Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
723/23.6T8AVR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FRANCISCA MOTA VIEIRA
Descritores: ESCRITURA DE JUSTIFICAÇÃO NOTARIAL
DOMÍNIO PÚBLICO DO ESTADO
Nº do Documento: RP20240704723/23.6T8AVR.P1
Data do Acordão: 07/04/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Numa ação instaurada por particulares contra uma Junta de Freguesia em que os autores pretendem que se declare a nulidade da escritura pública de justificação notarial como meio de prevenir violações de bens pertencentes ao domínio público do Estado, estamos perante um litígio cujo objecto é a prevenção e cessação de alegadas violações disposições normativas de ordenamento do território, urbanismo, qualidade de vida e bens do Estado, pretensamente cometidas por entidades públicas.
II - A revelar que a presente ação preenche a previsão da al. K) do nº1, do art 4º do ETAF e para apreciar a pretensão dos AA. são materialmente competentes os Tribunais Administrativos e Fiscais.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 723/23.6T8AVR.P1
Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro - Juízo Central Cível de Aveiro - Juiz 2

Acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto

I.RELATÓRIO
AA, com o NIF ..., residente em Rua ..., ... ..., concelho de Ovar, BB, com o NIF ..., residente em Avenida ..., ... ..., concelho de Ovar, e CC, com o NIF ..., residente em Rua ..., ... ..., concelho de Ovar, instauraram contra a Junta de Freguesia ..., sita na Rua ..., ... ..., concelho de Ovar, ao abrigo do disposto nos artigos 52.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa e nos arts. 1.º, n.ºs 1 e 2, 2.º, n.ºs 1 e 2, e 12.º, n.º 2, estes da Lei n.º 83/95, de 31/08, Ação Popular Civil, pedindo que seja:
a) Declarado que a R. não é proprietária dos prédios id. na escritura de justificação (doc 1), sob os nºs 1, 2, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20 e 21 descritos na Conservatória do Registo Predial de Ovar sob os n.ºs ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ... e ... da Freguesia ..., concelho de Ovar e nº ..., da freguesia ..., concelho de Ovar;
b) Declarada nula e de nenhum efeito a escritura de justificação notarial, outorgada em 31 de janeiro de 2011, no Cartório Notarial de Ovar, da Notária DD, lavrada de fls. 133 a 137 do Livro de Notas para Escrituras Diversas número ...-M;
c) Declarados nulos e de nenhum efeito os registos de inscrição de propriedade a favor da mesma R., por referência aos 20 prédios id em a);
d) Declarar nulos e de nenhum efeito os registos de inscrição de propriedade a favor da R., feitos de acordo com aquela escritura;
e) Ordenado à Conservatória do Registo Predial de Ovar o cancelamento do registo predial efetuado pela R., correspondente às descrições n.ºs ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ... e ... da Freguesia ..., concelho de Ovar e nº ..., da freguesia ..., concelho de Ovar quer no que respeita às descrições às inscrições subsequentes efetuadas com base naquela primeira descrição; e
f) Declarado que o Estado Português é o legítimo possuidor e proprietário dos prédios id sob a alínea a), podendo registá-los em seu nome.
Alegaram, em síntese, que:
1) Por Escritura de Justificação Notarial, outorgada em 31 de janeiro de 2011, no Cartório Notarial de Ovar, da Notária DD, lavrada de fls. 133 a 137 do Livro de Notas para Escrituras Diversas número ...-M, a Ré, representada pelo presidente da Junta de Freguesia ..., declarou, relativamente a todos os terrenos id sob a alínea a), que “vieram à sua posse por terem sido doados verbalmente, pela Junta da Paróquia ..., no ano de 1912, em dia e mês cuja distância temporal, por longínqua, não pode precisar, não sendo em consequência detentora…de qualquer título formal que legitime o domínio dos mesmos”, e ainda que “usufrui os ditos prédios, gozando de todas as utilidades por eles proporcionadas, colhendo os respectivos frutos…e tudo isto desde a referida data e, portanto, há mais de noventa anos”, sendo que declararam os segundos outorgantes (EE, FF e GG) que “os factos que o primeiro outorgante, em nome da sua representada, acaba de alegar, são do seu conhecimento e correspondem inteiramente à verdade, pelo que os confirmam para todos os efeitos de direito.”;
2) As declarações prestadas pela Ré, na aludida Escritura de Justificação Notarial são falsas e não correspondem à verdade;
3) Já em 1911, as doações verbais eram nulas, nos termos do Código de Seabra e à data da doação verbal, esta Junta da Paróquia já havia sido extinta, e ninguém pode doar o que não tem;
4) O Decreto 15439 de 5 de Maio de 1928, no seguimento de legislação vária que transferiu a propriedade dos bens da Igreja para o Estado, resulta que o proprietário, por ex., do artº rústico ..., da Freguesia ..., bem como dos demais imóveis alvo de justificação só pode ser o Estado, dado que, no que diz respeito ao artº 802º, este Decreto 15439 veio permitir, unicamente, a desamortização dos terrenos e sempre e tão só destinados a custear, à data, a conclusão da estrada em construção que veio ligar o apeadeiro à Praia ..., e a venda a terceiros dos areais numa extensão de 150 metros de comprimento, em ambos os lados da via, tinha como escopo único o custeio da obra de execução final da mesma estrada;
5) O Decreto de 9 de agosto de 1922, acautelou e determinou que ficariam sujeitos ao regime florestal os areais pertencentes à Junta de Freguesia ..., a fim de se impedir a invasão das areias e a fixação das dunas;
6) A Ré não tem o corpus da posse, mas quanto muito pratica meros atos administrativos por delegação do Estado, sendo que, a aqui Ré, na qualidade de mero possuidor precário, recebe apenas 60% do valor das verbas correspondentes aos cortes;
7) Durante décadas o PDM de Ovar não permitia uma qualquer edificação na zona marítima, nomeadamente onde se localiza o prédio com o artº ...;
8) Entretanto, foi alterado o PDM de Ovar e tenta-se aprovar um Loteamento com 25 lotes, em nome da Ré; assim, passa a ser possível edificar um aglomerado habitacional composto por 25 lotes num terreno valorizado pela Ré em € 500,00 (quinhentos euros)
9) Os AA., tendo tido conhecimento do Aviso de Loteamento, prontamente fizeram chegar ao processo administrativo informação vária com vista ao seu cancelamento;
10) A Freguesia ... necessita urgentemente de habitação social e um centro de dia para a população envelhecida que foi mão-de-obra da indústria ... durante décadas;
11) Está em aprovação em sede de alteração do PDM de Ovar a possibilidade de construção num local que desde tempos imemoriais foi proibido construir;
12) A Assembleia da República, através da Resolução n.º 19/2023, recomenda ao Governo a proteção e a valorização do Perímetro Florestal das Dunas de Ovar, em especial, que “Assegure, em articulação com a câmara municipal, que não há alterações do uso e ocupação dos solos do perímetro florestal e que esta floresta é preservada dos interesses da especulação imobiliária” e que “Garanta a integridade do perímetro florestal, continuando o mesmo propriedade e gestão pública”.

