Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
85/24.4Y9PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: WILLIAM THEMUDO GILMAN
Descritores: ACESSO AO DIREITO
ACESSO AOS TRIBUNAIS
REGIME
PROCESSO PENAL
CONTRAORDENAÇÃO
DEFENSOR OFICIOSO
SUBSTITUIÇÃO
DISPENSA
PRAZO PROCESSUAL
INTERRUPÇÃO
SUSPENSÃO
Nº do Documento: RP2024061285/24.4Y9PRT.P1
Data do Acordão: 06/12/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL (CONFERÊNCIA)
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO PELA ARGUIDA
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O defensor nomeado, enquanto não for substituído, mantém-se para os atos subsequentes do processo e, por isso, fica sujeito a um conjunto de deveres funcionais e deontológicos, continua a ter o poder-dever de exercer a defesa do arguido.
II - Assim, a necessidade de assegurar um efetivo direito de defesa ao arguido não exige que, perante um pedido de substituição do defensor nomeado se suspenda ou interrompa o prazo em curso, v.g. o prazo para interposição de recurso da decisão judicial que conheceu da impugnação da decisão administrativa, até que se mostre decidida a questão respeitante a tal pedido de substituição.

(Sumário da responsabilidade do Relator)
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 85/24.4Y9PRT.P1

Sumário:

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Relator: William Themudo Gilman

1ª Adjunta: Manuel Henrique Ramos Soares

2º Adjunto: Carla Oliveira


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Acordam em conferência no Tribunal da Relação do Porto:

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1-RELATÓRIO

No processo de recurso de contraordenação n.º 85/24.4Y9PRT a Sra. Juiz do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Local de Pequena Criminalidade do Porto - Juiz 3, por despacho proferido em 26.01.2024, não admitiu por extemporaneidade a impugnação judicial – artigo 63.º, n.º 1, do RGCO - apresentada por AA.


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Não se conformando com esta decisão, a arguida recorreu para este Tribunal da Relação, concluindo na sua motivação o seguinte (transcrição):

«I. A aqui Recorrente, devia ter sido devidamente informada da sua qualidade de arguida e dos seus Direitos e Deveres, bem como esclarecida da possibilidade de requerer nomeação, direta, de defensor oficioso. Art.º 53º do RGCO

II. Pois sendo arguida tem sempre direito a ser acompanhada por defensor oficioso.

III. Ora, conforme se pode constatar do processo administrativo junto nos presentes autos, em nenhuma das notificações à arguida, lhe são informados os seus Direitos Constitucionais como é de Lei.

“Fica o arguido abaixo identificado…”, e assim começa a notificação e constituição de arguida, sem qualquer referência, à legislação aplicável à sua qualidade de Arguida, em clara violação da Constituição da República Portuguesa. Artigo 20.º (Acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva) da Constituição da República Portuguesa.

IV. Nestes termos e uma vez mais, não foram respeitados os Direitos da Arguida e em consequência devem as notificações/ atos praticados pelas autoridades Administrativas /Policiais/ Judiciais ser declarados Nulos e de nenhum efeito, por incumprimento da Lei, por serem contra a Constituição e com efeito, declarados Inconstitucionais.

SEM PRESCINDIR

V. Por outro lado o despacho aqui Recorrido, viola o Princípio da tutela jurisdicional efetiva, sendo um direito fundamental previsto na Constituição da República Portuguesa que implica, em primeiro lugar, o direito de acesso aos tribunais para defesa de direitos individuais, não podendo as normas que modelam este acesso obstaculizá-lo ao ponto de o tornar impossível ou dificultá-lo de forma não objetivamente exigível.

VI. É a própria autoridade Reclamada, que se identifica como autoridade Administrativa, claramente no domínio da ação administrativa, assinando a decisão o Sr. Vereador do Pelouro das Finanças, Atividades Económicas e Fiscalização e Pelouro da Economia, Emprego e Empreendedorismo.

VII. Em consequência é de aplicar a Lei de Acesso ao Direito e Tribunais na sua plenitude, sem remição para qualquer Lei Especial, como a Lei Penal.

VIII. Com efeito, o pedido de escusa interrompe o prazo que está em curso, Art. 34º, Lei de Acesso ao Direito e Tribunais.

