Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | ANABELA DIAS DA SILVA | ||
Descritores: | COMPETÊNCIA DOS TRIBUNAIS JUDICIAIS TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA SERVIÇOS PÚBLICOS ESSENCIAIS | ||
Nº do Documento: | RP202406181118/23.7T8MTS.P1 | ||
Data do Acordão: | 06/18/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Indicações Eventuais: | 2. ª SECÇÃO | ||
Área Temática: | . | ||
Sumário: | I - A ligação do sistema predial à rede pública, estamos perante uma relação jurídica administrativa, a qual visa um fim público que é o da saúde, higiene e salubridade públicas e qualidade ambiental. II – Estando em causa a cobrança uma dívida proveniente de tarifa de ligação de saneamento, de execução de ramal de saneamento e de vistoria de ligação de saneamento, porque tais serviços não se incluem no rol fechado de “serviços públicos essenciais” preceituado na Lei n.º 23/96, de 26.07, logo tal ação não cabe na previsão das al. e) do n.º4 do art.º 4.º do ETAF. III – Pelo que o assim peticionado corresponde a matéria administrativa e, como tal, o Tribunal Administrativo é materialmente competente para o efeito. | ||
Reclamações: | |||
Decisão Texto Integral: | Apelação - Processo n.º 1118/23.7T8MTS.P1 Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo Local Cível de Matosinhos - Juiz 2 Recorrente – A..., S.A. Recorrido – AA Relatora – Anabela Dias da Silva Adjuntos – Desemb. Ramos Lopes Desemb. João Proença Acordam no Tribunal da Relação do Porto I – A..., S.A. intentou no Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo Local Cível de Matosinhos ação declarativa sob a forma de processo comum contra AA pedindo a condenação deste no pagamento da quantia total de €1.422,94, sendo €1.315.79 de capital, a quantia de €47,36 a título de despesas administrativas e €59,79 de juros mora vencidos calculados à taxa legal comercial em vigor desde a data de vencimento (19.07.2022) das supra citadas faturas até hoje, e ainda os juros de mora vincendos às sucessivas taxas legais comerciais em vigor até efetivo e integral pagamento. Alegou para tanto e, em síntese, que se dedica, em regime de concessão, nomeadamente, à prossecução da exploração e gestão conjunta dos serviços públicos municipais de abastecimento de água para consumo público e de recolha, tratamento e rejeição das águas residuais do Município ..., pelo detém a concessão para exploração dos serviços municipais de distribuição de água e recolha e tratamento de água residuais no concelho ..., com contrato de concessão em vigor desde 17.09.2007 até à presente data. No âmbito dessas suas funções e obrigações contratuais disponibilizou um ramal de ligação de saneamento público, junto do imóvel do réu, possibilitando a ligação da rede predial do imóvel em apreço ao sistema público. O réu efetuou, junto da autora, pedido de ligação da sua rede predial ao sistema público e inerente contratação do respetivo serviço e nessa sequência, foram emitidas e remetidas ao réu as faturas peticionadas, para liquidação da tarifa/preço inerente à construção do ramal, liquidação da tarifa de ligação de águas residuais, inspeção e vistorias efetuadas ao imóvel do mesmo, para ligação e contratação do serviço - fatura com o n.º ...10, no valor de €581.27 e a fatura com o n.º ...11, no valor de €734.52. O réu nada pagou até ao momento, pelo que acresce ao valor em dívida a quantia de €47,36 a título de despesas administrativas havidas com preparação e elaboração de cartas e custos de CTT. Pessoal e regularmente citado, o réu apresentou contestação, pedindo a improcedência da ação. Para tanto defendeu-se por exceção e por impugnação. A autora respondeu à matéria das exceções, pedindo a improcedência das mesmas. Foi depois proferido o seguinte despacho: “Estando em causa nos autos a cobrança de tarifas inerentes à construção do ramal de saneamento, liquidação da tarifa de ligação de águas residuais, inspeção e vistorias efetuadas ao imóvel do réu e que a relação material daí gerada com o réu assumirá uma natureza administrativa, não se confundindo com a relação contratual de fornecimento de serviços públicos essenciais e considerando, por outro lado, o disposto nos artigos 1.º n.º 1 e 4.º n.