Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
10739/21.1T8PRT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANABELA DIAS DA SILVA
Descritores: PROCESSO DE INVENTÁRIO
CUMULAÇÃO DE INVENTÁRIOS
RELAÇÃO DE BENS COMUNS
Nº do Documento: RP2024071010739/21.1T8PRT-A.P1
Data do Acordão: 07/10/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – Se não se procedeu a inventário por óbito do cônjuge predefunto não pode a cumulação de inventários deixar de ser ordenada quando requerida.
II – Atualmente no processo de inventário e na fase de saneamento, o juiz, após a realização das diligências necessárias, deve decidir, em princípio e se ainda tal não aconteceu, todas as questões ou matérias litigiosas que condicionam a partilha e a definição do património a partilhar e também proferir despacho sobre a forma da partilha.
III – Nos autos, finda fase inicial do processo de inventário, dúvidas não existem sobre os inventariados, sua relação matrimonial, e regime de bens desse casamento e também dúvidas não existem sobre quem são os herdeiros dos mesmos e suas quotas ideais, e finalmente, após decisão sobre as reclamações apresentadas e respetivas decisões, está também assente quais os bens que hão de ser partilhados nos autos, pelo que nada há a decidir que condicione a partilha.
IV - Tratando-se de uma cumulação de inventários de dois falecidos que foram casados entre si sob o regime da comunhão de bens, o acervo a partilhar é o património comum desses falecidos cônjuges que constitui uma massa patrimonial a que, em vista da sua especial afetação, a lei concede certo grau de autonomia - embora limitada e incompleta - mas que pertence à herança dos dois falecidos, em bloco.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação
Processo n.º 10739/21.1T8PRT-A.P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo Local Cível do Porto – Juiz 2
Recorrente – AA
Recorrida – BB
Relatora – Anabela Dias da Silva
Adjuntos – Desemb. João Diogo Rodrigues
Desemb. Artur Dionísio dos Santos Oliveira

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I – Nos autos de inventário facultativo e cumulado, interposto em 30.06.2021 no Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo Local Cível do Porto por AA e onde desempenha as funções de cabeça de casal BB para partilha das heranças abertas por óbito: de CC falecida a 28.01.2015, no estado de casada com DD e sem ter deixado testamento ou outra disposição de última vontade e de e DD falecido a 1.01.2018, no estado de viúvo de CC, tendo deixado testamento através dispôs da sua quota disponível à sua filha, ora cabeça de casal.

Foi, oportunamente, (em 14.10.2021) junta aos autos uma Relação de Bens à qual foi, em 28.11.2021, apresentada pelo requerente reclamação, e após várias diligências, foi, em 16.09.2022, determinada a notificação da cabeça de casal para proceder à correção da Relação de Bens apresentada – relacionando os bens comuns do casal - e dar cumprimento ao estatuído no art.º 1098.º do C.P.Civil, uma vez que os inventariados foram casados entre si no regime de comunhão geral de bens, o que foi cumprido em 6.12.2022 - Relação de Bens (retificada) - e, exercido o contraditório, dela veio, de novo o requerente/apelante reclamar.

Todavia, e no que respeita à primeira reclamação contra a relação de bens, foi ainda proferido, a 4.01.2022, despacho a determinar a exclusão das verbas do passivo, remetendo-se os interessados para o processo especial de prestação de contas.