SEMPRE SEM PRESCINDIR

IX. No caso de o patrono nomeado pedir escusa à Ordem dos Advogados (art. 34º, nº 1 do citado diploma), e havendo já procedimento pendente, interrompe-se o prazo que estiver em curso – art. 34º, nº 2 –, quando o patrono comunique e comprove no processo, por qualquer forma, a apresentação do pedido de escusa – art. 34º, nº 3, ambos do mesmo diploma, sendo para o mesmo um “dever”.

X. Mas na falta de comunicação dessa situação por parte do Patrono nomeado, se tiver lugar a certificação junto do processo, pelo SINOA, de que teve lugar um tal pedido de escusa, com base nesta informação, pode-se considerar interrompido o prazo em curso, contanto que tal informação tenha chegado ao processo antes de decorrido o prazo.

XI. Da conjugação do n.º 1 do artigo 20.º da CRP com o artigo 24.º da Lei n.º 34/2004, resulta que a intenção é única e exclusivamente conceder tempo à parte para articular convenientemente a estratégia processual de forma a efetivar o seu direito.

XII. Devendo considerar-se suficiente para efeitos de interrupção do prazo, face à teologia que subjaz ao regime de proteção jurídica, o pedido de escusa formulado. Em suma, a interpretação efetuada pelo Tribunal a quo ao disposto nos n.º 2 e 3.º do artigo 34.º da Lei 34/2004, no sentido que o pedido de escusa por parte do patrono nomeado apenas interrompe o prazo judicial em curso, conquanto o mesmo patrono comunique tal pedido, constitui uma violação ao princípio constitucional do direito de acesso ao direito e aos Tribunais.

Face ao exposto, e sempre com o mui douto suprimento de Vossas Exas., deve o presente Recurso ser julgado procedente, e em consequência,

O despacho aqui Recorrido:

1. Ser declarado Nulo, por se fundamentar em processo administrativo Nulo, por violação do artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa,

SEM PRESCINDIR

2. Ser substituído por outro que considere a interrupção do prazo, em curso, com o pedido de escusa do Patrono Nomeado, nos termos do Art. 34º, Lei de Acesso ao Direito e Tribunais, e julgue tempestivo o Recurso Contraordenação apresentado.

SEMPRE SEM PRESCINDIR

3. Ser revogado, por violação do disposto no artigo 20.º da CRP, e a sua substituição por outro que julgue tempestivo o Recurso Contraordenação apresentado.

 Assim se fazendo

JUSTIÇA!»


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O Ministério Público, na sua resposta, apresentou as seguintes conclusões:

«Pelo exposto, o recurso interposto pela arguida não deve proceder pelo seguinte:

1. É nosso entendimento que o descrito despacho não padece de qualquer um dos vícios alegados pela arguida, devendo o mesmo ser mantido nos seus precisos termos.

2. No que concerne à falta de nomeação de interprete e tradução dos autos, para além do doutamente decidido pela Mma. Juiz que não merece censura.

3. O Regime Geral das Contraordenações e Coimas não prevê uma regulamentação especifica quanto à forma dos atos e sua documentação, atendendo-se ao disposto no artigo 41.º, n.º 1, do Regime Geral das Contraordenações e Coimas, no qual resulta que são aplicáveis subsidiariamente as normas processuais penais.

4. Conforme prevê o artigo 92.º, do Código de Processo Penal os atos processuais são praticados em língua portuguesa e que quem não domina a língua portuguesa tem direito à assistência de um intérprete.

5. O que se visa é o direito de compreender o processo e o direito a ser no mesmo compreendido, mas não decorre da lei que para a efetivação de tais direitos todo o processo seja traduzido, mas apenas os atos em que quem não domina a língua portuguesa tenha que intervir.

6. Nos autos foi remetida notificação à arguida que indica uma morada em Portugal como residência, não tendo em nenhum momento sido transmitida qualquer falta de compreensão da língua portuguesa, e tratando-se de pessoa singular que possui morada em Portugal, teremos que considerar que domina a língua portuguesa.

7. A arguida envia por correio eletrónico para o endereço institucional da Câmara Municipal ... em português alegando ter tido conhecimentodo auto de contraordenação que lhe foi levantado, infração imputada, local e hora, bem como dos prazos.

8. Até ao momento a arguida nada juntou aos autos quanto ao seu desconhecimento da língua portuguesa e tal não pode resultar somente pelo facto de não ter nacionalidade portuguesa, pois possui morada em Portugal, conduzindo um veículo com matrícula portuguesa, dando entrada de pedido de apoio judiciário em português, é expetável que compreenda a língua portuguesa. A acrescer que do requerimento que junta é evidente que entendeu perfeitamente a contraordenação aplicada para o pleno exercício do seu direito de defesa, indicando outros veículos estacionados no local, indicando testemunhas, fazendo menção ao sinal, o que demostra conhecimento da língua portuguesa.