º 1 alínea o) do ETAF, notifique as partes para, querendo, ao abrigo do artigo 3.º n.º 3 do Código de Processo Civil, se pronunciarem quanto à verificação de uma eventual exceção dilatória de incompetência deste Tribunal, em razão da matéria, para julgar a presente ação”. A autora veio pronunciar-se pela competência material do tribunal recorrido. Foi depois proferida decisão de onde consta: “Em face do exposto: 1. Julga-se procedente a exceção dilatória da incompetência material deste Juízo Local Cível de Matosinhos, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto e, em consequência, absolve-se da instância o réu AA. 2. Condena-se a autora no pagamento das custas processuais, nos termos do artigo 527.º n.º 1 do Código de Processo Civil. Valor da causa: 1.422,94 Euros (mil quatrocentos e vinte e dois euros e noventa e quatro cêntimos). Registe e notifique”. Inconformada com tal decisão, dela veio a autora recorrer de apelação, pedindo a sua revogação e substituição por outra que julgue o tribunal recorrido materialmente competente e ordene o prosseguimento dos autos. A apelante juntou aos autos as suas alegações que terminam com as seguintes e prolixas conclusões: A. O recorrido dirigiu, por sua iniciativa, à recorrente um pedido de execução de ramal e ligação à rede pública, tendente à posterior contratação do serviço de fornecimento de água e saneamento públicos. B. Os presentes autos têm por base as faturas emitidas e enviadas ao recorrido, para cobrança de valores respeitantes aos serviços mencionados nas mesmas (construção de ramais de água e saneamento, vistorias inerentes ao local e tarifa de ligação de águas residuais), na sequência do pedido por esta efetuado conforme documentos por este, assinados e entregues nas instalações da recorrente; C. Serviços ligados à prestação de bens públicos essenciais, conforme resulta da causa de pedir e pedido formulado. D. A situação dos autos, apesar de não configurar um contrato de fornecimento de bens em si mesmos (água e saneamento), integra uma relação contratual de consumo, iniciada por solicitação expressa do recorrido (consumidor) junto da recorrente (concessionária), com vista à execução de ramais de ligação para posterior prestação de serviços de fornecimento de água e de saneamento públicos, esses sim qualificados, legalmente, como bens essenciais. E. Sendo a recorrente a “prestadora de serviço”, a que exerce uma atividade económica, com caráter profissional, para obtenção de benefícios, incluindo a construção de ramais para posterior ligação e contratação do fornecimento do bem: água e saneamento, F. E o recorrido o “consumidor”, aquele a quem foram fornecidos bens, no caso, prestados serviços, destinados a uso não profissional. G. Nos termos do artigo 2.º da Lei n.º 24/96, de 31 de Julho “Considera-se consumidor todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma atividade económica que vise a obtenção de benefícios” e “Consideram-se incluídos no âmbito da presente lei os bens, serviços e direitos fornecidos, prestados e transmitidos pelos organismos da Administração Pública, por pessoas coletivas públicas, por empresas de capitais públicos ou detidos maioritariamente pelo Estado, pelas regiões autónomas ou pelas autarquias locais e por empresas concessionárias de serviços públicos.” H. Ou seja, consumidor é cada um de nós, é todo aquele todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma atividade económica que vise a obtenção de benefícios. I. São, assim, elementos da relação de consumo, o consumidor e o fornecedor (elementos subjetivos) o produto ou o serviço (elemento objetivo), independentemente do tipo contratual celebrado entre as partes, o que se verifica preenchido no caso dos autos. J. Entende a recorrente que esta relação de consumo relativa aos bens de serviço público essencial (água e saneamento) inclui todos os serviços relacionados e intrínsecos a tal abastecimento e saneamento, devidamente previstos na legislação, Regulamento em vigor e tarifários publicitados pela recorrente. K. Ora, o serviço em causa prestado – execução de ramal de ligação, tarifas de ligação e tarifas de vistorias inerentes – foi no âmbito da relação de consumo iniciada por solicitação expressa do recorrido, serviço prévio à contratação do bem essencial, em si mesmo. L. Trata-se, portanto, de um serviço necessariamente ligado à prestação de bens/serviços públicos essenciais, uma vez que, tal pedido efetuado pelo consumidor é uma condição necessária e essencial à futura celebração do contrato de fornecimento de água. M. Nesse sentido, destaca-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 17.11.2015, no âmbito do processo 87/15.1YRCBR, disponível em www.dgsi.pt, onde se esclarece que “1. A Lei dos Serviços Públicos Essenciais (Lei n.