No tribunal de comarca foi proferido despacho que julgou o Juízo incompetente, em razão da matéria, para conhecer da presente ação e, consequentemente, ao abrigo do disposto nos normativos citados, absolvo a Ré da instância.
Inconformados, os Autores apelaram e concluíram nos termos seguintes:
I-O Tribunal “a quo” declarou-se materialmente incompetente para julgar os presentes autos.
II- Pensamos ser de reapreciar o dito entendimento, até para evitar o que se poderia vir a tornar, com a eventual aplicação do estatuído no art.º 99, n.º 2, do C.P.C., num possível conflito negativo de competências.
III- O Procurador da República junto do Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro entende que deverão ser os Tribunais judiciais os competentes materialmente para julgar esta questão, tendo em conta o preceituado no art.º 54º da Lei 75/2017, de 17 de Agosto, que atribui a competência em equação aos Tribunais Judiciais.
IV- De facto, resulta do artigo 54º da Lei nº 75/2017 de 17 de Agosto, que sic “…Cabe aos tribunais comuns territorialmente competentes conhecer dos litígios que, direta ou indiretamente, tenham por objeto… direitos que os órgãos das comunidades locais sobre estas disponham e que sejam diretamente decorrentes da presente lei”, que são os Tribunais comuns os competentes.
V- Conforme ensina o Prof. MANUEL DE ANDRADE, “deve olhar-se aos termos em que foi posta a ação – seja quanto aos seus elementos objetivos, seja quanto aos seus elementos subjetivos”
VI- Compulsada a presente acção quanto aos seus elementos objectivos – natureza da medida requerida (seja declarada nula e de nenhum efeito a escritura de justificação) ou do direito para a qual se pretende a tutela judiciária, facto ou acto de onde teria resultado esse direito, o Tribunal materialmente competente, é o de jurisdição cível.
VII- Mesmo quanto aos seus elementos subjectivos – identidade das partes, a fixação da competência material do tribunal é atribuída quer pela pretensão formulada quer pela relação jurídica descrita na PI., como resulta da configuração jurídica defendida pelos Recorrentes nos presentes autos.
VIII- Donde, cremos ter-se verificado, entre outros, uma errada interpretação e aplicação dos preceitos legais supra identificados, cuja reapreciação se requer e que deverá levar à revogação da decisão em causa, declarando-se o Tribunal “a quo” competente, e substituindo-se a decisão em causa por outra que determine o prosseguimento dos autos.
Termos em que deve ser revogada a douta Sentença recorrida, e substituída por outra que sustente as conclusões dos Recorrentes, com o que se fará a esperada justiça.
O Ministério Público apresentou resposta.
Colhidos os vistos legais cumpre decidir.
II. Questões a decidir:
As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida se é dos tribunais administrativos ou dos tribunais judiciais a competência material para julgar a presente acção.
III. Os factos:
3.1Para a decisão a proferir relevam os factos que constam do relatório.