Por requerimento de 8.01.2023, veio o requerente/apelante, além do mais, dizer aos autos que: “1 - Como o Requerente/Interessado alegou no seu R. I. e está declarado pela cabeça-de-casal e provado documentalmente, foi a de cuius mulher CC, e avó do requerente, quem faleceu primeiro, ou seja, no dia 28 do mês de janeiro do ano de 2015; e só no ano de 2018, melhor dizendo, no dia 01 do mês de janeiro do ano de 2018, faleceu o de cuiús marido DD, e avô do requerente, já no estado de viúvo da sua avó CC.
2. Como está declarado pela cabeça-de-casal e resulta dos documentos juntos e tendo em conta o regime de bens supletivo de casamento existente à data do casamento dos inventariados, estes foram casados segundo o regime de comunhão geral de bens.
3. Assim, devem ser reformuladas as Relações de Bens apresentadas com o fim de:
a) - Quanto à Relação de Bens da inventariada CC, devem as verbas dos bens - descritos como meação do património comum do ex-casal -, mencionar o valor (quantitativo) correspondente à ½ (metade) que lhe pertenceu, sem o que não pode ser calculado o valor global da herança transmitido e os correspondentes quinhões hereditários, bem como ser organizado o respetivo mapa de partilha.
b) Igual procedimento deve ser seguido quanto à Relação de Bens do inventariado DD, onde as verbas de bens descritos como meação dos bens comuns do ex-casal devem mencionar, em concreto, o valor (quantitativo) correspondente a essa metade para, acrescido do valor dos bens próprios, permitir o cálculo do valor global da herança transmitido e os correspondentes quinhões hereditários, bem como a organização do respetivo mapa de partilha final.
c) Na elaboração das Relações de Bens devem ser seguidas e respeitadas, na disposição sequencial das várias verbas e na sua descrição, as regras definidas nos nºs 2, 3 e 5 do art.º 1098º do CPC, e indicado, como se prevê no nº 1 do mesmo artigo, o valor atribuído pela Cabeça-de-casal a cada um dos bens, sendo respeitado o valor tributável (patrimonial) dos imóveis, além de deverem as verbas ser acompanhadas dos elementos previstos no nº 4 do mesmo artigo, e, nomeadamente, quanto aos imóveis e móveis sujeitos a registo os elementos comprovativos dos registos predial e automóvel (…)”.

Em 30.03.2023 foi proferido o seguinte despacho: “Fique a nova relação de bens nos autos.
Tal como resulta dos autos, os débitos e créditos decorrentes da administração da herança pelo cabeça de casal, devem ser apreciados no processo próprio – processo especial de prestação de contas.
*
O tribunal é competente em razão da nacionalidade, da matéria, da hierarquia e do território.
O processo é o próprio e encontra-se isento de nulidades que o invalidem na totalidade.
Não existem questões suscetíveis de influir na partilha e na determinação dos bens a partilhar de que cumpra conhecer, nos termos do artigo 1110.º, n.º 1, al. a), do CPC.
Assim, notifique os interessados para, em 20 dias, proporem a forma à partilha (artigo 1110.º, n.º 1, al. b), do CPC).
D.N”.

Por requerimento de 2.05.2023 veio de novo o requerente/apelante aos autos dizer, além do mais, que: “A - Contudo, não pode o Requerente/Interessado deixar de exarar algumas notas de alerta para lapsos em que poderá ter incorrido a M.ma Juiz ao considerar correta ou bem elaborada (!!!) “(…) a nova Relação de Bens (…)” que mandou que “Fique (…) nos autos.”.

Por despacho de 18.05.2023 foi ordenada a notificação da cabeça de casal para proceder à correção da relação de bens.

Em 24.05.2023 a cabeça de casal juntou aos autos Relação de Bens atualizada.

E por requerimento de 12.06.2023 veio o requerente/apelante dizer aos autos, além do mais, que: “6. A Cabeça-de- casal na elaboração da RELAÇÂO DE BENS Actualizada esqueceu-
se que estamos perante um INVENTÁRIO JUDICIAL - cumulado, - para partilha dos bens das heranças abertas por óbito de seus pais, CC e DD, falecidos, respetivamente, no dia 28 do mês de janeiro do ano de 2015, e no dia 01 do mês de janeiro do ano de 2018.
7. O que implica que devia elaborar duas Relações de Bens: uma com os bens da herança de CC, falecida em 1º lugar; e outra com os bens de DD, falecido passados três anos.
8. Sendo que neste ínterim, o património próprio do falecido DD pode ter-se alterado por acréscimo de novos bens que tenha adquirido ou amealhado, seja por acumulação dos rendimentos próprios, seja dos que a sua meação nos bens comuns do extinto casal produziu e não consumiu (…)”.

