Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
13832/20.4T8PRT-B.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RODRIGUES PIRES
Descritores: AUTORIDADE DO CASO JULGADO
EFEITOS
TERCEIRO
Nº do Documento: RP2024061813832/20.4T8PRT-B.P1
Data do Acordão: 06/18/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A autoridade de caso julgado funciona independentemente da verificação da tríplice identidade exigida para a exceção de caso julgado [sujeitos; pedido; causa de pedir], pressupondo, porém, a decisão de determinada questão que não pode voltar a ser discutida.
II – A adesão voluntária de quem seja materialmente terceiro ao caso julgado alheio pode, caso esteja assegurado no processo inicial o exercício de um contraditório efetivo pela parte vencida, implicar a aplicação da autoridade do caso julgado de molde a obstar a decisões opostas, consagrando-se assim os valores da certeza e segurança jurídicas.
III – Porém, não pode beneficiar de caso julgado alheio, apesar de ter manifestado essa intenção, a ré seguradora que não tendo tido intervenção no processo inicial havia acordado anteriormente com a outra ré seguradora, no âmbito de acões hospitalares conexas com o acidente de viação em apreciação, em que a instância foi suspensa, vincular-se à decisão que vier a ser proferida nos presentes autos quanto à culpa na produção desse acidente.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. 13832/20.4 T8PRT-B.P1

Comarca do Porto – Juízo Central Cível do Porto – Juiz 5

Apelação (em separado)

Recorrente: “A..., S.A.”

Recorrido: “B... Limited Company – Sucursal em Portugal”

Relator: Eduardo Rodrigues Pires

Adjuntos: Desembargadores Alberto Taveira e Fernando Vilares Ferreira

Acordam na secção cível do Tribunal da Relação do Porto:

RELATÓRIO

O autor AA intentou a presente ação declarativa de condenação contra as rés “A..., S.A.” e “B... – Companhia de Seguros de Vida, S.A., peticionando a condenação das rés, de acordo com a quota parte de responsabilidade que os seus segurados tiveram na verificação do acidente, do qual foi vítima, indemnização que quantifica em função dos danos por si alegados.

A ré “A..., SA” apresentou contestação, na qual impugnou a versão do acidente descrita pelo autor e também os danos por este alegados.

Foi proferido despacho saneador, com identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova.

Em 25.2.2022 a ré “A..., SA” veio requerer a apensação a estes autos do processo com o nº 387/20.9T8PRT que pende no Juízo Local Cível do Porto, Juiz 2, por versar sobre o mesmo acidente de viação, pretensão que viria a ser indeferida por despacho de 28.2.2022.

Em 5.7.2022 a ré “A..., SA” veio requerer a apensação do processo com o nº 660/22.1T8VNG que pende no Juízo Local Cível de Vila Nova de Gaia, Juiz 1, por versar sobre o mesmo acidente de viação, pretensão que viria a ser indeferida por despacho de 20.9.2022.

Em 30.9.2022 o autor desistiu da instância relativamente à “B... – Companhia de Seguros de Vida, SA”, por ter havido um lapso da sua parte na identificação desta seguradora e requereu a sua substituição pela “B... PLC – Sucursal em Portugal”, o que foi admitido, tendo depois sido apresentada contestação.

Por requerimento de 12.9.2023 a ré “B...” informou os autos de que já tinha sido proferido acórdão no processo n.º 387/20.9T8PRT em que era autor o seu segurado e ré a “A... S. A.” e estava em discussão o mesmo acidente, decisão essa que considerou o segurado da ré A... como culpado pela ocorrência do acidente, factualidade que, na sua perspetiva, vincula a ré que foi parte no processo.

Mais referiu que essa decisão não vincula a “B...” que não foi parte, tendo, porém, declarado, de forma expressa, que aceita os factos dados como provados nesse acórdão. Acrescentou ainda que as duas ações hospitalares pendentes contra as rés estão suspensas, tendo as rés seguradoras acordado em vincularem-se ao que fosse decidido na ação instaurada pelo segurado da “B...” contra a ré A....

Defendeu assim a existência do efeito de caso julgado no que toca à dinâmica do acidente.

A Mmª Juíza “a quo” determinou o exercício do contraditório relativamente aos efeitos do caso julgado, tendo-se pronunciado a ré “A...” pela não verificação, no caso dos autos, da autoridade do caso julgado.

Por despacho de 20.12.2023, a Mmª Juíza “a quo” julgou procedente a exceção dilatória de caso julgado, na sua vertente de efeitos externos, no que diz respeito à dinâmica do acidente, determinando o prosseguimento dos autos apenas para apreciação dos pedidos de indemnização formulados pelo autor.

Inconformada com o decidido, interpôs recurso a ré “A..., S.A.”, tendo esta finalizado as suas alegações com as seguintes conclusões:

1) Andou mal o tribunal a quo com a prolação da sentença notificada a 21/12/2023 (refª Citius 455267610), pelo qual decidiu julgar “procedente a excepção dilatória de caso julgado, na sua vertente de efeitos externos, no diz respeito à dinâmica do acidente, prosseguindo os autos apenas para, apreciação dos pedidos de indemnização formulados pelo autor”, bem como pela condenação da Recorrente no pagamento de alegada taxa de justiça fixada em 2 UCs;

2) Com a não identificação dos concretos pontos de facto ou as conclusões jurídicas pelas quais entende que surtem efeitos nos presentes autos, a configuração abstracta da sentença recorrida, que nem sequer diz quais os factos da decisão e a posição sobre eles, torna a decisão ininteligível e, por isso, nula, nos termos do art.º 615.º, n.º 1 alínea c), 2ª parte, do CPCiv;

3) O mero facto de a decisão da causa sub judice poder, abstractamente, ser analisada, confirmada, anulada e alterada pelos tribunais superiores, em sede de recurso, acerca da matéria de facto, como a matéria de Direito, por oposição à causa julgada, é de per si, suficiente para a consideração do presente processo como mais garantístico para a boa composição do litígio e descoberta da verdade;

4) Não só está o tribunal a quo obrigado a pronunciar-se, ex vi art.º 608.º, n.º 2 do CPCiv. e art.º 8.º do CCiv., acerca dos fundamentos invocados pela Recorrente para a improcedência da excepção sub judice, como resulta do art.º 421.º do mesmo diploma, o valor probatório adquirido, oponível, em outros processos, contra a parte que exerceu o contraditório, perde esse valor, se aquele primeiro processo no seio do qual foram as provas produzidas, oferecer às partes garantias inferiores, como no presente;

5) A total omissão de pronúncia e do juízo de prognose acerca do argumento da recorrente de que o processo aqui em causa - diferentemente do “julgado” – apresenta maiores garantias de defesa que o anterior julgado mune a decisão proferida da nulidade prevista no art.º 615.º, n.º 1, alínea d), do CPCiv;

6) O documento ata de audiência de julgamento do processo AECOP que corre termos sob o n.º 660/22.1T8VNG, junto com o requerimento 25/9/2023 (refª 36754042) implica que o facto “16.” julgado provado seja removido do elenco desses factos;

7) Mais implica, o documento ata de audiência de julgamento do processo AECOP que corre termos sob o n.º 660/22.1T8VNG, junto com o requerimento 25/9/2023 (refª 36754042), que o concreto ponto de facto provado “16.” seja removido daquele elenco, devendo ser substituído pelo seguinte facto: “O desfecho das duas acções hospitalares pendentes contra as rés, estão suspensas tendo as rés, companhias de seguros, acordado em vincularem-se ao que fosse decidido nos presentes autos e, no que à posição da ré A... contende, ainda no que fosse decidido na acção instaurado pelo segurado da B... contra a ré A..., que correu termos sob o n.º 387/20.9T8PRT”;

8) Caso assim não se entenda, no que ao erro de julgamento contende, o que por mera cautela de patrocínio se concebe, deve que se julgue como provado o seguinte facto: “O desfecho das duas acções hospitalares pendentes contra as rés, estão suspensas tendo as rés, companhias de seguros, acordado em vincularem-se ao que fosse decidido nos presentes autos e, no que à posição da ré A... contende, ainda no que fosse decidido na acção instaurado pelo segurado da B... contra a ré A..., que correu termos sob o n.º 387/20.9T8PRT”;

9) A sentença transitada em julgado não versa sobre a mesma relação jurídica em discussão nos presentes autos, não operando, para esta discussão qualquer efeito de autoridade do caso julgado;

10) Como configurou o autor no seu art.º 20º da PI estamos “num primeiro momento, perante uma colisão lateral” e em momento posterior “perante um atropelamento de peões”, pelo que, a envolvente de facto e Direito de que cuidou o “caso julgado” aqui invocado terminou nessa colisão entre os dois veículos, sem cuidar da relação jurídica subsequente, emergente do posterior atropelamento do aqui A. pelo motociclo no passeio, mais de uma dezena metros à frente;

11) Sendo uma relação jurídica diversa, com um lesado diverso e com danos também eles diferentes, não se cuidou naqueles autos na relevância da velocidade da mota para que a mesma depois do primeiro acidente ou embate, viesse por si só a causar mais à frente, danos corporais ao aqui autor, e não se podia concluir pela existência de autoridade daquele caso julgado (que não cuidou da dinâmica do atropelamento);

12) O caso julgado em questão é o produto específico do processo julgado, sendo a nova realidade que, gerada processualmente, absorveu o regime substantivo aplicável à regulamentação daquela concreta causa dentro dos seus limites – restritos porque referentes àquela concreta relação jurídica – prevalecendo sobre a realidade material; assim, falar do caso julgado é, pois, falar dos seus limites;

13) No processo julgado, apenas figuraram como partes o Autor, BB e, na qualidade de Ré, a ora Recorrente, sem que tivesse havido qualquer modificação subjectiva da instância ou qualquer intervenção que fizesse estender os efeitos daquela decisão às demais partes da presente demanda, pelo que, não está preenchido o pressuposto de identidade subjectiva do caso julgado;

14) O pedido dos presentes autos prende-se com os concretos danos que o A./recorrido alega ter sofrido, apontando a responsabilidade para as duas RR., na medida da responsabilidade de cada uma num atropelamento que vitimou o A. no passeio, e não com a pretensão indemnizatória do A. BB numa colisão lateral de veículos no processo com decisão já transitada em julgado, não se pedindo a indemnização e compensação pelos danos causados ao A. da decisão transitada em julgado, em razão da impossibilidade da reconstituição natural daqueles, o objeto peticionado não é um bem individualizado ou integrante do objeto da primeira ação, nem são os diferentes pedidos contraditórios;

15) Não se discutem nos presentes autos os factos da causa de pedir da ação transitada em julgado, não são as causas de pedir dos diferentes processos a mesma, concorrentes ou incompatíveis entre si, pelo que, também não estão preenchidos os pressupostos objectivos do caso julgado;