º 23/96 de 26/7) não é aplicável somente à fase do fornecimento de tais serviços e que pressupõe a prévia celebração de um contrato formal entre a concessionária e o utilizador de tais serviços, mas a toda a relação que se estabelece entre ambos, abrangendo a fase pré-contratual e os serviços prestados pela concessionária com vista ao estabelecimento das condições necessárias à celebração do contrato de fornecimento e à disponibilização de um sistema de abastecimento.” N. Ainda no mesmo sentido, veja-se também o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 01.07.2019, no âmbito do processo 204/18.0YRPRT, disponível em (www.dgsi.pt), cujo sumário também esclarece que, e citamos, “III - A Lei dos Serviços Públicos Essenciais não é aplicável somente à fase do fornecimento de tais serviços e que pressupõe a prévia celebração de um contrato formal entre a concessionária e o utilizador dos mesmos, mas a toda a relação que se estabelece entre ambos, abrangendo a fase pré-contratual e os serviços prestados pela concessionária com vista ao estabelecimento das condições necessárias à celebração do contrato de fornecimento e à disponibilização de um sistema de abastecimento.” O. Sem prescindir, caso assim não se entendesse, no que não se concede, é inegável que, ao ser solicitada pelo recorrido a execução de um ramal de ligação, e ao ser executado pela recorrente no âmbito das suas funções e serviços incluídos no seu objeto social e contrato de concessão, estamos sempre, obviamente, perante uma relação de consumo em que a recorrente presta o serviço e o recorrido recebe a prestação do mesmo, por sua solicitação. P. Estamos perante um vínculo contratual – o contrato de empreitada celebrado entre as partes a pedido do recorrido. Q. Motivos pelos quais sempre a relação em causa está expressamente abrangida pela atual alínea e) do art.º 4.º do ETAF. R. A recorrente não pratica atos administrativos, nem celebra contratos administrativos com os utilizadores, presta apenas, por força do contrato de concessão (este sim público), serviços/bens de caráter público essencial e, a considerar-se – o que por mero dever de patrocínio se admite - que atua no âmbito de poderes públicos transmitidos por força da concessão, S. Então todos os seus poderes teriam que ser considerados de natureza pública, e todos os seus atos teriam natureza pública incluindo os praticados no abastecimento mensal de água e prestação de saneamento a todos os consumidores, T. Dado que todos os seus poderes e atos têm a mesma origem: o contrato de concessão. U. E a verdade é que a alteração efetuada pela Lei 114/2019 ao art.º 4.º do ETAF não refere contratos de consumo ou contratos respeitantes a bens públicos essenciais mas, de uma forma muito mais abrangente, refere-se a relações de consumo, aqui incluídos todos os atos relacionados com o contrato de consumo, quer os pré-contratuais quer os que decorrem no decurso do contrato do ato concreto de prestação de serviços essenciais, esses sim, de fornecimento de água e saneamento. V. Nos termos do disposto na alínea e) do atual art.º 4.º do ETAF, na redação dada pela Lei 114/2019 de 12.09.2019, está excluída da competência dos tribunais administrativos e fiscais a apreciação de litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços essenciais, incluindo a respetiva cobrança coerciva. W. Esta alteração legislativa veio precisamente no sentido de clarificar as questões interpretativas, nomeadamente jurisprudenciais, e com conflitos de competências que se levantavam no âmbito da anterior redação do art.º 4.º do ETAF. X. No fundo, o que a alínea e) do n.º4 do art.º 4.