E em 26.06.2023 foi proferido o seguinte despacho: “Notificados os interessados para se pronunciarem relativamente à forma à partilha veio o Requerente invocar nos autos a não notificação da relação de bens corrigida.
Nos autos veio a Cabeça de Casal apresentar relação de bens corrigia no Requerimento com a REFª: 45654697.
Notificado, o Requerente apresentou reclamação contra a relação de bens
- REFª: 45818244.
Nos termos do artigo 1105.º do CPC - Se for deduzida oposição, impugnação ou reclamação, nos termos do artigo anterior, são notificados os interessados, podendo responder, em 30 dias, aqueles que tenham legitimidade para se pronunciar sobre a questão suscitada.
Nestes termos, notifique-se a cabeça de casal para, querendo, responder à reclamação apresentada pelo Interessado AA.
Em face do supra exposto, tendo em conta o teor dos requerimentos com a referências REFª: 45654697 e REFª: 45444799 – falta de notificação da nova e atualizada Relação de Bens e reclamação deduzida, fica sem efeito o despacho com a Referência: 446783340.
Notifique”.

Exercido o contraditório, foi, em 19.09.2023, proferido despacho ordenando a remessa dos interessados para os meios comuns, nos termos dos art.ºs 1092.º e 1093.º do C.P.Civil relativamente às questões suscitadas em sede de reclamação contra a relação de bens. Ou seja, nele se expressou que: “Nos presentes autos de Inventário veio o interessado AA apresentar reclamação contra a relação de bens apresentada pela Cabeça de Casal alegando, em síntese, que os bens próprios do inventariado DD devem ser relacionados pela totalidade, já que os direitos de crédito
- saldos de Depósitos à Ordem e os Depósitos a Prazo existentes nas contas bancárias que abriu após a sua viuvez - são seus na sua totalidade e não também (em qualquer percentagem) da cotitular das contas (a cabeça-de-casal), apesar do regime de solidariedade que só vigorava para a movimentação das ditas contas bancárias, que foram e eram, alimentadas, por valores de exclusiva propriedade do inventariado DD.
Mais, alega que a nomeação feita só pelo inventariado DD dos Beneficiários nos 4 (quatro) títulos de Poupança da modalidade ..., emitidos pela Associação ... em nome do cônjuge DD, associado da Associação ..., não é válida para a meação que a inventariada CC, falecida em 1.º lugar, neles tinha, atento o regime de bens do casal – regime de comunhão geral de bens. Igual conclusão se tem de extrair em relação à nomeação feita só pelo inventariado DD dos Beneficiários do ..., de 10/03/1995, contrato nº ... com a Apólice Banco 1... - VIDA nº ... -, atualmente da A...-Companhia de Seguros Vida, SA, em nome do cônjuge DD.
Pronunciou-se a cabeça de casal invocando, em síntese, que o que pertencia ao falecido DD à data do óbito foi relacionado. Os direitos de crédito estão indicados pela totalidade do que cabe ao falecido DD, o restante diz respeito à sua filha, já que a solidariedade não diz apenas e só respeito à movimentação da conta. Quanto aos produtos ... e ... e aplicações financeiras devido à sua natureza e condições particulares, foram apenas criados com valores do falecido DD, caso contrário as próprias instituições teriam intervindo impedindo a sua movimentação. Os produtos ... e ..., são também eles válidos e aptos a distribuir pelos interessados escolhidos pelo falecido, não carecendo de qualquer formalização testamentária. O testamento do falecido DD é perfeitamente válido por estar de acordo com a sua vontade última, expressada livre e esclarecidamente à notaria de serviço, conforme decorre do seu conteúdo.
Ora, o alegado - contitularidade de depósitos bancários/disposição feita pelo Inventariado -, constitui questão prejudicial que atenta a complexidade da matéria de facto que lhes está subjacente, não deverá ser incidentalmente decidido, nem, de resto, se mostra compatível com a simplicidade da tramitação do presente incidente de reclamação contra a relação de bens.
Com efeito, tal como se escreveu no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 28-04-2016, (…)
Nestes termos, relativamente às suscitadas questões, decide-se remeter os interessados para os meios comuns nos termos dos artigos 1092.º e 1093.º do CPC, prosseguindo os autos quanto ao mais.
Notifique”.

