Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
11158/15.4T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANA LUÍSA LOUREIRO
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
INDEMNIZAÇÃO
Nº do Documento: RP2025012311158/15.4T8PRT.P1
Data do Acordão: 01/23/2025
Votação: MAIORIA COM 1 DEC VOT
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: Tendo a autora, com 26 anos na data do sinistro, e em resultado deste, sofrido ou ficado a padecer de “amputação da perna direita, abaixo do joelho”, défice funcional temporário total de 49 dias, défice funcional temporário parcial de 1212 dias, défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de grau 43/100 pontos, quantum doloris de grau 7/7, dano estético permanente de grau 5/7, repercussão permanente nas atividades desportivas e de lazer de grau 4/7 e repercussão permanente na atividade sexual de grau 4/7, é ajustada a fixação da compensação por danos não patrimoniais sofridos em € 130.000,00.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo 11158/15.4T8PRT.P1– Apelação

Tribunal a quo Juízo Central Cível do Porto – Juiz 2

Recorrente(s) A..., S.A.

Recorrido(a/s) AA

BB

Instituto da Segurança Social, I.P.

Recorrente(s) AA

Recorrido(a/s) A..., S.A.


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Sumário:

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Acordam na 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:

I – Relatório:

Identificação das partes e indicação do objeto do litígio

AA instaurou a presente ação declarativa, com processo comum, contra A..., S.A., pedindo a condenação da ré “no pagamento à autora da quantia global líquida de 950.375,00 €, acrescida de juros de mora vincendos à taxa legal, até efetivo e integral pagamento, [e ] ainda na indemnização que, por força dos factos alegados, (…) vier a ser fixada em ampliação do pedido ou em liquidação posterior”.

Para tanto, alegou que foi vítima de um acidente de viação causado pelo condutor de uma viatura segurada pela ré.

Citada, a contraparte apresentou contestação, impugnando a dinâmica do acidente e os danos alegados.

Em 29 de março de 2023 (requerimento ref. 45159357; ref. Citius 35220295), a demandante liquidou e ampliou os pedidos inicialmente formulados, pedindo a condenação da ré a pagar à autora “a quantia global de 1.496.412,70 euros acrescida de juros de mora”.

Em 19 de maio de 2016 (ref. 368102780), o tribunal a quo ordenou a apensação do processo n.º 18431/15.0T8PRT aos presentes autos.

BB instaurou a ação declarativa com processo comum n.º 18431/15.0T8PRT, apensada aos presentes autos, contra A..., S.A., pedindo a condenação da ré “no pagamento ao autor da quantia global líquida de 62.502,40 €, acrescida de juros de mora vincendos à taxa legal, até efetivo e integral pagamento, [e] ainda na indemnização que, por força dos factos alegados, (…) vier a ser fixada em ampliação do pedido ou em liquidação posterior”.

Para tanto, alegou que sofreu danos patrimoniais e não patrimoniais em resultado do referido acidente sofrido por AA.

Citada, a contraparte apresentou contestação, impugnando a dinâmica do acidente e os danos alegados.

Em 18 de novembro de 2015, nos presentes autos (ref. 21134240), o Instituto da Segurança Social, I.P., deduziu contra a ré, A..., S.A., pedido de reembolso de prestações satisfeitas, requerendo que esta seja condenada a pagar-lhe “a quantia de € 3.139,35 (…), acrescida de juros de mora à taxa legal.”

Citada, a contraparte apresentou contestação, impugnando a dinâmica do acidente e os valores satisfeitos pelo demandante.

Após realização da audiência final, o tribunal a quo julgou parcialmente procedentes as duas demandas principais e totalmente procedente o pedido do Instituto da Segurança Social, I.P., concluindo nos seguintes termos:

(…) decido condenar a ré A..., S.A., nos seguintes pedidos:

A – Condenar a ré a pagar à autora AA, a quantia global de 917.825,00 euros ((…) sendo 100 mil euros a título de danos não patrimoniais e 817.825 euros a título de danos patrimoniais), acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação e até pagamento (observando-se o disposto no art. 388 n.º 2 do Código de Processo Civil, relativamente ao procedimento cautelar de arbitramento de reparação provisória em apenso);

B – Condenar a ré a pagar ao autor BB, a quantia global de 27.945,00 euros (…), a título de danos patrimoniais e não patrimoniais (sendo 7.945,00€ a título de danos patrimoniais e 20.000,00€ de danos não patrimoniais), acrescida dos juros de mora à taxa legal, desde a citação e até integral pagamento;

C – Condenar ainda a ré a pagar ao Instituto da Segurança Social, I.P., a quantia de 3.139,35 euros (…), acrescida também de juros de mora à taxa legal desde a citação e até pagamento;

D – Absolvendo a ré dos demais pedidos formulados pelos autores.

Inconformada, a ré apelou desta decisão, concluindo, no essencial:

G. Donde e porque se revelam absolutamente essenciais à descoberta da verdade material e boa decisão da causa, uma vez que que apenas ora se mostraram disponíveis, se vem (…) requerer a junção de dois documentos.

H. Entende a recorrente verificar-se nulidade da sentença por violação das alíneas b) e d) do n.º1, do artigo 615.º do CPC, no que se refere aos factos provados sob os números 18, 25, 28, 33, 38, 39, 40, 41 (…).

J. (…) o Tribunal “a quo” podia e devia ter julgado de modo diverso a matéria dos pontos 12, 14, 15, 16, e 18 da matéria de facto provada; (…)

K. Esta factualidade deverá ter-se por não provada.

P. No que respeita à matéria provada sobre os pontos 25 e 33, verifica-se ainda nulidade por violação da alínea c) do n.º 1, do artigo 615.º do CPC (…).

Q. (…) verifica-se nulidade por violação do artigo 662.º, n.os 2, [al.] d), e 3, alíneas b) e d), do CPC, na medida em que a matéria de facto provada sobre os pontos 18, 25, 28, 33, 38, 39, 40, 41, 43, não foi feita com a indicação dos meios de prova que levaram à decisão proferida (…).

R. No que concerne aos pontos 12, 14, 15, 16 e 18 (…), é absolutamente imprescindível, em função da junção dos documentos n.º 1 e 2, aferir se a autora estaria a mudar um pneu ou se o carro ficou a padecer de avarias, se esta tinha ou não possibilidade de sinalizar a sua viatura, ou se ao invés, tal como se esqueceu de envergar o colete refletor, também se olvidou de sinalizar a imobilização da sua viatura, acionando as competentes luzes de emergência pois tal denota gravíssima violação do dever de cuidado que se lhe impunha.

S. Impõe-se, portanto, a ampliação da matéria de facto (…), bem como importa ouvir a testemunha CC (…) e ainda proceder à leitura da centralina da viatura do demandante de forma a apurar se na data e hora do sinistro se registou qualquer avaria, renovação que se requer ao abrigo do disposto no art. 662.º, n.º 2, als. a) e b), e 3 do CPC.

T. (…) nenhum elemento resultou apurado de que o condutor estivesse distraído (…).

X. Donde, a decisão da matéria de facto mostra-se deficiente e omissa o que implica a sua anulação ao abrigo da al. b) e c), do n.º 2 e 3 do artigo 662.º, do CPC, para produção de prova adicional, a complementar à produzida, como a inspeção ao local; a reconstituição do acidente; e uma perícia equidistante e objetiva, com perito nomeado pelo tribunal, para confirmar a conclusão de que a única explicação plausível para que o sinistro houvesse ocorrido é que o condutor seguia distraído. (…)

Y. (…) o ponto 25 foi incorretamente julgado (…).

CC. (…) devia constar do ponto 25 - À data do acidente, a autora trabalhava como repositora de supermercado, no B..., auferindo, € 267,50 a título de remuneração base mensal ilíquida.

EE. (…) quanto ao ponto 33 da matéria de facto provada, (…) entendemos que deveria ter sido dada como não provada (…).

OO. (…) o ponto 28 da matéria de facto provada devia ter sido dado como não provado (…).

QQ. No que se refere aos factos provados sob o número 38, (…) tal ponto deveria ter sido dado como não provado (…)

RR. (…) no que se refere ao ponto 39 da matéria de facto provada, deveria o mesmo ter sido julgado como não provado (…).

SS. Quanto aos pontos 40 e 41 da matéria de facto provada, entendemos que não quedou demonstrado que a autora tem necessidade de prótese transtibilal nem prótese transtibilal de banho, de dois em dois anos, com um custo entre 5.500 e 7.000 euros por cada prótese (…)

YY. Tendo em conta a situação clínica atual da autora, (…) impunha[-se] considerar que indemnização arbitrada para aquisição de próteses no entender da Recorrente deveria ter ficado relegada para incidente de liquidação, devendo pois ter sido deste modo julgado o ponto 40: 40- Ainda em consequência do acidente, a autora terá necessidade de adquirir prótese transtibilal, a liquidar posteriormente.

ZZ. No que se refere ao ponto 41 é de aplicar idêntico raciocínio ao que se deixou expendido quanto ao ponto 40 (…).

AAA. (…) o ponto 41 deveria ter merecido a seguinte formulação 41- Bem como terá eventual necessidade de prótese transtibial de banho, a liquidar posteriormente.

BBB. Do mesmo vício padece o ponto 43 da matéria de facto provada (…)

CCC. (…) pelo que o ponto 43 deveria ter tido antes a seguinte formulação 43- Para aplicação das próteses e/ou reparações das mesmas, poderão revelar-se necessárias intervenções ou substituições nos interfaces de silicone, encaixes, estruturas tubulares, pé protésico, sistema de trancador, revestimento cosmético ou outros, a liquidar posteriormente.

DDD. Ainda que não fossem reconhecidas as invocas nulidades, nem alterada a decisão proferida quanto à matéria de facto, sempre diremos que a sentença recorrida incorre em erro de interpretação e aplicação do direito.

KKK. Não respondendo a recorrente por qualquer culpa assacada ao seu condutor, e, afirmando-se a culpa exclusiva da demandante na produção do sinistro, a responsabilidade fixada pelo n.º 1 do artigo 503.º é excluída (…).

QQQ. (…) a indemnização a arbitrar a título de danos não patrimoniais não deverá situar-se em montante superior a € 40.000,00 (…).

RRR. A douta sentença condenou ainda a ré a pagar ao autor BB, a quantia (...) 20.000,00 € de danos não patrimoniais, de acordo com o art. 495.º do Código Civil (…).

SSS. (…) os normativos insertos nos artigos 483.º, n.º 1 e 495.º, n.º 1 e 2 do Código Civil, limitam o ressarcimento de terceiros aos danos patrimoniais – despesas feitas ou perda de alimentos, o que no caso não sucedeu. (…)

TTT. (…) o valor atribuído ao Recorrido é exorbitante e não justificado, face à parca matéria provada nos pontos 51, 52 e 53 (…) sendo insuficiente para justificar um pedido de danos morais (…) [que] só merecem a tutela do direito, à luz do firmado no AUJ do STJ n.º 6/2014, de 09/01/2014, em casos de elevada gravidade dupla, ou seja, quanto às lesões da vítima sobrevivente e quanto ao sofrimento do respetivo cônjuge.

VVV. (…) a douta sentença (…) teve por justo e equilibrado fixar tal perda a título de lucros cessantes na quantia de 350.000,00 euros. (…)

HHHH. (…) num cenário académico em que a culpa pertencesse integralmente à ré, seria justo e correspondente ao efetivo dano patrimonial sofrido o valor máximo de € 85.000,00, devendo ser posteriormente deduzido 25% pelo recebimento de uma só vez do capital.

LLLL. No caso dos autos, não é possível atender aos danos futuros com próteses e suas reparações, pois que não são previsíveis, nem determináveis, motivo pelo qual a fixação da indemnização correspondente – que não concedermos ser devida – teria que ser remetida para liquidação ulterior (…).

OOOO. uma vez (…) que o acidente ocorreu exclusivamente devido à conduta da autora, naturalmente não poderá [a ré] ser condenada na reparação do veículo do demandante nem quanto ao ressarcimento de quaisquer quantias ao Instituto da Segurança Social, IP, (…).

RRRR. (…) a autora na petição inicial não pediu a condenação em juros de mora no que diz respeito aos danos cuja ampliação ou liquidação remeteu para momento posterior à sentença, pelo que a douta sentença ao condenar indistintamente no pagamento de juros, a contar da citação, condena além do pedido, incorrendo na nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, alínea e), do Código de Processo Civil.

SSSS. No que se refere ao pagamento de danos morais e bem ainda € 195.000,00 para próteses de uso diário e € 103.000,00 para próteses de banho, € 2.200,00 para canadianas, bancos de banho e barras de duche bem como € 147.000,00 não se pode conceber que os mesmos sejam igualmente passíveis de condenação em juros a contar da citação.

A apelada AA contra-alegou, pugnando pela manutenção de decisão do tribunal a quo recorrida. Deduziu, ainda, recurso subordinado, concluindo:

17.ª – (…) a indemnização destinada a ressarcir o dano não patrimonial da autora deverá ser fixada em valor não inferior a EUR 175.000.000,00 (…).

28.ª – (…) [É] justo, adequado e proporcional, a fixação da quantia de € 400.000,00 a título de dano biológico (…).

A apelada no recurso subordinado, A..., S.A., contra-alegou, pugnando pela improcedência deste recurso.

Por decisão intercalar proferida por este tribunal, não foi admitida a junção aos autos dos documentos apresentados pela apelante com a alegação de recurso.

Após os vistos legais, cumpre decidir.

II – Objeto do Recurso:

Começaremos por retomar a decisão das questões adjetivas pela mesma suscitadas, respeitantes à alegada nulidade da sentença e à necessidade de anulação da decisão sobre a matéria de facto.

Seguir-se-á a apreciação da impugnação da decisão respeitante à matéria de facto referida nos pontos 12, 14, 15, 16, 18, 25, 28, 30, 33, 38, 39, 40, 41 e 43 dos factos provados, bem como à matéria não provada alegada nos arts. 31.º e 32.º da contestação.

As questões de direito a tratar respeitam – recurso independente – à afirmação da responsabilidade da apelante pela indemnização dos danos sofridos e à liquidação dos danos; e – recurso subordinado – à indemnização dos danos não patrimoniais e dano biológico da autora.

Acresce a fixação da responsabilidade pelas custas.


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III – Fundamentação:

Fundamentação de facto

É a seguinte a fundamentação de facto da sentença recorrida (inserindo-se, para melhor apreensão, a identificação do tema da factualidade em causa incluída nos factos provados).


