Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
25425/19.4T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANA PAULA AMORIM
Descritores: REAPRECIAÇÃO DA PROVA
AMPLIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Nº do Documento: RP2024071025425/19.4T8PRT.P1
Data do Acordão: 07/10/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMAÇÃO
Indicações Eventuais: 5. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A reapreciação da prova tem em vista uma possível alteração da decisão da matéria de facto em pontos relevantes para a boa decisão da causa e à luz das diversas soluções plausíveis das questões de direito e não uma determinação da realidade dos factos, independentemente do relevo que possam ter nas questões de direito a reapreciar, sendo proibida a prática no processo de atos inúteis (artigo 130º do CPC).
II - Para os efeitos do art.º 662º/2 c) CPC, a ampliação da matéria de facto mostra-se indispensável, quando se tenham omitido dos temas da prova factos alegados pelas partes que se revelam essenciais para a resolução do litígio, na medida em que assegurem enquadramento jurídico diverso do suposto pelo juiz do tribunal “a quo”.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Arrd-Obras-RMF-25425/19.4T8PRT.P1

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SUMÁRIO[1] ( art. 663º/7 CPC ):

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Acordam neste Tribunal da Relação do Porto ( 5ª secção judicial – 3ª Secção Cível )

Relatório

Na presente ação declarativa, que segue a forma de processo comum, em que figuram como:

-  AUTOR: Clube ..., associação com sede na Rua ..., ... Porto, NIPC ...15; e

- RÉUS: 1.º- AA, portador do cartão de cidadão nº ...29, NIF ...26..., residente na Rua ..., ... ..., ... ...; e

2.ª- A..., Lda., com o NIPC ...61 e sede na Praça ..., ... Porto,

pede o autor a condenação dos réus a reconstruir, no prazo de trinta dias, a parede resistente, em granito, que separa os prédios melhor identificados nas alíneas a) e b) do art.º 2º da petição inicial, colocando os imóveis no estado em que se encontravam antes da obra de abertura da ligação entre os referidos prédios pela demolição daquela parede existente no interior de um arco e ainda,  a condenação de cada um dos réus, no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória ao autor, no valor de €. 500,00 (quinhentos euros) por cada dia de atraso no cumprimento da sentença.

Alegou, para tal e em suma, que celebrou com o primeiro réu contrato de arrendamento por via do qual lhe cedeu o uso e fruição da divisão com utilização independente designada de Loja ... do prédio descrito na alínea a) do artigo 2.º da petição inicial e celebrou com a segunda ré um contrato de arrendamento por via do qual lhe cedeu o uso e fruição da divisão com utilização independente designada pela L105 do prédio descrito na alínea b) do artigo 2.º da petição inicial, sendo que em Agosto de 2019 constatou que foram destruídas paredes resistentes que separam os dois prédios para abertura de vão, o que põe em causa a segurança estrutural do edifício, que está em risco de derrocada e obrigou o autor a encerrar provisoriamente o funcionamento das suas principais salas. Mais invocou que a obra foi realizada sem autorização do senhorio e sem licença camarária para o efeito.


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Citados os réus, contestaram, defendendo-se por exceção e por impugnação.

Alegaram, em síntese, que o arrendamento da loja no prédio descrito na alínea a) foi celebrado porque o autor autorizou a reabertura da passagem (o que consta das cláusulas 5.ª e 6.ª do contrato de arrendamento celebrado) e que a parede que separa essas duas lojas é em granito, originalmente com uma passagem em arco entre ela, que em data que não sabem precisar foi tapada com tabique de fasquia e foi essa passagem originária antiga que as partes acordaram em reabrir. Mais invocaram os réus que o autor atua em abuso de direito ao permitir a reabertura da passagem e agora pretender impedir por todos os meios a obtenção da licença camarária.


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Proferiu-se despacho que convidou o autor a pronunciar-se sobre a matéria das exceções invocadas pelos réus na contestação e fazendo uso de tal faculdade veio impugnar os factos alegados pelos réus, renovando os argumentos da petição.

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Elaborou-se o despacho saneador e o despacho que fixou o objeto do litígio e os temas da prova, o qual foi objeto de reclamação, que não foi atendida e após realização de audiência prévia.

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Procedeu-se à produção de prova, com realização de prova pericial (primeira e segunda perícia, cujos relatórios estão inseridos a páginas 679 e 557 do processo eletrónico, sistema Citius). Os peritos prestaram esclarecimentos por escrito (inseridos a páginas 412 do processo eletrónico sistema Citius) e em sede de audiência de julgamento.

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Realizou-se o julgamento com observância do legal formalismo, conforme resulta das atas.

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Proferiu-se sentença com a decisão que se transcreve:

“Nos termos e pelos fundamentos expostos, decido julgar a presente ação improcedente, por não provada, e em consequência decido absolver os RR., dos pedidos formulados pela A.

Custas pela A. (art.º 527.º, n.º s 1 e 2, do CPC)”.


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A Autora veio interpor recurso da sentença.

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Nas alegações que apresentou a apelante formulou as seguintes conclusões:

I. A decisão recorrida assenta numa errada apreciação da prova produzida e padece, além do mais, de erro de julgamento, violando o disposto no artigo 45º da Lei n.º 107/2001, de 08 de setembro (Lei De Bases Do Património Cultural) e o artigo 4º n.º 2 alínea d) do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação (DL n.º 555/99, de 16 de dezembro.