Em 25.10.2023 foi proferido o seguinte despacho:
“O tribunal é competente em razão da nacionalidade, da matéria, da hierarquia e do território.
O processo é o próprio e encontra-se isento de nulidades que o invalidem na totalidade.
Não existem questões suscetíveis de influir na partilha e na determinação dos bens a partilhar de que cumpra conhecer, nos termos do artigo 1110º, nº 1, al. a), do CPC.
Assim, notifique os interessados para, em 20 dias, proporem a forma à partilha (artigo 1110º, nº 1, al. b), do CPC).

O requerente e a cabeça de casal vieram aos autos pronunciar-se sobre a forma da partilha em 20.11.2023 e em 29.11.2023, respetivamente.

Em 5.12.2023, tendo pago a multa prevista no art.º 139.º do C.P.Civil, veio o requerente, inconformado com o despacho saneador de 25.10.2020 dele interpor recurso de apelação, pedindo a sua declaração de nulidade por omissão de pronúncia quanto a questões suscetíveis de influir na determinação dos bens a partilhar.
O apelante juntou aos autos as suas alegações que terminam com as seguintes conclusões:
a) O despacho saneador de 25.10.2023 – Ref.ª 452980336 -, proferido ao abrigo do art.º 1110.º, n.º 1, al. a), do CPC, é omisso na pronúncia quanto a questões suscetíveis de influir na determinação dos bens a partilhar.
b) Violando, por isso o mesmo dispositivo legal, para além de determinar a nulidade do mesmo por omissão de pronúncia – art.º 615.º, n.º 1, al. d) [1.ª parte], do CPC.
c) Estamos perante um inventário judicial - cumulado, - para partilha dos bens das heranças abertas por óbito de CC e DD, falecidos, respetivamente, no dia 28 do mês de janeiro do ano de 2015, e no dia 01 do mês de janeiro do ano de 2018.
d) Respetivamente pais e avós da cabeça de casal e do requerente/recorrente.
e) A cumulação fundamenta-se no facto de os bens a partilhar serem, essencialmente, os bens do património comum do extinto casal, ainda indivisos porque não houvera inventário e partilha dos bens da herança da falecida CC, constituída, exclusivamente, pela metade (meação) dos bens comuns do casal existentes à data da sua morte.
Por isso.
f) Atento o regime de bens do casamento dos inventariados – comunhão geral -, a Relação de Bens da herança de CC, falecida em 1.º lugar, devia ter sido organizada e elaborada, - por não serem conhecidos bens próprios -, exclusivamente, com a metade (meação) dos bens comuns do casal existentes à data da sua morte.
g) Sendo que a Relação de Bens da herança do falecido DD devia ser elaborada e organizada com os bens da metade (meação) nos bens comuns do ex-casal ainda subsistentes à data da sua morte, com o direito e ação (1/3 - terça parte) à herança do seu ex-cônjuge, e com os bens próprios que tenha adquirido no estado de viúvo, ou amealhado, seja por acumulação dos rendimentos próprios, seja dos que a sua meação nos bens comuns do extinto casal produziu e não consumiu.
Contudo.
h) A Mm.ª Juíza a quo aceitou que a cabeça de casal elaborasse e apresentasse uma única Relação de Bens para os dois Inventariados, mas sem que nela lhes sejam afetados os bens do respetivo acervo hereditário.
i) O que dificulta a determinação dos bens a partilhar, bem como as respetivas partilhas das heranças dos inventariados.
j) O que leva – repete-se - à nulidade do despacho saneador impugnando nos termos do art.º 615.º, n.º 1, al. d) [1.ª parte], do CPC.

Não há contra-alegações.