IV. O mérito do recurso:
Preceitua o art.º 52.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa, sob a epígrafe “Direito de petição e direito de acção popular”, que:
“3. É conferido a todos, pessoalmente ou através de associações de defesa dos interesses em causa, o direito de acção popular nos casos e termos previstos na lei, incluindo o direito de requerer para o lesado ou lesados a correspondente indemnização, nomeadamente para:
a) Promover a prevenção, a cessação ou a perseguição judicial das infracções contra a saúde pública, os direitos dos consumidores, a qualidade de vida e a preservação do ambiente e do património cultural;
b) Assegurar a defesa dos bens do Estado, das regiões autónomas e das autarquias locais.”
A Lei n.º 83/95, de 31-08, regula o “DIREITO DE PARTICIPAÇÃO PROCEDIMENTAL E DE ACÇÃO POPULAR”, começando por prever, no seu art. 1.º, sob a epígrafe “Âmbito da presente lei”, que:
“1 - A presente lei define os casos e termos em que são conferidos e podem ser exercidos o direito de participação popular em procedimentos administrativos e o direito de acção popular para a prevenção, a cessação ou a perseguição judicial das infracções previstas no n.º 3 do artigo 52.º da Constituição.
2 - Sem prejuízo do disposto no número anterior, são designadamente interesses protegidos pela presente lei a saúde pública, o ambiente, a qualidade de vida, a protecção do consumo de bens e serviços, o património cultural e o domínio público.”
Preceitua o art.º 12.º desta lei, sob a epígrafe “Acção popular administrativa e acção popular civil”, que:
“1 - A ação popular administrativa pode revestir qualquer das formas de processo previstas no Código de Processo nos Tribunais Administrativos.
2 - A acção popular civil pode revestir qualquer das formas previstas no Código de Processo Civil.”