1. Dinâmica do acidente

1 – No dia 13 de novembro de 2014, pelas 16,50 horas, ocorreu um acidente de viação na autoestrada ..., ao quilómetro número 14.150, na freguesia e concelho de Valongo;

2 – Nesse acidente, foram intervenientes os seguintes veículos automóveis: o veículo pesado de mercadorias, de marca Toyota, modelo ..., de matrícula ..-GE-..; o veículo automóvel ligeiro de passageiros, de marca Volvo, modelo ..., de matrícula ..-JM-..;

3 – O veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula JM era propriedade do autor BB e, na altura da ocorrência do acidente de trânsito que deu origem à presente ação, era conduzido pela autora AA;

4 – O veículo pesado de mercadorias de matrícula GE era propriedade de C..., L.da, e, na altura da ocorrência do acidente de trânsito era conduzido por DD, funcionário dessa empresa, conduzindo o veículo por sua ordem, com o seu conhecimento, com a sua autorização, por sua conta e no interesse da sua proprietária, no âmbito de uma relação laboral;

5 – A autoestrada ..., no local do sinistro aqui em causa, configura uma curva suave, com inclinação ascendente, tendo em conta o sentido ... – ...;

6 – A faixa de rodagem da Auto Estrada ..., naquele local, encontra-se dividida em duas pistas de tráfego, através de um separador central;

7 – Uma dessas pistas de tráfego destina-se ao trânsito de veículos automóveis que desenvolvem a sua marcha no sentido ... – ..., no sentido ascendente, e outra destinada ao trânsito em sentido contrário, em sentido descendente (cfr. croquis elaborado pela GNR, junto ao procedimento cautelar de arbitramento, em apenso – Apenso A, que aqui se dá por reproduzido e integrado);

8 – O tempo estava bom e o pavimento encontrava-se limpo, seco e em bom estado de conservação;

9 – Pela sua margem direita, tendo em conta o sentido ... – ..., a via apresentava uma berma, também pavimentada a asfalto, com uma largura de 1,10 metros (mesmo croquis);

10 – O pôr-do-sol no dia 13 de novembro de 2014, ocorreu às 17.15 horas;

11 – No dia e hora acima indicados, a autora conduzia o veículo JM pela autoestrada A. 4, no sentido ... – ..., no sentido ascendente;

12 – Ao chegar ao local em que veio a ocorrer o sinistro, a autora apercebeu-se de que o sistema elétrico do carro havia deixado de funcionar, o carro estava a perder potência, o painel e as luzes do veículo deixaram de funcionar;

13 – Desviou-se para a berma do lado direito, aí imobilizando completamente a marcha, com o veículo JM ocupando totalmente a berma asfáltica situada do lado direito da pista de trânsito da autoestrada, ocupando ainda parcialmente a faixa de rodagem, face à pequena largura da berma (cfr. supra nº 9);

14 – Após imobilizar o veículo, verificou que perdera toda a parte elétrica do automóvel, não conseguindo ligar luzes e os quatro piscas intermitentes;

15 – Face ao local e receosa do trânsito que se processava, a autora aguardou alguns instantes, deixando passar outros veículos que circulavam no mesmo sentido, antes de sair do automóvel para se dirigir à bagageira do mesmo, a fim de daí retirar e colocar na via, o triângulo de pré-sinalização de perigo;

16 – No momento em que a autora se encontrava na traseira do veículo para retirar o triângulo, foi colhida pelo veículo automóvel pesado de mercadorias GE, conduzido pelo DD, que transitava no mesmo sentido;

17 – O referido GE, embateu na autora e, de seguida no automóvel em que esta seguia;

18 – O condutor do GE conduzia distraído do demais trânsito e, mercê dessa distração, não se apercebeu da presença do veículo parado e da autora, que se encontrava na traseira do mesmo;

19 – A proprietária do veículo ..-GE-.. tinha a sua responsabilidade civil emergente de acidente de viação, relativamente a danos causados a terceiros, transferida para a ré mediante contrato de seguro titulado pela apólice n.º ... (doc. junto aos autos);


2. Danos corporais sofridos

20 – Em consequência do embate, a autora sofreu lesões graves, nomeadamente grave lesão traumática da perna direita, fratura exposta dos ossos da perna direita e fratura transversal da diáfise do fémur direito; esfacelo da perna direita, ferida grave, na perna direita, traumatismo da coluna lombar, dorsal e cervical, escoriações e hematomas espalhados pelo corpo todo, lesões e cortes na face e nos membros superiores, fratura da anca, tendo sido transportada, de ambulância, para o Centro Hospitalar de São João, EPE – Hospital de São João., onde lhe foram prestados os primeiros socorros, no respetivo Serviço de Urgência;

21 – Aí foi submetida a diversos tratamentos e intervenções cirúrgicas, tendo-lhe, além do mais, sido amputada a perna direita, abaixo do joelho;

22 – Ainda em consequência do acidente aqui em causa, a autora sofreu as consequências e sequelas melhor descritas no relatório pericial do INMLCF IP de fls. 370 a 375, que se dá por integralmente aqui integrado e reproduzido nos seus dizeres (história do evento, dados documentais, antecedentes, estado atual, queixas, exame objetivo, exames complementares, discussão e concussões), e com as conclusões que de seguida se transcrevem:

– A data da consolidação médico-legal das lesões é fixável em 26 de abril de 2018;

– Período de Défice Funcional Temporário Total sendo assim fixável num período de 49 dias;

– Período de Défice Funcional Temporário Parcial sendo assim fixável num período 1212 dias;

– Período de Repercussão Temporária na Atividade Profissional Total sendo assim fixável num período total de 1175 dias;

– Período de Repercussão Temporária na Atividade Profissional Parcial sendo assim fixável num período total de 85 dias;

Quantum Doloris fixável no grau 7/7;

– Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica fixável em 43 Pontos;

– As sequelas descritas são, em termos de Repercussão Permanente na Atividade Profissional, impeditivas do exercício da atividade profissional habitual, sendo, no entanto, compatíveis com outras profissões da área da sua preparação técnico profissional desde que beneficie de plano de reintegração profissional;

– Dano Estético Permanente fixável no grau 5/7;

– Repercussão Permanente nas Atividades Desportivas e de Lazer fixável no grau 4/7;

– Repercussão permanente na Atividade Sexual fixável no grau 4/7;

– Dependências futuras: tratamentos médicos regulares; ajudas técnicas; adaptação domicílio e veículo.


3. Danos patrimoniais sofridos

23 – Após altas hospitalares, a autora regressava à sua residência, necessitando de ajuda de terceira pessoa para as suas necessidades elementares, nomeadamente de higiene e alimentação, necessitando ainda de usar canadianas como auxiliar de locomoção;

24 – A autora vivia em união de facto com o autor;

25 – À data do acidente, a autora trabalhava como repositora de supermercado, no B..., auferindo, em média, a quantia de mensal de € 450,00, atenta as horas extras que habitualmente fazia;

26 – Após o acidente, a autora deixou de receber qualquer quantia daquela entidade, recebendo apenas da Segurança Social e 600 euros mensais da ré, por via da providência cautelar de arbitramento (processo apenso);

27 – Antes do acidente, a lesada fazia toda a lide doméstica da casa, cozinhava e arrumava tudo e era uma pessoa muito ativa, autónoma, alegre e dada ao convívio;

28 – A autora irá remunerar terceira pessoa que a acompanhou nas suas necessidades pessoais, nomeadamente de higiene e alimentação, EE, com a quantia de 750 euros;

29 – A Autora não vai conseguir mais efetuar os trabalhos de casa – domésticos – como antes fazia, com desembaraço e agilidade;

30 – A autora nasceu a ../../2007 [adiante retificado para “A autora nasceu a ../../1987”]

31 – A autora ambicionava seguir uma carreira profissional no B..., tendo obtido um curso de formação profissional na área de aconselhamento e dispensa de medicamentos não sujeitos a receita médica (doc. junto aos autos);

32 – A autora tem o 9.º ano de escolaridade, era ativa, dinâmica e com ambições profissionais;

33 – À data do acidente, a autora, para além de trabalhar no B..., trabalhava também em limpezas domésticas, auferindo nessa atividade um rendimento mensal de cerca de € 350,00;


4. Outros danos não patrimoniais sofridos

34 – No momento do acidente e nos instantes que se seguiram, a autora sofreu enorme susto, temendo pela sua vida;

35 – Viveu e continua a viver momentos de angústia e de sofrimento pela perda de um membro inferior;

36 – Tem-lhe sido difícil a adaptação a próteses no membro inferior direito, com diversas vezes o corpo a rejeitar próteses, sendo causa de infeções;

37 – A autora era, antes do acidente, uma jovem alegre, bem-disposto, feliz, saudável, cuidando da sua presentação pessoal e valorização profissional;


5. Outros danos patrimoniais sofridos

38 – Para deslocações em tratamentos médicos consequência do acidente, gastou a autora quantia não inferior a 250,00 euros;

39 – Em consequência do acidente perdeu toda a roupa que usava naquele momento, com um custo de cerca de 375,00 euros;

40 – Ainda em consequência do acidente, a autora tem necessidade de prótese transtibial, de dois em dois anos, com um custo entre 5.500 e 7.000 euros por cada prótese;

41 – Bem como de prótese transtibial de banho, de dois em dois anos, com um custo entre 2.500 e 3.500 euros por cada prótese;

42 – A autora tem ainda necessidade de canadianas (anual), banco de duche (de cinco em cinco anos) e barra de apoio para duche (de 10 em 10 anos), num valor unitário de 20, 60 e 50 euros, respetivamente;

43 – Para aplicação das próteses e/ou reparações das mesmas, são necessários interface de silicone de 6 em 6 meses, encaixe, que deve ser substituído de 2 em 2 anos, estrutura tubular, que deve ser substituído de 2 em 2 anos, pé protésico, que deve ser substituído de 3 em 3 anos, sistema de trancador, que deve ser substituído de 2 em 2 anos e revestimento cosmético, devendo ser considerado uma substituição anual, tudo com um custo, tendo em consideração a esperança média de vida, num valor de cerca de 147 mil euros;

44 – O veículo automóvel de matrícula ..-JM-.., havia sido adquirido em comum pelo autor BB e pela autora AA, estando a sua aquisição registada em nome do BB;

45 – Como consequência direta e necessária do acidente, resultaram para o veículo danos avultados;

46 – A reparação dos danos do veículo tem um custo de 24.152,40 euros;

47 – O valor comercial do veículo era, à data do acidente, de 11.500,00 euros e os seus salvados, após o acidente, tinham um valor de 3.555,00 euros;

48 – Antes do acidente, o veículo encontrava-se em bom estado de conservação, com cerca de 160.000 km percorridos;

49 – O BB não se dispunha, como não se dispõe, a vender o veículo, mantendo-o aparcado em garagem, pagando retribuição a terceiros pelo seu aparcamento;

50 – Desde então, viu-se o autor privado do veículo, que usava na sua vida pessoal e familiar;


6. Outros danos não patrimoniais sofridos

51 – O BB vivia com a AA em união de facto, união que veio a cessar algum tempo após o acidente;

52 – Após o acidente enquanto se manteve a união de facto entre ambos, o BB apoiava e ajudava a AA nos tratamentos e deslocações necessárias para esse efeito;

53 – O BB ficou abalado psicologicamente com o acidente sofrido pela sua então companheira, o que lhe causou profundo desgosto;


7. Pedido do Instituto da Segurança Social, I.P.

54 – À autora, mercê do acidente, foi paga pelo Instituto da Segurança Social, I.P. a quantia de € 3.139,35 (três mil, cento e trinta e nove euros e trinta e cinco cêntimos).

Arguição de nulidades adjetivas (vícios processuais)

A apelante inclui na sua alegação um capítulo (II) intitulado “Do erro de julgamento da matéria de facto”. Não obstante a designação adotada se referir ao error in judicando da decisão sobre a matéria de facto, as três divisões deste capítulo referem-se a supostas nulidades da sentença e da decisão sobre a questão de facto, isto é, ao error in procedendo, e não ao error in judicando: “A – Da nulidade por violação das alíneas b) e d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC”, “B – Da nulidade por violação da alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC” e “C – Da nulidade por violação do artigo 662.º, n.os 2, d), e 3, alíneas b) e d), do CPC”.


1. Das nulidades previstas nas als. b) e d) do n.º 1 do art. 615.º do Cód. Proc. Civil e da nulidade prevista na al. c) do n.º 1 do art. 615.º do Cód. Proc. Civil

Já concluímos, no acórdão intercalar a que acima fizemos referência, que a sentença não enferma de nenhuma nulidade por falta de fundamentação ou por omissão de pronúncia. Também concluímos que os fundamentos apresentados na sentença não estão em oposição com a decisão nem ocorre nenhuma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.

Pelas razões então desenvolvidas, e que agora se dão por transcritas, resta-nos agora julgar improcedentes as respetivas reclamações de nulidade deduzidas na alegação de recurso.


2. Da nulidade prevista na al. e) do n.º 1 do art. 615.º do Cód. Proc. Civil

Na conclusão RRRR da alegação de recurso, a apelante refere que “a autora na petição inicial não pediu a condenação em juros de mora no que diz respeito aos danos cuja ampliação ou liquidação remeteu para momento posterior à sentença, pelo que a douta sentença ao condenar indistintamente no pagamento de juros, a contar da citação, condena além do pedido, incorrendo na nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, alínea e), do Código de Processo Civil”. Esta é uma alegação não desprovida de mérito.

No entanto, conforme se refere no Ac. do TRP de 25-03-2021, proc. n.º 59/21.7T8VCD.P1, “por força da regra da substituição ao tribunal recorrido (art. 665.º do Cód. Proc. Civil), quando a nulidade da sentença recorrida é apenas um dos vários fundamentos de impugnação dessa decisão, a arguição da nulidade é um ato inútil e não necessita sequer de ser apreciada pela Relação se a sentença puder ser confirmada ou revogada por outras razões”.

Em face do exposto, não se tomará conhecimento da alegada nulidade da decisão recorrida, por constituir uma pronúncia inútil (art. 130.º do Cód. Proc. Civil).


3. Da irregularidade prevista no art. 662.º, n.os 2, al. d), e 3, al. d), do Cód. Proc. Civil

Sob a mesma divisão da alegação – “C – Da nulidade por violação do artigo 662.º, n.os 2, d), e 3, alíneas b) e d), do CPC” –, a apelante sustenta que se “impõe ampliar a prova produzida de forma a apurar junto da autora porque é que foi omitida a informação pedida pela recorrente, nem foi declarada a existência de participação de um acidente de trabalho, segundo o qual aquele ocorreu quando a demandante estaria a mudar o pneu quando foi embatida pelo veículo GE, inexistindo qualquer menção de existência de avaria elétrica”.

