Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | MARIA JOÃO FERREIRA LOPES | ||
Descritores: | INSOLVÊNCIA CIVIL DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA CONDIÇÃO OBJECTIVA DE PUNIBILIDADE CRIME INSOLVÊNCIA DOLOSA | ||
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Nº do Documento: | RP202412184719/16.6T9AVR.P2 | ||
Data do Acordão: | 12/18/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL (CONFERÊNCIA) | ||
Decisão: | JULGADO PROVIDO O RECURSO INTERPOSTO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO | ||
Indicações Eventuais: | 4ª SECÇÃO | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | I - O sentido da norma contida no aludido n.º 1 do artigo 227.º CP, não exige que a actuação do devedor seja causa directa e necessária, sequer, que contribua de algum modo e, muito menos de forma adequada, para a posterior de declaração de insolvência. II – A declaração de insolvência é condição objetiva de punibilidade e não elemento essencialmente constitutivo do tipo legal de crime de insolvência. III - O agente que já se encontra numa situação efectiva de falência, e que perspectiva isso como certo ou possível e mesmo assim procede à dissipação dos bens e património para prejudicar os credores, incorre na autoria material do crime de insolvência dolosa p. e p. pelo artigo 227.º/1, a) do Código Penal, independentemente de a sua conduta ser directamente causal da insolvência judicial que veio a ser declarada. | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | Proc n.º 4719/16.6T9AVR.P1 Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro Juízo de Competência Genérica de Estarreja - Juiz 2 Acordam, em conferência, na 4.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto I. Relatório 1. Efectuado o julgamento, em processo comum com intervenção de Tribunal Singular no processo 4719/16.6T9AVR.P1, a correr termos no Juízo de Competência Genérica de Estarreja - Juiz 2, no que ao caso releva, foi o arguido AA, com os demais sinais do autos, absolvido da prática do crime, pelo qual vinha pronunciado, de insolvência dolosa, p. e p. pelos artigos 227.º/1 alínea b) e 3 e 229.º-A do CP. 2. Interposto recurso pelo Ministério Público, decidiu este Tribunal se efectuasse comunicação da alteração da qualificação jurídica dos factos imputados ao arguido, no sentido de os mesmos poderem consubstanciar a prática de um crime de insolvência dolosa, p. e p. pelo artigo 227.º/1 alínea a) do CP. 3. Após baixa do processo foi reaberta a audiência e realizada a sobredita comunicação de alteração da qualificação jurídica, nada tendo sido requerido pelos sujeitos processuais. Foi proferida nova sentença, a decretar a absolvição do arguido do crime de insolvência dolosa por que vinha pronunciado e do crime de insolvência dolosa decorrente da alteração da qualificação jurídica comunicada pelo tribunal. 4. Novamente, inconformado, recorreu o Magistrado do M.P., pugnando pela revogação da sentença e substituição por outra que condene o arguido pela prática de um crime de insolvência dolosa, p.p. no artigo 227.º/1 alínea a) do CP, rematando o corpo da motivação com as conclusões que se passam a transcrever: “I. Não se conformando com a sentença proferida nestes autos na parte em que absolveu o arguido AA do crime de insolvência dolosa, o Ministério Público vem da mesma interpor recurso. II. O Ministério Público entende que os factos provados integram, não a alínea b) do n.º 1 do artigo 227.º do Código Penal, mas, outrossim, a alínea a) do mesmo normativo. III. No caso dos autos não se encontram em causa quaisquer actos de diminuição fictícia do património. Pelo contrário, o que ocorreram foram actos de efectiva e real diminuição do património da sociedade insolvente, o que constituem actos de fazer desaparecer património. IV. O âmago da discordância do Ministério Público em relação à sentença recorrida prende-se apenas com a subsunção jurídica dos factos provados no tipo de ilícito de insolvência dolosa. V. Isto porque na sentença recorrida se entendeu que “mesmo não se exigindo que a conduta típica seja determinante (única e exclusivamente) da situação de insolvência, não terá de se deixar de exigir que os actos praticados pelo agente tenham de alguma forma contribuído para o estado insolvencial”. VI. A alteração legislativa ao artigo, designadamente a eliminação do n.