Assim, reproduzindo aqui o artigo de Paulo Otero “A ACÇÃO POPULAR: configuração e valor no actual Direito português”, in Revista da Ordem dos Advogados, Lisboa, a. 59, n.º 3 (Dezembro 1999), págs. 871-893, disponível em https://portal.oa.pt/upl/%7Bc2d6cd49-2a30-4cd6-9481-2791485902b2%7D.pdf, importa assinalar que se trata de uma ação judicial que se distinguese de todas as demais modalidades de acções pela amplitude dos critérios determinativos da legitimidade para a respectiva propositura.
Mediante a acção popular, pode dizer-se que todos os membros de uma comunidade — ou, pelo menos, um grupo de pessoas não individualizável pela titularidade de qualquer interesse directamente pessoal — estão investidos de um poder de acesso à justiça visando tutelar situações jurídicas materiais que são insusceptíveis de uma apropriação individual.
Feita esta referência à natureza da ação popular da qual os autores se socorreram para se se legitimarem a formular as pretensões formuladas importa apreciar e decidir a questão colocada no presente recurso.
A questão submetida à decisão desta Relação consiste em determinar se a competência em razão da matéria para julgar a presente acção cabe aos tribunais administrativos ou aos judiciais.
A competência material do tribunal, sendo um pressuposto processual, deve ser aferida em função da pretensão deduzida, tanto na vertente objetiva, englobando o pedido e a causa de pedir, como na vertente subjetiva, respeitante às partes, tomando-se como base a relação material controvertida tal como vem configurada pelo autor.
Estabelecendo a al. a) do art. 96.º do Cód. Proc. Civil que a infração das regras de competência em razão da matéria determina a incompetência absoluta do tribunal, que é uma exceção dilatória insuprível e de conhecimento oficioso, nos termos dos arts. 97.º, 577.º, al. a), e 576.º daquele Código, determinando, assim e de acordo com o estabelecido no art. 99.º, n.º 1, ainda do mesmo Código, a absolvição do Réu da instância.
É sabido que os tribunais judiciais exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais, dispondo, por isso, de uma competência residual (cf. artigos 209.º e 211º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, 40.º da Lei de Organização do Sistema Judiciário e 64.º do Código de Processo Civil).
Para sabermos se a acção é da competência dos tribunais judiciais necessitamos por isso de a excluir do âmbito de competência material de outra categoria de tribunais.
Uma dessas categorias previstas na Constituição da República Portuguesa é a dos tribunais administrativos, aos quais compete o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais (artigo 212.º, n.º 3CRP).
Em conformidade com essa previsão constitucional, o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro, estabelece no seu artigo 1.º, n.º 1, que os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais, nos termos compreendidos pelo âmbito de jurisdição previsto no artigo 4.º deste Estatuto.
Para Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. II, 4ª ed., páginas 566 e 567), «estão em causa apenas os litígios emergentes de relações jurídico-administrativas (ou fiscais) (nº 3, in fine). Esta qualificação transporta duas dimensões caracterizadoras: (1) as acções e recursos incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos, um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão de poder público; (2) as relações jurídicas controvertidas são reguladas, sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo ou fiscal. Em termos negativos, isto significa que não estão aqui em causa litígios de natureza “privada” ou “jurídico-civil”. Em termos positivos, um litígio emergente de relações jurídico administrativas e fiscais será uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e/ou fiscal». Ainda segundo estes autores «pretende-se, com o recurso a este conceito genérico, viabilizar a inclusão na jurisdição administrativa do amplo leque de relações (...) que possam ser reconduzidas à actividade de direito público, cuja característica essencial reside na prossecução de funções de direito administrativo, excluindo-se apenas as relações jurídicas de direito privado».
Também Vieira de Andrade, in Justiça Administrativa, 13ª edição, página 49, assinala que «o entendimento do que seja a relação jurídica administrativa deve partir do conceito constitucional, no “sentido estrito tradicional de «relação jurídica de direito administrativo», com exclusão, nomeadamente, das relações de direito privado em que intervém a Administração”; relação em que “um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido” e onde a Administração “é, tipicamente ou nuclearmente, dotada de poderes de autoridade para cumprimento das suas principais tarefas de realização do interesse público”.
Após descrição sintetizada dos fundamentos alegados na petição de pedir para sustentar as pretensões formuladas, a decisão recorrida atribui a competência em razão da matéria aos tribunais administrativos com fundamento na alínea K) do n.º 1 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais que estabelece:
“compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas à prevenção, cessação e reparação de violações a valores e bens constitucionalmente protegidos, em matéria de saúde pública, habitação, educação, ambiente, ordenamento do território, urbanismo, qualidade de vida, património cultural e bens do Estado, quando cometidas por entidades públicas.”
É incontroverso que para aferir a competência material do tribunal devemos estribar-nos no pedido formulado pelo autor e nos respectivos fundamentos, ou seja, devemos determinar essa competência tendo em mente que o que vai ser julgado na acção é a concreta pretensão deduzida pelo autor e os fundamentos nos quais ela se apoia. Por isso, importa ver o modo como vem estruturada a acção, a factualidade relevante articulada na petição inicial, a pretensão jurídica apresentada.
Posto isto, o n.º 3 do art. 212.º da Constituição da República Portuguesa estabelece como critério atributivo de competência aos tribunais administrativos e fiscais a natureza administrativa da relação jurídica controvertida.
Na determinação do conteúdo do conceito de relação jurídico administrativa ou fiscal, tal como referem os Prof. J.J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, deve ter-se presente que “esta qualificação transporta duas dimensões caracterizadoras: (1) as ações e recursos incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão de poder público (especialmente da administração); (2) as relações jurídicas controvertidas são reguladas, sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo ou fiscal. Em termos negativos, isto significa que não estão aqui em causa litígios de natureza «privada» ou «jurídico civil». Em termos positivos, um litígio emergente de relações jurídico administrativas e fiscais será uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e/ou fiscal” (Constituição da República Portuguesa, Volume II, Coimbra Editora, 2010, p. 566 e 567).
Deste modo, é a partir da análise da forma como o litígio se mostra estruturado no articulado inicial da ação, nomeadamente a partir da causa de pedir e do pedido, que poderemos encontrar as bases para responder à questão de saber qual é a jurisdição competente para julgar essa mesma ação.
Mas também é de exigir que um dos sujeitos da relação jurídica aja no exercício de poderes jurídico-administrativos ou a atividade por ele exercida esteja regulada de modo específico por disposições de direito administrativo, dado que só assim estaremos em face de uma relação jurídica administrativa (cf. arts. 2.º, n.º 1, e 148.º do CPA), não sendo critério atributivo de competência material entre ordens de jurisdição aquele baseado unicamente na natureza do corpo normativo aplicável não se encontra estabelecido nem no Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais ( Lei n.º 13/2002, de 19 de fevereiro), nem na Lei de Organização do Sistema Judiciário (Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto.