Sobre esta questão, já decidimos em acórdão intercalar inexistir fundamento para se anular a decisão recorrida nos termos previstos no art. 662.º, n.º 2, al. c), do Cód. Proc. Civil, devendo a análise da censura da decisão sobre o ponto 18 dos factos provados ser apreciada em sede de apreciação da impugnação da decisão respeitante à matéria de facto – o que se fará adiante.

Nada mais há, pois, a acrescentar sobre esta questão.

Impugnação da decisão sobre a matéria de facto

Cumpre agora apreciar a impugnação da decisão de facto efetuada pela ré apelante.


1. Ponto 12 da fundamentação de facto

O tribunal a quo deu por provado o seguinte facto:

12 – Ao chegar ao local em que veio a ocorrer o sinistro, a autora apercebeu-se de que o sistema elétrico do carro havia deixado de funcionar, o carro estava a perder potência, o painel e as luzes do veículo deixaram de funcionar.

Alega a apelante que este facto deveria ter sido dado por não provado. “E funda a recorrente as razões da sua dissidência (i) na prova documental junta aos autos, com particular relevância o auto de participação de acidente de trânsito elaborado pela G.N.R. e, ainda, (ii) no depoimento das testemunhas: FF (…) DD (…)”.

Sobre a relevância do depoimento da testemunha FF, refere a apelante: “Trata-se (…) do guarda da G.N.R., que procedeu à elaboração da participação de acidente de trânsito constante dos autos. // Confirmou, na íntegra o que exarou no auto que elaborou. // (…) Portanto, a depoimento desta testemunha não se mostra apto a fazer a prova/não prova dos factos em causa”.

Sobre a relevância do depoimento da testemunha DD, refere a apelante: “Esta testemunha era o condutor do veículo pesado segurado pela recorrente. // (…) Não será, portanto, este depoimento adequado à prova dos factos dos pontos 12, 14, 15, 16 e 18”.

Importa aqui sublinhar que a lei onera o apelante com a indicação dos “concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida” (art. 640.º, n.º 1, al. a), do Cód. Proc. Civil). Com a própria apelante refere, a prova do ponto 12 do leque dos factos provados não pode ser feita nem contrariada com os depoimentos destas testemunhas. Não se alcança, pois, a razão de ser da sua invocação.

A recorrente acaba por afirmar “o único meio de prova que sustentou diretamente a dinâmica do acidente nos termos alegados pela autora foram estas declarações de parte da própria autora”. Deixando de lado a incorreção desta afirmação – já que a dinâmica do acidente inclui o atropelamento da autora e o abalroamento da sua viatura, em circunstâncias de tempo e lugar incontroversas –, podemos aceitar que a base da prova do facto descrito no ponto 12 são as declarações de parte da autora. No entanto, a esta base podemos e devemos acrescentar as regras da experiência, as quais ditam que os automobilistas, por regra, não imobilizam inopinadamente as viaturas que conduzem na autoestrada.

Circulando a autora sozinha, a probabilidade prevalecente é a de que a sua viatura tenha sofrido uma avaria impeditiva da circulação da viatura. A concreta natureza dessa avaria é irrelevante para a explicação e a justificação da paragem da viatura no extremo direito da berma e da faixa de rodagem.

Quanto ao mais, apenas há a dizer que inexiste fundamento epistemológico para negar uma relevância probatória decisiva às declarações de parte, sobretudo quando estas não são infirmadas pelos restantes meios de prova requeridos e produzidos, para além de não enfermarem de nenhuma contradição ou implausibilidade (à luz das regras da experiência).

Devemos, pois, concluir pela improcedência da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, nesta parte.


2. Ponto 14 da fundamentação de facto

O tribunal a quo deu por provado o seguinte facto:

14 – Após imobilizar o veículo, verificou que perdera toda a parte elétrica do automóvel, não conseguindo ligar luzes e os quatro piscas intermitentes.

A apelante serve-se da mesma fundamentação da impugnação da decisão sobre este facto que usou para impugnar a decisão sobre o ponto 12 dos factos provados. Vale, pois, para o julgamento da impugnação vertente o que se disse sobre a impugnação da decisão sobre o referido ponto 12.

Podemos acrescentar que, como é evidente, o sinistro ocorre durante o dia, numa autoestrada, a céu aberto, o que retira praticamente todo o sentido à insistência da apelante na questão do uso do colete refletor ou ao acionamento das luzes da viatura abalroada.

Devemos, pois, concluir pela improcedência da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, nesta parte.


3. Ponto 15 da fundamentação de facto

O tribunal a quo deu por provado o seguinte facto:

15 – Face ao local e receosa do trânsito que se processava, a autora aguardou alguns instantes, deixando passar outros veículos que circulavam no mesmo sentido, antes de sair do automóvel para se dirigir à bagageira do mesmo, a fim de daí retirar e colocar na via, o triângulo de pré-sinalização de perigo.

Também aqui, a apelante serve-se da mesma fundamentação da impugnação da decisão sobre este facto que usou para impugnar a decisão sobre o ponto 12 dos factos provados. Vale aqui igualmente, para o julgamento da impugnação vertente, o que se disse sobre a impugnação da decisão sobre o referido ponto 12.

Devemos assim concluir pela improcedência da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, nesta parte.


4. Ponto 16 da fundamentação de facto

O tribunal a quo deu por provado o seguinte facto:

16 – No momento em que a autora se encontrava na traseira do veículo para retirar o triângulo, foi colhida pelo veículo automóvel pesado de mercadorias GE, conduzido pelo DD, que transitava no mesmo sentido.

Também quanto a este ponto, a apelante serve-se da mesma fundamentação da impugnação da decisão sobre este facto que usou para impugnar a decisão sobre o ponto 12 do leque dos factos provados. Vale aqui igualmente, para o julgamento da impugnação vertente, o que se disse sobre a impugnação da decisão sobre o referido ponto 12.

Concluímos, assim, pela improcedência da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, nesta parte.


5. Ponto 18 da fundamentação de facto

O tribunal a quo deu por provado o seguinte facto:

18 – O condutor do GE conduzia distraído do demais trânsito e, mercê dessa distração, não se apercebeu da presença do veículo parado e da autora, que se encontrava na traseira do mesmo.

Novamente, a apelante serve-se da mesma fundamentação da impugnação da decisão sobre este facto que usou para impugnar a decisão sobre o ponto 12 dos factos provados. Mais uma vez, vale aqui, para o julgamento da impugnação vertente, o que se disse sobre a impugnação da decisão sobre o referido ponto 12.

A apelante entende que “é absolutamente inequívoco que nenhum elemento resultou apurado de que o condutor estivesse distraído e que o sinistro ocorreu por força de tal distração”. Justifica esta sua asserção afirmando que “do depoimento da testemunha DD, prestado em sede de audiência de discussão e julgamento no dia 25-4-2023, com início às 10:52 e fim às 11:04, durante 00:12:00 minutos e entre os minutos 10:01 a 11:47, foi perentório ao afirmar que não seguia distraído”.

Importa ter presente, como já foi dito, que a lei onera o apelante com a indicação dos “concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida” (art. 640.º, n.º 1, al. a), do Cód. Proc. Civil). Ora, em caso algum, do depoimento, naturalmente interessado, da testemunha condutora do veículo que atropelou a autora e abalroou a sua viatura se poderá dizer que impõe decisão diferente. Como é evidente, tratando-se de uma autoestrada, ocorrendo o sinistro durante o dia e não sendo oferecida outra explicação – como a avaria da viatura abalroante –, impõe-se a conclusão tirada pelo tribunal a quo: se esta viatura não seguia a uma velocidade excessiva – que impedia a sua imobilização no espaço livre e visível à sua frente – e o condutor não atuou dolosamente, não estava atento à viatura imobilizada: tertium non datur.

Aliás, é a própria apelante quem estabelece as fundações desta inevitável conclusão, quando na sua alegação afirma que “provou-se que condutor do veículo seguro na recorrente (…) tinha visibilidade a boa distância do veículo onde embateu e que não logrou desviar-se do mesmo, quando tinha a faixa de rodagem à sua esquerda livre para o efeito”. No mesmo sentido, refere o tribunal a quo que a testemunha DD afirmou “pouco recordar do acidente”. Não viu o carro da autora antes do acidente. Ouviu um estrondo, olhou para trás pelo espelho retrovisor e viu o corpo de uma pessoa”.

É, pois, inevitável concluir que o referido condutor não atentou no, perfeitamente visível, veículo detido pela autora. Tal equivale a dizer que estava desatento ou distraído, tal como concluiu o tribunal recorrido.

Devemos, também nesta parte, concluir pela improcedência da impugnação da decisão sobre a matéria de facto.


6. Artigo 31.º da contestação

Consta do art. 31.º da contestação:

31.º – O embate ocorreu todo na faixa de rodagem da direita da ... atento o sentido de marcha de ambos os veículos (...-...).

Entende a apelante que este facto deve ser dado como provado, com base no teor do auto de ocorrência elaborado pela autoridade policial.

O tribunal a quo deu por provado, a este respeito, no essencial, que:

9 – Pela sua margem direita, tendo em conta o sentido ... – ..., a via apresentava uma berma, também pavimentada a asfalto, com uma largura de 1,10 metros (mesmo croquis); (…)

12 – Ao chegar ao local em que veio a ocorrer o sinistro, a autora apercebeu-se de que o sistema elétrico do carro havia deixado de funcionar, o carro estava a perder potência, o painel e as luzes do veículo deixaram de funcionar;

13 – Desviou-se para a berma do lado direito, aí imobilizando completamente a marcha, com o veículo JM ocupando totalmente a berma asfáltica situada do lado direito da pista de trânsito da autoestrada, ocupando ainda parcialmente a faixa de rodagem, face à pequena largura da berma (…);

16 – No momento em que a autora se encontrava na traseira do veículo para retirar o triângulo, foi colhida pelo veículo automóvel pesado de mercadorias GE, conduzido pelo DD, que transitava no mesmo sentido;

17 – O referido GE, embateu na autora e, de seguida, no automóvel em que esta seguia;

18 – O condutor do GE conduzia distraído do demais trânsito e, mercê dessa distração, não se apercebeu da presença do veículo parado e da autora, que se encontrava na traseira do mesmo;

Perante este acervo de factos provados, não explica a apelante o interesse ou a relevância da prova do facto enunciado no art. 31.º da contestação. Não explica por que razão, porventura, entende que não é ilícito nem censurável a condução realizada na autoestrada sem atenção aos veículos imobilizados na via – por exemplo, em fila compacta, resultante da elevada densidade de trânsito –, sendo legítimo e aceitável atropelar um peão que se encontra junto à sua viatura avariada, procurando resolver o problema enfrentado.

O tribunal a quo, e bem, não considerou a conduta do veículo abalroante ilícita e culposa por, supostamente, o embate ter ocorrido na berma. Considerou-a como tal independentemente da localização do concreto ponto de embate – isto é, independentemente de ter ocorrido sobre a faixa de rodagem ou, diferentemente, sobre a berma. Em qualquer caso, o condutor do veículo abalroante deveria ter regulado a sua velocidade de modo a parar no espaço livre e visível à sua frente, avistado a autora e a sua viatura, reduzido a sua velocidade e, se necessário, desviar a sua trajetória para a via de trânsito à sua esquerda. A discussão em torno do concreto ponto de impacto é estéril e totalmente inconsequente.

É jurisprudência pacífica das Relações que “não se deverá proceder à reapreciação da matéria de facto quando os factos objeto de impugnação não forem suscetíveis, face às circunstâncias próprias do caso em apreciação, de ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma atividade processual que se sabe ser inútil, o que contraria os princípios da celeridade e da economia processuais (arts. 2.º, n.º 1, 137.º e 138.º, todos do Cód. Proc. Civil)” – assim, entre muitos outros, cfr. os Acs. do TRC de 24-04-2012 (219/10.6T2VGS.C1), de 14-01-2014 (6628/10.3TBLRA.C1) e de 15-09-2015 (6871/14.6T8CBR.C1), do TRG de 15-12-2016 (86/14.0T8AMR.G1) e de 22-10-2020 (5397/18.3T8BRG.G1), e do TRL de 26-09-2019 (144/15.4T8MTJ.L1-2) e de 27-10-2022 (7241/18.2T8LRS-A.L1-2).

Pelo exposto, rejeita-se, nesta parte, o recurso sobre a decisão da matéria de facto, com o que se mantém inalterada a factualidade fixada em 1.ª instância.


7. Artigo 32.º da contestação

Consta do art. 32.º da contestação:

32.º – A 0,90 m da respetiva berma direita, conforme se alcança do Croqui do Auto de Ocorrência (…).

Valem aqui as considerações acima efetuadas quanto à irrelevância do teor do art. 31.º da contestação, pelo que, também nesta parte, rejeita-se o recurso sobre a decisão da matéria de facto, com o que se mantém inalterada a factualidade fixada em 1.ª instância quanto à dinâmica do acidente.


8. Ponto 25 da fundamentação de facto

Depois de entremear a sua alegação com profusas, mas inconsequentes considerações de direito, a apelante prossegue a impugnação da decisão respeitante à matéria de facto. Desta feita, debruça-se sobre os danos dados por provados.

O tribunal a quo deu por provado o seguinte facto:

25 – À data do acidente, a autora trabalhava como repositora de supermercado, no B..., auferindo, em média, a quantia de mensal de € 450,00, atenta as horas extras que habitualmente fazia.

Sobre o ponto 25 da decisão de facto, consta da alegação, além do mais: “Entende a recorrente que o ponto 25 foi incorretamente julgado, o que impunha desde logo concluir em face das notas de liquidação de IRS juntas aos autos a 26/02/2016, sob a referência 364402828, de onde resulta que: – No ano anterior ao acidente, em 2013, a autora recebeu € 4.865,00 o que redundaria assim num rendimento ilíquido de € 347,50 dividido por 14 meses”.

Esta é uma análise manifestamente superficial, não levando em consideração, por exemplo, períodos de baixa por doença ou de impossibilidade de realização de trabalho suplementar. O termo de comparação a ter em consideração não é o proporcionado por um qualquer ano de rendimentos, mas sim um ano que tenha permitido obter o rendimento possível. Ora, trabalhando para a mesma entidade patronal (NIPC ...), os documentos juntos pela Autoridade Tributária revelam que, no exercício de 2012, a autora auferiu € 477,55 mensais.