º do ETAF diz é o seguinte: mesmo que esteja em causa a prestação de um serviço público essencial no âmbito de uma relação de consumo, os Tribunais Administrativos e Fiscais não são competentes para decidir sobre tal matéria. Y. Com a alteração daquele normativo, com a nova alínea e) do n.º4 do artigo 4.º do ETAF, da sua leitura e da razão de ser da alteração, só pode resultar, a contrario, que as questões que emergem de contratos celebrados entre uma empresa concessionária de serviço público de fornecimento de água ao domicílio e os respetivos clientes finais, quanto ao pagamento do custo dos ramais de ligação de edifício particular à rede pública, os quais permitiriam a posterior celebração de contratos de consumo, no domínio da vigência do ETAF, já com a alteração legal introduzida pela Lei 114/2019, de 12.09, são da competência dos tribunais judiciais cíveis, pois que foi essa atribuição que o legislador quis alterar, ainda que se entenda, no que não se concede, estarmos perante uma relação que não é de consumo. Z. Consequentemente, e desde logo, não faz sentido fazer tábua rasa da clarificação interpretativa que veio a ser plasmada na nova disposição legal – a própria lei, com justificação expressa no seu anteprojeto, veio resolver as dúvidas de interpretação até aí existentes. AA. Não faz igualmente sentido a mesma matéria vir a ser discutida nuns casos/processos no TAF com base em tal entendimento e, noutros casos/processos, vir a ser discutida nos tribunais comuns com base no entendimento da atual lei. BB. Muito menos sentido fará que se exclua a competência dos tribunais administrativos e fiscais para dirimir os litígios emergentes dos contratos de prestação de serviços públicos essenciais e simultaneamente se considere já competente essa mesma jurisdição para litígios emergentes de prestações que, consubstanciando já uma relação de consumo, não mais são do que uma antecâmara da prestação do serviço essencial em si mesmo. CC. Por último, não podemos olvidar que a relação em causa nos autos é estabelecida entre duas entidades privadas, sendo que a aqui recorrente desenvolve uma atividade privada e não atua como titular de qualquer poder público. DD. E o que se pede é a execução material de ramais públicos às redes privadas, através de um contrato de empreitada, que pressupõe um pedido do futuro consumidor quando este o pretender. EE. Está, por isso, em causa uma relação de consumo privada para prestação de um bem público essencial, ou, sem prescindir, um contrato de empreitada privado, e não um contrato ou ato administrativo, nem qualquer tipo de relação de natureza fiscal, pelo que sempre serão competentes os tribunais cíveis comuns. FF. Ou seja, a apreciação que se pede ao tribunal é relativamente ao cumprimento ou não das obrigações emergentes de um contrato de empreitada privado, tal qual qualquer outro contrato privado, como o mesmo fim, celebrado entre privados, em concreto para cobrança coerciva de um preço não pago. GG. Mesmo a anterior redação do artigo 4.º n.º 4 do ETAF, ao suprimir a al. f) e aditando o n.º 1 e al. e), já tinha sido objeto de dissipação de dúvidas sobre as situações que estariam abrangidas pela jurisdição administrativa e fiscal, confinando a competência daqueles tribunais, à aplicação aos contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação publica, o que não é também o caso (cfr. Ac. Rel. Porto, 13.08.2018, in www.dgsi.pt). HH. Esta a razão de ser da lei e sua alteração, esta a intenção do legislador vertida no texto, nos trabalhos preparatórios e que conformaram o espírito do legislador e, portanto, esta a interpretação que, em nosso modesto entender, deve ser aplicada – cfr. artigo 9.º do CC. II. Sem prescindir de tudo quanto se disse, e por mera cautela de patrocínio, sempre se dirá que se afigura, ainda, de extrema relevância salientar que em causa, nos autos, está um preço/tarifa, e não qualquer taxa, muito menos de caráter tributário, relativo aos serviços que a recorrente prestou, por solicitação expressa do recorrido. JJ. Nos termos da Lei n.º 73/2013, de 3 de setembro, pelo serviço de abastecimento público de água e saneamento de águas residuais, as Autarquias Locais cobram um “preço” (artigo 21.