16) Pelo exposto, andou mal o tribunal a quo ao aplicar o normativo constante do art.º 581.º do CPCiv, interpretando-o no sentido em que considera operar a excepção de caso julgado (autoridade de caso julgado) quando na ação transitada em julgado discutiu-se, apenas com a ora Recorrente, e não com as demais partes da presente demanda, a indemnização e compensação a pagar ao Autor (externo a esta demanda) pelos concretos danos que se produziram na esfera jurídica daquele, pela Ré em razão da sua responsabilidade civil advinda de um contrato de seguro;

17) Deve a errada interpretação e aplicação da norma do art.º 581.º do CPCiv aos factos provados ser interpretada e aplicada no sentido de se concluir pelo não preenchimento dos pressupostos da excepção do caso julgado, ordenando-se o normal prosseguimento dos autos;

18) No que toca à alegada vinculação das partes, para além do esvaziamento da factualidade provada, advinda do esvaziamento do valor probatório da instrução daquele processo no que ao efeito extra processual contende, ex vi art.º 421.º, também em razão dos atos e omissões dos A. e co-Ré, não poderá prevalecer sobre a factualidade a apurar no âmbito dos presentes autos;

19) Uma vez que as RR. assumiram um acordo que reduziram a escrito, encontrando-se, vertido no já referido documento ata de audiência de julgamento do processo AECOP que corre termos sob o n.º 660/22.1T8VNG, junto com o requerimento 25/9/2023 (refª 36754042), ainda que a co-Ré se tenha pronunciado quanto à sua posição face a factualidade provada da decisão transitada, a sua eventual adesão, de per si, por contrariar a sua posição declarada e consignada em ata junta aos presentes autos, não prevalece, por violar o disposto no 405.º do CCiv e o princípio pacta sunt servanda, por ter surgido uma outra decisão, que acautela os seus interesses;

20) Já quanto ao A. recorrido, está tão mais preocupado em hostilizar esta R. e tecer floreados pouco elegantes do que discutir a causa, uma vez que, jamais se pronunciou acerca dos efeitos do caso julgado nos presentes autos, apesar de notificado para tal, nem quanto aos documentos juntos, tendo apenas reagido aos requerimentos da recorrente em 2/10/2023 (refª 36826849) e em 29/11/2023 (refª 37430672), tendo o direito de se pronunciar acerca do caso julgado precludido, de acordo com o princípio da preclusão e da autorresponsabilidade das partes;

21) A douta decisão recorrida notificada como “sentença”, ao começar por anunciar que vai conhecer da “Excepção de Caso julgado parcial/Efeitos externos do caso julgado”, a qual foi oralmente suscitada pela R. B..., e fixar em 2UCs uma “taxa” a pagar pela Recorrente, em razão do conhecimento do mérito da causa, ainda que sem colocar termo ao processo, pelo conhecimento da excepção de caso julgado invocada em articulado superveniente na audiência, consubstanciou uma violação do art.º 527.º n.º 1 do CPCiv;

22) Com a prolação das decisões recorridas, o tribunal a quo violou o normativo constante dos artigos 8.º, 341.º e 342.º do CCiv., dos artigos 410.º, 527.º, n.º 1, 580.º, 581.º, 608.º, n.º 2, e 615.º, n.º 1 alíneas c) e d) do CPCiv., bem como do artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa.

Pretende assim que seja declarada a nulidade da sentença proferida ou, caso assim não se entenda, seja a sentença revogada e substituída por acórdão que, afastando a pretensa autoridade de caso julgado, determine a baixa dos autos e a consequente prossecução da discussão e julgamento de todos os factos controvertidos nos presentes autos, designadamente, os referentes à dinâmica do atropelamento, absolvendo, ainda, a recorrente do pagamento da “taxa” no qual foi condenada.

A ré “B... PLC” apresentou resposta ao recurso interposto, pugnando pela confirmação da decisão recorrida.

O recurso foi admitido como apelação, a subir de imediato, em separado e com efeito devolutivo.

Cumpre então apreciar e decidir.


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FUNDAMENTAÇÃO 

O âmbito do recurso, sempre ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, encontra-se delimitado pelas conclusões que nele foram apresentadas e que atrás se transcreveram – cfr. arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do Cód. do Proc. Civil.


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As questões a decidir são as seguintes:

I. Apurar se a decisão recorrida enferma das nulidades previstas nos arts. 615º, nº 1, als. c), 2ª parte e d) do Cód. de Proc. Civil [obscuridade que torne a decisão ininteligível; omissão de pronúncia];

II. Apurar se deve ser alterada a redação do ponto nº 16 da matéria de facto considerada relevante;

III. Apurar se a autoridade de caso julgado resultante da sentença, transitada, proferida no processo com o nº 387/20.9 T8PRT do Juízo Local Cível do Porto – Juiz 2 deverá ser estendida aos presentes autos;

IV. Apurar se a ré/recorrente devia ter sido condenada no pagamento de taxa de justiça.  


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É a seguinte a matéria de facto dada como provada na decisão recorrida e considerada como relevante para o conhecimento da exceção de caso julgado parcial:

1.º AA instaurou a presente acção declarativa de condenação sob a forma de processo comum, emergente de acidente de viação, demandando como rés: “B... - COMPANHIA DE SEGUROS VIDA, S.A.” e “A..., S.A.” e peticionando a condenação das rés, de acordo com a quota parte de responsabilidade que os seus segurados tiveram no acidente do qual o autor foi vítima, numa indemnização que quantifica e descrimina de acordo com os danos alegados;

2.º Sobre a dinâmica do acidente (matéria que nos interesse para conhecer da excepção invocada), alegou o seguinte:

“1.º No dia 21 de Janeiro de 2019, por volta das 14:20 horas, ocorreu um acidente de viação;

2.º O sinistro ocorreu, sensivelmente, no cruzamento ou entroncamento entre a Rua ..., no sentido Nascente para Poente e a Rua ..., freguesia ..., concelho do Porto, conforme, por facilidade, esquematicamente se ilustra infra: Figura 1 - Local do acidente com menção aos pontos de referência e sentidos de marcha;

3.º Tal sinistro ocorreu entre um veículo ligeiro de matrícula ..-..-XD, cuja direcção efectiva e propriedade à data dos factos pertencem ao Exmo. Senhor BB, segurado da R. “A..., S.A.” com o n.º da apólice ... (doravante, XD);

4.º e um motociclo, matrícula ..-VA-.., cuja direcção efectiva e propriedade à data dos factos pertencem ao Exmo. Senhor CC, segurado da R. B... – COMPANHIA DE SEGUROS VIDA, S.A.” com o n.º de apólice ... (doravante, VA);

5.º Em momento precedente, a cerca de 50 metros do local do acidente, os condutores dos veículos encontravam-se imobilizados na via Rua ..., no sentido Nascente para Poente, esperando pelo sinal luminoso de início de marcha.

6.º A estrada em causa configura uma recta, com ampla visibilidade e composta por duas faixas de rodagem, mas de sentido único, com bom piso betuminoso, em razoável estado de conservação e encontrava-se seco.

7.º A identificada estrada encontra-se ladeada por passeios com cerca de 1,5 metros e por edificações correspondentes por casas de habitação e estabelecimentos comerciais, com saída para a via pública.

8.º Após a luz verde, iniciaram a marcha.

9.º Aquando da aproximação do cruzamento ou entroncamento referido no art. 2.º do articulado

10.º O embate entre os veículos ocorreu entre a parte dianteira direita do XD e a parte frontal do VA

11.º Depois de ter ocorrido a colisão, o motociclo VA foi embater nos peões que se encontravam no passeio do lado direito da via no sentido nascente poente;

12.º O A., nas circunstâncias de tempo e lugar supra-referidas, era um dos peões que se encontrava no passeio.

13.º Na sequência do sinistro rodoviário ocorrido, e sem que nada o fizesse prever, o A., que usufruía da hora de almoço conversando com os amigos, foi surpreendido e colhido no passeio pelo VA.

14.º A ocorrência do acidente deu-se a factos completamente alheios ao A., tendo este sido apanhado absolutamente desprevenido face a toda aquela situação.

15.º O A. não teve qualquer ingerência ou responsabilidade no sinistro.

16.º Em causa está o acidente entre dois identificados veículos XD e VA.

17.º Ambos os veículos supra referidos gozam, nos termos legais, de cobertura de seguro.

18.º Acontece que, após a realização dos procedimentos internos e avaliações técnicas, ambas declinaram a responsabilidade relativamente ao acidente ajuizado nos presentes autos;

19.º Ora, não se concebe, de antemão, que nenhum dos condutores tenham agido sem culpa pela verificação do ilícito, daí que se imponha apurar a culpa de cada um dos segurados das RR., não obstante o A. terá de ser ressarcido de todos os danos que sofreu.

20.º Perante a factualidade descrita supra estamos, num primeiro momento, perante uma colisão lateral e, em momento posterior, perante um atropelamento de peões.

21.º O sinistro ocorreu tendo por base, unicamente, a conduta ilícita e culposa, pelo menos, de um dos condutores, o que desde já se alega para todos os legais efeitos.

22º Atenta a dinâmica do acidente e os factos conhecidos é notório assacar que ambos os veículos circulavam em excesso de velocidade, velocidade superior a 50 km/h, limite para a circulação dentro das localidades, violando o art. 27.º do CE.

23.º Dúvida não há que ambos os veículos circulavam com velocidade excessiva já que não conseguiram imobilizar os seus veículos no espaço livre e visível sem embaterem um no outro.

24.º Em consonância com as als. a) e h) do n.º 1 do art. 25.º do CE, recai sobre o condutor o dever de moderar a velocidade aquando da aproximação de passagens assinaladas na faixa de rodagem para a travessia de peões e nos locais de visibilidade reduzida.

25.º De imediato se percebe que o local do acidente é antecedido e sucedido por um cruzamento com um conjunto de passagens assinaladas horizontal e verticalmente pelo que, duplamente acrescido, ambos os condutores deveriam ter respeitado os limites de velocidade, bem como circular a uma velocidade moderada para evitar o acidente e o consequente embate no A., o que não sucedeu.

26.º Nos termos do mesmo preceito legal, preveem as als. e) e f) o dever de uma condução com velocidade moderada aquando da aproximação de peões (utilizadores vulneráveis ex vi al. q) do n.º 1 do CE), conduta que os condutores dos veículos não respeitaram culminando no sinistro em juízo.

27.º O acidente ocorreu numa das vias mais movimentadas da cidade do Porto, principalmente àquela hora, justamente quando uma boa parte das pessoas regressa ao seu trabalho, motivo pelo qual ambos deveriam ter tido o cuidado de imprimirem à condução do seu veículo a máxima prudência e moderação circulatória.