II – Os factos relevantes para a decisão do presente recurso são os que estão enunciados no supra elaborado relatório, pelo que, por razões de economia processual, nos dispensamos de os reproduzir aqui.

III – Como é sabido o objeto do recurso é definido pelas conclusões do recorrente (art.ºs 5.º, 635.º n.º3 e 639.º n.ºs 1 e 3, do C.P.Civil), para além do que é de conhecimento oficioso, e porque os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, ele é delimitado pelo conteúdo da decisão recorrida.
*
Ora, visto o teor das alegações do réu/apelante são questões a apreciar no presente recurso:
– Da alegada nulidade do despacho recorrido por omissão de pronúncia.

Como é sabido, segundo o disposto no art.º 615.º n.º1 al. d), “ex vi” do n.º3 do art.º 613.º, ambos do C.P.Civil, a sentença (ou o despacho) é nula se nela o juiz deixa de conhecer de questões de que devia tomar conhecimento ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento. Este vício traduz-se no incumprimento ou desrespeito por parte do julgador, do dever prescrito no art.º 608.º n.º2 do C.P.Civil, cfr. Antunes Varela, in “Manual de Processo Civil”, pág. 690 e Rodrigues Bastos, in “Notas ao Código de Processo Civil”, Vol. III, pág. 247, segundo o qual deve o juiz resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outra e não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.
Também como se sabe e de harmonia com o preceituado no art.º 3.º n.º1 do C.P.Civil, a iniciativa da ação pertence às partes, pelo que o tribunal não pode resolver um conflito sem que elas lhe tenham pedido tal resolução. Sendo que, quanto à decisão, e por força do disposto nos art.ºs 608.º, 5.º, ambos do C.P.Civil, o juiz está limitado não só pelas questões que lhe são colocadas pelas partes, (salvo se outras surgirem que sejam de conhecimento oficioso) como pelo complexo fáctico alegado, (salvo o caso da existência de factos que não necessitam de alegação e a que o tribunal possa e deva recorrer, por notórios ou conhecidos por via do exercício das suas funções).
Assim cabe às partes delimitar o “quod decidendum”, expondo nos seus articulados as questões que querem ver decididas na ação, expondo os factos fundamentadores da razão por que pedem, invocando o direito em que se estribam e concluindo, logicamente, formulando um pedido. Sendo certo que por força do disposto no n.º3 do art.º 5.º do C.P.Civil, o tribunal não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, já em sede de facto, o tribunal está limitado pelas alegações das partes.
Importa, porém, ter em linha de conta que uma coisa são os argumentos ou as razões de facto e ou de direito e outra, essencialmente diversa, as questões de facto ou de direito. Em suma, há que distinguir neste campo entre “questões a apreciar” e “razões” ou “argumentos” avançados pelas partes. Ora, as questões que o tribunal está obrigado a conhecer são os pontos de facto e ou de direito relevantes no quadro do litígio, ou seja, os concernentes ao pedido, à causa de pedir e às exceções invocadas nos autos, ou seja, questões que se centram nos pontos fáctico-jurídicos que estruturam as posições das partes na causa
No que importa, é como refere Alberto dos Reis, in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. V, pág. 143: “São, na verdade, coisas diferentes: deixar de conhecer de questão de que devia conhecer-se, e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão.”
Isto é, a nulidade sobre a qual nos estamos a debruçar, circunscreve-se, tão só, às questões/pretensões submetidas ao tribunal pelas partes, cujo conhecimento foi omitido por este, em violação do dever consignado nos últimos dos normativos acima citados.
Vejamos então o que no entendimento do apelante qual a questão colocada nos autos pelos interessados que o tribunal deveria ter decidido e não o fez.