9. Caso a arguida não tivesse conhecimento da língua portuguesa, lançando-se mão do princípio da lealdade processual deveria desde logo a recorrente ter arguido a nulidade, nos termos do disposto no artigo 120.º, n.º 2, alínea c) e n.º 3, alíneas a) e c), do Código de Processo Penal.

Assim, a arguição da nulidade por falta de nomeação de interprete ocorrida na fase administrativa, como é referido pela arguida, deveria ter sido efetuada até cinco dias após a notificação do despacho final proferido em sede administrativa, o que não foi feito.

10. Realçamos, conforme refere a Mma. Juiz que a arguida deu entrada dos documentos na fase administrativa sempre em português e em nenhum momento referiu não dominar a língua ou enviou para os autos documento redigido pela mesma na língua que alegadamente domina, alegando desconhecer o português, significando que mesmo que verificada a nulidade, face ao disposto no artigo 121.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal a mesma se consideraria sanada.

11. Mais refere a arguida que o recurso que apresentou não é extemporâneo.

12. Compulsados os autos verificamos que a arguida juntou documento a comprovar o pedido de ter requerido apoio judiciário, na modalidade de nomeação e pagamento de compensação a patrono e dispensa de taxa de justiça e demais encargos nos presentes autos, tendo no dia 16 de agosto de 2023 sido nomeado o Dr. BB, como defensor. Tal nomeação foi comunicada ao Defensor e à entidade administrativa nessa mesma data, tendo no dia 27 de outubro de 2023 sido junto aos autos informação que foi nomeada à arguida a Dra. CC em substituição do Dr. BB, na sequência dos pedidos de substituição formulados pela arguida e pelo mesmo.

13. Nos presentes autos a impugnação foi apresentada no dia 17 de novembro de 2023.

14. O prazo para recorrer da decisão proferida pela entidade administrativa é de 15 dias úteis contados da data de notificação.

15. Possuindo a arguida domicilio fiscal no estrangeiro, foi notificada da decisão administrativa condenatória no dia 16 de março de 2023, data em que manifestou a pretensão de impugnar judicialmente a decisão administrativa, dando entrada do pedido de apoio judiciário.

16. Assim, em 16 de agosto de 2023 foi nomeado o Dr. BB, tendo a nomeação sido comunicada nos legais termos. A partir da notificação ao patrono da sua nomeação começou a correr o prazo de quinze dias úteis para apresentação da impugnação judicial.

17. Por outro lado, no dia 27 de outubro de 2023 foi dado conhecimento à entidade administrativa que foi nomeada à recorrente a Dra. CC em substituição do Dr. BB, na sequência dos pedidos de substituição formulados pela recorrente e pelo mesmo. A nomeação foi notificação à Dra. CC no dia 27 de outubro de 2023 e comunicada à entidade administrativa nessa mesma data.

18. Como refere a Mma. Juiz: “Nem a recorrente, nem o Dr BB deram conhecimento aos autos dos pedidos de substituição formulados.

Conforme se decidiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 15/01/2020, processo n.º279/19.4T8ACB-A.C1, Relatora Dra Ana Carolina Cardoso, disponível para consulta em www.dgsi.pt, entendimento que perfilhamos, “são inaplicáveis no âmbito do processo penal e na amplitude do regime contraordenacional as disposições contidas nos artigos 24.º, n.º 5, 34.º, n.º 2, e 32.º, todos da lei n.º 34/2004, de 29-07 (alterada, sucessivamente, pelas Leis n.ºs 47/2007, de 28/08, 40/2018, de 08/08, e 120/2018, de 27/12). Por força do prescrito nos artigos 39.º, n.º 1, e 42.º, ambos da Lei n.º 34/2004, o pedido de substituição ou dispensa do defensor ao arguido não determina a interrupção ou a suspensão do prazo processual que, então, estiver em curso, nomeadamente o prazo para interposição de recurso da decisão judicial que conheceu da impugnação da decisão administrativa.” (…) O prazo – de quinze dias úteis – para apresentação da impugnação judicial, de natureza administrativa, não lhe são aplicáveis as regras privativas dos prazos judiciais – uma vez que respeita a um acto que se inscreve, ainda, no âmbito administrativo e é, portanto, prévio à fase processual que o mesmo tem em vista desencadear1 - terminou, pois, no dia seis de Setembro de dois mil e vinte e três. É, pois, manifesto que a apresentação da impugnação judicial no dia dezassete de Novembro de dois mil e vinte e três é intempestiva.”