28.º Com efeito, aquele momento temporal é designado pela «hora do almoço», período em que há maior aglomerado de pessoas, as quais constante e intensamente circulam nos passeios e atravessam a rua em causa de forma mais recorrente, o que obrigava ambos os condutores a cautelas acrescidas no cumprimento rigoroso das regras estradais.

29.º Atento o exposto, se a velocidade dos veículos se encontrasse nos limites estabelecidos e tivesse sido moderada naquela parte do troço, seria possível a imediata imobilização das viaturas, sem embate, e nunca o VA teria sido arremessado/projectado em direcção do A. e, consequentemente, jamais o teria atingido.

30.º A velocidade excessiva e o excesso de velocidade diminuíram o tempo de reacção face à situação de contiguidade de circulação entre ambos e ulterior e recíproco embate. (…)

37.º Por sua vez, o A. encontrava-se em total cumprimento dos seus deveres enquanto peão.

38.º Conforme o disposto no n.º 1 do art. 99.º do CE, o sinistrado encontrava-se no passeio encostado aos edifícios em total observância das regras que lhe são impostas, não prejudicando, desta feita, a circulação de qualquer veículo, mais precisamente os veículos dos segurados das RR.

39.º O mesmo é dizer que o A. não provocou ou influenciou o sinistro entre os segurados das RR.

40.º Destarte, a responsabilidade pela produção do acidente e das lesões e danos do A. deve-se, exclusivamente, aos segurados das RR. na proporção das suas culpas (…)

44.º Importa, pois, apurar o culpado, responsável subjectivo, do sinistro dos autos, ou, eventualmente, aferir da quota-parte de responsabilidade de cada um dos condutores na produção do acidente, se única e exclusiva de um dos intervenientes, ou se concorrente, e em que medida ou proporção,

45.º caso não seja possível aferir da quota-parte da responsabilidade de cada um, fazer operar a repartição da responsabilidade, no âmbito da responsabilidade objectiva – pelo risco – nos termos do preceituado no art. 503.º do CC. (…)”

3.º A acção foi contestada pela ré A... S. A.

4.º Alegou a ré A... S. A., no que à dinâmica diz respeito, o seguinte:

“1º. Sendo verdade que ocorreu um acidente complexo na data indicada na PI, na Rua ..., não é correcta a alegação feita na PI, quanto ao local, ao condutor e proprietário de cada veículo interveniente, nem mesmo às circunstâncias invocadas quanto à dinâmica e participação de cada interveniente.

2º. Por isso, errada se acha a alegação da PI quanto à responsabilidade do condutor do veículo seguro na contestante.

3º. Como resulta do auto de participação policial junto com a PI, facilmente se alcança que não é verdade o alegado em 2º da PI que se impugna, já que o despiste do motociclo deixou uma marca no pavimento, 9,76m antes do alinhamento com a sua roda traseira no local onde se imobilizou no chão, esse sim, sensivelmente a meio da loja “C...” com o n.º 658,

4º. E, se aí galgou o passeio para cerca de 10m à frente embater nos peões, na parede de pedra da loja e resvalar de novo para a rua onde se imobilizou como no croquis policial, tendo o embate ocorrido antes de galgar o passeio, este ocorreu entre o cruzamento da Rua ... com a Rua ... e o entroncamento daquela mesma Rua ..., com a Rua ...,

5º. Os veículos intervenientes foram um ligeiro de passageiros da marca BMW ..., matricula ..-VA-.., então propriedade e conduzido pelo CC, seguro na aqui contestante,

6º. E o motociclo da marca Yamaha ... de 600 cm3 de cilindrada e com a matrícula ..-..-XD propriedade e conduzido por BB, não sendo correcto o alegado em 3º e 4º da PI.

7º. Também não é verdade o alegado em 5º da PI, já que apenas o “VA” esteve imobilizado no semáforo do cruzamento da Rua ... coma Rua ..., a cerca de 20/40m do local onde se seu o embate.

8º. E, quando abriu o sinal (para verde) o condutor CC arrancou com o “VA” e após alguns metros começou a sua aproximação à direita da via para com a intenção de, no cruzamento seguinte com a Rua ..., virar à direita.

9º. O que fez depois de accionar o pisca à direita se começa a encostar à direita da sua hemifaixa de rodagem,

10º. Sucede que, o condutor do motociclo “XD” que vinha em aceleração a descer a Rua ..., no mesmo sentido, rapidamente alcançou o “VA” e resolveu iniciar a ultrapassagem do mesmo pela direita deste,

11º. acabando por dar um ligeiro toque lateral na zona traseira direta do ligeiro com o patim da moto (doc.1.1 e 1.2), por perder o controlo e despistar-se para cima do passeio.

12º. Aí, ainda prosseguiu descontroladamente por, pelo menos, mais 9,70m (cfr. croquis), até embater com violência na parede de pedra da loja “C...” visível nas fotos juntas como doc.2, acabando por resvalar para a faixa de rodagem onde ficou imobilizada no local assinalado no croquis, em frente a essa loja.

13º. Nesse trajecto em que galgou o passeio e andou desgovernado pelo passeio é que terá embatido no A. e pelo menos em mais um peão.

14º. O embate na parede da loja “C...” foi violento a ponto de partir o granito e fazer um estrondo que foi ouvido em toda a rua, tal era a velocidade de que o motociclo vinha animado.

15º. De tal modo que, quando se imobilizou, o motociclo apresentava o quadro e forqueta empenados, a carnage partida e a jante traseira torcida, tudo como se constata das fotografias juntas como doc.3.

16º. Sendo evidente que, a energia dissipada com esses embates e deslocação em despiste de uma moto que pesa 200kgs deixa muito claro o excesso de velocidade da mesma.

17º. É que, sendo o local no centro da cidade do Porto, onde a velocidade máxima é de 50km/h, trata-se de um zona com elevada densidade de peões e tráfego, entre dois cruzamentos e antes de um entroncamento, numa rua bordejada de lojas de comércio por ambos os lados, a velocidade devia ser especialmente reduzida atento o disposto no art.º 25.º n.º 1 c), d) e f) do Cestr.

18º. E, o motociclo seguro na co-ré B..., não seguia a menos de 60km/h, em manifesto excesso de velocidade.

19º. Já o ligeiro seguro na ré ora contestante, seguia devagar, entre os 20km/h e os 30km/h.

20º. É evidente que o atropelamento do peão Rte. apenas ocorre por manifesta incúria do condutor do motociclo que ao proceder à ultrapassagem do ligeiro pela sua direita, violou ostensivamente os comandos dos art.º 36.º n.º 1 e 38.º n.º 3 do CEstr.

21º. E bem assim, omitiu o dever de cuidado ao não se abster de levar a cabo uma ultrapassagem pela direita, assim colocando em perigo os condutores e passageiros dos demais veículo e, ele próprio, numa condução temerária.

22º. Do mesmo modo, o motociclo “XD” que vinha no mesmo sentido mas atrás do “VA”, embalado pela descida da rua antes do cruzamento com a Rua ..., circulando a uma velocidade desadequada por não inferior a 60km/h,

23º. Ao se aperceber da trajectoria do “VA” de se aproximar à direita estreitando o espaço disponível entre o veículo ligeiro e o passeio, ainda assim tentou a ultrapassagem pela direita acabando por embater com o patim na lateral traseira direita do ligeiro e perder o controle da moto despistando-se, ao invés de travar e prosseguir atrás do ligeiro sem lhe embater.

24º. Daí que, o excesso de velocidade a que o ligeiro seguia foi ainda decisivo para o despiste e perda de controle pelo condutor da mota, e bem assim, passa a energia que o projectou pelo passeio a atingir os peões. (…)

28º. É, pois, da exclusiva responsabilidade da 1ª R., para quem o proprietário do motociclo transferiu a responsabilidade pela circulação do mesmo, indemnizar as consequências do acidente.

29º. Nada tendo esta R. de indemnizar o A.”

5.º Foi proferido despacho saneador e o despacho previsto pelo artigo 596º do C.P.C. e instruída a causa, onde se incluiu a realização da prova pericial pelo INML.

6.º Por requerimento de 25 de Fevereiro de 2022, a ré A... S. A. veio informar e requerer o seguinte:

“1. Pendem no Juiz 2 do Juízo Local Cível do Porto, sob o n.º 387/20.9T8PRT, uns autos de acção comum contra a aqui ré e requerente, ali movidos por BB, no caso o condutor do motociclo interveniente no mesmo acidente aqui em discussão (de cuja e PI e contestação se junta cópia).

2. O objecto da acção é a apreciação da responsabilidade pela ocorrência do mesmo acidente de viação, sendo que ali se apuram os danos do referido condutor e neste, os de um peão atropelado pelo motociclo.

3. Ou seja, as acções estão dependentes da apreciação dos mesmos factos quanto à causa de pedir verificando-se o pressuposto do art. 36.º do CPCiv, e consequentemente da apensação nos termos do disposto no art. 267.º n.º 1 do mesmo Código.

4. Tratando-se do mesmo acidente de viação, razões fundadas de segurança e uniformidade nas decisões justificam a apensação e julgamento conjunto de ambas as demandas. (…)

TERMOS EM QUE SE REQUER A V.EX.A SE DIGNE ORDENADA A APENSAÇÃO A ESTES AUTOS DOS QUE PENDEM NO JUIZ 2 DO JUIZO LOCAL CÍVEL DO PORTO, SOB O N.º 387/20.9T8PRT, SEGUINDO-SE OS ULTERIORES TRÂMITES LEGAIS.”

7.º No processo identificado pela ré era autor BB, condutor do motociclo interveniente do mesmo acidente e ré a ora ré A... S. A.

8.º Nesse processo, na contestação, a ré alegou a mesma versão do acidente que alegou nestes autos e que se reproduzem:

“(…)

1º. Não é verdade o vertido no art. 1º da PI desde logo porque nenhum acidente com intervenção dos veículos em causa ocorreu no entroncamento, mas, antes dele, mais exactamente na Rua ..., após o cruzamento com a Rua ..., sentido nascente/poente.

2º. Sendo verdade o vertido em 2º, 3º, 4º, 5º e 10º (a recta tem cerca de 100m) da PI que se aceita.

3º. Fica claro, que nos momentos antecedentes do embate ambos veículos seguiam na Rua ..., sentido nascente/poente no mesmo sentido de marcha,

4º. e o motociclo conduzido pelo A. seguia atrás do ligeiro de matrícula ..-..-XD, seguro na ré, distanciado dele a mais de 50m mas em grande aproximação,

5º. e quando este, a cerca de 20m após o cruzamento de onde arrancou, depois de accionar o pisca à direita se começa a encostar à direita da faixa de rodagem, para mais à frente tomar a Rua ...,

6º. o condutor do motociclo resolve iniciar a ultrapassagem do ligeiro pela direita deste, entre o mesmo e o passeio,

7º. acabando por colidir lateralmente na zona traseira direita do ligeiro, perdendo o controlo da moto e despistar-se para cima do passeio onde terá atingido vários peões até embater com violência na parede em pedra de uma loja,

8º. após o que, mercê da velocidade de que estava animado, faz ricochete e volta para a rua onde fica imobilizado no asfalto como se ilustra nas fotografias que o A. junta na PI.