A) DOS CONCRETOS PONTOS DE FACTO QUE A RECORRENTE CONSIDERA INCORRETAMENTE JULGADOS

II. Não deveria ter sido dado como não provado, com a redação que foi, o facto constante do ponto aa) da Fundamentação de facto (factos não provados) – “Os RR. deram início à referida obra sem autorização da Direção Geral da Cultura, igualmente obrigatória atenta a classificação do imóvel” –, devendo, por outro lado, ter sido dados como provados factos adicionais.

III. A obrigatoriedade de parecer da Direção Geral da Cultura, por se tratar de imóvel classificado, é matéria de direito, pelo que não deveria constar do elenco da matéria de facto e o facto de a obra ter sido realizada sem o referido parecer, deveria passar a constar do elenco dos factos provados.

IV. Os meios de prova que impõe tal alteração são o documento n.º 3 junto pelo 1º R. na sua contestação (demonstra que a própria licença de obra foi emitida apenas em 25/11/2019), o documento junto em audiência de julgamento, em 31/10/2022 (demonstra que o parecer foi emitido por esta entidade em 08/11/2019), o relatório datado do dia 20 desse mesmo mês e que foi junto como documento n.º 9 da petição inicial (demonstra que o derrube da parede que separava os dois prédios ocorreu em agosto de 2019, o que de resto nunca foi sequer negado pelos RR., dos quais resulta que o parecer da Direção Regional de Cultura do Norte e a própria licença de obras foram emitidos já depois da obra concluída.

V. Os documentos referidos bem como o depoimento da testemunha BB (audiência de julgamento de 28/10/2022, com a duração de 00:27:04 e gravado entre as 15:42 e as 16:09), nomeadamente nas passagens gravadas entre os minutos [00:03:43] e [00:04:01] e os minutos [00:04:55] e [00:05:43] que mesmo aquele parecer que foi emitido pela DRCN se baseou em declarações e documentos falseados, prestadas pelos recorridos, sendo que tal parecer nunca recaiu sobre a remoção da parede e que tal parecer era obrigatório, já que todas as obras em edifício classificado carecem de parecer prévio da DRCN, sendo, portanto, para este efeito, indiferente ser a parede de granito ou de tabique.

VI. Deve ser alterada a redação do ponto aa) da Fundamentação de facto (factos não provados), passando a dar como PROVADO que “Os RR. deram início à referida obra sem autorização da Direção Geral da Cultura”.

VII. Deve ser acrescentado um novo ponto à fundamentação de facto, dando como PROVADO que “Os RR. deram início à referida obra sem licença de obras para o efeito.” e que “O parecer que a Direção Geral de Cultura do Norte emitiu partiu do pressuposto que a abertura já se encontrava aberta, não tendo sido pedido parecer quanto à remoção da parede”.

ISTO POSTO,

B) DA APLICAÇÃO DO DIREITO AOS FACTOS

VIII. Mesmo que a abertura da passagem tenha sido autorizada no contrato, estando em causa um imóvel inserido num conjunto urbano classificado como conjunto de interesse público [CIP] e tendo ainda sido fixada zona especial de proteção, o contrato nunca poderia ser interpretado isoladamente e à margem desse contexto particular.

IX. A obra em causa nos presentes autos não respeitou nenhuma das imposições legais aplicáveis a intervenções a realizar neste tipo de edifícios, tendo, nomeadamente, violado o disposto no artigo 45º da Lei n.º 107/2001, de 08 de setembro (Lei De Bases Do Património Cultural), e a alínea d) do n.º 2 do artigo 4º do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação (DL n.º 555/99, de 16 de dezembro), uma vez que, com vista à preservação do património, toda e qualquer obra a realizar em edifícios classificados, está sujeita a autorização e/ou licença.

X. O facto de a parede que separava os prédios em causa ser de tabique não altera em tal circunstância, até porque como referiu a testemunha CC, “o tabique é uma construção dos anos 20 do século passado”, sendo portanto também um elemento construtivo antigo e que fazia parte do prédio quando este foi classificado.

XI. A legítima e imperativa defesa do património, obrigação que impende sobre o recorrente, jamais poderá ser considerada abuso de direito.

XII. Os RR. violaram a lei ao derrubar a parede antes de ter sido emitido o necessário parecer da DRCN ou a licença de obra, o que faz com que esta obra tenha sido, à partida, ilegal, pelo que deverá ser ordenada a reposição dos imóveis como estavam antes de a obra ilegal ter sido realizada.

Termina por pedir o provido do recurso, com revogação da sentença e  substituição por outra que decrete a reconstrução da parede que separava os imóveis em causa nos autos.


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Os réus apresentaram resposta ao recurso, no qual formularam as seguintes conclusões:

A ) O vão em arco a possibilitar a passagem entre os dois espaços é original, anterior pois às obras, como resulta das duas perícias e foi dado como provado;

B ) Não havia assim necessidade de pedir a licença que o A. alega estar em falta;

C ) E mesmo que houvesse necessidade de pedir alguma licença em falta, essa era uma questão que caía no âmbito da relação do R. com as entidades que a deviam emitir, e não no âmbito da relação locatícia;

E) Aliás quer a Câmara Municipal do Porto quer a Direção Geral da Cultura Norte conhecem a situação do estabelecimento, como está a funcionar, e não lhe retiraram a licença, nem existe nos autos, ou fora deles, nada que leve a considerar que tal venha a acontecer;

F) E sim, se outros fundamentos não houvesse, sempre a ação deveria improceder com base no abuso de direito que o A. nega, mas que é clamoroso, e envergonha o nome e o passado do Clube.

Termina por pedir que seja negado provimento ao recurso e se mantenha a douta decisão recorrida.