Os valores em causa são os seguintes:

Relativamente ao ano em que ocorreu o sinistro, a apelante divide por 14 meses o rendimento anual da autora (pago pela mesma entidade patronal). Recorde-se que o acidente ocorreu antes do dia 15 de novembro, não sendo de presumir que a referida entidade tenha pago à autora a sua retribuição mensal até ao fim desse ano.

Afirma a apelante que, “no ano do acidente, em 2014, a autora recebeu € 5.177,01 o que resultaria assim num rendimento mensal ilíquido de € 369,35 dividido por 14 meses”. Na verdade, porém, atendendo à demonstração da liquidação de imposto e aos registos da Segurança Social, as contas certas a fazer são as seguintes: (5177,01 (rendimento líquido pago pela mesma entidade patronal) - 267,35 (subsídio de natal) - 323,37 (subsídio de férias)) / 10,5 = € 436,79 (remuneração média mensal).

Devemos, ainda, ter em consideração que no ano em questão a autora não auferiu a totalidade da sua retribuição mensal normal no mês de julho (constando dos registos da Segurança Social o pagamento de duas prestações por doença).

Em suma, a conclusão obtida pelo tribunal a quo – no sentido de a autora poder auferir, em média, na sua profissão à data, a quantia mensal de € 450,00, encontra total cobertura nos documentos juntos.

Concluímos assim pela improcedência da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, nesta parte.


9. Ponto 28 da fundamentação de facto

O tribunal a quo deu por provado o seguinte facto:

28 – A autora irá remunerar terceira pessoa que a acompanhou nas suas necessidades pessoais, nomeadamente de higiene e alimentação, EE, com a quantia de 750 euros.

O tribunal a quo, satisfazendo o determinado por este tribunal de recurso, motivou a sua decisão nos seguintes termos:

“Tal como anteriormente e agora se referiu, a testemunha EE apoiou e apoia a autora AA “nos tratamentos em consequência do acidente (nomeadamente acolhendo-a em sua casa e deslocando-se e mantendo-se em casa da AA a ajudá-la)”. Face a tais trabalhos da testemunha, de acompanhamento em necessidades pessoais, nomeadamente de higiene e alimentação, esta declarou que a AA se comprometeu a remunerá-la com a quantia de 750,00 euros”.

Sustenta a apelante que se desconhece quais os “concretos períodos em que a autora foi acompanhada nas suas necessidades pessoais, nomeadamente de higiene e alimentação, pela EE”. Acrescenta a apelante que “também se ignora se e durante quais períodos a autora irá liquidar a quantia de € 750 euros”.

Não é afirmado no ponto 28 – factos provados – que a autora irá necessitar, futuramente, de acompanhamento por terceira pessoa; apenas se refere o ponto de facto impugnado à circunstância de, no passado, a autora ter carecido de tal acompanhamento, tendo-se comprometido perante a sua ajudante remunerá-la “com a quantia de 750,00 euros”. Ora, reduzida a questão a este dado de facto, constatamos que existe prova bastante da decisão proferida pelo tribunal a quo.

Do relatório pericial do INMLCF IP retira-se que a autora sofreu um défice funcional temporário total durante 49 dias e um défice funcional parcial durante 1212 dias. Tanto basta para que, na medida da sua incapacidade, se deva considerar provado que foi ajudada por terceira pessoa, ao menos durante esse período. Quanto ao mais – identidade da pessoa ou pessoas que a ajudaram, vale a prova testemunhal invocada pelo tribunal recorrido.

Acresce que consta do relatório do Centro de Reabilitação ... (ref. 17711496 de 08-02-2018) que, à data (janeiro de 2018), a autora não era totalmente autónoma, carecendo do auxílio do seu cônjuge nas tarefas domésticas e de apoios técnicos para a realização da sua higiene pessoal. Esta factualidade sugere fortemente que, no passado, designadamente, antes de adquirir os referidos apoios técnicos, necessitou do auxílio de terceira pessoa na satisfação das “suas necessidades pessoais, nomeadamente de higiene e alimentação”. A idêntica conclusão se chega pela análise do relatório do Centro Hospitalar de São João (ref. 15831769 de 07-08-2017), no qual se refere que, à data (março de 2015), a autora ainda estava dependente de terceiros para realizar a sua higiene (embora já “em grau reduzido”).

Sendo inequívoca a dependência pretérita da assistência de terceira pessoa, apenas se poderia questionar se a autora irá despender alguma quantia com a sua remuneração – ou se a apelante se poderá aproveitar da circunstância de, eventualmente, tal terceira pessoa ter oferecido os seus préstimos gratuitamente. Ora, quanto a este ponto, a motivação ulteriormente apresentada pelo tribunal a quo é manifestamente suficiente.

Assim concluímos aqui igualmente pela improcedência da impugnação da decisão sobre a matéria de facto. Esclarece-se que não voltaremos ao arbitramento desta indemnização, dado que a apelante, nas conclusões da sua alegação, não contraria o seu julgamento de mérito – mas tão-só a decisão de facto.


10. Ponto 30 da fundamentação de facto

O tribunal a quo deu por provado o seguinte facto:

30 – A autora nasceu a ../../2007.

A apelante afirma, e bem, que a autora nasceu em ../../1987. Trata-se, como é evidente, de um mero lapso manifesto – entretanto sinalizado pelo tribunal a quo no despacho de 24-10-2024 subsequentemente proferido. Nunca poderia a autora conduzir regularmente uma viatura, ter um companheiro e trabalhar no B... com 7 anos de idade.

Em face do exposto, retifica-se o ponto 30 da decisão de facto, passando este a ter o seguinte teor:

30 – A autora nasceu a ../../1987.


11. Ponto 33 da fundamentação de facto

O tribunal a quo deu por provado o seguinte facto:

33 – À data do acidente, a autora, para além de trabalhar no B..., trabalhava também em limpezas domésticas, auferindo nessa atividade um rendimento mensal de cerca de € 350,00.

A respeito do ponto 33 da decisão de facto – proventos com limpezas domésticas –, alega a apelante que “nenhuma prova firme foi feita quanto a estes rendimentos alegadamente recebidos, realçando-se que os mesmos nunca foram fiscalmente declarados”. O adjetivo “firme” revela que foi produzida prova sobre esta factualidade; apenas entendendo a apelante que tal prova não é suficiente.

Tal prova favorável é indicada pela própria apelante nas alegações de recurso – diversos depoimentos testemunhais e declarações de parte. Perante esta prova favorável, e como acima já foi referido, cabia à recorrente a indicar os “concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida” (art. 640.º, n.º 1, al. a), do Cód. Proc. Civil). A apelante não indicou nenhuma prova que contrarie a convicção do tribunal a quo.

Entendemos não ser significativa a circunstância de estes rendimentos e atividade laboral não serem declarados nem o facto de a empregadora não ter prestado depoimento testemunhal, confessando o pagamento da remuneração (e a omissão de declaração). As regras da experiência não são contrárias à existência de trabalho doméstico não declarado e à não assunção desta realidade por parte dos empregadores.

O mesmo se diga da afirmação da apelante no sentido de não ser “conforme às regras de experiência comum que a autora além de trabalhar no B..., lograsse efetuar todas as limpezas, refeições e tratamentos e limpezas da casa, e, ainda tivesse tempo para ir todos os dias ao ginásio”, para além de, “ao fim-de-semana” fazer "percursos de bicicleta todo-o-terreno com o companheiro e com amigos”, costumando, ainda, “sair e ir dançar para discotecas e bares”. Por um lado, não foi dada por provada toda esta atividade social e de lazer. Por outro lado, resulta dos documentos já acima referidos que o salário base da autora era inferior à remuneração mínima mensal garantida (salário mínimo nacional), o que revela que tinha um horário de trabalho a tempo parcial.

Devemos aqui, também nesta parte, concluir pela improcedência da impugnação da decisão sobre a matéria de facto.


12. Ponto 38 da fundamentação de facto

O tribunal a quo deu por provado o seguinte facto:

38 – Para deslocações em tratamentos médicos consequência do acidente, gastou a autora quantia não inferior a 250,00 euros.

O tribunal a quo, satisfazendo o determinado por este tribunal de recurso, motivou a sua decisão nos seguintes termos:

“Face à gravidade das consequências do acidente para a autora, da documentação junta aos autos constam inúmeras presenças desta em consultas, exames, avaliações médicas e de reabilitação a que compareceu e para as quais se fazia transportar (atendendo à sua incapacidade) pelas testemunhas EE e marido, GG, bem como pelo seu então companheiro, o BB, ou em transportes públicos. Tais deslocações, mesmo que realizadas com a ajuda de amigos ou familiares (acima referidos), têm um custo económico. Face ao elevado número de deslocações em consequência do acidente constantes do processo, apesar de não se ter feito uma prova clara e cabal quanto ao custo efectivo das mesmas, ficou o tribunal convencido de que o seu valor não seria inferior ao pedido e considerado provado (aceitando o tribunal na sua convicção, que tal valor estaria de acordo com as regras da experiência do comum das pessoas, preços dos combustíveis e valores praticados nos meios de transporte públicos – táxis e autocarros)”.

Alega a apelante que “inexiste qualquer indício mínimo de prova do montante ou dos valores concretamente liquidados a título de despesas pela autora por força de deslocações para tratamentos médicos”. Sem razão.

Que autora efetuou deslocações para tratamentos médicos e estas tiveram custos, é incontestável. Apenas se pode discutir o valor destes custos e quem os suportou.

Quanto a estas questões, é bastante a prova e o apelo às regras da experiência invocadas pelo tribunal a quo. Concluímos, deste modo, também nesta parte, pela improcedência da impugnação da decisão sobre a matéria de facto.


13. Ponto 39 da fundamentação de facto

O tribunal a quo deu por provado o seguinte facto:

39 – Em consequência do acidente perdeu toda a roupa que usava naquele momento, com um custo de cerca de 375,00 euros.

O tribunal a quo, satisfazendo o determinado por este tribunal de recurso, motivou a sua decisão nos seguintes termos:

“[A]s consequências do acidente para a autora foram graves, com evacuação médica urgente para o hospital, face ao seu estado clínico. Para além dos danos imediatos que ocorrem no momento do acidente, é sabido que, em tais casos, a menor das preocupações dos assistentes de emergência médica é para com as peças de roupa dos acidentados, que rasgam, rompem e inutilizam para proceder aos necessários actos de intervenção de socorro. Face ao estado clínico da autora, é de aceitar que assim tenha acontecido, ficando o tribunal convicto de que, perante a gravidade dos acontecimentos, terá a autora perdido (por ficar inutilizada) todas as peças de roupa que então vestia (sendo que se aceitou também o seu valor, pelo modo acima já referido, por ser um valor corrente no conjunto de vestuário habitualmente usado em público, valor este, aliás, que não se contraditou com quaisquer outros factos que não a mera impugnação genérica)”.

Alega a apelante que “nenhuma prova se acha junta ou produzida que comprove por qualquer meio qual a roupa que a demandante trazia, se calças se saia, se vestido... se botas ou sandálias... se a mesma perdeu toda ou parte ou nenhuma dessa roupa”. Acrescenta a apelante “que se toma por altamente improvável não se afigurando de acordo com as regras de experiência comum que uma trabalhadora com um salário modesto envergasse num dia em que se dirigia para o trabalho roupas de valor superior ao salário mensal auferido pelas suas funções de repositora de loja”. Mais uma vez, sem razão.

O raciocínio desenvolvido pela apelante é desprovido de lógica. A ser acolhido, teríamos de concluir que as pessoas desempregadas (ou sem rendimentos) circulam despidas pela rua.

Já a fundamentação da decisão de facto apresentada pelo tribunal a quo é coerente e sustentada nos restantes factos dados por provados, aqui tomados como factos instrumentais na prova do facto referido no transcrito ponto 39. Concluímos assim, igualmente, pela improcedência da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, também nesta parte.


14. Ponto 40 da fundamentação de facto

O tribunal a quo deu por provado o seguinte facto:

40 – Ainda em consequência do acidente, a autora tem necessidade de prótese transtibial, de dois em dois anos, com um custo entre 5.500 e 7.000 euros por cada prótese.

O tribunal a quo, satisfazendo o determinado por este tribunal de recurso, motivou a sua decisão nos seguintes termos:

“Tais factos (e valores), constam do “Relatório dos Impactos dos Acidentes na Funcionalidade e das Necessidades de Reabilitação”, efetuado pelo “Centro de Reabilitação ...” (CRPG), a fls. 303 e ss. [cfr. o relatório junto em 8 de fevereiro de 2018, com a referência 17711496].

Também apenas genericamente impugnados pela parte contrária, não se tendo efetuado prova contrária, entendeu o tribunal, na sua convicção, aceitar tal relatório como bom. É conhecida a notoriedade do CRPG no contributo que tem dado a tribunais e outras instituições para reabilitação profissional de acidentados, sendo considerada, também ela, uma instituição credível e, como tal, repetindo, aceite por este tribunal na formação da sua convicção.

Tal como, aliás, se refere naquele relatório e é comum a quaisquer peças mecânicas, “as próteses endosqueléticas para amputação transtibial necessitam de manutenção/revisão pelo menos uma vez por ano e de substituição periódica dos seus componentes (estimando-se em cerca de seis meses para o interface, dois meses para o revestimento cosmético e de dois anos para os restantes elementos). As necessidades de substituição, manutenção/reparação não devem ser entendidas como de carácter obrigatório, mas sim como expectáveis e sempre precedidas de uma avaliação da afetiva necessidade”.

Entende a apelante que se “impunha considerar que indemnização arbitrada para aquisição de próteses (…) deveria ter ficado relegada para incidente de liquidação, sob pena de se verificar um claro enriquecimento indevido da demandante à custa da recorrente”. A apelante sustenta que deveria ter sido julgado provado:

“40 – Ainda em consequência do acidente, a autora terá necessidade de adquirir prótese transtibial, a liquidar posteriormente”.

Começamos a análise desta impugnação por sinalizar que o tribunal recorrido não decidiu que a autora irá necessitar de despender qualquer quantia na aquisição de próteses; apenas decidiu que a autora irá necessitar de tais próteses – podendo, por exemplo, beneficiar da sua atribuição gratuita a coberto de um apoio social. No entanto, a apelante admite que “a autora terá necessidade de adquirir prótese”. Considerando a proibição da reformatio in mellius, dada a vinculação deste tribunal ao objeto do recurso, assim deverá ser interpretado o enunciado impugnado, admitindo-se como certo que, ao menos parcialmente, a autora poderá ter de vir a suportar os custos das sucessivas próteses utilizadas.