9º. Como se retira do croquis inserto no auto policial junto como doc.1 as marcas do pneu da mota quando galgou o passeio e seguiu descontrolada encontram-se a 9,70m do local onde se imobilizou, distância que percorreu descontrolada e de zorro só se imobilizando depois da violenta pancada na parede de pedra.

10º. O condutor do “XD” poucos segundos antes do acidente havia arrancado do cruzamento com a Rua ... de onde arrancara a uma velocidade muito lenta e, assinalada a mudança de direcção à direita (pisca) iniciou progressivamente a aproximação à direita da sua faixa de rodagem.

11º. Quando já havia percorrido cerca de 30m, é surpreendido por um embate na traseira do lado direito e por um estrondo da moto descontrolada a embater na parede.

12º. Sendo totalmente falso que o A. houvesse estado parado no entroncamento ao lado do “VA” (…)

13º. O veículo que o A. conduzia é uma potente moto de 600 cm3 de cilindrada que pesa 187kgs, passa dos 250km/h de velocidade máxima e atinge no arranque os 100km/h em 4,55segundos (…).

14º. E o A. circulava em grande aceleração pela Rua ..., no mesmo sentido do “VA”, atrás deste, e em rápida aproximação a este.

15º. E, como o próprio confessou à autoridade policial, quando se encontrava ainda a uma distância de 50m do “VA” apercebe-se da trajectória do “VA” de aproximação ao lado direito da via, que descreveu como “começou a afunilar ou seja a invadir a faixa do lado direito”

16º. Fica claro que o A. não só se encontrava na rectaguarda do “VA” como a cerca de 50m de distância dele, o que impunha, obviamente, que reduzisse a velocidade ou mesmo parasse, ao invés de o tentar ultrapassar pela direita quando o mesmo da direita da via se aproximava.

17º. O local é uma via movimentada do centro do Porto, com passadeiras para peões e grande circulação de pessoas e veículos, sobretudo às 14,20horas, o que impunha que o limite máximo de velocidade de 50km/h para o interior das localidades, ali não deve exceder os 20/30km/h.

18º. Ora, o motociclo, para travar, embater na traseira lateral direita do “VA”, galgar o passeiro, embater violentamente contra uma parede de perda e voltar para o asfalto onde se imobilizou, tinha necessariamente de circular a uma velocidade superior a 60/70kmh.

19º. Por outro lado, do croquis policial e da posição final dos veículos, resulta evidente que o veículo VA ficou com a traseira direita distante 2,40m da berma do lado direito, e com a frente direita a 2,80m, sugestiva de que ao sentir o embate na direita traseira, ainda guinou à esquerda.

20º. E, se praticamente se imobilizou de imediato, o certo é que entre o seu vértice traseiro e a berma estavam 2,40m de largura disponíveis que permitiam até a ilegal ultrapassagem que o A. encetou,

21º. Já que o motociclo tem menos de 1 m de largura, mais propriamente, 75cm,

22º. Ficando claro que, não fora a velocidade excessiva a que circulava ainda assim teria ultrapassado o “VA” pela direita sem lhe embater.

23º. Sendo evidente que, o embate apenas ocorre por manifesta incúria do autor que ao proceder à ultrapassagem do ligeiro pela sua direita, e circular em excesso de velocidade para as condições espaciais de circulação, violou ostensivamente os comandos dos art.º 24.º, 25.º n.1 alíneas a), c), f), g) e h), 36.º n.º 1 e 38.º n.º 3 do CEstr.

24º. E bem assim, omitiu o dever de cuidado ao não se abster de levar a cabo uma ultrapassagem pela direita, assim colocando em perigo os condutores e passageiros dos demais veículos e, ele próprio, numa condução temerária.

25º. É, pois, da exclusiva responsabilidade o acidente ocorrido, o que afasta a responsabilidade da ré, como seguradora do “VA”. (…)

27º. A colisão verificada entre os dois veículos foi um pequeno toque da mota no painel lateral direito traseiro do “VA” ao passá-lo em ultrapassagem, e nunca os elevados danos que apresentou a final.

28º. É que a volumosa destruição no veículo, decorre da violenta colisão na parede de uma loja em pedra de onde arrancou até parte de uma laje, bem como da subsequente projecção em ricochete para o chão onde ficou a final.

29º. Danos cuja violência não é adequada a uma colisão por um toque ligeiro, mas da excessiva velocidade que o A. imprimia à moto que o impediu de a imobilizar sem embater no VA e se despistar.

30º. Daí, também, não ser verdade o alegado em 20º (“em consequência da colisão frontal e da violência do embate”), ignorando-se, sem obrigação de conhecer, o mais aí vertido.”

9.º Por despacho proferido no dia 28-02-2022 foi indeferida a apensação, por causar embaraço e atraso no processo a apensar, que estava numa fase processual muito mais avançada do que estes autos, ainda em fase de prova pericial.

10.º Por requerimento da ré de 5-7-2022 veio informar e requerer o seguinte:

“A..., SA, nos autos à margem referenciados em que é autor AA vem, observar e requerer o seguinte:

1. Pendem no Juiz 1 do Juízo Local Cível de Vila Nova de Gaia, sob o n.º 660/20.1T8PRT, e a B..., Plc (sucursal em Portugal), uns autos de acção especial para Cump. Ob. Pec contra a aqui ré e requerente, ali movidos por CENTRO HOSPITALAR ..., E.P.E,.

2. O objecto da acção é a apreciação da responsabilidade pela ocorrência do mesmo acidente de viação, a fim de determinar a responsabilidade para as despesas de assistência hospitalar de DD, um dos peões atropelados pelo motociclo.

3. Ou seja, as acções estão dependentes da apreciação dos mesmos factos quanto à causa de pedir verificando-se o pressuposto do art. 36.º do CPCiv, e consequentemente da apensação nos termos do disposto no art. 267.º n.º 1 do mesmo Código.

4. Tratando-se do mesmo acidente de viação, razões fundadas de segurança e uniformidade nas decisões justificam a apensação e julgamento conjunto de ambas as demandas.

5. Os autos cuja apensação se requer a estes estão em fase de julgamento estando este agendado para o passado dia 1/6/2022, data em que não se iniciou, precisamente, pelo facto de todas as partes entenderem que há vantagem na apensação a estes, quer por seguirem forma de processo que oferece mais garantia às partes, quer ainda para evitar uma atomização de decisões diferentes sobre a responsabilidade no mesmo acidente.

6. Dado que estes autos pendem em instância central e aqueles em instância local, é nestes que se deve dar a apensação daqueles, o que se requer a V.Ex.a se digne ordenar.

7. Pendem ainda no Juiz 4 do Juízo Local Cível do Porto, sob o Processo n.º 1135/22.4T8PRT, movidos pelo CENTRO HOSPITALAR 1..., E.P.E, contra a B..., Plc (sucursal em Portugal) e aqui requerente, uns autos de acção comum, precisamente com a mesma finalidade – determinação da responsabilidade pelo pagamento dos serviços de assistência hospitalar prestados no Hospital ... aos peões atropelados no mesmo acidente, o aqui autor AA e EE.

8. Verificando-se aqui, por isso, os mesmos pressupostos da apensação acima requerida para dos autos que correm no juízo local cível de Vila Nova de Gaia.

9. Estes últimos autos, têm julgamento designado para o dia 9/9/2022 pelas 9,45h, e pese embora os presentes em fase final da perícia médica, a fase de processo não obsta à apensação, já que a simples apensação determina que fique sem efeito o julgamento ali designado, para que se dê o julgamento em conjunto com o presente e o outro que acima se pretende ver apensado, com indiscutível vantagem para a segurança do Direito e uniformidade de decisões sobre as consequências do mesmo facto envolvendo os mesmos responsáveis.

TERMOS EM QUE SE REQUER A V.EX.A SE DIGNE ORDENADA A APENSAÇÃO A ESTES AUTOS DOS QUE PENDEM NO JUIZ 1 DO JUIZO LOCAL CÍVEL DE VILA NOVA DE GAIA, SOB O N.º 660/22.1T8VNG, E DOS QUE PENDEM NO JUIZ 4 DO JUIZO LOCAL CÍVEL DO PORTO, SOB O PROCESSO N.º 1135/22.4T8PRT, SEGUINDO-SE OS ULTERIORES TRÂMITES LEGAIS.”

11.º Por despacho proferido no dia 20-09-2022 o pedido da ré foi indeferido, com os mesmos fundamentos do indeferido pedido de apensação do primeiro processo.

12.º Por requerimento de 30-09-2022, com a adesão da ré B... Companhia de Seguros Vida S. A. o autor desistiu da instância contra esta ré, que a aceitou, alegando que se enganou na identificação da Companhia de Seguros porque a seguradora do veículo é a B... PLC – Sucursal em Portugal S. A.

13.º Foi admitida a substituição processual e citada a ré B... para contestar o que fez.

14.º Na sua contestação e quando à dinâmica do acidente alegou:

“4º Ora, impõe-se sublinhar que a culpa na produção do sinistro coube, de forma inelutável, ao comportamento do condutor do veículo de matrícula ..-VA-.., seguro na co-Ré “A...”;

5º Vamos aos factos: o veículo seguro na ora contestante, um motociclo de matrícula ..-..-XD, encontrava-se parado na Rua ..., nesta cidade do Porto, no sentido descendente, antes do entroncamento com a Rua ....

6º O motociclo parou em obediência a um sinal de semáforo, cuja luz se encontrava vermelha,

7º No local a via dispõe de duas filas de trânsito no mesmo sentido, sendo ladeada por passeios, quer do seu lado esquerdo, quer do seu lado direito.

8º E forma uma recta com mais de cem metros de extensão, que mais adiante é atravessada pela Rua ....

9º O motociclo, conduzido pelo segurado da Ré, BB, encontra-se parado na fila da direita.

10º À sua esquerda encontrava-se também parado um BMW ..., conduzido por um “rapaz novo”, modo de dizer.

11º Este BMW, seguro na “A...” ocupava a fila da esquerda.