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O recurso foi admitido como recurso de apelação.

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Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

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II. Fundamentação

1. Delimitação do objeto do recurso

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso – art. 639º do CPC.

As questões a decidir:

- reapreciação da decisão de facto;

- mérito da causa.


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2. Os factos

Com relevância para a apreciação das conclusões de recurso cumpre ter presente os seguintes factos provados no tribunal da primeira instância:

1) A A. é uma associação cultural e recreativa sem fins lucrativos, com estatuto de utilidade pública;

2) Encontra-se registada, através da inscrição AP. ...0 de 1930/10/28, a favor da A. na Conservatória do Registo Predial a aquisição dos seguintes prédios urbanos:

a) Um prédio urbano constituído por uma área de 440 metros quadrados, inscrito na matriz predial urbana do Porto, sob o nº ...78 e descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto sob nº ...20, sito na Rua ..., ... Porto;

b) Um prédio urbano constituído por uma área de 440 metros quadrados, inscrito na matriz predial urbana do Porto, sob o nº ...75 e descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto sob nº ...20, sito na Rua ..., ... Porto;

3) Os prédios identificados supra vieram ao domínio da A. por cedência camarária;

4) E são constituídos, respetivamente, por sete e nove divisões com utilização independente;

5) No dia 15 de outubro de 2015, a A. e a 2.ª R. outorgaram o escrito intitulado "Contrato de arrendamento para fim não habitacional" junto com a petição inicial como doc. n.º 5, cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido, mediante o qual a A. deu de arrendamento à 2.ª R. a divisão com utilização independente ... do prédio urbano inscrito na matriz predial urbana do Porto, sob o nº ...75, afeta a comércio, com entrada pelo n.º ...05 da Praça ... da Rua ..., ... Porto;

6) Foi estipulado no mencionado contrato que ele vigoraria pelo prazo de 30 anos, com início em 1 de novembro de 2015 e termo em 30 de outubro 2045;

7) E com a renda mensal de 850,00€ (oitocentos e cinquenta euros), a ser paga até ao primeiro dia útil do mês anterior a que respeitasse;

8) Ficou também contratualmente estabelecido que qualquer obra que viesse a ser realizada no locado careceria da autorização da A. – cláusula 4.ª do contrato de arrendamento – a qual teria que ser prestada por escrito;

9) No dia 25 de setembro de 2017, A. e 1.º R. outorgaram o escrito intitulado "Contrato de arrendamento para fim não habitacional" junto com a petição inicial como doc. n.º 4, cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido, mediante o qual a A. deu de arrendamento ao 1.º R. a divisão com utilização independente loja ... do prédio urbano inscrito na matriz predial urbana do Porto, sob o nº ...78, afeta a comércio, sita na Rua ..., ... Porto;

10) Foi estipulado no mencionado escrito que o contrato vigoraria pelo prazo de 30 anos, com início em 1 de outubro de 2017 e termo em 30 de setembro 2047;

11) E com a renda mensal de 350,00 € (trezentos e cinquenta euros), a ser paga até ao primeiro dia útil do mês anterior a que respeitasse;

12) Ficou estabelecido na primeira parte da cláusula 5.1 do mesmo escrito que qualquer obra que viesse a ser realizada no locado careceria da autorização da A., qual teria que ser prestada por escrito;

13) Na 2.ª parte da mesma cláusula 5.1 ficou estipulado: “Porém, o segundo outorgante fica desde já autorizado a realizar no arrendado as obras necessárias à respetiva adaptação para o fim a que se destina, cabendo-lhe suportar todos os custos daí decorrentes, incluindo todas e quaisquer despesas relacionadas com projetos camarários, licenças taxas, etc.”;

14) De acordo com a cláusula 5.5 do mesmo escrito, "as referidas obras de adaptação do arrendado não deverão afetar a linha arquitetónica e a estrutura do prédio";

15) Na cláusula 6.ª do aludido escrito foi estabelecido que “"Ficam a cargo do arrendatário as obras de conservação e limpeza do arrendado, tanto interna como externamente, ficando ainda o segundo outorgante autorizado pelo primeiro outorgante, a abrir a passagem existente entre as lojas situadas na Praça ..., Porto e Rua ..., Porto, suportando todas as despesas e demais encargos decorrentes desta mesma obra.";

16) O 1.º R. é sócio-gerente da sociedade R.;

17) A A. instaurou a Providência Cautelar de Embargo de Obra Nova, que correu termos no Juízo Local Cível do Porto – Juiz 6, sob o n.º 16980/19.0T8PR, no âmbito da qual acabaria por proceder o pedido que formulou, tendo sido decretado o embargo da obra nova que estava a ser realizada pelos Requeridos, ora RR.;

18) Em julho de 2019, a A. descobriu que a 2.ª R. havia apresentado junto da Câmara Municipal do Porto um pedido de licenciamento de obras particulares para a divisão com utilização independente arrendada ao 1.º R.;

19) O pedido de obras a realizar no imóvel visava não só a eventual remodelação;

20) Por providência cautelar de suspensão de eficácia do ato administrativo e/ou de abstenção de conduta, instaurada pela A. contra a Câmara Municipal do Porto, tendo como contrainteressados os aqui RR., em 10/12/2019, que correu termos pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, Unidade Orgânica 1, sob o Proc. N.º.3317/19.7BEPRT, foi requerida a suspensão do ato, designadamente, da licença de obras junta a estes autos pelos RR., bem com a condenação do Município do Porto a abster-se de qualquer comportamento ou prática de atos administrativos, de que se destaca a emissão de licença de utilização, dada a ilegalidade e os prejuízos graves que dela podem advir;