19. Assim, atenta a data em que a impugnação foi apresentada já havia decorrido o prazo legal para o efeito.

20. Nestes termos, considera-se que a douta decisão recorrida deve ser mantida nos seus precisos termos e ser improcedente o recurso interposto pela arguida.

No entanto, farão V. Exas. a habitual e costumada justiça.»


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Nesta instância, o Ministério Público, no seu parecer, em resumo, pronunciou-se no sentido de o recurso não merecer provimento porquanto a partir da notificação ao patrono da sua nomeação (16/08/2023) retomou-se o prazo legal de quinze dias úteis para apresentação da impugnação judicial (art. 181.º, n.º 2, alínea a), do Código da Estrada). Não foi comunicada aos autos qualquer pedido de substituição de patrono, apenas foi comunicado em 27/10/2023, o deferimento de requerida substituição de patrono. De todo o modo e conforme decorre do disposto nos artigos 39.º, n.º 1, e 42.º, da Lei n.º 34/2004, o pedido de substituição ou dispensa do defensor ao arguido não determina a interrupção ou a suspensão do prazo processual que, então, estiver em curso, tudo como muito bem se fundamenta na jurisprudência citada na decisão recorrida. Assim, à data em que foi apresentada a impugnação judicial – 17/11/2023 – mostrava-se já largamente ultrapassado o prazo legal de quinze dias úteis.

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Foi cumprido o disposto no artigo 417º, n.º 2 do CPP e a arguida apresentou resposta onde conclui da mesma forma como no recurso.

Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.

Cumpre apreciar e decidir.


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2-FUNDAMENTAÇÃO

2.1-QUESTÕES A DECIDIR

O Tribunal da Relação conhece apenas da matéria de direito (artigo 75º, nº 1 do Dec. Lei nº 433/82 de 27 de outubro, Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso previstas no artigo 410º, nºs 2 e 3 do Código de Processo Penal.

Assim, as questões a decidir, face às conclusões apresentadas na motivação do recurso que, conforme jurisprudência constante e assente, delimitam o seu objeto (cfr. artigo 412º, nº 1, do Código de Processo Penal) são as seguintes:

- saber se o despacho recorrido deve ser declarado nulo por se fundamentar em processo administrativo nulo por violação do artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa,

- saber se o recurso de contraordenação deve ser julgado tempestivo.


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2.2-A DECISÃO RECORRIDA

O teor do despacho recorrido é o seguinte:

«Da tempestividade na apresentação da impugnação judicial:

O processo contra-ordenacional foi instaurado no dia dois de Maio de dois mil e vinte e dois.

Após ter sido notificada, em requerimento que datou de vinte e quatro de Novembro de dois mil e vinte e dois, a recorrente, em requerimento por si subscrito em português, apresentou defesa.

No dia vinte e três de Dezembro de dois mil e vinte e dois, foi proferida decisão administrativa condenatória – a recorrente foi condenada pela alegada prática, no dia 02/05/2022, do ilícito previsto e punidos pelos art 24.º, n.º1, e 26.º, n.º1, do Regulamento de Sinalização e Trânsito, aprovado pelo Decreto-Regulamentar n.º22-A/98, de 1 de Outubro – estacionamento de veículo em local proibido -, na coima de quarenta e cinco euros.

No dia dezasseis de Março de dois mil e vinte e três, a requerente juntou ao processo o documento comprovativo de ter requerido, nesse mesmo dia, protecção jurídica na modalidade de nomeação e pagamento de compensação a patrono e dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo para apresentar impugnação judicial (requerimento também subscrito em português).

No dia dezasseis de Agosto de dois mil e vinte e três, foi nomeado à recorrente o Dr. BB. A nomeação foi comunicada ao Causídico e à entidade administrativa nessa mesma data.

No dia vinte e sete de Outubro de dois mil e vinte e três, foi dado conhecimento à entidade administrativa que foi nomeada à recorrente a Dra CC em substituição do Dr BB, na sequência dos pedidos de substituição formulados pela recorrente e pelo mesmo. A nomeação foi notificação à Dra CC no dia vinte e sete de Outubro de dois mil e vinte e três e comunicada à entidade administrativa nessa mesma data.

No dia dezassete de Novembro de dois mil e vinte e três, foi apresentada impugnação judicial.