Posto isto, afigura-se-nos que a questão suscitada pela apelante é de direito, e não de facto. No ponto impugnado, o tribunal a quo não afirma que o custo descrito será suportado pela autora, como adquirente, por terceiro ou pelo fornecedor (a coberto de uma qualquer garantia prestada).

A fundamentação da decisão de facto apresentada pelo tribunal a quo é coerente e sustentada nos meios de prova invocados. Concluímos assim pela improcedência da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, também nesta parte, sem prejuízo da ulterior apreciação da necessidade de fixação da indemnização, respeitante à aquisição de próteses, em incidente pós-decisório de liquidação.


15. Ponto 41 da fundamentação de facto

O tribunal a quo deu por provado o seguinte facto:

41 – Bem como de prótese transtibial de banho, de dois em dois anos, com um custo entre 2.500 e 3.500 euros por cada prótese;

O tribunal a quo motivou a sua decisão nos mesmos termos em que o fez na decisão do ponto 40 dos factos provados.

A apelante motivou a sua apelação nos mesmos termos em que o fez na impugnação da decisão do ponto 40 dos factos provados. A apelante sustenta que deveria ter sido julgado provado:

“41 – Bem como terá eventual necessidade de prótese transtibial de banho, a liquidar posteriormente”.

Vale aqui o que já acima referimos, a propósito da impugnação da decisão do ponto 40 dos factos provados. A fundamentação da decisão de facto apresentada pelo tribunal a quo é coerente e sustentada nos meios de prova invocados. Concluímos, pois, pela improcedência da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, também nesta parte, sem prejuízo da ulterior apreciação da necessidade de fixação da indemnização, respeitante à aquisição de próteses, em incidente pós-decisório de liquidação.


16. Ponto 43 da fundamentação de facto

O tribunal a quo deu por provado o seguinte facto:

43 – Para aplicação das próteses e/ou reparações das mesmas, são necessários interface de silicone de 6 em 6 meses, encaixe, que deve ser substituído de 2 em 2 anos, estrutura tubular, que deve ser substituído de 2 em 2 anos, pé protésico, que deve ser substituído de 3 em 3 anos, sistema de trancador, que deve ser substituído de 2 em 2 anos e revestimento cosmético, devendo ser considerado uma substituição anual, tudo com um custo, tendo em consideração a esperança média de vida, num valor de cerca de 147 mil euros.

O tribunal a quo motivou a sua decisão nos mesmos termos em que o fez na decisão do ponto 40 dos factos provados.

A apelante motivou a sua apelação nos mesmos termos em que o fez na impugnação da decisão do ponto 40 dos factos provados. A apelante sustenta que deveria ter sido julgado provado:

“43 – Para aplicação das próteses e/ou reparações das mesmas, poderão revelar-se necessárias intervenções ou substituições nas interfaces de silicone, encaixes, estruturas tubulares, pé protésico, sistema de trancador, revestimento cosmético ou outros, a liquidar posteriormente”.

A fundamentação da decisão de facto apresentada pelo tribunal recorrido não se encontra totalmente sustentada nos meios de prova invocados. Não encontramos no relatório do Centro de Reabilitação ..., nem a necessária substituição dos componentes protésicos referidos com a periodicidade indicada, nem o seu custo provável.

O que se diz neste relatório é, apenas, conforme transcrito pelo tribunal a quo, que “[a]s próteses endosqueléticas para amputação transbial necessitam de manutenção/revisão pelo menos uma vez por ano e de substituição periódica dos seus componentes (estimando-se em cerca de seis meses para o interface, dois meses para o revestimento cosmético e de dois anos para os restantes elementos). As necessidades de substituição, manutenção/reparação não devem ser entendidas como de carácter obrigatório, mas sim como expectáveis e sempre precedidas de uma avaliação da afetiva necessidade” – sublinhado nosso. Dizer isto e dizer, como se diz na sentença, que um componente “deve ser substituído” e que o custo de manutenção e de substituição de elementos da prótese é de cerca de 147 mil euros – nunca se esclarecendo qual é valor de esperança média de vida à nascença considerado –, não é dizer o mesmo.

O valor destes componentes pode, sim, ser encontrado no orçamento junto aos autos com o requerimento de 30 de março de 2023 (ref. 45180038), produzido por D..., L.da. Regista tal orçamento os seguintes valores:

Ora, para além de os valores constantes deste documento não terem sido confirmados, designadamente, por meio de prova pericial, subsiste a questão da efetiva necessidade de substituição dos componentes, com a exata periodicidade referida no relatório do Centro de Reabilitação ..., como, aliás, é no mesmo alertado.

Acresce que se constata que a substituição de alguns componentes tem uma periodicidade igual ou superior à periodicidade da aquisição de uma nova prótese – de dois em dois anos. Não é seguro dizer-se que é necessária, por exemplo, a substituição de um “encaixe” de dois em dois anos, quando de dois em dois anos já deverá ocorrer a aquisição de uma nova prótese. Esta aparente duplicação também impossibilita que, desde já, se possa dar como provada uma quantia certa, como correspondendo ao custo das substituições parcelares futuras.

Justifica-se, pois, por este motivo, alterar a decisão sobre o ponto 43 do leque dos factos provados, passando este a dispor:

43 – A regular utilização das próteses impõe a sua (i) manutenção regular, bem como, dependente da intensidade do seu uso, a periódica substituição da (ii) interface de silicone, do (iii) encaixe, da (iv) estrutura tubular, do (v) pé protésico, do (vi) sistema de trancador e do (vii) revestimento cosmético.


17. Conclusão sobre a impugnação da decisão de facto e de conhecimento oficioso

Em resultado da reapreciação da prova produzida, altera-se o ponto 43 da fundamentação, nos termos imediatamente acima exarados.

No mais, sem prejuízo da acima decidida retificação do ponto 30 da decisão de facto, é mantida a decisão de facto proferida pelo tribunal a quo, improcedendo a sua impugnação.

Análise dos factos e aplicação da lei

São as seguintes as questões de direito parcelares a apreciar:
1. Do recurso independente
1.1. Responsabilidade da apelante pela liquidação dos danos sofridos
1.2. Culpa da lesada
1.3. Liquidação da indemnização a arbitrar à autora AA
1.3.1. Danos não patrimoniais
1.3.2. Lucros cessantes
1.3.3. Danos emergentes futuros
1.3.4. Pagamento de juros moratórios
1.4. Direito do autor BB a uma indemnização
1.4.1. Danos no veículo do demandante
1.4.2. Danos não patrimoniais próprios
1.5. Direito do Instituto da Segurança Social, I.P.
2. Do recurso subordinado
2.1. Danos não patrimoniais
2.2. Dano biológico
3. Responsabilidade pelas custas


1. Do recurso independente

Confirmada a decisão sobre a matéria de facto relevante, cabe agora verificar o acerto do julgamento de mérito (de direito). Começaremos pela apreciação do recurso independente.


1.1. Responsabilidade da apelante pela liquidação dos danos sofridos

Nos termos do disposto no art. 483.º do Cód. Civil, “Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem (...) fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”. Os pressupostos dos quais depende o nascimento do direito a uma indemnização na esfera jurídica do lesado são, assim: o facto voluntário; o nexo de adequação causal; a ilicitude; a culpa; o dano. Sob o prisma processual, estes requisitos assumem a natureza de causa de pedir (de natureza complexa), devendo, por regra, ser alegados e provados os factos que os substanciam.

Deixando de lado o acessório, e entrando diretamente no centro do litígio, resulta dos factos provados que o acidente dos autos ocorreu porque, estando o veículo até aí conduzido pela autora parado na berma da autoestrada – ocupando ainda parcialmente a faixa de rodagem, face à pequena largura da berma –, e encontrando‑se esta apeada junto à sua traseira – para retirar o triângulo de pré-sinalização de perigo (art. 88.º do Cód. Estrada) –, o condutor do veículo segurado na ré embateu na demandante e, de seguida, no automóvel desta. O condutor do veículo abalroante conduzia distraído do demais trânsito e, mercê dessa distração, não se apercebeu da presença do veículo parado e da autora, que se encontrava na traseira do mesmo.

Este comportamento encerra um perigo evitável, que se concretizou no caso dos autos, sendo, pois, censurável. É, ainda, um comportamento ilícito − cfr. os artigos 11.º. n.º 3 (“O condutor de um veículo não pode pôr em perigo os utilizadores vulneráveis.”), 13.º, n.º 1 (“A posição de marcha dos veículos deve fazer-se pelo lado direito da faixa de rodagem, conservando das bermas ou passeios uma distância suficiente que permita evitar acidentes.”) e 24.º, n.º, 1 (“O condutor deve regular a velocidade de modo a que, atendendo à presença de outros utilizadores, em particular os vulneráveis, às características e estado da via e do veículo, à carga transportada, às condições meteorológicas ou ambientais, à intensidade do trânsito e a quaisquer outras circunstâncias relevantes, possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente”), todos do Código da Estrada.

Pelo exposto, o acidente encontra-se suficientemente caracterizado nos factos provados para se poder concluir pela culpa do condutor do veículo segurado na ré, sendo, por conseguinte, inquestionável a responsabilidade da apelante, nos limites adiante analisados.


1.2. Culpa da lesada

Insiste a apelante que a autora contribuiu causalmente para a ocorrência do sinistro, isto é, que existe culpa da lesada (art. 570.º do Cód. Civil). Sem razão.

A autora teve o comportamento adequado à situação de crise em que se viu envolvida, com a súbita avaria da sua viatura. Encostou o mais possível à berma, onde conseguiu que esta viatura se imobilizasse. Dirigiu-se para a sua traseira, a fim de retirar o triângulo de pré-sinalização – tendo sido embatida quando já se encontrava atrás da viatura. Nada há apontar a este comportamento (cfr. os arts. 87.º e 88.º do Cód. da Estrada).

A ré discorre sobre factos não provados – como a possibilidade de a autora acionar as luzes da sua viatura, a circunstância de ter parado numa curva de “reduzida visibilidade”, o facto de não ter atentado no trânsito quando saiu da sua viatura e no percurso que realizou até à sua traseira, o facto de a autora e a sua viatura “aparecerem subitamente” na faixa de rodagem ou o facto de a autora estar a “deambular” pela faixa de rodagem. São juízos especulativos e irrelevantes.

A apelante alega que o facto de a autora não usar colete refletor é relevante e que, “não fora o esquecimento da autora e seguramente o condutor do GE teria avistado a sua presença na via”. Também sem razão.

O colete refletor, como o nome indica, permite refletir a luz, devolvendo ao condutor cuja viatura o ilumine esta mesma radiação luminosa. Este efeito ocorre durante a noite, mas não durante o dia, altura em que ocorreu o acidente dos autos. Não estando o dia escuro, a radiação luminosa projetada pelas luzes médias das viaturas dissipa-se na radiação da luz solar. No período diurno, e salvo quando a visibilidade é reduzida, as luzes das viaturas servem mais para serem vistas do que para permitirem ver.

E não se diga que o colete podia, então, refletir a luz solar. É que esta luz nele incidia do lado oposto, não sendo a autora mais do que um visível vulto escuro (nada refletindo), quer usasse colete, quer não. Com efeito, o acidente dá-se às 16,50 horas, ocorrendo o por‑do‑sol às 17.15 horas. Ora, tendo o acidente ocorrido no sentido de este para oeste (de ... para o ...), o sol incidia na autora pelo lado oposto àquele por onde se aproximou a viatura atropelante, nunca podendo a luz solar que incidia na autora ser refletida no sentido do veículo atropelante.

Em conclusão, é carecida de fundamento a invocação de culpa da lesada.


1.3. Liquidação da indemnização a arbitrar à autora AA

A autora formulou e liquidou os seguintes pedidos de indemnização:

O tribunal a quo arbitrou à autora as seguintes indemnizações:

A apelante insurge-se, em especial, contra a avaliação dos danos não patrimoniais, dos lucros cessantes e do dano correspondente ao futuro uso de próteses. São estas, pois, as questões parcelares a dirimir neste capítulo.


1.3.1. Danos não patrimoniais

Na sentença impugnada, foi sustentado que se afigura “justo e equilibrado, face aos elementos e circunstâncias supra expostas nos factos provados (o acidente em si, dores resultantes do mesmo, angústias e incómodos com os tratamentos a que teve de se submeter, quantum doloris, dano estético, repercussão permanente na atividades), fixar tal indemnização na quantia de 100.000,00 euros.

Teve-se assim em consideração, para fixação destas quantias, que a indemnização arbitrada ao autor a título de reparação do dano patrimonial, decorrente da incapacidade funcional de que ficou a padecer, tem incidência não apenas sobre as atividades da vida diária, familiares e sociais, mas também sobre a sua capacidade de trabalho ou de ganho no exercício da atividade habitual”.

Discordando desta avaliação, a apelante defende que “a indemnização a arbitrar a título de danos não patrimoniais não deverá situar-se em montante superior a € 40.000,00”.

O Tribunal a quo e apelante identificaram corretamente os critérios legais a atender na fixação do valor da compensação a arbitrar à autora. Também destacaram acertadamente os principais factos a ter em consideração na avaliação deste dano. Não se justifica, pois, que nos alonguemos em considerações teóricas sobre esta matéria.

Considerando que, em resultado do sinistro, a autora, com 26 anos à data, sofreu ou ficou a padecer de “amputação da perna direita, abaixo do joelho”, défice funcional temporário total de 49 dias, défice funcional temporário parcial de 1212 dias, défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de grau 43/100 pontos, quantum doloris de grau 7/7, dano estético permanente de grau 5/7, repercussão permanente nas atividades desportivas e de lazer de grau 4/7 e repercussão permanente na atividade sexual de grau 4/7, afigura-se-nos que a compensação por danos não patrimoniais arbitrada não é excessiva, considerando o dano sofrido.

Convoca, no entanto, a apelante, como critério a considerar nesta sede, o valor comummente arbitrado pelos tribunais superiores em casos análogos. Este critério é válido, mas não se pode deixar de sublinhar que não há dois casos iguais.

Olharemos, no entanto, para a jurisprudência integralmente publicada produzida pelo Supremo Tribunal de Justiça, durante perto de uma década, tomando por referência os casos nos quais a incapacidade de que a vítima ficou a padecer é semelhante à sofrida pela autora (com uma variação limitada a 10 pontos). Limitaremos a análise aos casos em que as vítimas tinham, na data do sinistro, entre metade e o dobro da idade da demandante.