21) A providência cautelar referida foi indeferida por decisão proferida em 14/07/2020, já transitada em julgado;

22) Foi já proposta pela A. a competente ação administrativa principal, de impugnação de ato administrativo, bem como de condenação da entidade ali R. – Município do Porto – à abstenção de comportamentos e à não prática de atos administrativos, nomeadamente, à não prática de qualquer ato ou conduta consequente à emissão da licença de obras supra referida e ora em causa, de que se destaca a emissão da respetiva autorização de utilização e, ainda, de condenação da entidade ali R. à prática de atos devidos, nomeadamente, que seja esta condenada a ordenar a reconstituição do estado anterior da parede e local em causa naqueles e nos presentes autos, assim repondo a legalidade;

23) Em julho de 2019, a A. descobriu que a 2.ª R. havia apresentado junto da Câmara Municipal do Porto um pedido de licenciamento de obras particulares para a divisão com utilização independente arrendada ao 1.º R.;

24) O pedido de obras a realizar no imóvel visava uma eventual remodelação;

25) E também a abertura de um vão nas paredes que separavam o prédio em causa do outro prédio confinante e ainda os locados acima identificados;

26) A loja n.º ... do prédio sito na Rua ... foi arrendada como divisão com utilização independente;

27) Os locados situam-se em prédios urbanos distintos;

28) O arco em causa nestes autos é perpendicular à Rua ... e está numa parede estrutural que separa os dois edifícios;

29) A secção da parede subjacente ao arco é, porém, meramente de enchimento, não resistente e não tem função estrutural;

30) No espaço comercial situado na Rua ..., Porto, a 2.ª R. tem instalado o estabelecimento comercial de restauração denominado “B...”;

31) Em 25 de setembro de 2017, o 1.º R. tomou de arrendamento o espaço comercial contíguo, sito na Rua ..., Porto, também para restauração.

32) O 1.º R. interessou-se pela loja contígua, exatamente por ser contígua, e poder ser feita a ligação entre os dois espaços;

33) O contrato de arrendamento foi celebrado ficando nele salvaguardada essa pretensão do 1.º R.;

34) A parede que separa as duas lojas referidas em 5) e 9) é em granito, originalmente com uma passagem em arco entre elas, que em data que os RR. não sabem precisar (mas muito anterior à data do início do arrendamento) foi tapada com tabique de fasquia;

35) O local dado de arrendamento, com a forma retangular, tinha esse tipo de arcos em três paredes, a única exceção era a parte virada para a Rua ...;

36) Foi essa passagem originária (em vão) que as partes acordaram em reabrir;

37) Essa abertura em nada colide com a segurança do prédio, pois a parede (onde se situa o vão) é em granito e concebida e construída de forma a possibilitar essa passagem;

38) A reabertura da passagem, com a retirada do tabique, é inócua para a segurança do prédio e foi expressamente autorizada pelo A. no contrato de arrendamento referido em 9);

39) O 1.º R. celebrou o contrato de arrendamento exatamente porque sociedade 2.ª R. era inquilina da loja contígua e sabia que era possível e fácil reabrir a passagem – o que foi aceite pelo A.;

40) O A. autorizou porque era senhorio das duas lojas.

41) Não existia licença de utilização e foi nessas condições que as partes quiseram celebrar o contrato, ficando o 1.º R. com o ónus de obter, num momento futuro, todas as licenças necessárias;

42) A A. apresentou uma queixa na Câmara Municipal do Porto, acusando o 1.º R. de estar a proceder à reabertura de passagem;

43) Apesar disso a Câmara acabou por atribuir a licença de obras;

44) Apesar de serem contíguos, o estabelecimento de que a 2.ª R. é inquilina fica no rés-do-chão do edifício com três andares e o estabelecimento de que o 1.º R. é inquilino fica no rés-do-chão do edifício com apenas dois andares;

45) Mas quer ao nível do rés-do-chão, quer ao nível do 1º andar, passa-se do edifício de três andares para o edifício com dois andares;

46) Ao nível do rés-do-chão a passagem é feita através do arco em discussão nos autos;

47) Ao nível do 1º andar passa-se livremente da zona de três andares para a zona de dois andares;

48) A entrada do Clube ... é no edifício de três andares, e na Rua ..., mais exatamente em frente à parte lateral da Câmara Municipal do Porto;

49) E é por aí, por essa porta (situada no edifício com 3 andares), que se tem entrada para subir e aceder ao 1º piso, quer do edifício com três andares quer do edifício de dois  andares;

50) A divisão que está por cima do estabelecimento do 1.º R. tem comunicação com a divisão que está por cima do estabelecimento da 2.ª R.;

51) Toda a sequência de estabelecimentos sitos na Rua ..., e dos quais a A. é proprietária, tinha arcos;

52) Diversas áreas do antigo edifício foram dadas de arrendamento de forma autónoma e com utilização independente;

53) O café “B...” (da 2.ª R.), a loja ... em causa nos autos, a loja

“C...”, o restaurante “D...”, a loja da “E...” e o “F...” têm arcos, uns fechados, outros abertos, uns paralelos à Rua e outros perpendiculares;

54) O conjunto urbano onde se incluem e se inserem os locados foi classificado como conjunto de interesse público, tendo ainda sido fixada zona especial de proteção;

55) Os bens imóveis inseridos no mencionado conjunto urbano possuem um relevante interesse cultural, nomeadamente, histórico e arquitetónico, revestindo-se de interesse público e exigindo a respetiva proteção e valorização, atendendo ao valor patrimonial e cultural de significado para o País.