Vejamos.

A recorrente tinha o prazo de quinze dias úteis contados da data da notificação para apresentar impugnação judicial. Nos termos das disposições conjugadas dos arts. 176.º, n.º5, 7.º, alínea c), do Código da Estrada e do que consta a fls. 4 verso, 5, 19 a 30, deve considerar-se que a recorrente, com domicílio fiscal no estrangeiro, foi notificada da decisão administrativa condenatória no dia dezasseis de Março de dois mil e vinte e três, data em que demonstrou ter tomado conhecimento da mesma/manifestando a pretensão de a impugnar judicialmente. Nessa data, a mesma remeteu ao processo administrativo um email dando conta que peticionou o benefício do apoio judiciário para apresentar impugnação judicial.

A notificação foi efectuada em português. Resulta manifesto dos autos, mormente dos vários requerimentos por si subscritos na sequência das notificações efectuadas (percebendo o que lhe era transmitido), que a recorrente domina a língua portuguesa. Aliás, em momento anterior à apresentação da impugnação judicial, nunca veio aos autos invocar qualquer dificuldade na compreensão da mesma, o que seria expectável (se assim fosse).  Por dominar a língua portuguesa, as peças que lhe foram notificadas e as próprias notificações não tinham, pois, de ser traduzidas para outra língua. Não estamos perante qualquer vício que implique a repetição da notificação.

Nesse dia dezasseis de Março de dois mil e vinte e três, a recorrente juntou ao processo o documento comprovativo de ter requerido, nesse mesmo dia, proteção jurídica na modalidade de nomeação e pagamento de compensação a patrono e dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo.

Nos termos do disposto no art. 24.º da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, em vigor aquando da formulação do pedido de apoio judiciário:

“1 - O procedimento de protecção jurídica na modalidade de apoio judiciário é autónomo relativamente à causa a que respeite, não tendo qualquer repercussão sobre o andamento desta, com excepção do previsto nos números seguintes.

2 - Nos casos previstos no n.º 4 do artigo 467.º do Código de Processo Civil e, bem assim, naqueles em que, independentemente das circunstâncias aí referidas, esteja pendente impugnação da decisão relativa à concessão de apoio judiciário, o autor que pretenda beneficiar deste para dispensa ou pagamento faseado da taxa de justiça deve juntar à petição inicial documento comprovativo da apresentação do respectivo pedido.

(…)

4 - Quando o pedido de apoio judiciário é apresentado na pendência de acção judicial e o requerente pretende a nomeação de patrono, o prazo que estiver em curso interrompe-se com a junção aos autos do documento comprovativo da apresentação do requerimento com que é promovido o procedimento administrativo.

5 - O prazo interrompido por aplicação do disposto no número anterior inicia-se, conforme os casos:

a) A partir da notificação ao patrono nomeado da sua designação;

b) A partir da notificação ao requerente da decisão de indeferimento do pedido de nomeação de patrono.”  - o sublinhado é nosso.

No dia dezasseis de Agosto de dois mil e vinte e três, foi nomeado à recorrente o Dr. BB. A nomeação foi comunicada ao Causídico e à entidade administrativa nessa mesma data. A partir da notificação ao patrono da sua nomeação – naquele dia dezasseis - começou a correr o prazo de quinze dias úteis para apresentação da impugnação judicial (art. 181.º, n.º2, alínea a), do Código da Estrada).

No dia vinte e sete de Outubro de dois mil e vinte e três, foi dado conhecimento à entidade administrativa que foi nomeada à recorrente a Dra CC em substituição do Dr BB, na sequência dos pedidos de substituição formulados pela recorrente e pelo mesmo. A nomeação foi notificação à Dra CC no dia vinte e sete de Outubro de dois mil e vinte e três e comunicada à entidade administrativa nessa mesma data.

Nem a recorrente, nem o Dr BB deram conhecimento aos autos dos pedidos de substituição formulados.

Conforme se decidiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 15/01/2020, processo n.º279/19.4T8ACB-A.C1, Relatora Dra Ana Carolina Cardoso, disponível para consulta em www.dgsi.pt, entendimento que perfilhamos, “são inaplicáveis no âmbito do processo penal e na amplitude do regime contraordenacional as disposições contidas nos artigos 24.º, n.º 5, 34.º, n.º 2, e 32.º, todos da lei n.º 34/2004, de 29-07 (alterada, sucessivamente, pelas Leis n.ºs 47/2007, de 28/08, 40/2018, de 08/08, e 120/2018, de 27/12). Por força do prescrito nos artigos 39.º, n.º 1, e 42.º, ambos da Lei n.º 34/2004, o pedido de substituição ou dispensa do defensor ao arguido não determina a interrupção ou a suspensão do prazo processual que, então, estiver em curso, nomeadamente o prazo para interposição de recurso da decisão judicial que conheceu da impugnação da decisão administrativa.” – o sublinhado é nosso.