O resultado obtido é o seguinte:

É, pois, evidente que o valor da indemnização arbitrada não destoa, por excesso, dos valores que o Supremo Tribunal de Justiça vem aplicando nos últimos anos. Em conclusão, nesta parte, a decisão apelada não deve ser revogada (designadamente, por, alegadamente, ser excessiva).


1.3.2. Lucros cessantes

Sobre os danos patrimoniais sofrido pela autora, o tribunal recorrido começou por sublinhar que, em resultado do acidente, a demandante sofreu uma incapacidade total temporária para o trabalho durante 1175 dias – sendo a subsequente incapacidade parcial de 85 dias –, um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 43 Pontos (em 100), e uma incapacidade total do exercício da atividade profissional habitual.

Prossegue o tribunal a quo afirmando que, “[n]o caso concreto, relativamente a tais danos patrimoniais, porque as fórmulas a que habitualmente se fazem referência, nada têm de rigor científico (sendo o único critério legal o que resulta do art. 566.º do Código Civil que consagra a teoria da diferença), é de recorrer a um juízo de equidade e, considerando a idade da vítima bem como o tempo de vida útil previsível e como ponto de partida o seu rendimento mensal (cerca de 1.000,00 euros), tem-se por justo e equilibrado fixar tal perda a título de lucros cessantes na quantia de 350.000,00 euros (que engloba quer a perda de rendimentos ou benefícios durante o período de convalescença em seguida ao acidente quer a posterior perda de capacidade de ganho após alta médica)”.

A apelante contrapõe que a base de cálculo adotada pelo tribunal – uma remuneração de € 1000,00 mensais – está errada, devendo a perda de rendimento ter por base o valor mensal de € 358,43. Neste contexto, sustenta, deve ser abatido ao rendimento obtido o valor dos descontos obrigatórios (impostos e prestações sociais).

Assiste parcialmente razão à apelante. Efetivamente, o valor de base considerado pelo tribunal – € 1000,00 – não tem sustentação nos factos provados. Resultou, sim, provado um rendimento de € 800,00 – pontos 25 e 33 dos factos provados. É este o valor que devemos considerar nos cálculos a efetuar.

Já quanto à necessidade de abatimento de descontos obrigatórios, não resulta dos factos provados que o valor apurado seja ilíquido. Pelo contrário, foi dado por provado que a demandante aufere (obtém) tal valor – € 800,00.

Contesta, ainda, a apelante a metodologia adotada pelo tribunal a quo, afirmando que este “fez tábua rasa dos critérios orientadores da Jurisprudência, não tendo feito um tratamento paritário, no cálculo efetuado, nem sequer aplicando um desconto no valor apurado, fazendo funcionar fatores corretivos no quantum indemnizatório”. Alega que, “resultando do sinistro um dano patrimonial, também não é menos certo que a autora não fica obrigada a impostos, despesas de deslocação e vários outros gastos que a efetiva prestação do trabalho implica”.

Quanto a isto, apenas há a dizer, por ora e por um lado, que, como referido, não se encontra expresso na decisão de facto que o valor auferido considerado é ilíquido. Por outro lado, quanto aos custos de deslocação para o trabalho, é esta uma circunstância de facto sujeita a alegação e prova. Não constando este dado no elenco dos factos provados, não pode agora ser aqui considerado, pois inexiste regra da experiência que imponha que se considere que uma trabalhadora de um supermercado tem que efetuar onerosas deslocações ao seu local de trabalho.

A aferição da necessidade de compensação pela perda da capacidade de ganho fundada na existência de uma incapacidade para o trabalho não pode assentar numa perspetiva estática da atividade laboral ou, se se preferir, na existência de uma situação económica de pleno emprego, estando o lesado já inserido no mercado de trabalho (no topo da carreira com um vínculo por tempo indeterminado). Esta perspetiva não apreende a realidade dinâmica de procura de novo emprego ou de uma promoção. Como é evidente, num mercado de trabalho extremamente competitivo, os melhores empregos tenderão a ser oferecidos aos candidatos que, em abstrato, se apresentam como mais eficientes, isto é, aos candidatos que não revelam qualquer capacidade funcional diminuída. O mesmo se passa, e até com maior gravidade, com a capacidade para prestar trabalho extraordinário remunerado – como ocorre no caso dos autos.

Tem, pois, a autora direito a uma indemnização pelo dano biológico (patrimonial) sofrido, na sua repercussão sobre a capacidade de obtenção de rendimentos do trabalho.

Tratando-se, como se trata, de um dano futuro – mais do que uma simples perda de chance –, justifica-se e impõe-se o recurso à equidade (art. 566.°, n.º 3, do Cód. Civil), informada por critérios de verosimilhança e de probabilidade, considerando as balizas dadas por provadas – como as habilitações da lesada, a natureza da atividade laboral em causa, a remuneração normal dessa atividade, a sua idade (e período normal de vida ativa) e o grau de dano biológico fixado (sobre o recurso à equidade, cfr. o Ac. do STJ de 19-09-2019, proc. 2706/17.6T8BRG.G1.S1). Podemos aceitar que durante perto de mais 40 anos, contados desde a possibilidade de retoma de uma regular atividade laboral (26 de abril de 2018), – isto é, até 26 de abril de 2058, data em que a autora já terá completado 70 anos de idade – a autora poderia realizar trabalho compatível com as suas habilitações (ou com habilitações que, plausivelmente, poderia adquirir), durante 12 meses por ano (acrescidos de subsídios).

Na posse destes critérios, é ajustado arbitrar à autora uma indemnização de € 192.640,00 pelos lucros cessantes sofridos, considerando: 40 anos x 14 meses x 800 x 0,43. A este valor acrescem as perdas sofridas pela autora no período de incapacidade total (cerca de 3 anos), isto é, o valor de € 33.600 (3 anos x 14 meses x 800 x 1), o que perfaz o total de € 226.240,00. No entanto, a este valor, deverá ser abatido o montante que a apelante já tiver pagado à autora a título de indemnização provisória por perda de rendimentos (art. 388.º, n.º 3, do Cód. Proc. Civil).

Esta decisão não exorbita os limites do pedido – não padecendo, por conseguinte, de nulidade (art. 615.º, n.º 1, al. e), do Cód. Proc. Civil) –, já que este foi liquidado pela autora, quanto à perda da capacidade de ganho, em € 375.000,00.

Resta acrescentar que a consideração deste valor para efeitos ressarcitórios não representa um enriquecimento sem causa, por antecipação da totalidade do capital do dano futuro, pois, em contrapartida, também não é considerado o progressivo aumento do valor relativo (em relação à inflação) da remuneração mínima mensal garantida, a normal progressão profissional da autora (que tinha 26 anos na data do sinistro) nem a possível obtenção de um melhor emprego (o que é normal na sua idade, à medida que vai podendo apresentar “experiência profissional”). O mesmo se diga do progressivo aumento da esperança de vida à nascença e da correspondente possibilidade de prolongamento da vida ativa. Afigura-se-nos estéril e artificioso entrarmos aqui em operações aritméticas especulativas e sem qualquer efetiva base científica.


1.3.3. Danos emergentes futuros

O tribunal a quo arbitrou à autora, além do mais, as seguintes indemnizações:

Defende a apelante que, “[n]o caso dos autos, não é possível atender aos danos futuros com próteses e suas reparações, pois que não são previsíveis, nem determináveis, motivo pelo qual a fixação da indemnização correspondente – que não concedermos ser devida – teria que ser remetida para liquidação ulterior (…)”.

A este respeito, resultou provado que:

40 – Ainda em consequência do acidente, a autora tem necessidade de prótese transtibial, de dois em dois anos, com um custo entre 5.500 e 7.000 euros por cada prótese;

41 – Bem como de prótese transtibial de banho, de dois em dois anos, com um custo entre 2.500 e 3.500 euros por cada prótese;

43 – A regular utilização das próteses impõe a sua (i) manutenção regular, bem como, dependente da intensidade do seu uso, a periódica substituição da (ii) interface de silicone, do (iii) encaixe, da (iv) estrutura tubular, do (v) pé protésico, do (vi) sistema de trancador e do (vii) revestimento cosmético.

À luz destes factos, afigura-se-nos incontornável que “a autora tem necessidade” das próteses referidas, bem como da sua manutenção regular, incluindo a substituição periódica de componentes, tal como foi considerado pelo tribunal a quo, não resultando dos factos provados que um terceiro assumirá o seu custo. É previsível o seu dano futuro resultante da sua desvantagem física, quer a autora a decida diminuir, adquirindo as próteses, quer opte por não o fazer.

1.3.3.1. Aquisição de novas próteses

No que respeita à aquisição de novas próteses, o dano é não apenas previsível, como também é mensurável (liquidável). Como é evidente, na posse de uma quantia monetária recebida para eliminação de um dano material, um lesado pode não a afetar a esta eliminação, gastando-a na satisfação de outra necessidade ou poupando-a, optando por continuar a suportar o dano material – sendo certo que já se encontra ressarcido do seu dano patrimonial. No entanto, também é evidente que tal reafectação não afasta a existência do dano e a aptidão da prestação em dinheiro para reintegrar a posição jurídica do lesado (isto é, indemnizá-lo).

Se a autora decidir, na posse da indemnização, sacrificar o seu bem-estar e não adquirir novas próteses – poupando o seu custo e afetando essa poupança à satisfação de necessidades que entender serem mais prementes –, não deve ser a seguradora a beneficiar sem causa deste sacrifício.

Na data do encerramento da discussão em primeira instância (25 de outubro de 2023), a autora tinha cerca de 36 anos de idade. Considerando a esperança de vida à nascença das mulheres portuguesas divulgada pelo Instituto Nacional de Estatística, é previsível que viva até perto dos 84 anos. Isto significa que tem, previsivelmente, 48 anos de vida à sua frente.

Podemos assim concluir, atendendo aos factos constantes dos pontos 40 e 41 dos factos provados, que o dano futuro da autora, na parte agora em apreciação, é de € 150.000,00, no que respeita à aquisição de próteses de uso diário (48 / 2 x 6.250,00), e de € 72.000,00 no que respeita à aquisição de próteses de banho (48 / 2 x 3000).

Não se poderá ir mais além, pois não resulta dos factos provados que aos valores unitários considerados acresça o IVA – menos ainda que a taxa a que é liquidado este imposto seja de 23%, como sustenta a autora (cfr. o ponto 2.6 da Lista I anexa ao CIVA e o art. 18.º, n.º 1, al. a), do mesmo código).

Não consideramos aqui o período decorrido entre o sinistro e a referida data, pois os gastos suportados no seu decurso são pretéritos, pelo que cabia à autora provar a sua atual existência, o que não logrou fazer.

Também aqui, a aceitação do valor total apurado para efeitos ressarcitórios não representa um enriquecimento sem causa, por antecipação da totalidade do capital do dano futuro, pois, em contrapartida, também não é considerada a inflação, que tende a ser sempre claramente superior aos juros que remuneram os depósitos a prazo – por exemplo, de acordo com as informações estatísticas mais recentes disponíveis nesta data, em outubro de 2024, o juro remuneratório de depósitos com prazo entre 1 a 2 anos era de 1,76 %, com tendência de descida, sendo a taxa de inflação homóloga (IPC) em dezembro de 2024 de 3%.

1.3.3.2. Manutenção das próteses e substituição de componentes

Pelo que respeita à manutenção regular das próteses e à substituição periódica dos seus componentes de desgaste mais rápido, e embora a necessidade de realização destas atividades tenha resultado provada, não se apurou com segurança a sua periodicidade nem o seu custo.

Dispõe o n.º 2 do art. 564.º do Cód. Civil que, “na fixação da indemnização pode o tribunal atender aos danos futuros, desde que sejam previsíveis”. É o caso. O valor desta indemnização não é atualmente certo, mas não se concebe que a autora tenha de recorrer a juízo, semestral ou anualmente – instaurando um novo incidente pós-decisório de liquidação −, para receber os € 500,00 gastos nesse período, por exemplo, durantes os próximos 48 anos, nem a ré pode ser arrastada para tribunal a cada nova fatura/recibo, por exemplo, que a demandante liquide e lhe apresente. A decisão final deverá operar a maior concretização possível da condenação na satisfação desta indemnização.

Em caso de não satisfação voluntária da reclamação da autora, por parte da ré, retém aquela a faculdade de recorrer ao incidente pós-decisório de liquidação.


1.3.4. Pagamento de juros moratórios

Nas conclusões RRRR e SSSS, a apelante suscita duas questões sobre a indemnização pelo dano moratório: a inexistência de pedido inicial de pagamento de juros moratórios sobre a indemnização ulteriormente liquidada; errada fixação do momento a partir do qual se contam os juros moratórios.

É destas questões que agora trataremos.

1.3.4.1. Juros devidos sobre a indemnização ulteriormente liquidada

Alega a apelante que “a autora, na petição inicial, não pediu a condenação em juros de mora, no que diz respeito aos danos cuja ampliação ou liquidação remeteu para momento posterior à sentença”, pelo que, no seu entender, não podia a sentença condená‑la no seu pagamento. A interpretação do pedido feita pela apelante não corresponde ao sentido que do respetivo enunciado retira um declaratário normal.

O pedido formulado tem o seguinte teor:

“Nestes termos e nos melhores de Direito, deve a presente ação ser julgada totalmente provada e consequentemente, ser a Ré condenada no pagamento à autora da quantia global líquida de 950.375,00 €, acrescida de juros de mora vincendos à taxa legal, até efetivo e integral pagamento;

E ainda na indemnização que por força dos factos alegados nos artigos 258 a 318.º vier a ser fixada em ampliação do pedido ou em liquidação posterior”.

Ulteriormente, a autora ampliou o pedido nos seguintes termos:

Nestes termos e nos melhores de Direito que V/Exª mui doutamente suprirá, deve o presente incidente de liquidação ser julgado provado e procedente, condenando-se a R. a pagar ao A. a quantia global de 1.496.412,70 euros acrescida de juros de mora à taxa legal desde a data da citação até integral pagamento.

Considerando que, no pedido, a autora não discrimina o objeto da indemnização requerida, não formulando pedidos distintos, em função do dano a ressarcir, rapidamente se conclui que pretende que lhe seja abonada uma quantia global, acrescida juros moratórios. Relegando a demandante para momento ulterior a liquidação definitiva desta quantia global, tal estratégia processual não afasta a conclusão de que sobre ela pede que sejam calculados juros moratórios.