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B)- Factos não provados

Não resultaram provados quaisquer outros factos com relevância para a boa decisão da causa, designadamente que:

a) A A. não autorizou a realização de qualquer obra no locado;

b) O pedido de obras a realizar no imóvel visava também a abertura de vão em paredes resistentes;

c) Estas obras – de abertura de vão em paredes resistentes – encontram-se sujeitas a controlo prévio, pelo que só podem ser iniciadas após a emissão de alvará de licença de obras;

d) Em agosto de 2019, a A. constatou que as paredes resistentes foram derrubadas, mesmo sem autorização do senhorio e de licença camarária para o efeito;

e) A abertura de vão em parede resistente põe em causa a segurança estrutural do edifício e colocou em risco todas as pessoas que por lá passam;

f) O edifício está neste momento em risco de derrocada;

g) E tanto assim é que a A. se viu obrigada a encerrar provisoriamente o funcionamento das suas principais salas, nomeadamente, uma parte significativa do Salão Nobre, a Secretaria, a Sala da Direção e a sala de música, uma vez que estas que ficam imediatamente em cima das paredes derrubadas;

h) Esta situação não só causou alarme junto dos seus associados;

i) Como também acarretou uma elevada perda de rendimento já que são espaços habitualmente arrendados por valores na ordem dos 1000€/dia;

j) A demolição das paredes resistentes afeta configuração do edifício, porquanto faz com que dois prédios distintos e independentes, usados para fins distintos, fiquem ligados;

k) Pois, não só o prédio onde está situada a sede do Clube foi um projeto criado de raiz, que jamais teve qualquer ligação com o prédio contíguo;

l) A loja referida em 26) sempre foi arrendada como divisão com utilização independente;

m) Não existindo qualquer passagem entre os locados;

n) O arco em causa nestes autos estava preenchido com material resistente (granito) precisamente por ser estrutural e separar os dois prédios que jamais estiveram ligados;

o) A destruição da parede resistente que separa os prédios, não só acarretará avultados dispêndios com a sua reconstrução, como se traduz na destruição significativa de  uma parte estruturante do edifício;

p) O referido em 35) indicia que em tempos remotos todo o rés-do-chão tinha comunicação entre si através desse tipo de vãos em arcos;

q) Os arcos referidos em 51) permitiam a passagem entre os diferentes espaços aí mencionados;

r) Para rentabilizar o espaço, foi sendo necessário fechar os arcos, para separar essas áreas, e foram fechados com materiais leves (tabique ou pladur ou aglomerado de madeira, conforme a época), pois não tinham uma função estrutural - o edifício em granito tinha sido concebido para existir com esses vãos em arco;

s) Foi assim que surgiram todos os espaços autónomos e contíguos onde estão

instalados os seguintes estabelecimentos: café “B...” (da 2.ª R.), ao lado a loja ... em causa nos autos, ao lado “C...”, ao lado o restaurante “D...”, ao lado uma “E...” e, por último, o “F...”;

t) Por isso todas as lojas acima referidas têm arcos de passagem do mesmo género, uns fechados de forma semelhante a esse arco – quando teve de se fazer a separação de estabelecimentos contíguos -, outros ainda abertos, quando ficam no interior dum estabelecimento e o arrendatário não necessitou de os fechar;

u) A abertura de um vão em parede resistente, ligando dois prédios que se encontravam separados, afeta quer a linha arquitetónica, quer a estrutura do prédio;

v) Os estabelecimentos referidos em 53) situam-se na Rua ..., sendo os respetivos arcos paralelos àquela artéria, nada tendo de estrutural e fazendo todos eles parte do mesmo edifício;

w) O arco em causa nestes autos foi agora colocado numa parede estrutural que separa dois edifícios, completamente distintos;

x) Aquele local estava preenchido com material resistente (granito) precisamente por ser estrutural e separar os dois prédios que jamais estiveram ligados;

y) Os referidos edifícios foram construídos com mais de 50 anos de intervalo entre si, nunca estiveram ligados e as respetivas lojas sempre foram arrendadas como divisões com utilização independente;

z) Não existindo qualquer passagem entre os locados;

aa) Os RR. deram início à referida obra sem autorização da Direção Geral da Cultura, igualmente obrigatória atenta a classificação do imóvel;

bb) A licença cuja inexistência os RR. alegam ter ficado plasmada no contrato de arrendamento é a licença de utilização da divisão com utilização independente.


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Consignou-se, ainda:

A restante matéria alegada nos articulados é matéria conclusiva e/ou de direito ou matéria irrelevante para a boa decisão da causa, razão pela qual não foi versada.


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3. O direito

- Reapreciação da decisão de facto –

Nas conclusões de recurso, sob os pontos I a VII, insurge-se o apelante contra a decisão de facto, com fundamento em erro na apreciação da prova e omissão de factos essenciais para a apreciação do mérito da causa.

Cumpre começar por proceder à verificação dos pressupostos de ordem formal para proceder à reapreciação da decisão de facto.

O art.º 640º CPC estabelece os ónus a cargo do recorrente que impugna a decisão da matéria de facto, nos seguintes termos:

“ 1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;

b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.

3. […]”

Recai, assim, sobre o recorrente, face ao regime concebido, um ónus, sob pena de rejeição do recurso, de determinar com toda a precisão os concretos pontos da decisão que pretende questionar – delimitar o objeto do recurso - e motivar o seu recurso – fundamentação - com indicação dos meios de prova que, no seu entendimento, impunham decisão diversa sobre a matéria de facto e ainda, indicar a solução alternativa que, em seu entender, deve ser proferida pela Relação.