Como ali se decidiu, “o art. 32º, n.º 1, da Lei n.º 34/2004, de 29.7, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 47/2007, de 28.8, permite ao beneficiário do apoio judiciário a possibilidade, em qualquer processo, de requerer à Ordem dos Advogados a substituição do patrono nomeado, fundamentando o seu pedido. Uma vez deferido tal pedido de substituição, aplicam-se as regras constantes dos arts. 34º e ss. da mesma Lei, nomeadamente o n.º 2 do seu art. 34º, que reza o seguinte: “O pedido de escusa, formulado nos termos do número anterior e apresentado na pendência do processo, interrompe o prazo que estiver em curso, com a junção aos respetivos autos de documento comprovativo do referido pedido, aplicando-se o disposto no n.º 5 do artigo 24º”.

Poder-se-ia extrair deste preceito que o regime aí estabelecido se aplica a todos os processos. No entanto, o processo penal tem um regime próprio, que afasta a aplicação desta norma.

Na verdade, a Lei n.º 34/2004, no seu capítulo IV, contém uma série de “Disposições especiais sobre o processo penal”, desde logo, no art. 39º, o seguinte, relativamente à nomeação de defensor: “A nomeação do defensor ao arguido, a dispensa do patrocínio e a substituição são feitas nos termos do Código de Processo Penal, do presente capítulo e da portaria referida no n.º 2 do artigo 45º”.

O art. 34º referido encontra paralelo, no tocante ao processo penal, no art. 42º da Lei n.º 34/2004, que prevê a dispensa de patrocínio, a ser concedida pela Ordem dos Advogados, no caso de o advogado nomeado defensor o requerer com um fundamento que a OA considere justo – encontrando-se idêntica previsão no art. 66º, n.ºs 2 e 3, do CPP, sendo a dispensa concedida pelo tribunal a pedido do defensor ou do arguido caso seja alegada uma causa justa.

E o n.º 3 do mesmo art. 42º da Lei 34/2004 estabelece que “Enquanto não for substituído, o defensor nomeado para um ato mantém-se para os atos subsequentes do processo”. É exatamente igual a redação do n.º 4 do art. 66º do CPP.

Assim, e ao contrário do previsto nos arts. 24º, n.º 5, ex vi arts. 34º, n.º 2, e 32º da Lei n.º 34/2004, a substituição de defensor no processo penal não prevê, nem origina, qualquer interrupção ou suspensão do prazo que estiver em curso, aquando do pedido de substituição ou dispensa do defensor. Tratando-se de normas especiais, naturalmente que afastam as normas gerais referidas (no mesmo sentido, cf., entre muitos outros, os Acórdãos desta Relação de Coimbra de 18.12.2013, no proc. 139/96.5TATND.C1, de 7.12.2016, no proc. 8785/13.8TDPRT-A.C1, da Relação de Guimarães, de 25.5.2015, no proc. 1715/12.6GBBCL.G1).

Aliás, o n.º 10 do art. 39º da Lei n.º 34/2004 é expresso em afastar a suspensão ou interrupção do processo, ao estatuir que “O requerimento para a concessão de apoio judiciário não afeta a marcha do processo”.

Justifica-se a diferença de regimes, uma vez que, por um lado, no processo penal o arguido tem de estar sempre assistido por defensor, e, por outro lado, se pretendem evitar demoras no curso do processo.

Importa ainda referir que o Tribunal Constitucional se pronunciou já sobre a inconstitucionalidade invocada pelo recorrente na sua conclusão 2, nomeadamente no acórdão n.º 487/2018, publicado no DR, II Série, de 22.11.2018, da seguinte forma: “Não julga inconstitucional a norma resultante da interpretação do disposto nos artigos 39º, n.º 1, 42º, n.º 3, e 44º, n.º 1, da Lei n.º 34/2004, de 29 de julho, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 47/2007, de 28 de agosto, e do artigo 66º, n.º 4, do Código de Processo Penal, segundo a qual o prazo de interposição de recurso da decisão depositada na secretaria não se interrompe nem se suspende no caso de, no decurso do mesmo, o arguido apresentar junto da Ordem dos Advogados pedido de substituição do defensor que lhe fora nomeado no processo”.”