De todo o modo, a possibilidade de relegar para momento ulterior a afirmação e liquidação dos danos moratórios não está vedada ao demandante (art. 265.º, n.º 2, do Cód. Proc. Civil). Note-se que, no caso dos autos, a autora apesentou oportunamente um “incidente de liquidação com ampliação do pedido” (requerimento ref. 45159357; ref. Citius 35220295), e não apenas de liquidação, nele pedindo juros moratórios pela totalidade da quantia peticionada.

Vale, pois, aqui a jurisprudência uniformizada pelo Supremo Tribunal de Justiça, de acordo com a qual, “se o autor não formula na petição inicial, nem em ulterior ampliação, pedido de juros de mora, o tribunal não pode condenar o réu no pagamento desses juros” – cfr. o AUJ do STJ n.º 9/2015, de 14 de maio de 2015. Tendo a autora formulado o pedido de pagamento de juros em ulterior ampliação, o tribunal não só podia, como devia ter condenado, como condenou, a apelante nos juros moratórios que teve por devidos.

Em suma, já nesta instância, não está vedado ao tribunal fixar juros moratórios (efetivamente pedidos) sobre o valor da totalidade da indemnização – ainda que podendo adotar termos a quo distintos sobre cada indemnização parcelar.

1.3.4.2. Momento a partir do qual se contam os juros moratórios

Sustenta a apelante que, [n]o que se refere ao pagamento de danos morais e bem ainda € 195.000,00 para próteses de uso diário e € 103.000,00 para próteses de banho, € 2.200,00 para canadianas, bancos de banho e barras de duche bem como € 147.000,00 não se pode conceber que os mesmos sejam igualmente passíveis de condenação em juros a contar da citação”. Vejamos se com razão.

Dispõe o art. 805.º, n.º 3, do Cód. Civil (momento da constituição em mora) que

“3. Se o crédito for ilíquido, não há mora enquanto se não tornar líquido, salvo se a falta de liquidez for imputável ao devedor; tratando-se, porém, de responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco, o devedor constitui-se em mora desde a citação, a menos que já haja então mora, nos termos da primeira parte deste número”.

Cobra aqui relevo convocar a jurisprudência uniformizada pelo AUJ do STJ n.º 4/2002, de 9 de maio 2002: “Sempre que a indemnização pecuniária por facto ilícito ou pelo risco tiver sido objeto de cálculo atualizado, nos termos do n.º 2 do artigo 566.º do Código Civil, vence juros de mora, por efeito do disposto nos artigos 805.º, n.º 3 (interpretado restritivamente), e 806.º, n.º 1, também do Código Civil, a partir da decisão atualizadora, e não a partir da citação”.

Ora, em parte alguma da sentença apelada é operada uma atualização da indemnização pelos danos futuros. Pelo contrário, na sua fixação, o tribunal a quo serve‑se dos valores inscritos num relatório elaborado muitos anos antes do encerramento da discussão em primeira instância. Daqui resulta que nada há a apontar no termo a quo fixado para a contagem dos juros moratórios devidos pelo atraso na liquidação destes danos.

No que respeita à indemnização por danos não patrimoniais, nada nos permite concluir que o tribunal recorrido retrotraiu a sua avaliação à data da citação. Do teor da sentença depreende-se, sim, que esta indemnização foi fixada tendo em consideração o valor que atualmente se entende ser adequado à compensação deste tipo de dano.

Devemos, pois, considerar que o tribunal a quo formulou um juízo atualizado, acima confirmado, sobre o valor a atribuir à compensação por danos não patrimoniais. É relevante a data da decisão final atualizadora para efeitos de início do cálculo de juros.

Deve, pois, neste ponto merecer provimento a apelação.


1.4. Direito do autor BB a uma indemnização

O autor formulou e liquidou os seguintes pedidos de indemnização:

O tribunal a quo arbitrou ao autor as seguintes indemnizações:

Insurge-se a apelante contra a sua condenação no pagamento destas duas indemnizações ao autor BB. Em causa estão os danos patrimoniais respeitantes à destruição do seu veículo e os danos não patrimoniais próprios.


1.4.1. Danos no veículo do demandante

No que toca à indemnização pelos estragos sofridos pelo veículo do autor, a impugnação da sentença assenta na alteração da decisão sobre a matéria de facto – com vista à exclusão ou limitação da responsabilidade do condutor do veículo segurado. Ora, não tendo sido alterada, nesta parte, a decisão do tribunal a quo, não pode a apelação deixar de improceder, quanto a esta questão, devendo ser mantida a sentença impugnada.


1.4.2. Danos não patrimoniais próprios

O autor BB, afirmando viver em união de facto com a autora – na data do sinistro e da dedução da sua petição inicial (23 de julho de 2015) –, pediu uma indemnização nos termos previstos no n.º 1 do art. 496.º do Cód. Civil (danos não patrimoniais), por ter, alegadamente, experimentado grande “tristeza, angústia e sofrimento”, em resultado do acidente sofrido pela autora.

Sobre esta pretensão, resultou provado:

51 – O BB vivia com a AA em união de facto, união que veio a cessar algum tempo após o acidente;

52 – Após o acidente enquanto se manteve a união de facto entre ambos, o BB apoiava e ajudava a AA nos tratamentos e deslocações necessárias para esse efeito;

53 – O BB ficou abalado psicologicamente com o acidente sofrido pela sua então companheira, o que lhe causou profundo desgosto;

Sobre este pedido, pode ler-se na fundamentação da sentença impugnada, em especial:

“Sabendo-se que o autor, à data dos factos, vivia com a autora em união de facto, contribuiu e apoiou a autora para a sua reabilitação, sofrendo ele próprio com tal situação e sequelas, considerando-se reproduzidas as asserções acima expostas, considera-se justo e equilibrado fixar tal indemnização na quantia de 20.000,00 euros”.

Entende a apelante que “a situação decorrente dos factos provados nos pontos 51, 52 e 53, invocada na fundamentação da sentença, é insuficiente para justificar um pedido de danos morais”, “à luz do firmado no AUJ do STJ n.º 6/2014, de 9 de janeiro de 2014”.

É hoje amplamente aceite a ressarcibilidade dos danos não patrimoniais causados a uma pessoa em consequência de lesão causada a outra pessoa. Na jurisprudência, veja-se o AUJ do STJ n.º 6/2014, de 9 de janeiro de 2014: “Os artigos 483.º, n.º 1 e 496.º, n.º 1 do Código Civil devem ser interpretados no sentido de abrangerem os danos não patrimoniais, particularmente graves, sofridos por cônjuge de vítima sobrevivente, atingida de modo particularmente grave”. Na doutrina, veja-se Rute Teixeira Pedro, «Os danos não patrimoniais (ditos) indiretos: uma reflexão ratione personae sobre a sua ressarcibilidade», in Responsabilidade Civil: Cinquenta Anos em Portugal, Quinze Anos no Brasil, 2017, Instituto Jurídico da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, p. 239 e segs., e Maria Manuel Veloso, «Danos não patrimoniais», in Comemorações dos 35 Anos do Código Civil e dos 25 Anos da Reforma de 1977, Volume III – Direito das Obrigações, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, p. 495 e segs.. Está aqui em causa, por exemplo, não apenas o sofrimento de uma pessoa com a morte de outra, mas também o sofrimento daquela por ver uma pessoa à qual está profundamente ligada (a que sofreu a lesão corporal) sofrer intensamente em resultado do facto ilícito: é o caso, por exemplo, dos pais que sofrem ao verem o filho profundamente angustiado e deprimido depois de perder a visão, em resultado do sinistro.

No caso dos autos, sabemos que o autor “ficou abalado psicologicamente com o acidente sofrido pela sua então companheira”. Estamos claramente perante um dano não patrimonial. No entanto, temos que admitir que o autor não seria humano se não ficasse abalado. Ou seja, qualquer pessoa – seja um familiar, seja um vizinho, seja um amigo que contacte com alguma regularidade com a vítima – fica psicologicamente abalado com a tragédia sofrida pela autora, pessoa sua familiar, vizinha ou amiga.

Também ficou provado que tal tragédia “causou profundo desgosto” ao demandante. Este dano surge como mais relevante, para o preenchimento do conceito de particular gravidade, ao qual se recorre no citado AUJ do STJ n.º 6/2014.

No entanto, não consta dos factos provados que o autor tenha padecido ou ficado a padecer de doença ou de transtorno do foro psíquico. Parece-nos, pois, que o profundo desgosto sofrido pelo autor, não tendo sido particularmente grave na sua intensidade – a ponto de lhe ser diagnosticada uma profunda depressão, por exemplo (e considerando os factos provados) –, só poderia revestir tal gravidade em razão da sua duração. Assim seria de considerar se o contexto que leva a uma angústia permanentemente presente for mantido ou for previsível que venha a ser mantido – isto é, se for mantido um projeto de vida em comum com a vítima direta do acidente.

Ora, o autor já não vive com a autora. As causas desta separação não constam do elenco dos factos provados, pelo que não há que sobre elas especular. Apenas podemos tomar em consideração a realidade objetiva, tal como ela é dada por provada.

E a realidade é esta: a autora, para além de ter experimentado um sofrimento gravíssimo, tem de viver quase 60 anos (considerando a esperança média de vida à nascença atual) sem uma perna, com tudo o que isto implica – e que escusamos de enunciar. Por esta tragédia, e no estrito cumprimento dos critérios legais, é-lhe devida uma indemnização de € 100 000,00.

Já o autor, que não sofreu uma fração daquilo que a autora sofreu, e que deixou de ter de suportar indiretamente os danos da autora, por ter deixado de com ela conviver “algum tempo após o acidente”, obteria, de acordo com a decisão apelada, uma indemnização correspondente a 1/5 do valor arbitrado à vítima do sinistro. Este resultado choca.

A autora teve uma alteração da sua vida para sempre e em permanência, durante décadas. O autor sofreu uma alteração limitada, sem que se possa mesmo afirmar, à luz dos factos provados, que tenha comprometido algum dos seus projetos ou ambições familiares ou profissionais futuras.

Em suma, o dano experimentado pelo autor não é particularmente grave, nem em razão da sua intensidade, nem em razão da sua duração.

Em consequência, procede nesta parte a apelação da ré.


1.5. Direito do Instituto da Segurança Social, I.P.

No que respeita à condenação da apelante no pedido formulado pelo Instituto da Segurança Social, I.P., a impugnação da sentença assenta na alteração da decisão sobre a matéria de facto – com vista à exclusão ou limitação da responsabilidade do condutor do veículo segurado. Ora, não tendo sido alterada, nesta parte, a decisão do tribunal a quo, não pode a apelação deixar de improceder, quanto a esta questão, devendo ser mantida a sentença impugnada.


2. Do recurso subordinado


2.1. Danos não patrimoniais

A autora impugnou subordinadamente a sentença, sustentando ser-lhe devida uma indemnização de € 175.000.000,00 pelo dano não patrimonial. Já acima nos pronunciámos sobre a avaliação deste dano tendo concluído que o valor médio das indemnizações arbitradas pelo Supremo Tribunal de Justiça entre 2017 e 2024, foi, para casos com a proximidade aí explicitada, de € 101.333,00, para concluirmos pela falta de fundamento da invocação, pela apelante seguradora, da excessividade da indemnização atribuída, a este título, pelo tribunal recorrido.

No entanto, o acima referido valor médio não é o valor que se impõe. Estando aqui em causa uma indemnização destinada a ressarcir os danos não patrimoniais, ou seja, aqueles danos que não são susceptíveis de avaliação pecuniária, por se reportarem a valores de ordem espiritual, ideal ou moral, mas que podem ser compensados mediante a atribuição de um montante pecuniário – cfr. Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 6.ª Edição, Almedina, págs. 497 e 502 –, tal montante compensatório, em conformidade com o disposto no n.º 6 do art. 496.º do Cód. Civil e no art. 494.º do mesmo diploma, para o qual aquele primeiro remete, é fixado com recurso à equidade, tendo em atenção o grau de culpabilidade do agente, a sua situação económica e a do lesado, e as demais circunstâncias do caso. Como é referido no Ac. deste TRP de 21-03-2024 (2073/20.0T8VFR.P1), o dano não patrimonial «(…) consiste nas manifestações psíquico-somáticas negativas do trauma na pessoa do lesado e na repercussão dessas manifestações nos seus sentidos, sentimentos, projectos e projecções. Por isso, compreende as dores intensas prolongadas e para continuarem no tempo, os incómodos, as preocupações e as angústias com a recuperação, o tempo de vida consumido na recuperação, a estadia em ambiente hospitalar, a sujeição a cirurgias, consultas e tratamentos, o prejuízo estético e de afirmação pessoal decorrente da amputação do membro inferior, o rompimento de um plano de vida e a necessidade de refundar o modo de vida e se adaptar a novas circunstâncias adversas, a perda da profissão habitual e da auto-estima que o exercício de uma profissão desempenha. (…)» [1].

Ora, no caso em análise, com relevo para a determinação, com base na equidade, da compensação a atribuir à autora pelos danos não patrimoniais decorrentes do acidente de que foi vítima, há que considerar as lesões graves sofridas pela autora (ponto 20. dos factos provados e sequelas decorrentes, referidas no ponto 22. – défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de grau 43/100 pontos, quantum doloris de grau 7/7, dano estético permanente de grau 5/7, repercussão permanente nas atividades desportivas e de lazer de grau 4/7 e repercussão permanente na atividade sexual de grau 4/7), a sua sujeição a diversos tratamentos e intervenções cirúrgicas, tendo-lhe, além do mais, sido amputada a perna direita, abaixo do joelho, no Hospital ... (ponto 21. dos factos provados), para onde foi transportada no dia do acidente –13 de novembro de 2014 – e de onde teve alta no dia 23 de dezembro de 2014 (internamento de 1 mês e 10 dias), ainda com os fixadores externos e deslocando-se em cadeira de rodas, com consultas externas agendadas de cirurgia plástica, ortopedia, Psicologia e psiquiatria.

A autora foi submetida a mais duas intervenções cirúrgicas (uma em 19 de março de 2015 para extração dos fixadores externos, e outra em janeiro de 2018, na sequência de infeção no coto); teve que efetuar tratamentos de fisioterapia e teve acompanhamento psicológico – como resulta do relatório pericial do INMLCF IP a que é feita referência no ponto 22. dos factos provados.

