fundamentam a resolução, da qual se depreenda o porquê da decisão tomada. Numa compreensão mais rigorosa do regime, afirma-se que o administrador da insolvência deve indicar os concretos factos que são o fundamento da resolução, por tal ser essencial à possibilidade de o impugnante a contestar. A deficiência de fundamentação do acto não poderá ser suprida ulteriormente, em sede de contestação à acção de impugnação, com indicação de novo quadro factual ou outros vícios. (cfr. Ac. do STJ de 17.09.2009, proc. nº 307/09.1YFLSB, cujo sumário refere precisamente isso). Esta última compreensão do regime legal descrito é a que vem sendo genericamente seguida neste TRP, como se verifica designadamente no Ac. desta secção, proferido em 11-11-2014, no proc. nº 616/13.5TJVNF-C.P1: (II- O referido direito de resolução, porém, tal como no regime geral, é um direito potestativo extintivo, dependente de um fundamento. III - Esse fundamento deve ser exteriorizado na carta de resolução, através de factos concretos que permitam ao destinatário saber, claramente, o porquê da resolução. IV - Em qualquer caso, nunca o resolvente pode invocar na acção de impugnação factos que não indicou na comunicação à contraparte). Como aí se entendeu, deve ter-se presente o objectivo do envio da declaração de resolução. Esse envio só realiza o seu fim se facultar ao destinatário a percepção dos elementos que necessariamente compreende, seja quanto à identificação do negócio resolvido, seja quanto aos fundamentos dessa resolução. Estes elementos, sejam de ordem cronológica, material, psicológica ou jurídica não podem deixar de ser plasmados na declaração, sob pena de ela ser reduzida a um acto formal e vazio de significado. Remeter uma declaração escrita é comunicar o teor dessa mesma declaração. Comunicar é pôr em comum. Pôr em comum o conhecimento de razões e acções é identificá-las e caracterizá-las até onde isso for necessário para que o interlocutor adquira ou possa adquirir a sua consciência. Se a declaração comunicada não facultar a aquisição dessa consciência, não pode ter-se por eficaz. (…) Só no caso de se tratar de resolução incondicional, dispensado que está da alegação da prejudicialidade e da má-fé do terceiro (que se presumem), lhe bastará proceder à indicação precisa do acto em causa, data da sua celebração e data do início do processo de insolvência, permitindo ao destinatário perceber em qual das alíneas do nº1, do art. 121º, pretende o AI enquadrar o negócio a resolver.” No caso em apreço, o administrador da insolvência não invocou qualquer dos fundamentos descritos no art. 121º do CIRE, como motivo da resolução, referindo-se apenas ao disposto no nº 3 do art. 120º, nos seguintes termos: “6. Consideram-se prejudiciais à massa os atos que diminuam, frustrem, dificultem, ponham em perigo ou retardem a satisfação dos credores da insolvência” (art. 120º, n.º 3 do CIRE) 7. No caso concreto, a transmissão da propriedade das viaturas, para uma entidade terceira, (…)., frustra e dificulta a satisfação dos credores da insolvente, a A..., LDA.” Estamos, pois perante uma hipótese de resolução sob condição. Por isso, na declaração de resolução, não poderiam deixar de ser enunciados: 1 - o acto jurídico que é objecto da resolução; 2 - a data da sua celebração; 3 - a sua aptidão de ser prejudicial para a massa (já que não foi invocada qualquer circunstância que faça presumir essa vocação para o prejuízo, ao abrigo do nº3 do art. 120º; 4 - o circunstancialismo que envolve a má-fé do terceiro (quando não funcione a presunção prevista no nº4 do art. 120º, ou os factos de onde decorra essa presunção). A este propósito, a decisão recorrida afirmou que: “se é certo que a carta de resolução enviada à Autora não é profícua em termos de factos / fundamentos de resolução, podendo mesmo dizer-se que podia (e estava o Sr. Administrador da Insolvência em condições de ser mais completo e exaustivo) e devia ser mais completa / exaustiva, nem assim se pode concluir pela inexistência, invalidade ou nulidade da mesma.” Sucessivamente, e referindo-se à prejudicialidade do negócio para a massa insolvente, a decisão refere que o administrador afirmou que o negócio era “prejudicial