No caso, os requerimentos de substituição apresentados não têm a virtualidade de suspender/interromper o prazo para apresentação da impugnação judicial.

O prazo – de quinze dias úteis - para apresentação da impugnação judicial, de natureza administrativa, não lhe são aplicáveis as regras privativas dos prazos judiciais – uma vez que respeita a um acto que se inscreve, ainda, no âmbito administrativo e é, portanto, prévio à fase processual que o mesmo tem em vista desencadear  - terminou, pois, no dia seis de Setembro de dois mil e vinte e três.

É, pois, manifesto que a apresentação da impugnação judicial no dia dezassete de Novembro de dois mil e vinte e três é intempestiva.

Pelo exposto, porque extemporânea, não admito a impugnação judicial – art. 63.º, n.º1, do RGCO.

Custas pela recorrente – art.s 93.º, n.º4, 94.º, n.º3, do RGCO – cuja taxa de justiça, face à simplicidade do processado/ausência de diligências probatórias/reduzido número de notificações efectuadas, fixo em uma unidade de conta.

Notifique.

Dê baixa.

Oportunamente (após trânsito – art. 63.º, n.º2, do RGCO), dê conhecimento à autoridade administrativa – art. 70.º, n.º4, do RGCO, devidamente adaptado – (com envio de certidão de todo o processado) e, uma vez que este Tribunal não conheceu da impugnação, proferindo decisão a confirmar ou revogar a decisão da autoridade administrativa, é perante a autoridade administrativa que a recorrente deve liquidar os montantes aludidos na decisão administrativa.

Notifique.

Porto, d.s.»


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2.3- APRECIAÇÃO DO RECURSO.

2.3.1-Da nulidade do despacho recorrido por se fundamentar em processo administrativo nulo por violação do artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa.

Entende a recorrente que o processo administrativo é nulo por em nenhuma das notificações que lhe foram feitas foi devidamente informada da sua qualidade de arguida e dos seus direitos e deveres, bem como esclarecida da possibilidade de requerer nomeação, direta, de defensor oficioso.

E por o processo administrativo ser nulo o despacho recorrido é também nulo.

Não tem qualquer razão a recorrente, desde logo porque a existir a invocada nulidade ou simples irregularidade, as mesmas encontram-se sanadas por não terem sido atempadamente invocadas.

Não se vislumbra qualquer violação do artigo 20º da Constituição, pois a verificar-se a nulidade ou irregularidade a recorrente tinha o ónus de as invocar, sob pena de sanação, não o tendo feito está sanada a nulidade – artigos 121º, 122º e 123º do CPP, aplicáveis ex-vi artigo 41º do RGCO.

Assim, nesta parte improcede o recurso.

2.3.2-Da tempestividade do recurso de contraordenação.

Entende a recorrente que a impugnação judicial que apresentou é tempestiva pois o prazo para a impugnação interrompeu-se em razão do pedido de escusa do patrono, artigo 34º da Lei de Acesso ao Direito e aos Tribunais e por força do disposto no artigo 20º da Constituição.

Dos autos resulta que:

A decisão administrativa que condenou a recorrente pela prática, no dia 02/05/2022, do ilícito previsto e punidos pelos artigo 24.º, n.º1, e 26.º, n.º1, do Regulamento de Sinalização e Trânsito, aprovado pelo Decreto-Regulamentar n.º22-A/98, de 1 de Outubro, estacionamento de veículo em local proibido, na coima de quarenta e cinco euros, foi proferida em 23/12/2022.

A arguida tomou conhecimento da decisão administrativa pelo menos no dia 16/03/2023, dia em que juntou aos autos documento comprovativo de ter requerido, nessa mesma data, proteção jurídica na modalidade de nomeação e pagamento de compensação a patrono e dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo para efeitos de apresentação de impugnação judicial (requerimento subscrito em português). 

No dia 16/08/2023, foi nomeado patrono à requerente o Dr. BB, nomeação. A nomeação foi comunicada ao Causídico e à entidade administrativa nessa mesma data.

No dia 27/10/2023 foi dado conhecimento à entidade administrativa que foi nomeada à recorrente a Dra. CC em substituição do Dr. BB, na sequência dos pedidos de substituição formulados pela recorrente e pelo mesmo. A nomeação foi notificada à Dra. CC no dia 27/10/2023 e comunicada à entidade administrativa nessa mesma data.