Diz o apelante nas suas alegações recursórias para tanto que: “Nas várias reclamações que o aqui Recorrente fez conta as Relações de Bens que a Cabeça de-casal elaborou e apresentou, sempre alegou como um dos fundamentos das mesmas reclamações, que ela (cabeça de casal) se esquecera – com exceção de na 1ª - que devia elaborar duas Relações de Bens: uma com os bens da herança de CC, falecida em 1º lugar; e outra com os bens de DD, falecido passados três anos.
6. Pois que estamos perante um INVENTÁRIO JUDICIAL - cumulado, - para partilha dos bens das heranças abertas por óbito de seus pais, CC e DD, falecidos, respetivamente, no dia 28 do mês de janeiro do ano de 2015, e no dia 01 do mês de janeiro do ano de 2018, por os bens a partilhar serem, essencialmente, os bens do património comum do extinto casal.
7. E porque não houvera Inventário e Partilha dos bens da herança da falecida CC, constituída, exclusivamente, pela metade (meação) dos bens comuns do casal existentes à data da sua morte.
Por isso,
8. Atento o regime de bens do casamento dos Inventariados – comunhão geral -, a Relação de Bens da herança de CC, falecida em 1º lugar, devia ter sido organizada e elaborada, - por não serem conhecidos bens próprios -, exclusivamente, com a metade (meação) dos bens comuns do casal existentes à data da sua morte.
8. Sendo que a Relação de Bens da Herança do falecido DD devia ser elaborada e organizada com os bens da metade (meação) nos bens comuns do ex-casal ainda subsistentes à data da sua morte, com o direito e ação (1/3 - terça parte) à herança do seu ex cônjuge, e com os bens próprios que tenha adquirido no estado de viúvo, ou amealhado, seja por acumulação dos rendimentos próprios, seja dos que a sua meação nos bens comuns do extinto casal produziu e não consumiu.
9. Mas a Mm.ª Juíza não se pronunciou sobre esta questão que é essencial para a determinação dos bens a partilhar, sendo que, nos termos do artigo 1110º, nº 1, al. a), do CPC, lhe era imposto conhecer. Há, assim, violação da lei por omissão de pronúncia – art.º 615º, nº 1, al. d) [1ª parte], do CPC -, que leva à nulidade do Despacho Saneador impugnando (…)”.
Em suma, defende o apelante que a 1.ª instância não se pronunciou quanto a uma questão que recorrentemente foi levantando nos autos, ou seja, de que a cabeça de casal deveria ter junto duas relações de bens, uma relativa a cada um dos falecidos, nos termos e pelos fundamentos que acima expressa.
Como é patente, estamos perante uma cumulação de inventário, e preceitua o art.º 1094.º do C.P.Civil, sob a epígrafe “Cumulação de inventários” que:
“1 - É admissível a cumulação de inventários para a partilha de heranças diversas quando:
a) As pessoas por quem tenham de ser repartidos os bens sejam as mesmas;
b) Se trate de heranças deixadas pelos dois cônjuges;
c) Uma das partilhas esteja dependente da outra ou das outras.
2 - No caso referido na alínea c) do número anterior:
a) Se a dependência for total, a cumulação é sempre admissível, por não haver, numa das partilhas, outros bens a adjudicar além dos que ao inventariado tenham de ser atribuídos na outra;
b) Se a dependência for apenas parcial, o juiz pode indeferir a cumulação quando a mesma se afigure inconveniente para os interesses das partes ou para celeridade do processo, por haver outros bens a partilhar”.
Segundo Lopes Cardoso, in “Partilhas Judiciais”, Vol. I, pág. 192, com ensinamentos atuais, a cumulação de inventários justifica-se porquanto “Os interessados partilham num só processo duas ou mais heranças a que concorrem e reduzem com isso a sua intervenção, evitam a repetição de diligências, a possível fragmentação da propriedade e até o pagamento de custas mais avultadas.
A atividade judiciária torna-se mais útil, porque de pronto esclarece as partilhas, são mais céleres o seu andamento e conclusão.
O inventário toca mais cedo o seu termo e dai advêm vantagens para a administração de cada um, no pagamento das despesas, dos impostos e na cobrança das receitas.
Resulta ainda uma partilha mais igualitária.
Por outro lado, não se descortinam inconvenientes vultosos, que os direitos de todos em nada são preteridos com a cumulação, e aos intervenientes asseguram-se os mesmíssimos meios de defesa”.