12º A certa altura a luz do semáforo passa a verde e o motociclo inicia a sua marcha, o mesmo sucedendo com o BMW,

13º Os veículos avançam alguns metros, sempre mais de 20 ou 30,

14º Imprimem uma velocidade na ordem dos 30 ou 40 Km/h,

15º Seguindo lado a lado,

16º E, nisto, dá-se o insólito: sem que nada o fizesse prever, o BMW muda repentinamente de fila, da esquerda para a direita,

17º Invade a fila da direita,

18º Sem efetuar qualquer sinal,

19º Sem tomar qualquer precaução prévia,

20º Sem atentar na presença do motociclo,

21º Designadamente sem que o condutor do BMW tenha olhado para a fila da direita, por onde seguia o veículo seguro na ré,

22º E, por força de um movimento brusco, o BMW vai embater no motociclo, com uma pancada seca, e logo o projecta para o passeio do lado direito, onde embate nos peões,

23º Deste modo, o sinistro ficou unicamente a dever-se à negligência, imprevidência e manifesta falta de cuidado do condutor do BMW de matrícula ..-VA-.. e às flagrantes violações que o mesmo praticou ao disposto nos artigos 3º nº 2, 13º nº 1, 18º nº 2 e 35º nº 1 do Código da Estrada

24º De modo que deverá ser a co-Ré “A...” a suportar o pagamento da indemnização devida ao A.”

15.º Foi agendada a realização da audiência de julgamento.

16.º Por requerimento de 12-09-2023 a ré B... informou os autos de que já tinha sido proferido Acórdão no processo n.º 387/20.9T8PRT (o primeiro processo cuja apensação tinha sido requerida pela ré A...) em que era autor o segurado da ré e ré a A... S. A. e estava em discussão o mesmo acidente, decisão que considerou o segurado da ré A... como culpado pela ocorrência do acidente, factualidade que vincula a ré que foi parte no processo. Mais refere que essa decisão não vincula a B... que não foi parte, mas declara de forma expressa que aceita os factos dados como provados no Acórdão em causa.

Acrescenta que as duas acções hospitalares pendentes contra as rés, estão suspensas tendo as rés, companhias de seguros, acordado em vincularem-se ao que fosse decidido na acção instaurada pelo segurado da B... contra a ré A...;

Defende a existência dos efeitos do caso julgado no que à dinâmica do acidente diz respeito.

17.º Foi junto aos autos o Acórdão proferido no processo identificado no ponto anterior, com nota de trânsito em julgado.

18.º No Acórdão em causa, proferido no processo identificado no ponto 16º, foram considerados como provados (quanto à dinâmica do acidente) os seguintes factos:

   “1. No dia 21 de janeiro de 2019, pelas 14h20, na Rua ..., próximo ao entroncamento com a Rua ..., na cidade do Porto, União das freguesias ..., ..., ..., ..., ... e ..., ocorreu um embate entre dois veículos.

2. Estava sol, o piso era de asfalto, estava seco, em razoável estado de conservação, sendo o local do embate uma via iluminada por postes de iluminação pública, com boa visibilidade, porquanto permitia ver toda a largura da faixa de rodagem.

3. Foram intervenientes nesse embate o veículo automóvel ligeiro de passageiros, com matrícula ..-VA-.., propriedade de CC, sendo conduzido na data, hora e local referidos em 1. pelo mesmo e o motociclo com matrícula ..-..-XD, propriedade do autor BB, sendo conduzido na data, hora e local referidos em 1. pelo mesmo.

4. Na data referida em 1., o risco de circulação do veículo com matrícula ..-VA-.. estava transferido para a ré, “A..., S.A.”, mediante contrato de seguro, titulado pela apólice n.º ... de responsabilidade civil.

5. O risco de circulação do motociclo com matrícula ..-..-XD encontra-se transferido para a “B... Limited Company”, mediante contrato de seguro, titulado pela apólice n.º ... de responsabilidade civil.

6. Nas sobreditas circunstâncias de tempo e lugar, o veículo do autor, motociclo de matrícula ..-..-XD, encontrava-se parado na Rua ..., na cidade do Porto, no sentido descendente, antes do entroncamento com a Rua ....

7. O motociclo parou em obediência a um sinal de semáforo, cuja luz se encontrava vermelha.

8. À data, no local a via compreende duas filas de trânsito no mesmo sentido, sendo ladeada por passeios, quer do lado esquerdo, quer do lado direito.

9. E formando uma reta com mais de cem metros de extensão, que mais adiante é atravessada pela Rua ....

10. Junto ao semáforo o motociclo, conduzido pelo autor BB, encontrava-se parado na fila da direita.

11. À sua esquerda encontrava-se parado o veículo de matrícula ..-VA-.., ocupando a fila da esquerda.

12. A certa altura a luz do semáforo passa a verde e os veículos retomaram a sua marcha.

13. Os veículos avançam alguns metros, cerca de 20 a 30 metros.

14. O veículo automóvel de matrícula ..-VA-.. inicia uma manobra de mudança de fila de trânsito da esquerda para a direita.

14-A. Ocasião em que o motociclo de matrícula ..-..-XD encontrava-se a circular pela faixa de rodagem da direita daquela mesma via, ocorrendo de seguida o embate entre o motociclo de matrícula ..-..-XD e o veículo automóvel de matrícula ..-VA-...

15. Com o embate o motociclo deslizou desgovernado para o passeio do lado direito, onde atropelou peões, transeuntes no local.

16. Em consequência do embate o autor ficou ferido tendo sido assistido no local e, após, transportado para os Serviços de Urgências do Centro Hospitalar 1..., Porto. (…)

35. O embate ocorreu após o cruzamento com a Rua ..., sentido nascente/poente.

36. Nos momentos antecedentes do embate ambos os veículos seguiam na Rua ..., no sentido nascente/poente, no mesmo sentido de marcha.

37. O condutor do veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula ..-VA-.. acionou o pisca à direita aquando do referido em 14. e começa a encostar à direita, para mais à frente tomar a Rua ....

38. O motociclo de matrícula ..-..-XD conduzido pelo autor seguia mais atrasado em relação ao veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula ..-VA-.., seguro na ré.

39. O motociclo de matrícula ..-..-XD e o veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula ..-VA-.. colidiram lateralmente na zona traseira direita do ligeiro, indo o motociclo atingir peões que se encontravam no passeio e embatendo na pedra de uma loja.

40. Após o embate, o motociclo faz ricochete e volta para a rua onde ficou imobilizado no asfalto.

41. O veículo que o autor conduzia é uma moto de 600 cm3 de cilindrada que pesa 187kgs.

42. O local é uma via movimentada do centro do Porto, com passadeiras para peões e grande circulação de pessoas e veículos. (…)”

19.º Com base da referida factualidade o segurado da ré A... foi considerado culpado pela ocorrência do acidente. 

*

Passemos à apreciação do mérito do recurso.

I. Apurar se a decisão recorrida enferma das nulidades previstas nos arts. 615º, nº 1, als. c), 2ª parte e d) do Cód. de Proc. Civil [obscuridade que torne a decisão ininteligível; omissão de pronúncia]

1. A ré/recorrente principia por relativamente à decisão recorrida suscitar a sua nulidade, uma vez que a expressão “no que diz respeito à dinâmica do acidente” não identifica os concretos pontos de facto ou as conclusões jurídicas que entende surtirem efeitos nos presentes autos.

Tal significa, na sua perspetiva, que a decisão é ininteligível e, por isso, nula.

O art. 615º, nº 1, al. c) do Cód. de Proc. Civil, na sua segunda parte, estatui que a sentença é nula quando ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.  

Escreve LEBRE DE FREITAS (in “A Ação Declarativa Comum”, 4ª ed., pág. 382) que a ininteligibilidade da decisão verifica-se quando não seja percetível qualquer sentido da parte decisória (obscuridade) ou quando esta encerre um duplo sentido (ambiguidade), sendo ininteligível para um declaratário normal.

É o seguinte o texto da parte decisória do despacho recorrido, proferido em 20.12.2023:

“(…) julgo procedente a excepção dilatória de caso julgado, na sua vertente de efeitos externos, no que diz respeito à dinâmica do acidente, determinando o prosseguimento dos autos apenas para apreciação dos pedidos de indemnização formulados pelo autor.”

Ora, deste mera leitura logo flui que o segmento decisório não é obscuro, porque não é impercetível, nem é ambíguo, porque não encerra qualquer duplo sentido.

Ou seja, é percetível que a Mmª Juíza “a quo” decidiu que a matéria factual relativa à forma como o acidente se deu (a sua dinâmica) se encontrava assente por virtude da eficácia externa do caso julgado e que os autos, em termos de audiência de julgamento, iriam prosseguir apenas para apreciação dos pedidos indemnizatórios formulados pelo autor.

Como tal não se verifica a nulidade prevista no art. 615º, nº 1, al. c), 2ª parte, do Cód. de Proc. Civil.

2. A ré/recorrente argui também a nulidade da decisão, por nela ter sido omitido o argumento por si apresentado – de que o processo aqui em causa, diferentemente do já julgado é suscetível de recurso até ao STJ e assim mais garantístico -, o que, na sua ótica, constitui omissão de pronúncia.

O art. 615º, nº 1, al. d) do Cód. de Proc. Civil diz-nos que é nula a sentença quando o juiz deixe de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar.

Sucede que a nulidade de omissão de pronúncia está diretamente relacionada com o comando que se contém no art. 608º, nº 2 do Cód. do Proc. Civil, onde se preceitua que «o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.»

“Resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação” não significa considerar todos os argumentos que, segundo as várias vias, à partida plausíveis, de solução do pleito, as partes tenham deduzido ou o próprio juiz possa inicialmente ter admitido: por um lado, através da prova, foi feita a triagem entre as soluções que deixaram de poder ser consideradas e aquelas a que a discussão jurídica ficou reduzida; por outro lado, o juiz não está sujeito às alegações das partes quanto à indagação, interpretação e aplicação das normas jurídicas (art. 5º, nº 3) e, uma vez motivadamente tomada determinada orientação, as restantes que as partes hajam defendido não têm de ser separadamente analisadas.

Há, assim, que distinguir entre “questões”, por um lado, e “razões” ou “argumentos”, por outro, de tal modo que só a falta de apreciação das primeiras (“questões”) integra a nulidade aqui em apreciação e não a simples falta de discussão das “razões” ou “argumentos” invocados para concluir sobre as questões.”
Na verdade, trata-se de coisas diferentes deixar de conhecer de questão de que devia conhecer-se e deixar de apreciar-se qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão - cfr. LEBRE DE FREITAS, ob. cit., pág. 367; ALBERTO DOS REIS, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, 1984, reimpressão, pág. 143.
Em sintonia com o acabado de expor no plano jurisprudencial constitui orientação pacífica que “para efeitos de nulidade de sentença/acórdão há que não confundir «questões» com considerações, argumentos, motivos, razões ou juízos de valor produzidos pelas partes nos seus articulados, e aos quais o tribunal não tem obrigação de dar resposta especificada ou individualizada, sem com isso incorrer em omissão de pronúncia.” - Cfr. Ac. STJ de 27.3.2014, relator ÁLVARO RODRIGUES, proc. 555/2002.E2.S1, disponível in www.dgsi.pt.