º), que respeita, entre outras, às atividades de exploração de sistemas municipais de: a) Abastecimento público de água; b) Saneamento de águas residuais; KK. Acrescenta o artigo 82.º da Lei da Água (Lei n.º 58/2005, de 29 de dezembro) que: “1 - O regime de tarifas a praticar pelos serviços públicos de águas visa os seguintes objetivos: a) Assegurar tendencialmente e em prazo razoável a recuperação do investimento inicial e de eventuais novos investimentos de expansão, modernização e substituição, deduzidos da percentagem das comparticipações e subsídios a fundo perdido; b) Assegurar a manutenção, reparação e renovação de todos os bens e equipamentos afetos ao serviço e o pagamento de outros encargos obrigatórios, onde se inclui nomeadamente a taxa de recursos hídricos; c) Assegurar a eficácia dos serviços num quadro de eficiência da utilização dos recursos necessários e tendo em atenção a existência de receitas não provenientes de tarifas. 2 - O regime de tarifas a praticar pelas empresas concessionárias de serviços públicos de águas obedece aos critérios do n.º 1, visando ainda assegurar o equilíbrio económico-financeiro da concessão e uma adequada remuneração dos capitais próprios da concessionária, nos termos do respetivo contrato de concessão, e o cumprimento dos critérios definidos nas bases legais aplicáveis e das orientações definidas pelas entidades reguladoras. (…)” LL. Resulta, assim, que os preços ou, como são por vezes chamados, “tarifas”, são instrumentos de remuneração e, no caso específico de o serviço estar concessionado, visam, ainda, assegurar o equilíbrio económico-financeiro da concessão e uma adequada remuneração dos capitais próprios da concessionária (a aqui recorrente), nos termos do respetivo contrato de concessão. MM. Ou seja, o que se paga por tal serviço de execução de ramais é um verdadeiro preço que, aliás, está dependente das condições específicas do que se pretende executar, a pedido do consumir, sendo que o custo do ramal é o maior ou menor consoante o maior ou menor número de dispositivos existentes na propriedade do consumidor/contratante, aferidos por exibição da planta da construção, na qual aquele quer ver construído/s o/s referidos ramais de ligação. NN. Preço esse que, contrariamente, a uma taxa ou tarifa, não reverte (total ou parcialmente, sequer) a favor do Estado, ou seja, da Câmara Municipal .... OO. Reverte, sim, na sua totalidade, a favor, única e exclusivamente, da entidade que vai executar o solicitado e que vai ter os custos totais com tal execução: A..., S.A. PP. Ademais, neste contexto, rege o “Princípio da recuperação dos custos”, nos termos do qual os tarifários (preçários) dos serviços de águas e resíduos devem permitir a recuperação tendencial dos custos económicos e financeiros decorrentes da sua provisão, em condições de assegurar a qualidade do serviço prestado e a sustentabilidade das entidades gestoras, operando num cenário de eficiência de forma a não penalizar indevidamente os utilizadores com custos resultantes de uma ineficiente gestão dos sistemas;” – cfr. Recomendação ERSAR n.º 01/2009 in https://www.ersar.pt/pt/o-que-fazemos/recomendacoes , QQ. Daqui decorre que o presente litígio só pode ser concebido como decorrente da cobrança de um preço/tarifa, e não de qualquer taxa, não havendo lugar à aplicação de qualquer das alíneas do n.º1 do art.º 4.º do ETAF, nem mesmo da norma residual da alínea o), pois que não se trata nem de uma relação de natureza administrativa, nem de uma relação de natureza fiscal. RR. Sentido este – falta de ius imperi da autora e inexistência de caráter de tributo – sufragado no Acórdão da Relação de Guimarães de 04.03.2020, no processo 202/18.3T8MTCA.G1 e Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 19.03.2020 no processo 3392/19.4T8MTS.P1, disponíveis in (www.dgsi.pt). SS. Resta ainda acrescentar a última sentença proferida pelo TAF do Porto a 30.10.2020, no processo 2854/19.8BEPRT, em que a A... era Ré, que declarou ser materialmente incompetente para decidir. TT. Em suma, quer pela existência de uma relação de consumo privada, quer pela inexistência de aplicação de quaisquer taxas com caráter de tributo, e ainda pela clara intenção do legislador, com a alteração operada no ETAF, de excluir estas situações do âmbito de competência da jurisdição administrativa e fiscal, verifica-se a competência do tribunal comum para decidir nos presentes autos. UU. Pelo que se entende, salvo melhor entendimento, que deve julgar-se materialmente competente o tribunal a quo. VV. Terá de concluir-se, pois, que a douta decisão recorrida violou os artigos 89.