A cumulação de inventário não pressupõe, ao menos necessariamente, a “partilha de heranças diversas”. O que ela pressupõe, é, apenas, e existência de um elo/nexo, subjetivo ou objetivo, de conexão entre os dois inventários que aconselhe, ou até imponha, a apreciação conjunta e unitária de todo o conspecto processual tramitado com vista à consecução de uma partilha justa e equitativa.
Mais refere o mesmo autor, in obra citada, pág. 196 e 201, que, no caso da al. b) do n.º1, cabem aí as situações em que “se não procedeu a inventário por óbito do cônjuge predefunto” sendo que no caso desse preceito legal “não pode a cumulação deixar de ser ordenada quando requerida”.
Ora, tal é exatamente a situação dos autos. Ou seja, CC faleceu a 28.01.2015, no estado de casada com DD e, posteriormente, em 1.01.2018, faleceu DD, no estado de viúvo de CC, sendo que por óbito de CC não se procedeu a inventário para partilha dos bens deixados pelo seu óbito.
Por outro lado, está assente nos autos que CC e DD falecidos, foram casados sob o regime de comunhão geral de bens e não se indiciando existir qualquer caso de incomunicabilidade, os bens a partilhar por via dos presentes autos são os bens que integram o património comum deixado por óbito daqueles, e como tal devem ser relacionados e partilhados.
Como é sabido, o espírito do sistema da comunhão geral, cfr. art.º 1732.º do C.Civil, é o de que ingressam no património comum todos os ganhos “alcançados” pelos cônjuges, todos os bens que “advierem” aos cônjuges durante o casamento que não sejam excetuados por lei, ou seja, por força do preceituado no o art.º 1733.º do C.Civil.
Como se viu no peregrino entendimento do apelante, os presentes autos deveriam ter sido instruídos com duas relações de bens –“a Relação de Bens da herança de CC, falecida em 1º lugar, devia ter sido organizada e elaborada, - por não serem conhecidos bens próprios -, exclusivamente, com a metade (meação) dos bens comuns do casal existentes à data da sua morte (…) a Relação de Bens da Herança do falecido DD devia ser elaborada e organizada com os bens da metade (meação) nos bens comuns do ex-casal ainda subsistentes à data da sua morte, com o direito e ação (1/3 - terça parte) à herança do seu ex cônjuge, e com os bens próprios que tenha adquirido no estado de viúvo, ou amealhado, seja por acumulação dos rendimentos próprios, seja dos que a sua meação nos bens comuns do extinto casal produziu e não consumiu”.!!!...
Em suma, pretende o requerente/apelante que se deveriam juntar aos autos duas relações de bens, uma de cada um dos falecidos cônjuges, a da primeiramente falecida de onde constasse apenas a sua meação nos bens comuns do casal, e a do último falecido com a sua meação nesses bens comuns do casal e a herança que recebeu por morte da sua mulher….!!!
Ora, vejamos.
Referem Miguel Teixeira de Sousa, Carlos Lopes do Rego, Abrantes Geraldes e Pedro Pinheiro Torres in “O Novo Regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil”, pág. 8, que “O novo modelo do processo de inventário assenta em fases processuais relativamente estanques e consagra um princípio de concentração dado que fixa para cada ato das partes um momento próprio para a sua realização.” W assim explicitam tais autores que atualmente o processo de inventário para fazer cessar a comunhão hereditária, comporta as seguintes fases:
- uma fase dos articulados na qual as partes, para além de requererem instauração do processo, têm de suscitar e discutir todas as questões que condicionam a partilha, alegando e comprovando quem são os interessados e respetivas quotas ideais e qual o acervo patrimonial, ativo e passivo, que constitui objeto da sucessão. A esta fase subdividida em - a inicial- a que se reportam os art.ºs 1097.º a 1002.º do C.P.Civil e a - da oposição – referidas nos art.ºs 1104.º a 1107.º do C.P.Civil. No articulado de oposição devem os interessados impugnar concentradamente todas as questões que podem condicionar a partilha, nomeadamente, apresentar reclamação à relação de bens.