Regressando ao caso concreto, o que se verifica é que a questão que foi colocada e que se reconduz à apreciação dos efeitos, nos presentes autos, do caso julgado decorrente de entretanto ter transitado a sentença proferida no processo com o nº 387/20.9 T8PRT, que versa sobre o mesmo acidente de viação, se mostra devidamente apreciada na decisão recorrida.

A circunstância de não ter sido tomado em conta, nessa decisão, o argumento referido pela ré/recorrente no sentido do não acolhimento da eficácia externa do caso julgado, centrado no facto de os presentes autos serem mais garantísticos em virtude de permitirem, diferentemente dos já julgados, o recurso até ao STJ, por se reduzir precisamente à dimensão de um argumento, mesmo que possa fragilizar o decidido, não constitui omissão de pronúncia para os efeitos do art. 615º, nº 1, al. d) do Cód. de Proc. Civil.

Por conseguinte, também esta nulidade não ocorre.


*

II. Apurar se deve ser alterada a redação do ponto nº 16 da matéria de facto considerada relevante

A ré/recorrente sustenta depois que o ponto nº 16 deve ser removido do elenco da factualidade assente, sendo substituído por um outro ponto factual com a seguinte redação:

- O desfecho das duas ações hospitalares pendentes contra as rés, estão suspensas tendo as rés, companhias de seguros, acordado em vincularem-se ao que fosse decidido nos presentes autos e, no que à posição da ré A... contende, ainda no que fosse decidido na acção instaurado pelo segurado da B... contra a ré A..., que correu termos sob o n.º 387/20.9T8PRT”.

Se assim não se entender, considera que este ponto factual deverá ser aditado.

Vejamos.

O segmento da decisão recorrida, que foi identificado como constituindo os “factos provados por documento com relevo para o conhecimento da excepção dilatória”, corresponde ao histórico dos elementos processuais que a Mmª Juíza “a quo” entendeu terem interesse para decidir, nestes autos, da questão da autoridade do caso julgado formado pela sentença proferida no âmbito do processo com o nº 387/20.9 T8PRT.

O seu nº 16 pretende reproduzir no essencial o requerimento apresentado pela ré “B...” em 12.9.2023, mas, lendo-o, verifica-se que o segundo parágrafo deste ponto [Acrescenta que as duas acções hospitalares pendentes contra as rés, estão suspensas tendo as rés, companhias de seguros, acordado em vincularem-se ao que fosse decidido na acção instaurada pelo segurado da B... contra a ré A...] não se mostra inteiramente consentâneo com tal requerimento.

Com efeito, o que nele se escreve é que as duas ações hospitalares estão suspensas nos termos do acordado pelas partes que foi o seguinte:

As rés desde já aceitam vincular-se à decisão que venha a ser proferida nesse processo[1], no que respeita à culpa na produção do sinistro, em caso de condenação destas, sendo certo que no caso da A... SA, a referida vinculação depende ainda da mesma ser condenada, por transito em julgado, por exclusiva responsabilidade do veiculo seguro, na Acção pendente sobre o nº 387/20.9T8PRT do Juiz 2 do Juízo Local Cível do Porto, Ação essa na qual é autor BB, condutor do veiculo seguro da segunda ré e relativo aos danos pelo mesmo sofridos no mesmo acidente.”.

Deste modo, e também com o objetivo do ponto nº 16 melhor se compaginar com o requerimento apresentado pela ré/recorrente em 25.9.2023 e com o teor do que foi acordado relativamente às ações hospitalares, decide-se que o seu segundo parágrafo passe a ter a seguinte redação:

- Acrescenta que as duas ações hospitalares pendentes contra as rés estão suspensas, tendo as rés, companhias de seguros, aceitado vincular-se à decisão que venha a ser proferida nestes autos, no que respeita à culpa na produção do sinistro, em caso de condenação destas, sendo certo que no caso da “A... SA”, a referida vinculação depende ainda da mesma ser condenada, por trânsito em julgado, por exclusiva responsabilidade do veiculo seguro, na acção pendente com o nº 387/20.9T8PRT do Juiz 2 do Juízo Local Cível do Porto, ação essa na qual é autor BB, condutor do veiculo seguro da segunda ré e relativo aos danos pelo mesmo sofridos no mesmo acidente.


*

III. Apurar se a autoridade de caso julgado resultante da sentença, transitada, proferida no processo com o nº 387/20.9T8PRT do Juízo Local Cível do Porto – Juiz 2 deverá ser estendida aos presentes autos

1. Na decisão recorrida entendeu-se que nos presentes autos ocorre autoridade de caso julgado em resultado da sentença proferida no âmbito do processo com o nº 387/20.9 T8PRT do Juízo Local Cível do Porto – Juiz 2 e, em consequência, entendeu-se que não podem ser novamente apreciados os factos relativos à dinâmica do acidente, a qual se consolidou na esfera jurídica da ré “A...” e das outras partes no processo.

Este entendimento teve a discordância da ré “A...”, em via recursiva, sustentando esta que não se verifica uma situação de autoridade do caso julgado, pois estamos perante duas situações fáctico-jurídicas diversas, em que primeiramente ocorre uma colisão entre dois veículos e depois um atropelamento de peões, sendo que no processo nº 387/20.9 T8PRT apenas se cuidou de apreciar a dinâmica da colisão de veículos.

Alegou ainda não ser possível estender a autoridade do caso julgado aos presentes autos, uma vez que as demais partes não tiveram intervenção no processo nº 387/20.9 T8PRT. 

Vejamos então.

2. As exceções de litispendência e caso julgado, previstas no art. 580º do Cód. de Proc. Civil, “…têm na sua base a ideia de repetição, que surge quando os elementos definidores das duas ações são os mesmos.”

(…)

“Além dum objetivo manifesto de economia processual, as exceções da litispendência e do caso julgado visam evitar que a causa seja julgada mais do que uma vez, o que brigaria com a força do caso julgado. Não faria, efetivamente, sentido que, proferida e transitada em julgado uma decisão, o tribunal (o mesmo ou outro), fora dos casos excecionais em que tal é permitido (recurso extraordinário de revisão…), fosse de novo ocupar-se, perante as mesmas partes, do mesmo objeto, reapreciando-o, quer para reproduzir a decisão anterior (o que seria inútil), quer para a contradizer, decidindo diversamente (o que desfaria a sua eficácia). Havendo já caso julgado, a decisão, que o nº 2 proíbe de reproduzir ou contradizer, está já adquirida (…)” – cfr. LEBRE DE FREITAS e ISABEL ALEXANDRE, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. 2º, 4ª ed., pág. 590.

Os requisitos do caso julgado e também da litispendência vêm definidos no art. 581º do Cód. do Proc. Civil, sendo a identidade dos sujeitos, do pedido e da causa de pedir (nº 1). Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica (nº 2). Há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico (nº 3) e há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico (nº 4).

3. Nos presentes autos, face à não verificação daquela tríplice identidade, é manifesto não estarmos perante situação processual que possa ser enquadrável na exceção dilatória de caso julgado, impondo-se, porém, indagar, como se fez na decisão recorrida, da eventual verificação de autoridade de caso julgado, decorrente esta da decisão, transitada em julgado, proferida no âmbito do processo com o nº 387/20.9 T8PRT do Juízo Local Cível do Porto – Juiz 2, que versou sobre o mesmo acidente de viação, embora este aí seja encarado na perspetiva da colisão ocorrida entre os dois veículos, conduzidos pelos segurados das rés “A...” e “B...” e aqui seja visto na perspetiva do atropelamento do peão/autor subsequentemente ocorrido.

Conforme escreve JACINTO RODRIGUES BASTOS, apoiando-se no ensinamento de MANUEL DE ANDRADE, (in “Notas ao Código de Processo Civil”, vol. III, 3ª ed., pág. 45) “a primeira destas noções refere-se à qualidade ou valor jurídico especial que compete às decisões judiciais a que diz respeito; a segunda constitui um meio de defesa do réu, baseado na força e autoridade do caso julgado (material) que compete a uma precedente decisão judicial. Enquanto que a autoridade do caso julgado tem por finalidade evitar que a relação jurídica material, já definida por uma decisão com trânsito, possa vir a ser apreciada diferentemente por outra decisão, com ofensa da segurança jurídica, a excepção destina-se a impedir uma nova decisão inútil, com ofensa do princípio da economia processual.”

Por seu turno, MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA (in “O Objecto da Sentença e o Caso Julgado Material” - BMJ nº 325, págs. 171 e segs.) distingue esses mesmos conceitos da seguinte forma: “Quando o objecto processual anterior é condição para a apreciação do objecto processual posterior, o caso julgado da decisão antecedente releva como autoridade de caso julgado material no processo subsequente; quando a apreciação do objecto processual antecedente é repetido no objecto processual subsequente, o caso julgado da decisão anterior releva como excepção do caso julgado.” (cfr. pág. 171)

Mais adiante acrescenta: “A excepção do caso julgado visa evitar que o órgão jurisdicional, duplicando as decisões sobre idêntico objecto processual, contrarie na decisão posterior o sentido da decisão anterior ou repita na decisão posterior o conteúdo da decisão anterior.” (cfr. pág. 176)

“Quando vigora a autoridade do caso julgado, o caso julgado material manifesta-se no seu aspecto positivo de proibição de contradição da decisão transitada: a autoridade do caso julgado é o comando da acção ou proibição de omissão respeitante à vinculação subjectiva e à repetição no processo subsequente do conteúdo da decisão anterior e à não contradição no processo posterior do conteúdo da decisão antecedente.” (cfr. pág. 179).

Hoje em dia esta distinção não suscita dúvidas.

A exceção de caso julgado, cuja finalidade é a de evitar a repetição de causas, tem como requisitos os que se mostram definidos no art. 581º do Cód. do Proc. Civil (identidade de sujeitos, de pedido e de causa de pedir).

A autoridade de caso julgado, por seu turno, funciona independentemente da verificação daquela tríplice identidade, pressupondo, porém, a decisão de determinada questão que não pode voltar a ser discutida.