º 2 do artigo 227.º do Código Penal na redacção atribuída pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15.03, deixou evidente que o crime em causa não é um crime de resultado, mas um crime de mera actividade. VII. Por outro lado, a situação de insolvência, com o respectivo reconhecimento judicial, constitui agora uma condição objectiva de punibilidade, pelo que não se exige que a conduta do agente seja causa directa e necessária (ou sequer que contribua de algum modo) para o estado insolvencial. VIII. O preenchimento do tipo legal basta-se, assim, com a verificação de uma das actuações descritas no n.º 1 do artigo 227.º do Código Penal, realizadas com a específica intenção de prejudicar os credores, desde que verificada a condição objectiva de punibilidade. IX. Inexiste qualquer nexo causal entre a conduta típica e a situação de insolvência, pelo que nada impede, bem pelo contrário, que um agente que se encontre já em situação de falência técnica e proceda à transferência dos seus bens para uma outra sociedade, com o fito de impedir a satisfação de créditos, pratique o referido crime de insolvência dolosa, desde que esta venha a ocorrer e seja judicialmente reconhecida. X. Perante o enquadramento fáctico constante da sentença, que deu como provados factos susceptíveis de preencher os elementos objectivo e subjectivo do tipo legal de crime de insolvência dolosa, previsto e punido pelos artigos 227.º, n.º 1, alínea a), e n.º 3, e 229.º-A, ambos do Código Penal, deverá o arguido ser condenado. XI. A sentença violou o disposto no artigo 227.º, n.º 1, alínea a), e n.º 3, do Código Penal, devendo ser revogada e substituída por outra que condene o arguido pela prática de um crime de insolvência dolosa.” 5. Respondeu o arguido defendendo a improcedência do recurso. 6. Subidos os autos a este Tribunal, pronunciou-se o Sr. Procurador Geral Adjunto emitindo parecer no sentido de ser concedido integral provimento ao recurso. 7. Notificado o arguido nos termos e para os efeitos do artigo 417.º/2 do CPP, defendeu o não provimento do recurso, em virtude de o M.P. não ter feito prova do elemento subjectivo do ilícito em causa e entender que se trata de um crime de mera actividade, quando estamos perante um crime de dano. 8. No exame preliminar a relatora deixou exarado que nada obstava ao conhecimento do recurso, que, por sua vez, havia sido admitido com o regime de subida adequado. 9. Seguiram-se os vistos legais. 10. Foram os autos submetidos à conferência e dos correspondentes trabalhos resultou o presente acórdão. * II. Fundamentação1. O âmbito do recurso, que circunscreve os poderes de cognição deste tribunal, delimita-se pelas conclusões da motivação do recorrente (artigos 402.º, 403.º e 412.º do CPP), sem prejuízo dos poderes de conhecimento oficioso quanto a vícios da decisão recorrida, a que se refere o artigo 410.º/2, do CPP (acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, DR-I, de 28.12.1995), quanto a nulidades não sanadas (n.º 3 do mesmo preceito) e quanto a nulidades da sentença (artigo 379.º/2, do CPP, na redação da Lei n.º 20/2013, de 21 de Fevereiro). Assim e tendo presente ainda que nos recursos se apreciam questões e não razões, bem como não visam criar decisões sobre matéria nova, então, as questões suscitadas no presente são as seguintes: - saber se a decisão recorrida violou o disposto no artigo 227.º/1/a) e 3 e 229.º-A CP; - em caso afirmativo, se deve ser revogada e substituída por outra, com as legais consequências, que condene o arguido pela prática de um crime de insolvência dolosa. 2. Uma vez que o recurso apenas versa sobre matéria de Direito e dado que se não vislumbra a existência de qualquer dos vícios previstos no artigo 410.