Das sequelas e afetações de que a autora ficou a padecer, caraterizadas e descritas nos pontos 22. e 23. dos factos provados, resulta claramente demonstrada a dor física e psicológica sofrida pela autora com as lesões sofridas no acidente, com as intervenções cirúrgicas e tratamentos a que teve que ser submetida, com as sequelas a nível estético, e com o sofrimento inerentes à necessidade e às dificuldades de adaptação à prótese e à nova realidade da sua vida (pontos 36. e 37. e 27. e 29. dos factos provados), face à amputação do membro inferior direito, quando tinha apenas 26 anos de idade, a que acresce o susto sofrido no acidente, em que temeu pela sua vida, e a manutenção de momentos de angústia e sofrimento decorrentes da perda do seu membro inferior (pontos 34. e 35. dos factos provados).

Estamos perante danos não patrimoniais graves e duradouros, pelo que se nos afigura que, de acordo com um juízo de equidade – e sem ofensa da linha condutora da jurisprudência do STJ já referenciada –, é ajustado às concretas circunstâncias do caso, na apreciação casuística que se impõe mas sem ofensa da necessidade de observância, tanto quanto possível, dado que cada caso é único, das compensações atribuídas em caso semelhantes (de resto, em conformidade com o disposto no art. 8.º, n.º 3, do Cód. Civil), a fixação do valor compensatório dos apurados danos não patrimoniais sofridos pela autora em € 130 000,00.


2.2. Dano biológico

Defendeu, ainda, a autora, apelante no recurso subordinado, que “é justo, adequado e proporcional, a fixação da quantia de € 400.000,00 a título de dano biológico”. Esta qualificação do dano é uma novidade. Nem na petição inicial, nem na sentença é feita referência expressa ao “dano biológico”. Percebe‑se, no entanto, que a autora se refere ao dano correspondente à perda de rendimentos resultante do défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 43 pontos.

Veja-se o que a este propósito a autora (apenas) alega na petição inicial (o sublinhado é nosso):

“II – Dos Danos

(…)

174.º – Conforme já resultou alegado, (…) a autora está total e definitivamente incapacitado para o exercício da sua profissão habitual e não se vislumbra que arranje colocação profissional (…).

175.º – Nunca mais auferiu, nem auferirá, quaisquer rendimentos do seu trabalho.

176.º – A autora ambicionava seguir uma carreira profissional no B... (…). (…)

179.º – (…) [E]ra previsível que a autora viesse, a curto prazo, a auferir um salário não inferior a 850,00 euros – salário médio dos portugueses, na atualidade – podendo chegar a gerente de loja, onde podia receber um salário na ordem dos 1.500,00 euros.

180.º – À data do acidente, a autora desempenhava a profissão de repositora de supermercado, em part-time, mas tinha uma atividade – fazia serviços domésticos – pois precisava de dinheiro para a sua vida. (…)

182.º – Nessa outra atividade, a autora auferia um rendimento mensal não inferior a 350,00 €. (…)

184.º – Como, de resto, a autora não pode, nem vai poder, jamais, desempenhar essa sua descrita atividade/profissão,

185.º – E não aferiu, nem auferirá, por essa razão, quaisquer rendimentos desse seu trabalho.

186.º – Como, de resto, terá muita dificuldade, face ao mercado de trabalho atual, não vai poder desempenhar qualquer outra profissão ou atividade, ao longo de toda a sua vida. (…)

188.º – De resto, das lesões sofridas e das sequelas delas resultantes, adveio, para a autora, uma Incapacidade Parcial Permanente Geral entre os 50 e 60 pontos e uma incapacidade de 100,00%, para o exercício da atividade profissional ou de qualquer outra.

189.º – Se não fosse o acidente dos presentes autos, a autora podia trabalhar, exercer a sua atividade profissional até aos 70 anos – tendo em conta o alargamento da idade da reforma e da esperança média de vida. (…)

191.º – Na fixação da indemnização, deve atender-se também aos danos futuros, desde que sejam previsíveis: artigo 564.º, n.º 2, do Código Civil.

192.º – Essa indemnização deve representar um capital que se extinga no fim da vida ativa da lesada e que seja suscetível de lhe garantir, durante ela, as prestações periódicas correspondentes à sua perda de ganho, tendo sempre em conta as tabelas financeiras que têm vindo a ser utilizadas pela Jurisprudência, mas com a correção de que a taxa de juro atualmente praticada pela banca para as operações passivas – com tendência a descer progressivamente – se queda, atualmente, em não mais de 0,03 %, ao ano.

193.º – Tendo em conta a sua idade, o rendimento a considerar – deve ser o salário médio dos portugueses que se situa nos 850,00 euros / mês – e a Incapacidade, para o trabalho, de 100,00%, de que ficou a padecer, deve ser fixada à autora, a este título, a indemnização de 350.000,00 €.”

Afigura-se-nos claro que o dano cujo ressarcimento a autora pede é constituído pelas “prestações periódicas correspondentes à (…) perda d(o) ganho” que teria auferido na “sua atividade profissional até aos 70 anos”. Como é evidente, não interessa o nome que se dá ao dano, mas interessa a sua identificação no pedido. Por exemplo, se um autor alegar (e provar) que a sua viatura ficou parcialmente destruída, mas não reclamar o seu ressarcimento, não pode o tribunal, oficiosamente, arbitrar‑lhe uma indemnização a este título.

Sendo este o dano cujo ressarcimento a autora efetivamente pediu – “prestações periódicas correspondentes à (…) perda d(o) ganho” que teria auferido na “sua atividade profissional até aos 70 anos” –, e independentemente da sua designação dogmática, valem aqui as considerações acima expendidas no ponto 1.3.2. Lucros cessantes. Daqui resulta, sem necessidade de mais considerações, que improcede, nesta parte, o recurso interposto.


3. Responsabilidade pelas custas

O tribunal arbitrou à autora as seguintes indemnizações:

O tribunal arbitrou ao autor as seguintes indemnizações:

O tribunal arbitrou ao Instituto da Segurança Social a seguinte indemnização:

A responsabilidade pelas custas da apelação (recurso independente) cabe à ré apelante, na proporção de 80%, à autora apelada, na proporção de 18%, e ao autor apelado, na porção de 2%, sem prejuízo de apoio judiciário (art. 527.º do Cód. Proc. Civil).

A responsabilidade pelas custas da apelação (recurso subordinado) cabe à autora apelante, na proporção de 95%, e à ré apelada, na proporção de 5%, sem prejuízo de apoio judiciário (art. 527.º do Cód. Proc. Civil).

IV – Dispositivo:

Pelo exposto, na procedência da apelação, acorda-se em alterar os pontos A e B do dispositivo da sentença apelada, passando estes a ter o seguinte conteúdo:

A – Condena-se a ré, A..., S.A., a pagar à autora, AA, as seguintes quantias:

i) a quantia de € 471.065,00 (quatrocentos e setenta e um mil, sessenta e cinco euros), a título de danos patrimoniais, acrescida de juros de mora contados desde a data de citação e até efetivo pagamento, sendo devidos à taxa legal que em cada momento vigorar, através da portaria prevista no art. 559.º do Cód. Civil;

ii) a quantia de € 130.000,00 (cento e trinta mil euros), a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros contados desde a data da presente decisão (atualizadora) e até efetivo pagamento, sendo os juros devidos à taxa legal que em cada momento vigorar, através da portaria prevista no art. 559.º do Cód. Civil;

iii) o montante correspondente ao valor da manutenção regular das próteses e o valor da substituição periódica dos seus componentes, que se venham a revelar necessárias, incluindo o custo das consultas prévias tidas e das declarações clínicas elaboradas com vista à constatação ou documentação desta necessidade, mediante a mera apresentação de documentação bastante pela autora, a liquidar extrajudicialmente ou judicialmente.

A1 – O valor de manutenção ou de substituição de componentes referidas na subalínea iii) deste dispositivo deve ser documentado mediante apresentação de declaração médica ou de profissional de saúde especialista, com identificação da autora como beneficiária, acompanhada de orçamento (com não mais de dez anos desde a data de elaboração) ou nota de encomenda.

A2 – As despesas com consultas ou elaboração de declarações referidas na subalínea iii) deste dispositivo devem ser documentadas mediante apresentação de faturas ou recibos, emitidos em nome da autora.

A3 – À quantia referida na subalínea i) deve ser imputado (abatido) o montante que a ré já tiver pagado à autora a título de indemnização provisória (art. 388.º, n.º 3, do Cód. Proc. Civil);

B – Condena-se a ré, A..., S.A., a pagar ao autor, BB, a quantia de € 7.945,00 (sete mil, novecentos e quarente e cinco euros), a título da danos não patrimoniais, acrescida de juros contados desde a data da presente decisão (atualizadora) e até efetivo pagamento, sendo os juros devidos à taxa legal que em cada momento vigorar, através da portaria prevista no art. 559.º do Cód. Civil.

No mais, mantém-se a sentença apelada.

Custas do recurso principal a cargo da ré apelante, na proporção de 80%, da autora apelada, na proporção de 18%, e do autor apelado, na porção de 2%, sem prejuízo de apoio judiciário.

Custas do recurso subordinado a cargo da autora apelante, na proporção de 95%, e da ré apelada, na proporção de 5%, sem prejuízo de apoio judiciário.


*

Notifique.

***

(data constante da assinatura eletrónica)

Porto 23/1/2025
Ana Luísa Loureiro
Isoleta de Almeida Costa [vencida conforme declaração de voto junta:
Declaração de voto:
Salvo o devido respeito, não acompanho a posição que fez vencimento em relação à atribuição de uma indemnização pelo dano patrimonial futuro (lucros cessantes) e negação do direito ao ressarcimento do dano biológico (pontos 1.3.2 e 2.2 do acórdão).
Como se refere no acórdão do STJ de 20-01-2011, 520/04.8GAVNF.P2.S1. (SOUTO DE MOURA) consultável in dgsi: “O chamado dano biológico aflorou em termos legislativos na Portaria 377/2008, de 26-05, em cujo preâmbulo se diz que “ainda que não tenha direito à indemnização por dano patrimonial futuro, em situação de incapacidade permanente parcial, o lesado terá direito à indemnização pelo seu dano biológico, entendido este como ofensa à integridade física e psíquica”, sendo certo que o art. 3.º, al. b), deste diploma, considera indemnizável o dano biológico, resulte dele, ou não, perda da capacidade de ganho”.
No mesmo sentido se pronunciou recentemente o STJ, em acórdão de 10.12.2024 (FERREIRA LOPES) 1292/20.4T8CSC.L1.S1, consultável in dgsi, cujo sumário se transcreve por comodidade de escrita: “Está consolidado na jurisprudência do STJ que ao arbitrar-se indemnização pelo dano patrimonial futuro deve ter-se em consideração (…) o dano biológico sofrido pelo lesado, perspetivado como diminuição somático-psíquica e funcional, com substancial e notória repercussão na vida pessoal e profissional de quem o sofre.
Como referido no acórdão deste Tribunal 09.05.2023, P. 7509/19, “o dano biológico que emerge da incapacidade geral permanente, de natureza patrimonial, reclama a indemnização por danos patrimoniais futuros, independentemente de o mesmo se repercutir no respetivo rendimento salarial, consubstancia um “dano de esforço”, na medida em que o lesado para desempenhar as mesmas tarefas e obter o mesmo rendimento, necessitará de uma maior atividade e esforço suplementar.” (Neste sentido, no plano jurisprudencial, por exemplo, os acórdãos do STJ de 16/06/2016 (p. nº 364/06), de 05/12/2017 (p. nº 505/15), de 22/02.2022 (p. 1082/19) e de 21/04/2022 (p. 96/18).
Este direito à indemnização, salvo o devido respeito, decorre assim da prova do dano e não da sua qualificação jurídica que como se sabe não vincula o tribunal (artigo 5º nº 3 do Código de Processo Civil).
Ora, a matéria provada, designadamente, a constante dos pontos 20 a 22 da matéria de facto constitui precisamente a prova de tal dano sofrido pela Autora uma vez que ficou a padecer de uma DFPIFP de 43 pontos.
Como tal é indemnizável a título de frustração de rendimentos futuros (dano patrimonial futuro) e ainda como ressarcimento da maior penosidade e esforço que do mesmo decorre para o exercício da atividade corrente do lesado/dano biológico.
Estando o tribunal na decisão a proferir apenas limitado pelos factos provados, e quanto ao quantum a fixar pelo valor global do pedido formulado ao que acresce, no caso desta Instância que é de recurso, pelos recursos interpostos, que não pelas parcelas indemnizatórias referidas; em face dos referidos factos, é devida a fixação à Autora da indemnização na vertente de dano patrimonial futuro e de dano biológico.
Daqui que, também como se referiu no último aresto citado “no acórdão do STJ de 4.02.2022, P. 1082/9, “a indemnização pela afetação da capacidade de geral ou funcional, sendo indeterminável, deve ser fixada com recurso à equidade (cfr. art. 566º, nº3, do CCivil), em função dos seguintes fatores: i) a idade do lesado (a partir da qual se pode determinar a sua esperança média de vida à data do acidente); ii) o seu grau de incapacidade geral e permanente; iii) (…)
Em tais termos, atribuiria à Autora uma indemnização também pelo dano biológico aqui em função da esperança média de vida da Autora que, conforme a pordata, se situa nos 83,52 anos.
Nessa medida e concordando com o critério indemnizatório fixado no acórdão no ponto 1.3.2. (salvo no que respeita à idade ativa) estabeleceria o seguinte cálculo: (26-84) x 14M X 800€ X 0,43) abrangendo por esta forma o referido dano biológico o que redunda na fixação nesta rubrica do montante indemnizatório global de 279.328,00 euros.]
Carlos Portela
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[1] Acórdão no qual intervieram, como adjuntos, os Exmos. Srs. Juízes Desembargadores aqui igualmente adjuntos, em que, havendo diversos pontos de semelhança com o caso aqui em apreciação (desde logo, amputação de membro inferior em consequência de acidente de viação; défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de grau 41/100; quantum doloris de grau 6/7, dano estético permanente de grau 5/7, repercussão permanente nas atividades desportivas e de lazer de grau 4/7 e repercussão permanente na atividade sexual de grau 4/7) mas também algumas diferenças relevantes (o lesado passou dois anos hospitalizado; foi sujeito a 6 intervenções cirúrgicas; desenvolveu um quadro depressivo, reativo às dores, aos tratamentos e à incapacidade funcional, associado a ideação suicida passiva e choro fácil; tem tendência para o isolamento e evita convívio com familiares e amigos; o lesado tinha 36 anos à data do acidente), foi mantida a indemnização por danos não patrimoniais fixada pela primeira instância em € 160.000,00.