Isto é, se no processo subsequente não existe nada de novo a decidir relativamente ao que fora decidido no processo precedente, porque os objetos de ambos coincidem na íntegra, ocorre a exceção dilatória de caso julgado. Já se o objeto do processo anterior não abarca esgotantemente o objeto do processo posterior e neste existe extensão não abrangida no objeto do processo anterior, existindo, porém, uma relação de dependência ou prejudicialidade entre os dois objetos, ocorre a autoridade do caso julgado.[2]

Prosseguindo, citar-se-á de novo MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA (in “Estudos sobre o Novo Processo Civil”, 1997, págs. 578/9) que escreve: “como toda a decisão é a conclusão de certos pressupostos (de facto ou de direito) o respectivo caso julgado encontra-se sempre referenciado a certos fundamentos. Assim, reconhecer que a decisão está abrangida pelo caso julgado não significa que ela valha, com esse valor, por si mesma e independentemente dos respectivos fundamentos. Não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário, que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo: o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge esses fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão.”

E mais adiante acrescenta (in ob. e loc. cit.) que “o caso julgado também possui um valor enunciativo: essa eficácia do caso julgado exclui toda a situação contraditória ou incompatível com aquela que ficou definida na decisão transitada.”

De tal modo que se deverá entender que na expressão «precisos limites e termos em que julga», utilizada no art. 621º do Cód. do Proc. Civil[3] para definir o alcance do caso julgado, estão compreendidas todas as questões solucionadas na sentença e conexas com o direito a que se refere a pretensão do autor.[4]

A autoridade do caso julgado visa assim evitar que a questão decidida pelo órgão jurisdicional possa ser validamente definida, mais tarde, em termos diferentes por outro ou pelo mesmo tribunal, sempre se pressupondo, para tal, a existência de uma conexão que impeça que a primeira decisão, transitada em julgado, seja contraditada pela segunda.

Tal como ensinam LEBRE DE FREITAS e ISABEL ALEXANDRE (in ob. cit., pág. 599), se com a exceção do caso julgado se visa o efeito negativo da inadmissibilidade da segunda ação, constituindo-se o caso julgado em obstáculo a nova decisão de mérito, com a autoridade do caso julgado tem-se antes em vista o efeito positivo de impor a primeira decisão, como pressuposto indiscutível de segunda decisão de mérito. “Este efeito positivo assenta numa relação de prejudicialidade: o objeto da primeira decisão constitui questão prejudicial na segunda ação, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há-de ser proferida…”.

A autoridade de caso julgado funda-se, pois, na existência de relações, já não de identidade jurídica (exigível apenas quanto à exceção de caso julgado), mas de prejudicialidade entre objetos processuais: julgada, em termos definitivos, certa questão em ação que correu termos entre determinadas partes, a decisão sobre o objeto dessa primeira causa impõe-se necessariamente em todas as ações que venham a envolver as mesmas partes, ainda que incidindo sobre um objeto diverso, mas cuja apreciação dependa decisivamente do objeto previamente julgado, perspetivado como verdadeira relação condicionante ou prejudicial da relação material controvertida na ação posterior.[5]

4. Retornando ao caso dos autos verifica-se que o acidente de viação em apreciação nestes autos e também no processo nº 387/20.9 T8PRT, que se desdobra numa colisão entre dois veículos e no subsequente e imediato atropelamento de um peão, é precisamente o mesmo.

Não se tratam de dois acidentes distintos, o que bem resulta da factualidade dada como assente no acórdão proferido no dito processo nº 387/20.9 T8PRT, que se vai transcrever na sua parte mais relevante, onde se abrange na dinâmica do acidente o atropelamento do peão, aqui autor:

6. Nas sobreditas circunstâncias de tempo e lugar, o veículo do autor, motociclo de matrícula ..-..-XD, encontrava-se parado na Rua ..., na cidade do Porto, no sentido descendente, antes do entroncamento com a Rua ....

7. O motociclo parou em obediência a um sinal de semáforo, cuja luz se encontrava vermelha.

8. À data, no local a via compreende duas filas de trânsito no mesmo sentido, sendo ladeada por passeios, quer do lado esquerdo, quer do lado direito.

9. E formando uma reta com mais de cem metros de extensão, que mais adiante é atravessada pela Rua ....

10. Junto ao semáforo o motociclo, conduzido pelo autor BB, encontrava-se parado na fila da direita.

11. À sua esquerda encontrava-se parado o veículo de matrícula ..-VA-.., ocupando a fila da esquerda.

12. A certa altura a luz do semáforo passa a verde e os veículos retomaram a sua marcha.

13. Os veículos avançam alguns metros, cerca de 20 a 30 metros.

14. O veículo automóvel de matrícula ..-VA-.. inicia uma manobra de mudança de fila de trânsito da esquerda para a direita.

14-A. Ocasião em que o motociclo de matrícula ..-..-XD encontrava-se a circular pela faixa de rodagem da direita daquela mesma via, ocorrendo de seguida o embate entre o motociclo de matrícula ..-..-XD e o veículo automóvel de matrícula ..-VA-...

15. Com o embate o motociclo deslizou desgovernado para o passeio do lado direito, onde atropelou peões, transeuntes no local.”[6]

Aliás, a própria ré “A...” apresentou em 25.2.2022 nestes autos um requerimento a solicitar a apensação dos dois processos, que foi indeferido em virtude dos processos se encontrarem em fases diferentes, tendo alegado o seguinte:

2. O objecto da acção é a apreciação da responsabilidade pela ocorrência do mesmo acidente de viação, sendo que ali se apuram os danos do referido condutor e neste, os de um peão atropelado pelo motociclo.

3. Ou seja, as acções estão dependentes da apreciação dos mesmos factos quanto à causa de pedir (…).

4. Tratando-se do mesmo acidente de viação, razões fundadas de segurança e uniformidade nas decisões justificam a apensação e julgamento conjunto de ambas as demandas. (…)[7]

Constata-se assim que a “A..., SA”, que no processo nº 387/20.9T8PRT, tal como no presente, tem a qualidade de ré, admite de forma muito clara estar-se perante o mesmo acidente de viação.

5. Há, no entanto, um problema que se coloca.

Se é certo que a ré “A...” foi parte no dito processo nº 387/20.9T8PRT com o aí autor BB, já o mesmo não acontece com a ré “B...” e com o aqui autor AA, que não intervieram nesse processo, donde resulta que as partes não são as mesmas.

Será então que esta situação, donde resulta serem diferentes as partes nas duas ações, pode obstar à extensão aos presentes autos da autoridade de caso julgado decorrente da sentença proferida no processo nº 387/20.9T8PRT?

Vejamos.

A ré “B...”, confrontando-se com uma sentença em que o seu segurado obteve vencimento, naturalmente que dela pretende beneficiar, vinculando-se ao que aí foi decidido quanto à matéria de facto relativa à dinâmica do acidente de viação.

Nesse sentido, escreveu no seu requerimento de 12.9.2023 que “aceita os factos que o Tribunal da Relação do Porto (2ª. Secção) deu como provados no processo nº.387/20.9T8PRT.P1”.

Já o autor, mais cauteloso, até porque lhe é indiferente que a culpa na eclosão do acidente seja atribuída ao segurado da “A...” ou ao segurado da “B...” ou aos dois em concorrência, no seu requerimento também de 12.9.2023, limitou-se a escrever que “não faz sentido iniciar um Julgamento quando, atento o referido Acórdão, os presentes autos poderão desde logo ser saneados quanto à responsabilidade, prosseguindo apenas quanto à aferição dos danos.” Mas depois, quando notificado para se pronunciar quanto aos efeitos do caso julgado daquele caso julgado, nada disse de concreto quanto à sua extensão.

Por seu turno, no que toca à ré “A..., SA”, que, através do presente recurso, se opõe à extensão do caso julgado aos presentes autos, verifica-se que esta foi igualmente ré no processo nº 387/20.9T8PRT e aí teve oportunidade de contraditar a dinâmica do acidente em apreciação nos presentes autos.

6. É sabido que a larga extensão da autoridade de caso julgado, que tem vido a ser defendida por amplos setores da nossa jurisprudência, foi alvo de significativos reparos pelo Prof. LEBRE DE FREITAS no seu artigo “Um Polvo Chamado Autoridade do Caso Julgado” (in Revista da Ordem dos Advogados, III, IV, 2019, disponível in portal.oa.pt.).  

Tomou como um dos seus exemplos o Ac. STJ de 27.2.2018, p. 2742/05.8TBSTR.E1 (disponível in www.dgsi.pt.), tirado num caso próximo do nosso. Aí a ré seguradora figura como parte em ambas as ações, tendo tido intervenção sempre na qualidade de ré. Entendeu-se neste aresto ser oponível a autoridade de caso julgado, concretamente quanto à prova dos factos respeitantes à dinâmica do acidente. Assim, aquela outra sentença vincularia definitivamente a aqui ré/recorrente, impedindo-a de discutir novamente, nesta ação, os factos nela dados como provados relativos à dinâmica do acidente.

Sucede que o Prof. LEBRE DE FREITAS discorda deste entendimento, considerando que, quanto ao argumento fulcral de que tendo sido a seguradora parte em ambas as causas já havia exercido o contraditório no tocante à dinâmica do acidente, se esquece que a solução legal para o caso é outra, residindo na eficácia extraprocessual dos meios de prova produzidos na primeira ação, sem prejuízo do confronto com aqueles que venham a ser produzidos na segunda.

Também sobre esta questão se debruçou o Prof. RUI PINTO no seu artigo “Exceção e Autoridade do Caso Julgado – Algumas Notas Provisórias” (in Revista Julgar Online, novembro de 2018), no qual sublinha que está em causa uma adesão ao caso julgado não prevista estritamente na lei, o que tornaria questionável a sua admissibilidade.

No fundo, trata-se de saber se um terceiro pode, ou não, opor a alguém, mais concretamente a seguradora, que foi parte do processo que terminou com sentença, essa mesma sentença.

Em sentido afirmativo se pronunciou o já referido Ac. STJ de 27.2.2018, onde se escreveu que “…tendo tido a Ré … oportunidade de, no âmbito deste processo, realizar a sua defesa – e tendo-se concluído aí que tem responsabilidade, sendo uma responsabilidade exclusiva em substituição do segurado –, não faz sentido que venha pretender que o apuramento dos factos e inerente responsabilidade possam ser efetuados de modo diferente no âmbito de outro processo judicial, em que se discute o mesmo acidente, com as mesmas circunstâncias factuais e pedidos do mesmo tipo, invocando que aqui não funciona a autoridade de caso julgado”.

O Prof. RUI PINTO, embora expressando reservas quanto a este entendimento, termina por aceitar “que a limitação inter partes do caso julgado se justifica pela necessidade de proteger quem não se pode defender; se é o próprio a querer “usar” da decisão, parece ser de defender a existência de um princípio de adesão ao caso julgado alheio. O único limite será, naturalmente, a indisponibilidade substantiva dos respetivos direitos.

Parece, em conclusão, que se pode pugnar pela existência de um princípio de adesão voluntária de quem seja materialmente terceiro ao caso julgado alheio.”