No caso concreto, realizou-se o julgamento com gravação dos depoimentos prestados em audiência e o apelante veio impugnar a decisão da matéria de facto, com indicação dos pontos de facto impugnados, prova a reapreciar (documental e testemunhal) e decisão que sugere.

Em conclusão, nos termos do art.º 640º/1/2 do CPC, consideram-se reunidos os pressupostos de ordem formal para proceder à reapreciação da decisão de facto.


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Passando à reapreciação da decisão de facto cumpre salientar que a reapreciação da prova tem em vista uma possível alteração da decisão da matéria de facto em pontos relevantes para a boa decisão da causa e à luz das diversas soluções plausíveis das questões de direito e não uma determinação da realidade dos factos, independentemente do relevo que possam ter nas questões de direito a reapreciar, sendo proibida a prática no processo de atos inúteis (artigo 130º do CPC)[2].

O apelante impugna apenas o facto não provado sob a alínea aa), com o seguinte teor:

aa) Os RR. deram início à referida obra sem autorização da Direção Geral da Cultura, igualmente obrigatória atenta a classificação do imóvel;

O apelante não impugna os demais factos julgados não provados, os quais constituíam a causa de pedir da ação e nos quais sustentou a sua pretensão e apenas pretende que se julgue provado o facto consignado sob a alínea aa), mas com a seguinte redação:

Os RR. deram início à referida obra sem autorização da Direção Geral da Cultura”.

A decisão que julgou não provado o facto da alínea aa) não merece censura face ao teor do documento inserido a páginas 319 (processo eletrónico sistema Citius) junto pela apelante na sessão de julgamento do dia 31 de outubro de 2022 (ata inserida a páginas 320 do processo eletrónico sistema Citius).

Acresce que o apelante não extrai da impugnação da alínea aa) dos factos não provados qualquer efeito útil sob o ponto de vista jurídico, tendo presente os fundamentos em que sustenta a impugnação da decisão em confronto com os fundamentos da ação.

Cumpre ter presente que o apelante sustenta a presente ação na violação do direito de propriedade, por considerar que o arrendatário, sem autorização, abriu um vão em parede do prédio e que tal obra afeta a linha arquitetónica e a estrutura do prédio e põe em causa a segurança do edifício. Formulou o pedido de condenação dos réus a reconstruir a parede.

Revela-se inútil a reapreciação deste facto, porque independentemente da decisão face à posição que o apelante assume perante a questão essencial em discussão nos autos, não se extrai do mesmo qualquer efeito útil para a decisão e por esse motivo improcede a reapreciação da decisão.


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O apelante pretende, ainda, que se proceda à ampliação da decisão de facto, no sentido de incluir nos factos provados os seguintes factos:

- “Os RR. deram início à referida obra sem licença de obras para o efeito”;

- “O parecer que a Direção Geral de Cultura do Norte emitiu partiu do pressuposto que a abertura já se encontrava aberta, não tendo sido pedido parecer quanto à remoção da parede”.

Nos termos do art.º 666º/2 c) CPC mostrando-se indispensável ampliar a matéria de facto, deve o tribunal da Relação alterar a decisão da matéria de facto, se a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa. Não sendo possível fazer uso de tal faculdade, deve o tribunal anular a decisão.

A ampliação da matéria de facto mostra-se indispensável, quando se tenham omitido dos temas da prova factos alegados pelas partes que se revelam essenciais para a resolução do litígio, na medida em que assegurem enquadramento jurídico diverso do suposto pelo juiz do tribunal “a quo”[3].

Os factos essenciais são aqueles que permitem individualizar a situação jurídica alegada na ação ou na exceção.

Os factos complementares são aqueles que são indispensáveis à procedência dessa ação ou exceção, mas não integram o núcleo essencial da situação jurídica alegada pela parte.

Ambos integram a categoria de factos principais porque são necessários à procedência da ação ou exceção, por contraposição aos factos instrumentais, probatórios ou acessórios que são aqueles que indiciam os factos essenciais e que podem ser utilizados para a prova indiciária destes últimos[4].

Em conformidade com o critério legal, a ampliação da matéria de facto tem de ser indispensável, o que significa que cumpre atender ás várias soluções plausíveis de direito, o enquadramento jurídico em face do objeto do recurso e ainda, com a possível intervenção e interpretação do Supremo Tribunal de Justiça, ao abrigo do art.º 682º/3 CPC.

Na situação presente verifica-se que o tribunal tomou posição sobre a existência de licença para construção, julgando não provada tal matéria sob a alínea d) ( d) Em agosto de 2019, a A. constatou que as paredes resistentes foram derrubadas, mesmo sem autorização do senhorio e de licença camarária para o efeito ).

Não se justifica ampliar a matéria de facto, com tal fundamento, quando além do mais o apelante não impugnou a decisão de facto em relação à alínea d) dos factos julgados não provados.

A respeito das circunstâncias em que foi emitido o parecer pela Direção Geral de Cultura do Norte (“O parecer que a Direção Geral de Cultura do Norte emitiu partiu do pressuposto que a  abertura já se encontrava aberta, não tendo sido pedido parecer quanto à remoção da parede), cumpre referir que os factos que o apelante pretende incluir na matéria de facto provada, não constam da petição, nem da resposta à matéria da exceção e para além disso, não revestem a natureza de factos essenciais, o que obsta à pretendida ampliação da matéria de facto.