.Feitas estas considerações, como bem assinala o julgador a quo, os Autores alegam que a ré Junta de Freguesia ... praticou atos de gestão pública ( tenta-se aprovar um Loteamento com 25 lotes, em nome da Ré, em terrenos pertencentes ao Estado, para assim, ser possível edificar um aglomerado habitacional composto por 25 lotes num terreno valorizado pela Ré em € 500,00 (quinhentos euros), violadores de disposições de natureza administrativa (PDM de Ovar, Decreto nº 15439 de 5 de maio de 1928, o Decreto de 9 de agosto de 1922 e o regime florestal criado pelo governo em 24/12/1901).

O que revela que os autores fundamentam as pretensões formuladas nas als a) a e) com a alegação de factos relativos a uma relação de natureza administrativa, quer quanto sujeitos, quer quanto ao objeto do processo.
Mais.
No caso sub judice, como assinala o tribunal a quo, o pedido mais significativo do ponto de vista da alteração sobre a ordem jurídica não pode deixar de ser o pedido de reconhecimento de que o Estado Português é o legítimo possuidor e proprietário dos prédios em causa (curiosamente, formulado em último lugar), dado que é esta a providência que torna efetiva a pretensão dos Autores de prevenção de violações do Perímetro Florestal das Dunas de Ovar, pois aqueles prédios não pertencem ao domínio privado da Ré Junta de Freguesia ..., mas antes ao domínio público do Estado.
E na hipótese de se demonstrar que os prédios em causa pertencem ao domínio público, naturalmente, que tais prédios não podem ser objeto de loteamentos, em virtude da sua principal utilidade pública.
E como resulta da petição inicial os autores não se insurgem apenas contra a escritura de justificação, mas também contra o loteamento em curso nos prédios visados e também atual PDM do Município ....
E o alegado loteamento dos prédios que alegadamente pertencem ao Estado revela estarmos perante uma relação jurídica disciplinada por normas de direito administrativo.
A nulidade da escritura pública de justificação é visada como meio de atingir o fim dos autores, isto é, prevenir violações do Perímetro Florestal das Dunas de Ovar, pois aqueles prédios não pertencem ao domínio privado da Ré Junta de Freguesia ..., mas antes ao domínio público do Estado.

A providência requerida pelos Autores não respeita à propriedade ou posse dos leitos e margens ou suas parcelas, cuja competência pertence inequivocamente aos tribunais comuns, nos termos do art. 17.º, n.º 7, da Lei n.º 54/2005, de 15.11, na redação dada pela Lei n.º 34/2014, de 19/06.

Assim, a presente ação coloca-nos perante um litígio cujo objecto é a prevenção e cessação de alegadas violações disposições normativas de ordenamento do território, urbanismo, qualidade de vida e bens do Estado, pretensamente cometidas por entidades públicas.

A revelar que a presente ação preenche a previsão da al. K) do nº1, do art 4º do ETAF que estabelece:
“compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas à prevenção, cessação e reparação de violações a valores e bens constitucionalmente protegidos, em matéria de saúde pública, habitação, educação, ambiente, ordenamento do território, urbanismo, qualidade de vida, património cultural e bens do Estado, quando cometidas por entidades públicas.”

Em consequência do exposto, para apreciar a pretensão dos AA. são materialmente competentes os Tribunais Administrativos e Fiscais.

Improcede, assim, o recurso interposto.

Sumário
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IV.DELIBERAÇÃO:
Nestes termos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso interposto e, assim, confirmam a decisão recorrida.
Custas a cargo dos apelantes.

Porto, 4.07.2024
Francisca Mota Vieira
Manuela Machado
Isabel Ferreira