 No dia 17/11/2023, foi apresentada a impugnação judicial.

Não tem razão a recorrente quanto à afirmação que o prazo para a impugnação judicial se interrompe em razão do pedido de escusa do patrono, nos termos do artigo 34º da Lei de Acesso ao Direito e aos Tribunais e por força do disposto no artigo 20º da Constituição.

Com efeito, conforme se refere na decisão recorrida e no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra aí citado[1], são inaplicáveis no âmbito do processo penal e na amplitude do regime contraordenacional as disposições contidas nos artigos 24.º, n.º 5, 34.º, n.º 2, e 32.º, todos da lei n.º 34/2004, de 29-07.

Por força do prescrito nos artigos 39.º, n.º 1, e 42.º, ambos da Lei n.º 34/2004, o pedido de substituição ou dispensa do defensor ao arguido não determina a interrupção ou a suspensão do prazo processual que, então, estiver em curso, nomeadamente o prazo para interposição de recurso da decisão judicial que conheceu da impugnação da decisão administrativa.

O n.º 3 do artigo 42º da Lei 34/2004 e o n.º 4 do artigo 66º, do Código de Processo Penal estabelecem que «Enquanto não for substituído, o defensor nomeado para um ato mantém-se para os atos subsequentes do processo.»

São normas especiais relativamente artigos 24.º, n.º 5, 34.º, n.º 2, e 32.º, todos da lei n.º 34/2004, de 29-07 que afastam essa aplicabilidade, com fundamento na celeridade do processo penal e contraordenacional e a necessidade de o arguido se encontrar sempre representado por advogado.

O Tribunal Constitucional já se pronunciou sobre esta matéria e decidiu no Acórdão n.º 501/2021[2], à semelhança de anterior decisão[3]:

«Não julgar inconstitucional a interpretação normativa conjugada das normas constantes dos artigos 39.º, nº 1 e 42.º, n.ºs 1 e 3 da Lei nº 34/2004, de 29 de julho e dos artigos 66.º, n.ºs 2 e 4 e 411.º, nº 1 alínea a), do Código de Processo Penal, na interpretação da qual resulta que em processo penal a apresentação de pedido de dispensa de patrocínio por Defensor Oficioso não interrompe o prazo para recurso da decisão condenatória que se encontre em curso;»

Este entendimento justifica-se porque não obstante a existência de um pedido de substituição o defensor nomeado, enquanto se mantiver nessa qualidade, fica sujeito a um conjunto de deveres funcionais e deontológicos, continua a poder e a ter o dever de exercer a defesa do arguido. Assim, como refere o Tribunal Constitucional, não se poderá considerar que a necessidade de assegurar um efetivo direito de defesa ao arguido exija que, perante um pedido de substituição do defensor nomeado, formulado perante a Ordem dos Advogados e independentemente das razões de tal pedido, se suspenda ou interrompa o prazo em curso até que se mostrasse decidida a questão respeitante a tal pedido de substituição.

Ora, não se tendo suspendido o prazo, na data em que foi apresentada a impugnação judicial – 17/11/2023 – já tinha expirado o prazo legal de quinze dias úteis para a impugnação judicial.

Concluímos, assim, não ter razão a recorrente, nem se verificar a violação do disposto no artigo 20º da Constituição.

Assim, é de confirmar a decisão recorrida que indeferiu, por extemporaneidade, o requerimento de impugnação judicial.


*

3- DECISÃO.

Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.

Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC (art. 513º, n.º 1, do Código de Processo Penal, art. 8º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III anexa a este último diploma), sem prejuízo do apoio judiciário concedido.

Notifique.


Porto, 12 de junho de 2024
William Themudo Gilman
Manuel Soares
Carla Oliveira
__________________
[1] Cfr. Ac. TRC de 15.01.2020, proc. 279/19.4T8ACB-C1 (Ana Carolina Cardoso), in http://www.gde.mj.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/93217fd85804ff89802584f200388247?OpenDocument; Ac. TRC de 05.02.2020, proc. 40/18.3SBGVA.C1 (João Novais), in https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/3537944d10398fb980258507003b4d6c?OpenDocument;
AC. TRG de 24.09.2018, proc. 521/16.3T9GMR.G1 (Jorge Bispo), in https://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/e8afa32bea0fd5dc802583350034ec83?OpenDocument
[2] https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20210501.html
[3] Cfr. o Ac. TC 487/2018, in https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20180487.html?impressao=1