Quando muito poderão ser considerados factos instrumentais, os quais pela sua natureza destinam-se a fazer a prova dos factos essenciais e por isso, não devem constar do enunciado dos factos provados.

Também, não constituem um facto complementar, porque não se enquadram nos fundamentos da causa de pedir, nem resulta demonstrado que a causa de pedir carecesse de ser completada[5]. Acresce que a considerar-se um facto complementar o mesmo apenas poderia ser aproveitado, desde que sobre o mesmo as partes tenham tido a possibilidade de se pronunciar, nos termos do art.º 5º/2/b) CPC, o que também não aconteceu.

Como se observa no Ac. STJ 07 de dezembro de 2023, Proc. 2017/11.0TVLSB.L1.S1 (acessível em www.dgsi.pt):

“O disposto no artigo 5.º, n.º 2, b), do Código de Processo Civil de 2013, corresponde essencialmente ao que constava do n.º 3, do artigo 264.º, do Código de Processo Civil de 1961, o qual havia sido introduzido pelo Decreto-lei n.º 180/96, de 25 de setembro, tendo a redação do código atual deixado de exigir a manifestação da parte interessada, para que integrem a factualidade relevante, os factos complementares ou concretizadores dos factos já alegados que apenas resultem da instrução da causa, podendo, por isso, a sua inclusão na factualidade integrante do objeto do processo ser da iniciativa do tribunal.

De modo a garantir o imprescindível exercício do contraditório, continua, no entanto, a exigir-se que ambas as partes tenham tido a possibilidade de se pronunciar sobre os factos aditados, o que inclui a possibilidade de produzir prova e contraprova sobre eles. Essa possibilidade só pode ser proporcionada se o tribunal, antes de proferir a sentença, sinalizar às partes os factos que, apesar de não terem sido por elas alegados, se evidenciaram na instrução da causa e sejam relevante para a decisão da mesma, permitindo que estas se pronunciem sobre eles, concedendo-lhes prazo para indicarem os meios de prova que pretendam produzir, relativamente aos factos aditados ao objeto do litígio.

Como bem se explicou no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07.02.2017:”Admitir-se que o juiz possa, sem mais (isto é, apenas com a exigência de audiência contraditória na produção do meio de prova), considerar o facto novo, essencial (complementar ou concretizador), corresponderia a exigir ao mandatário da parte interessada um grau de atenção e diligência incomum, dirigida não só à produção e valoração da prova que fosse sendo realizada, mas também, antecipando o juízo valorativo do tribunal, à possibilidade de vir a ser retirado desse meio de prova e considerado provado um novo facto nele mencionado.

Crê-se que a disciplina prevista no art.º 5º, nº 2, al. b), do CPC exige que o tribunal se pronuncie expressamente sobre a possibilidade de ampliar a matéria de facto com os factos referidos, disso dando conhecimento às partes antes do encerramento da discussão. Só depois poderá considerar esses factos (mesmo que sem requerimento das partes nesse sentido).

Só assim é conferida à parte "a possibilidade de se pronunciar" sobre o facto que o tribunal se propõe aditar. E só assim se assegurará um processo equitativo (art.º 547º do CPC), facultando-se às partes o exercício pleno do contraditório, requerendo – como é admitido por qualquer das teses –, se for caso disso, novos meios de prova em relação aos factos novos, quer para reafirmar a realidade desses factos, no sentido da sua prova, quer para opor contraprova a respeito dos mesmos, infirmando a realidade que aparentam”.

Prosseguindo, no douto aresto, refere-se: “[a] sua invocação nas alegações do recurso de apelação, com a consequente possibilidade da parte contrária, na resposta, se pronunciar sobre a pretensão de aditamento de facto não alegado mas que sobressaiu na instrução da causa, não é suficiente para que encontre garantido o contraditório exigido na parte final da alínea b), do n.º 2, do artigo 5.º, do Código de Processo Civil, não sendo, pois, permitido ao tribunal da Relação, nos casos em que o contraditório não foi assegurado na 1.ª instância, valorar a prova aí produzida, e decidir que o mesmo se encontra provado, aditando-o à lista dos factos provados.

Nessas situações[…], deve a Relação, caso entenda que o facto é complementar dos factos já alegados, se evidenciou na instrução da causa e é relevante para o seu desfecho, utilizar o poder que lhe é conferido pelo artigo 662.º, n.º 2, c), do Código de Processo Civil, para ampliação da matéria de facto”.

No caso presente, não se justifica fazer uso da faculdade concedida pelo art.º 662º/2 c) CPC, porque os factos objeto de ampliação não completam a causa de pedir e não sendo essenciais não merecem qualquer relevo para apreciar a questão controvertida da ação, que consiste em apurar se as obras executadas no imóvel representam uma ofensa ao direito de propriedade do autor/apelante.

Improcede também nesta parte a pretendida alteração da decisão de facto.

Pelo exposto improcedem as conclusões de recurso sob os pontos I a VII.


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- Da reconstrução da parede -

Nas conclusões de recurso, sob os pontos VIII a XII, o apelante insurge-se contra a decisão por entender que os réus violaram a lei ao derrubar a parede antes de ter sido emitido o necessário parecer da DRCN ou a licença de obra, o que faz com que esta obra tenha sido, à partida, ilegal e pretende que seja ordenada a reposição dos imóveis como estavam antes de a obra ilegal ter sido realizada.

O apelante sustenta a alteração da decisão em factos que não se provaram, para além de invocar novos fundamentos de sustentação do pedido, o que impede a reapreciação da decisão, com tais fundamentos.