à massa, pois diminui, frustra, dificulta, põe em perigo ou retarda a satisfação dos credores da insolvência”, tendo o tribunal apurado em que consistiu isso: a autora “…pagou o valor de €13.400,00 (facto que, é verdade, apenas se provou nesta ação e não foi convocado na carta de resolução), correspondente a 1 de 4 prestações anuais do valor pelo qual a insolvente o havia adquirido em 2019 quando é certo que se apurou que o mesmo, em janeiro de 2023 (data da realização do negócio resolvido), apresentava um valor de mercado, pelo menos, de €37.000,00.” É o próprio tribunal, como se vê, a constatar que a carta de resolução é omissa quanto à explicitação das razões pelas quais o negócio se deve ter por prejudicial, afirmando que isso só se apurou nesta acção, não constando, de forma alguma, na carta de resolução. Se não se coloca em questão que o negócio alvo da resolução se mostra perfeitamente identificado, é igualmente inequívoco que a declaração resolutiva é omissa quanto às razões determinantes da resolução. Como o tribunal reconheceu, é totalmente vazio de conteúdo dizer-se que o negócio foi prejudicial à massa, por diminuir, frustrar, dificultar, por em perigo ou retardar a satisfação dos credores da insolvência. A lista de verbos enunciada revela a natureza conclusiva das afirmações inseridas na comunicação, na ausência de factos concretos aptos a permitirem aos declaratários saber o que haveriam de contestar, para afastar o resultado pretendido. Como concluir pela realidade do prejuízo anunciado? A propriedade do veículo foi transferida em condições que importavam uma perda patrimonial para a insolvente? O valor pago era inferior ao valor de mercado? A diferença entre o valor pago e o valor de mercado corresponde ao prejuízo da insolvente? Se a insolvente incorresse em incumprimento da última prestação teria prejuízos superiores ao que possa ter tido com a entrega do veículo à autora e o pagamento por esta de uma tal prestação? A carta remetida aos apelados não permite responder minimamente a estas questões, nem facultou que as mesmas, ou pelo menos parte delas, pudessem vir a ser discutidas nesta causa. Esta conclusão induz uma outra: a da insuficiência da carta de resolução para cumprir o seu fim. Ela não era apta a permitir aos destinatários o conhecimento dos pressupostos em questão, subjacentes à decisão de resolução. E isso, desde logo, em prejuízo do seu direito à respectiva impugnação. Acresce que a mesma declaração deveria ainda identificar factos aptos a fazerem funcionar a presunção de má fé constante do nº 4 do art. 120º, ou alegar factos integradores do conceito de má fé tal como descrito nas als. a) e b) do nº 5 da mesma norma. A este propósito, a carta refere que os intervenientes no negócio alvo da resolução eram pais, filha e genro e que todos sabiam que a situação de insolvência da E... …Lda era irreversível, pois que dela eram sócios, todos pretendendo evitar que o património dado em pagamento servisse para o pagamento de todos os credores. Perante um tal teor da carta remetida aos aqui apelados, só podemos concluir, em concordância com o tribunal a quo, pela natureza conclusiva das afirmações ali inseridas, na ausência de factos concretos aptos a permitirem aos declaratários saber o que haveriam de contestar, para afastar o resultado pretendido. No respeitante ao resultado prejudicial para a massa, determinado pelo negócio alvo da resolução, como concluir por esse prejuízo? Inexistia o crédito alegadamente satisfeito? Os bens dados eram de valor superior ao crédito existente ou foram subavaliados? Qual a relevância proporcional negativa da saída desses bens do património da insolvente? Este património, que apenas é descrito como “parco”, ficou desprovido de bens para satisfazer os credores, ou o que restou permitiu de alguma forma essa satisfação e em que medida? Alega-se uma “diminuição substancial do valor da massa: o que é uma diminuição substancial? A carta remetida aos apelados não permite responder minimamente a estas questões, o que nos leva a concluir pela sua insuficiência quanto ao cumprimento do correspondente requisito. Ela não era apta a permitir aos destinatários o conhecimento dos