º n.º 1 do CPC, o art.º 157.º do CPTA, os art.ºs 1.º e 4.º nº 1 al. e) do ETAF, art.º 211.º n.º 1 e art.º 212.º n.º 3 da CRP, art.º 18.º n.º 1 da LOTJ e do art.º 6.º, nº 1, al. c) do Código dos Contratos Públicos, por errada interpretação jurídica. WW. Sendo que, no entender da recorrente, as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas no sentido de ter aplicação o disposto no artigo 4.º, n.º4, alínea e) do ETAF, que afasta o litígio da jurisdição administrativa, XX. Antes, devendo o presente litígio ser dirimido nos tribunais judiciais, nomeadamente o Juízo Local Cível de Matosinhos do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, nos termos do disposto nos artigos 64.º do CPC, 211.º e 213.º ambos da CRP, artigos 40.º e 144.º, n.º1 ambos da LOSJ, devendo, por isso, o Tribunal a quo ser considerado materialmente competente, com todas as consequências legais, uma vez que estamos perante uma relação jurídica de direito civil regulada pelo direito civil. Não há contra-alegações. II – Como é sabido o objeto do recurso é definido pelas conclusões do recorrente (art.ºs 5.º, 635.º n.º3 e 639.º n.ºs 1 e 3, do C.P.Civil), para além do que é de conhecimento oficioso, e porque os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, ele é delimitado pelo conteúdo da decisão recorrida. Ora, visto o teor das alegações da autora/apelante é questão a apreciar no presente recurso: - Da alegada competência material dos tribunais comuns para apreciar e decidir o objeto da presente ação. Como é sabido, a competência em razão da matéria distribui-se por diferentes espécies ou categorias de tribunais que se situam no mesmo plano horizontal, sem nenhuma relação de hierarquia (de subordinação ou dependência) entre elas. Funcionando assim o princípio da especialização, de acordo com o qual reserva-se para órgãos judiciários diferenciados o conhecimento de certos sectores do direito, cfr. Antunes Varela, J. Miguel Bezerra, Sampaio e Nora, IN “Manual de Processo Civil”, pág. 195. Pelo que, como conclui Miguel Teixeira de Sousa, in “Estudos Sobre o Novo Processo Civil”, pág. 128, a “insusceptibilidade de um tribunal apreciar determinada causa que decorre da circunstância de os critérios determinativos da competência não lhe concederem a medida de jurisdição suficiente para essa apreciação”, determina a incompetência do tribunal. Preceitua o art.º 64.º do C.P.Civil que “são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”. E o art.º 211.º, n.º 1 da C.República Portuguesa dispõe que “os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens jurídicas”. E dispõe o n.3 de tal preceito da Lei Fundamental que “compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais”. E por fim, o art.º 1.º, n.º 1 do ETAF preceitua que “os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios compreendidos pelo âmbito de jurisdição previsto no artigo 4.º deste Estatuto”. Em suma, podemos concluir que a competência dos tribunais comuns é residual, ou seja, o tribunal judicial será o competente, em razão da matéria, se a causa não for atribuída a outra ordem jurisdicional, designadamente à administrativa ou à fiscal. Também como é sabido a competência em razão da matéria afere-se pelo objeto do processo tal como é apresentado pelo autor, ou seja, pela causa de pedir e pelo pedido formulados. “In casu”, a autora/apelante intentou a presente ação visando a cobrança da quantia total de €1.422,94, sendo €1.315.79 de capital, €47,36 a título de despesas administrativas e €59,79 de juros mora vencidos calculados à taxa legal comercial, e ainda os juros de mora vincendos às sucessivas taxas legais comerciais em vigor até efetivo e integral pagamento. E peticiona tal porque, segundo alega, a pedido do réu, efetuou de ligação do prédio do mesmo ao sistema público de saneamento, fazendo a respetiva contratação do serviço, daí que tenham sido emitidas as respetivas faturas para liquidação da tarifa/preço inerente à construção do necessário ramal; liquidação da tarifa de ligação de águas residuais; inspeção e vistorias efetuadas ao imóvel do mesmo, para ligação e contratação do serviço. Mas o réu nada pagou até ao momento. Cumpre assim saber se a ação destinada à cobrança das tarifas/preços fixados para a construção de ramais, para a ligação de águas residuais, para as inspeções e vistorias efetuadas aos prédios dos respetivos utentes/beneficiadores e para a ligação e contratação do serviço é da competência dos tribunais comuns, como defende a autora/apelante ou dos tribunais administrativos e fiscais, como se defendeu em 1.