O recurso consiste no pedido de reponderação sobre certa decisão judicial, apresentada a um órgão judiciariamente superior ou por razões especiais que a lei permite fazer valer[6]. O recurso ordinário (que nos importa analisar para a situação presente) não é uma nova instância, mas uma mera fase (eventualmente) daquela em que a decisão foi proferida.

O recurso é uma mera fase do mesmo processo e reporta-se à mesma relação jurídica processual ou instância[7]. Dentro desta orientação tem a nossa jurisprudência[8] repetidamente afirmado que os recursos visam modificar decisões e não criar soluções sobre matéria nova.

O tribunal de recurso vai reponderar a decisão tal como foi proferida.

Podemos concluir que os recursos destinam-se em regra a reapreciar decisões proferidas e não a analisar questões novas, apenas se excetuando: o caso da verificação de nulidade da decisão recorrida por omissão de pronúncia (artigo 615º, nº 1, alínea d), do CPC); a existência de questão de conhecimento oficioso; a alteração do pedido, em segunda instância, por acordo das partes (artigo 264º do CPC); e a mera qualificação jurídica diversa da factualidade articulada.

Verifica-se que os factos e novos argumentos que o apelante vem introduzir nas conclusões do recurso não podem ser considerados, porque não se provaram, nem foram alegados nos articulados e por isso, constituem factos novos.

Se os novos factos e os novos fundamentos de sustentação da pretensão do autor resultaram da discussão da causa, recaía sobre as partes ao abrigo do art.º 5º/2/ b) CPC, suscitar junto do tribunal “a quo“, a sua consideração em sede de decisão, o que também não ocorreu (como já se observou na apreciação da anterior questão).

Conclui-se, assim, nos termos do art.º 627º CPC que nenhuma relevância merece, nesta sede, os factos novos que o apelante vem alegar e bem assim, os novos fundamentos de sustentação da sua pretensão, pois os mesmos não foram considerados na decisão objeto de recurso e não são de conhecimento oficioso, sendo certo que ao tribunal de recurso apenas cumpre reapreciar as matérias anteriormente sujeitas à apreciação do tribunal “a quo“ ficando por isso vedado a apreciação de novos fundamentos de sustentação do pedido (matéria não anteriormente alegada). Tal como o juiz da 1ª instância, em sede de recurso, o tribunal “ad quem“ está limitado pelo pedido e seus fundamentos e pela defesa tal como configurados na ação, motivo pelo qual está impedido de conhecer do objeto do recurso nesta parte.

Improcedem, assim, as conclusões de recurso sob os VIII a XII.


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Nos termos do art. 527º CPC as custas são suportadas pelo apelante.

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III. Decisão:

Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação e confirmar a sentença.


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Custas a cargo do apelante.

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Porto, 10 de julho de 2024

(processei, revi e inseri no processo eletrónico – art.º 131º, 132º/2 CPC)

Assinado de forma digital por

Ana Paula Amorim

Juiz Desembargador-Relator

Miguel Baldaia

1º Adjunto Juiz Desembargador

Fátima Andrade

2º Adjunto Juiz Desembargador


____________________________
[1] Texto escrito conforme o Novo Acordo Ortográfico de 1990.
[2] Neste sentido se pronunciaram, entre outros, Ac. Rel. Porto de 5 de novembro de 2018, Proc.3737/13.0TBSTS.P1,  Ac. Rel. Coimbra de 24 de abril de 2012, Proc. 219/10.6T2VGS.C1, Ac. Rel. Coimbra 27 de maio de 2014, Proc. 1024/12.0T2AVR.C1, Ac. Rel. Porto 05 de fevereiro de 2024, Proc. 2499/21.2T8PNF.P1, todos estes disponíveis em www.dgsi.pt e ainda o Ac. STJ de 23 de janeiro de 2020, Proc. 4172/16.4TFNC.L1.S1, CJ, Acórdãos do STJ, ano XXVII, tomo I/2020, págs. 13/16, Ac. STJ 03 de novembro de 2023, Proc. 835/15.0T8LRA.C4.S1, acessível em www.dgsi.pt .
[3] ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES Recursos no Novo Código de Processo Civil, Coimbra, Almedina, 2013, pág. 240.[4] MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA  Estudos sobre o Novo Processo Civil, 2ª edição, Lisboa, Lex, 1997, pág. 77.   
 MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA Estudos sobre o Novo Processo Civil, ob. cit., pág. 78.
JOSÉ LEBRE DE FREITAS, JOÃO REDINHA E RUI PINTO Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Coimbra, Coimbra Editora, 1999, pág. 467-468.
[5] JOSÉ LEBRE DE FREITAS e ISABEL ALEXANDRE Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 3ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, setembro 2014, pág. 17.
[6] CASTRO MENDES Direito Processual Civil – Recursos, ed. AAFDL, 1980, pág. 5.
[7] CASTRO MENDES, ob. cit., pág. 24-25 e  ALBERTO DOS REIS, Código de Processo Civil , vol. V, pág. 382, 383.
[8] Cf. os Ac. STJ 07.07.2009, Ac. STJ 20.05.2009, Ac. STJ 28.05.2009, Ac. STJ 11.11.2003  Ac. Rel. Porto 20.10.2005, Proc. 0534077 Ac. Rel. Lisboa de 14 de maio de 2009, Proc. 795/05.1TBALM.L1-6; Ac. STJ 15.09.2010, Proc. 322/05.4TAEVR.E1.S1( http://www.dgsi.pt ).