Este autor centra, assim, a sua análise na perspetiva do “terceiro” que, voluntariamente, prescinde de apurar certos factos e prefere aderir aos já apurados noutra ação, mais favoráveis às suas pretensões, relativos à dinâmica do acidente, sabendo que os mesmos foram já definitivamente discutidos e apurados relativamente à seguradora que é ré em ambos os processos.

Por seu turno, o Prof. LEBRE DE FREITAS, divergindo deste entendimento, assenta a sua argumentação na perspetiva dessa outra parte que, tendo que arcar com a exceção de caso julgado relativamente aos sujeitos, causa de pedir e pedido dessa outra ação, já não deveria ter esse encargo, através do que diz ser uma indevida extensão da figura da autoridade do caso julgado, relativamente a um outro sujeito processual que nunca interveio anteriormente. Admitir o contrário implicaria não ter em conta que “a diversidade de causas de pedir e de pedidos pode implicar variações apreciáveis no interesse da parte em contradizer e levar até a que a parte vencida descure a sua defesa (revelia, falta de impugnação de factos, falta de apresentação de provas)”.

Conforme se afirma no Ac. Rel. Porto de 23.2.2021 (p. 1358/20.0T8PNF-A.P1, disponível in www.dgsi.pt), com a extensão da autoridade de caso julgado protegem-se os princípios de certeza e segurança jurídicas, vedando-se, na medida do possível, decisões judiciais opostas ou contraditórias, assegurando-se igualmente uma desejada celeridade e simplificação processuais.

Porém, seguindo-se esta orientação, sempre se justificará criticá-la por envolver uma interpretação excessivamente abrangente da lei, permitindo a extensão da autoridade do caso julgado a sujeitos processuais que antes não tinham intervindo.

De qualquer modo, afigura-se-nos acertada a posição assumida no referido Ac. Rel. Porto de 23.2.2021, desta mesma secção, onde se consignou no respetivo sumário que “[a] adesão voluntária de quem seja materialmente terceiro ao caso julgado alheio pode, caso esteja assegurado no processo inicial o exercício de um contraditório efectivo pela parte vencida, implicar a aplicação da autoridade do caso julgado de molde a obstar a decisões opostas, consagrando-se assim os valores da certeza e segurança jurídicas em ordem a uma benquista celeridade processual.”

7. Todavia, regressando ao caso “sub judice”, para solucionar a questão da extensão da autoridade de caso julgado decorrente da sentença proferida no processo nº 387/20.9T8PRT há que ter em atenção as circunstâncias específicas que fluem dos presentes autos.   

Assim, se se constata que a ré “B...” veio manifestar a sua intenção de se fazer valer do decidido nesses autos quanto à matéria de facto relativa à dinâmica do acidente de viação, aderindo ao caso julgado alheio, também não podemos ignorar que, anteriormente, no âmbito das duas ações hospitalares pendentes contra as rés “A...” e “B...”, onde a instância foi suspensa, estas acordaram em vincular-se à decisão que venha a ser proferida nos presentes autos, no que respeita à culpa na produção do sinistro, em caso de condenação destas, sendo certo que no caso da “A... SA”, a referida vinculação depende ainda da mesma ser condenada, por trânsito em julgado, por exclusiva responsabilidade do veiculo seguro, na acção pendente com o nº 387/20.9T8PRT do Juiz 2 do Juízo Local Cível do Porto, ação essa na qual é autor BB, condutor do veiculo seguro da segunda ré e relativo aos danos pelo mesmo sofridos no mesmo acidente.   

Ou seja, a vinculação das seguradoras, ambas aqui rés, reporta-se ao que for decidido nos presentes autos, quanto à culpa na produção do sinistro, sendo que quanto à ré “A...” essa vinculação dependeria igualmente da sua condenação, por trânsito em julgado, na ação nº 387/20.9T8PRT.

Daí decorre que a adesão da ré “B...” ao decidido no proc. nº 387/20.9T8PRT contraria o que esta anteriormente acordara, de forma livre e voluntária, com a ré “A...”.

E quanto ao autor AA a sua adesão ao caso julgado alheio decorrente da sentença proferida no processo nº 387/20.9T8PRT, não é expressa nem explícita, salientando-se que, apesar de notificado para tal efeito, nunca se pronunciou sobre os efeitos daquele caso julgado nos presentes autos.

O que se compreende, porquanto tendo intentado a presente ação contra as rés “A...” e “B...” lhe é indiferente que a culpa na verificação do acidente seja atribuída ao segurado de uma ou de outra ou, em concorrência, a ambos os segurados.

Prosseguindo, também se deverá ter em atenção que o valor da presente ação ascende a 100.478,68€, o que implica correr os seus trâmites em Juízo Central e admitir recurso até ao Supremo Tribunal de Justiça, ao passo que o pedido formulado no âmbito do processo nº 387/20.9T8PRT se cinge a 10.046,91€, donde resulta correr este processo em Juízo Local e admitir recurso apenas até ao Tribunal da Relação.

Acontece que uma tão substancial diferença de valores entre os dois processos pode sempre levar o réu, naquele que tem menos valor, a não investir tanto na sua defesa, concentrando a sua atenção no de maior expressão pecuniária, mesmo tratando-se de uma avisada entidade seguradora.

Para além de que um processo que, pelo seu valor, admite recurso até ao Supremo Tribunal de Justiça oferece sempre mais garantias às partes que nele intervêm do que um em que esse recurso não é possível.

8. Neste contexto, considerando que o autor AA não manifestou intenção expressa de se fazer valer do caso julgado alheio e que a ré “B...”, que o pretende, acordara anteriormente com a ré “A...”, no âmbito das ações hospitalares conexas com o acidente de viação aqui em apreciação, em vincular-se à decisão que fosse proferida nos presentes autos, não se pode, a nosso ver, estender a estes a autoridade do caso julgado decorrente da sentença proferida no processo com o nº 387/20.9T8PRT.

Os valores da certeza e da segurança jurídicas não deverão, neste caso, sobrepor-se à possibilidade de ocorrência de decisões judiciais não coincidentes. 

Tal significa que se poderá discutir no âmbito dos presentes autos a dinâmica do acidente de viação aqui em apreço, como o pretende a ré “A...”, tendo-se sempre em atenção a disciplina do art. 421º do Cód. de Proc. Civil, relativo ao valor extraprocessual das provas, onde se diz que «os depoimentos e perícias produzidos num processo com audiência contraditória da parte podem ser invocados noutro processo contra a mesma parte, sem prejuízo do disposto no nº 3 do art. 355º do Código Civil; se, porém, o regime de produção da prova do primeiro processo oferecer às partes garantias inferiores às do segundo, os depoimentos e perícias produzidos no primeiro só valem no segundo como princípio de prova.»

Por conseguinte, impõe-se a procedência do recurso interposto com a consequente revogação da decisão recorrida, prosseguindo os autos também para apreciação da dinâmica do acidente.[8]


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Finalmente, quanto à questão identificada em IV – pagamento de taxa de justiça por parte da ré/recorrente – a sua apreciação encontra-se prejudicada (cfr. art. 608º, nº 2, 1ª parte, do Cód. de Proc. Civil).

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Sumário (da responsabilidade do relator – art. 663º, nº 7 do Cód. de Proc. Civil):

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DECISÃO

Nos termos expostos, acordam os juízes que constituem este Tribunal em julgar procedente o recurso de apelação interposto pela ré “A..., SA” e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida e determina-se o prosseguimento dos autos também para apreciação da dinâmica do acidente.

Custas do recurso, pelo seu decaimento, a cargo da ré “B... PLC – Sucursal em Portugal”.


Porto, 18.6.2024
Rodrigues Pires
Alberto Taveira
Fernando Vilares Ferreira
________________
[1] Os presentes autos.
[2] Cfr., por ex., Ac. Rel. Porto de 13.1.2011, p. 2171/09.1TBPVZ.P1 e Ac. Rel. Porto de 24.11.2015, proc. 346/14.0 T8PVZ.P1 ambos disponíveis in www.dgsi.pt; Ac. Rel. Guimarães de 5.2.2009, CJ, ano XXXIV, tomo I, pág. 301 e segs.; Ac. STJ de 26.1.1994, BMJ nº 433, 515.
[3] É a seguinte a redacção do art. 621º: «A sentença constitui caso julgado nos precisos termos em que julga: se a parte decaiu por não estar verificada uma condição, por não ter decorrido um prazo ou por não ter sido praticado determinado facto, a sentença não obsta a que o pedido se renove quando a condição se verifique, o prazo se preencha ou o facto se pratique.»
[4] Cfr. neste sentido, por ex., Ac. STJ de 22.4.2008, p. 08A778, in www.dgsi.pt., Ac. STJ de 30.4.1996, CJ STJ, Ano IV, Tomo II, págs. 48/50; Ac. STJ de 6.2.1996, BMJ nº 454, págs. 599/606; Ac. Rel. Coimbra de 22.1.1997, CJ, Ano XXII, Tomo I, págs. 22/25; Ac. Rel. Porto de 9.9.2008, p. 0820709, disponível in www.dgsi.pt.
[5] Cfr. Ac. Rel. Porto de 21.11.2016, proc. 1677/15.8T8VNG.P1, disponível in www.dgsi.pt.
[6] Sublinhado nosso.
[7] Sublinhados nossos
[8] Rejeitando a extensão da autoridade de caso julgado em casos com alguma similitude com o presente, embora com argumentação diversa, cfr. os Acórdãos do STJ de 1.10.2019, p. 653/14.2T8LRS.L1.S1 [“O sinistrado no âmbito de um acidente de viação que pretende exercer o seu direito indemnizatório contra a seguradora do veículo, não pode ser considerado abrangido pela esfera de identidade de sujeitos e de pedido que emerge dos nºs 2 e 3 art. 581º do Código de Processo Civil, relativamente a uma pretérita acção em que foi apreciada a dinâmica do mesmo acidente de viação, intentada pelo proprietário do veículo que aquele conduzia, com o objectivo de ser ressarcido pelos danos causados ao veículo. Com efeito, nem o sinistrado foi parte naquele processo, não tendo tido oportunidade de se defender perante a imputação de responsabilidade, nem o pedido se reportava aos danos por si sofridos”] e de 26.11.2020, p. 7597/15.9T8LRS.L1.S1 [“Não tendo o ora autor sido parte numa ação intentada por outra sinistrada contra a aqui ré seguradora, emergente do mesmo acidente de viação, sendo aquele um terceiro relativamente ao correspondente vínculo obrigacional entre essa sinistrada e a mesma ré, não pode aquele autor opor a esta ré o caso julgado favorável formado naquela ação, nos termos do artigo 531º, 2ª parte, do CC. E também não o pode por via extensiva da autoridade de caso julgado, dada a falta da necessária identidade dos respetivos autores.”].