pressupostos em questão, subjacentes à decisão de resolução. E isso, desde logo, prejudicava o seu direito à respectiva impugnação. Mas essa insuficiência alastra-se ao requisito da má fé. O administrador da insolvência limitou-se a invocar “relações familiares que é possível constatar”. Só no âmbito desta acção se verificou que a autora é filha do gerente que foi da insolvente. E isso é fácil de verificar, pois resulta exclusivamente de prova registal. Porém, mesmo quanto a esta simples matéria é evidente a falta de cuidado colocado na elaboração da carta de resolução. Mais uma vez ali se incluiu uma alegação abstracta, que não se pode ter por suficiente. Certo é, todavia, que a simplicidade da matéria poderia levar a que se considerasse essa insuficiência como inoperante, pois seguramente que permitiu aos destinatários (embora não a qualquer terceiro) perceber a que relacionamento familiar o declarante se referia. Todavia, uma tal tolerância não se pode estender à manifesta insuficiência da declaração resolutiva, quanto às razões que sustentavam a conclusão de que o negócio em questão fora prejudicial para a massa insolvente. Não deixa de se concordar com a tese enunciada na sentença recorrida, quanto a não ser exigível “…que tal declaração contenha uma indicação completa, pormenorizada e exaustiva de todos os factos que a justificam. Importa, apenas, que essa declaração contenha os factos essenciais (e percetíveis a um declaratário médio) que revelem as razões invocadas para destruir o negócio, permitindo ao destinatário da declaração a sua apreensão e a sua posterior impugnação.” Todavia, na situação sub judice, o que se verifica é uma ausência total de factualidade que permita discutir e concluir pela prejudicialidade do negócio para os interesses da massa insolvente, como o revela, desde logo, a circunstância de alguma da factualidade que para o efeito seria pertinente só ter sido adquirida para a causa por via do próprio julgamento. Tal ausência não resulta, obviamente, suprida pela invocação das regras constantes do art 120º do CIRE, que sempre carecem da alegação dos factos habilitantes do preenchimento da sua previsão legal. Na impossibilidade de se concluir que a carta remetida aos apelados continha tais factos, não podemos justificar esse modus faciendi, sequer, por uma qualquer dificuldade na sua indicação, ou considerar que exigi-lo constituísse uma manifestação excessiva e desproporcionada de rigor. É que do resultado da própria acção bem se verifica a facilidade com que o administrador da insolvência poderia ter complementado a declaração emitida com factos aptos a preencherem os pressupostos do regime jurídico em questão, propiciando à autora, sendo caso disso, a discussão de tais razões. Em suma, o que cumpre afirmar é que a comunicação remetida aos ora apelantes não satisfez os objectivos que lhe eram essenciais e, por isso, só pode ter-se por nula. Restará, assim, revogar a decisão recorrida, a substituir por outra que, julgando a acção procedente, reconhece a nulidade da declaração de resolução de 21/4/2023, remetida pelo administrador da insolvência da A..., LDA, respeitante ao negócio por via do qual foi a propriedade do veículo automóvel com a matrícula ..-XC-.. registada, na Conservatória do Registo Automóvel, em nome de AA, em 24.1.2023, sucedendo nessa titularidade àquela sociedade. * Em conclusão, (art. 663º, nº 7 do CPC): ……………………………… ……………………………… ……………………………… 3 - DECISÃO Pelo exposto, acordam os juízes que constituem este Tribunal em julgar procedente a presente apelação, com o que, revogando a decisão recorrida, a substituem por outra nos termos da qual julgam a presente acção provada e procedente e, consequentemente, declaram nula e de nenhum efeito a declaração de resolução de 21/4/2023, remetida pelo administrador da insolvência da A..., LDA, respeitante ao negócio por via do qual foi a propriedade do veículo automóvel com a matrícula ..-XC-.. registada, na Conservatória do Registo Automóvel, em nome de AA, em 24.1.2023, sucedendo nessa titularidade àquela sociedade. Custas pela Massa Insolvente da A..., LDA. Registe e notifique. Porto, 18/6/2024 Rui Moreira Alberto Taveira Fernando Vilares Ferreira |