ª instância. Logo, há que apurar que tipo de relação jurídica está em causa na presente ação e se a mesma corresponde a matéria comum ou administrativa e fiscal. Defende a autora/apelante que se que foi o legislador quem, por via do preceituado na al. e) do n.º4 do art.º 4.º do ETAF quem expressamente retirou a competência aos Tribunais Administrativos e Fiscais para o julgamento da presente ação, já que o pedido provêm de uma relação de consumo relativa à prestação de serviços essenciais, subsumida ao regime da Lei n.º 23/96, de 26.07, independentemente da sua natureza administrativa ou civil. Mais defende ainda a autora/apelante não estarem em causa a cobrança de taxas ou prestações com caráter de tributo, mas antes o preço de um serviço prestado a solicitação do réu. A autora/apelante dedica-se, em regime de concessão, nomeadamente, à prossecução da exploração e gestão conjunta dos serviços públicos municipais de abastecimento de água para consumo público e de recolha, tratamento e rejeição das águas residuais do Município ..., pelo detém a concessão para exploração dos serviços municipais de distribuição de água e recolha e tratamento de água residuais no concelho ..., com contrato de concessão em vigor desde 17.09.2007 até à presente data. Na verdade, a Lei n.º 114/2019, que entrou em vigor em 11.11.2019, introduziu alterações no ETAF, em particular no art.º 4.º n.º 4, passando a constar do mesmo: “Estão igualmente excluídas do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal: estão excluídos do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal: “(…) e) A apreciação de litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a respetiva cobrança coerciva”. No Ac. do STJ de STJ de 8.09.2020, in www.dgsi.pt, pode ler-se acerca da supra citada lei que alterou o ETAF e mormente acerca da respetiva exposição de motivos da proposta de lei que a antecedeu que: “No texto da exposição afirma-se claramente que se optou por determinar a realização de alterações no âmbito da jurisdição, o que não é compatível com a qualificação como lei interpretativa. A própria divisão da jurisprudência mostra que a questão tem sido controvertida e só com a intervenção do legislador – a optar por uma solução – veio criar uma regra jurídica mais estável e segura na sua aplicação, não se podendo dela extrair qualquer sentido meramente interpretativo; ao invés, é uma solução nova – e nesse sentido só dispõe para o futuro, exceto se o próprio legislador tivesse optado pela sua aplicação retroativa ou a mesma pudesse caber na previsão legal do art.º 12.º ou 13.º do CC.” “In casu”, os factos relatados pela autora/apelante em sede de p. inicial remontam a 2022, logo no âmbito da referida nova redação do art.º 4.º do ETAF, pelo que temos de averiguar se a relação material apresentada pela autora/apelante configura ou não uma típica relação de consumo. Não olvidamos que, no que concerne à ligação do sistema predial à rede pública, estamos perante uma relação jurídica administrativa, a qual visa um fim público que é o da saúde, higiene e salubridade públicas e qualidade ambiental. Sobre esta questão pronunciou-se o Tribunal de Conflitos no Ac. de 13.09.2021, in www.dgsi.pt e de expressamente resulta que: “…nos autos está em cobrança uma dívida proveniente de tarifa de ligação de saneamento, de execução de ramal de saneamento e de vistoria de ligação de saneamento e não uma tarifa pelo “serviço de recolha e tratamento de água residuais”, que, este último sim, se inclui no rol fechado de “serviços públicos essenciais” enunciado na Lei n.