- a fase de saneamento, na qual o juiz, após a realização das diligências necessárias – entre as quais se inclui uma possível audiência prévia – deve decidir, em princípio, todas as questões ou matérias litigiosas que condicionam a partilha e a definição do património a partilhar e também proferir despacho sobre a forma da partilha.
- e finalmente a fase da partilha onde ocorrerá a conferência de interessados na qual se devem realizar todas as diligências que culminam na realização da partilha.
Ora, nos autos, não obstante se ter verificado que a fase inicial do processo padeceu de muitas ocorrências anómalas a que o juiz do processo não soube ou não quis por cobro, verificamos que finda a mesma, dúvidas não existem sobre os inventariados, sua relação matrimonial, e regime de bens desse casamento. Também dúvidas não existem sobre quem são os herdeiros dos mesmos e suas quotas ideais, e finalmente, após decisão sobre as reclamações apresentadas e respetivas decisões, está também assente quais os bens que hão de ser partilhados nos autos. Em suma, nada mais há a decidir que condicione a partilha.
Na realidade, a relação de bens destina-se a dar a conhecer aos herdeiros o objeto da sucessão, ou seja, o conjunto de bens que integravam o património do de cujus. No caso dos autos, tratando-se de uma cumulação de inventários de dois falecidos que foram casados entre si sob o regime da comunhão de bens, o acervo a partilhar é o património comum desses falecidos cônjuges que constitui uma massa patrimonial a que, em vista da sua especial afetação, a lei concede certo grau de autonomia - embora limitada e incompleta - mas que pertence aos dois falecidos, em bloco, pois ambos, embora falecidos, eram titulares de um único direito sobre ela. Os bens comuns dos falecidos cônjuges constituem objeto, não duma relação de compropriedade, mas duma propriedade coletiva ou de mão comum. Ou seja, cada um dos falecidos cônjuges tem uma posição jurídica em face do património comum, posição que a lei tutela. Cada um tem, segundo a expressão da própria lei, um direito à meação, um verdadeiro direito de quota, que exprime a medida de divisão e que virá a realizar-se no momento em que esta deva ter lugar, ou seja, aquando da partilha e não antes, como parece pretender o requerente/apelante. Pois a herança dos falecidos cônjuges, antes da partilha, constitui uma universitas juris, um património autónomo, com conteúdo próprio. Até à partilha, os direitos dos herdeiros (mesmo como in casu de um dos falecidos cônjuges) recaem sobre o conjunto da herança; cada herdeiro apenas tem direito a uma parte ideal da herança e não a bens certos e determinados.
Como refere Rabindranath Capelo de Sousa “nos casos em que haja lugar à partilha da herança, segundo a opinião dominante, o domínio e posse sobre os bens em concreto da herança só se efetivam após a realização da partilha, uma vez que até aí a herança indivisa constitui um património autónomo nada mais tendo os herdeiros do que o direito a uma quota-parte do património hereditário”.
Em suma e conclusão, como acima já deixámos consignado inexistem nos presentes autos quaisquer questões ou matérias litigiosas que condicionem a partilha e a definição do património a partilhar e que não tenham sido objeto de decisão oportuna em 1.ª instância. O que o requerente/apelante pretende, ou seja, as supras referidas duas relações de bens e nos termos que expressa, é quanto a nós nada mais do que o adiantar da forma à partilha, ato que não é próprio desta fase processual, como também acima se deixou expresso.
Destarte e sem necessidade de outros considerandos, improcedem todas as conclusões do apelante, havendo de se confirmar a decisão recorrida.

Sumário:
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IV – Pelo exposto acordam os Juízes desta secção cível em julgar a presente apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pelo réu/apelante.

Porto, 2024.07.10
Anabela Dias da Silva
João Diogo Rodrigues
Artur Dionísio Oliveira