º 23/96, de 26 de Julho. Que uma e outra tarifa se referem a realidades jurídicas distintas resulta, desde logo, da sua diferente previsão no próprio Regulamento n.º 514/2014, acima referido. Parafraseando a sentença, diremos: uma coisa é a ligação de um prédio ao sistema público de saneamento, que é obrigatória nas condições do art.º 51.º do referido Regulamento (ao qual se referirão os artigos adiante referidos sem menção do diploma de origem), bem assim como a execução dos ramais de ligação, que ocorre previamente à prestação e à utilização dos serviços de recolha e tratamento de águas residuais, e que é faturada uma única vez ao utilizador (cfr. art.º 93.º), a quem incumbe o seu pagamento nos termos do art.º 64.º, que pode ser fracionado sem juros, nas condições estabelecidas no art.º 99.º; outra coisa é a prestação do serviço de recolha de águas residuais, no âmbito de um contrato de prestação dos serviços públicos de abastecimento de água e de saneamento de águas residuais urbanas, que são faturadas aos utilizadores, de forma periódica (cfr. art.º 67.º do Decreto-Lei n.º 194/2009, de 20 de Agosto – que estabelece o regime jurídico dos serviços municipais de abastecimento público de água, de saneamento de águas residuais e de gestão de resíduos urbanos), com periodicidade mensal (cfr. art.º 9.º da Lei n.º 23/96, de 26 de Julho), englobando, entre outros, a prestação dos serviços de manutenção, conservação e renovação de ramais, de recolha e encaminhamento de águas residuais, a manutenção, conservação e renovação de caixas de ligação de ramal (salvo se por motivo imputável ao utilizador) e a instalação de medidor de caudal individual (cfr. art.º 92.º, n.ºs 1, 2, 3 e 4). Não será a necessidade da ligação de um prédio ao sistema público de saneamento, bem assim como a execução dos ramais de ligação, para a ulterior prestação do “serviço de recolha e tratamento de água residuais”, que permite confundir uns com o outro. Afigura-se-nos, pois, que, atentas as regras de interpretação consagradas no art.º 9.º do CC, os serviços de ligação ao sistema público de saneamento, de execução do ramal de ligação ao saneamento e de vistoria da ligação de saneamento, não cabem no conceito de serviço de recolha e tratamento de água residuais previsto na alínea f) do art.º 1.º da Lei n.º 23/96, de 26 de Julho e, consequentemente, na enumeração taxativa dos serviços públicos essenciais aí efetuada”. Neste mesmo sentido se pronunciaram os Acs. desta Relação de 28.10.2021 e de 16.01.2023, ambos in www.dgsi.pt. Em suma, é nosso seguro entendimento que, face ao preceituado na Lei n.º 23/96 de 26.07, que criou no nosso ordenamento jurídico alguns mecanismos destinados a proteger o utente de serviços públicos essenciais, e que no seu art.º 1.º identifica o que entende por serviços públicos essenciais, e ao que acima se deixou consignado que, a prestação de serviços de vistorias e ligações a ramal de saneamento à rede pública não se podem enquadrar em face da lei como um serviço público essencial, e também não é enquadrável no conceito de “serviço de recolha e tratamento de água residuais” previsto na al. f) do art.º 1.º da Lei n.º 23/96, de 26.07 e, consequentemente, na enumeração taxativa dos serviços públicos essenciais aí efetuada, logo não se estando perante uma relação de consumo típica, não está contida na previsão da al. e) do n.º4 do art.º 4.º do ETAF. Pelo que, sem necessidade de outros considerandos, atento o pedido e a causa de pedir expostos pela autora/apelante na sua p. inicial, conclui-se que o litígio em apreço reveste a natureza de relação jurídica administrativa, pelo que por força do preceituado no art.ºs 1.º n.º1, 4.º n.º1 al. o) do ETAF, são os tribunais administrativos os competentes para julgar e apreciar e julgar a presente ação, confirmando-se que é incompetente em razão da matéria, o tribunal da ordem jurídica comum, no caso concreto, o Tribunal recorrido. Improcedem as conclusões da autora/apelante. Sumário: ……………………………….. ……………………………….. ……………………………….. IV – Pelo exposto acordam os Juízes desta secção cível em julgar as presentes apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida. Custas pela autora/apelante. Porto, 2024.06.18 Anabela Dias da Silva João Ramos Lopes João Proença |