º/2 do CPP - de conhecimento oficioso, como se sabe – há que ter-se como definitivamente fixada a matéria de facto definida pela decisão recorrida. 2.1. Materialidade provada que é a seguinte, ao que ora releva: “1- “A... Lda.”, NIPC ..., era uma sociedade comercial por quotas, com sede na Rua ..., ..., ..., ..., com o objeto social de exploração de estabelecimento de asador de leitão e frango, matadouro de leitões, comércio por grosso de leitão assado e frango de churrasco, restaurante, snack-bar e café, taberna, venda a retalho de produtos alimentares, higiene e limpeza; 2- O arguido AA foi desde sempre o único gerente da “A...”, exercendo, em toda a linha, de facto e de direito, as funções de administração e gestão da sociedade; 3- Os arguidos BB e CC são filhos de AA e foram sempre sócios da sociedade desde a constituição da mesma até à data do cancelamento da sua matrícula, em 22 de outubro de 2019, tendo trabalhado ao balcão e a servir à mesa na “A...”; 4- A arguida DD é mulher de AA e trabalhava como cozinheira na “A...”; 5- No ano de 2009 a “A...” obteve um resultado líquido negativo do exercício no montante de € 111.058,48, não obstante ter declarado o valor positivo de € 703.561,51; 6- Nessa mesma altura, a empresa atravessava graves dificuldades financeiras, resultantes em particular de crédito malparado que detinha sobre clientes, o que implicou que a sociedade deixasse de pagar aos fornecedores e, bem assim, que não tivesse capacidade de solver as suas obrigações vencidas; 7- No dia 22 de fevereiro de 2010, os arguidos AA e DD constituíram uma nova sociedade com o mesmo objeto e a sede no local mesmo ao lado, ou seja, dedicada ao comércio de leitões cru e assado, restauração, snack-bar e afins e sede na Rua ..., ..., em ..., ..., a qual denominaram de “B..., Lda.”, com o NIPC ...; 8- Por contrato de compra e venda de bens móveis datado de 8 de março de 2010, os arguidos CC e BB, na qualidade de sócios da “A...”, declararam vender à sociedade “B...”, representada pela arguida DD, e esta declarou comprar, pelo preço de € 64.921,00, todos os móveis, eletrodomésticos, máquinas industriais de restauração e utensílios de restauração utilizados no exercício da atividade comercial da “A...”; 9- Por escritura pública outorgada no dia 16 de março de 2010, os arguidos CC e BB, na qualidade de sócios da “A...” e em representação desta, declararam que, pelo preço de € 15.000,00, aquela sociedade trespassava à “B...”, representada no acto pelos arguidos AA e DD, o estabelecimento comercial de café e casa de pasto denominada “C...”, com transmissão de todos os seus pertences, a saber, móveis, equipamentos, utensílios, peças, acessórios, licença sanitária, posição de arrendatária do local onde o mesmo funcionava, com exclusão de todo e qualquer passivo e sem qualquer trabalhador; 10- Por contrato de cedência de espaço comercial datado de 27 de março de 2010, os arguidos CC e BB, na qualidade de sócios da “A...” e em sua representação, declararam conceder à sociedade “B...” a exploração do espaço comercial denominado “A...”, destinado a churrascaria de leitões, do qual aquela era proprietária, com início em 1 de abril de 2014 e pelo prazo de dez anos, prorrogável, mediante a retribuição mensal de € 350,00, permanecendo a “A...” responsável pelo pagamento das mensalidades bancárias referentes à aquisição do imóvel; 11- A partir da celebração dos sobreditos contratos, a atividade da “A...” foi assumida pela sociedade “B...”, conforme intenção do arguido AA; 12- Em 11 de julho de 2011, foi aditado à sobredita escritura de 16 de março de 2010, e para dela fazer parte integrante, um documento complementar com identificação dos bens materiais transmitidos com o trespasse do estabelecimento; 13- Mediante notificação judicial avulsa cumprida em 22 de dezembro de 2010, EE e mulher FF comunicaram ao arguido AA que a) não pretendiam manter o arrendamento do prédio misto sito no ... – ... (arts. ... e rústico ...), em virtude de a “A...” não lhes ter pago as rendas vencidas no dia 1 de cada um dos meses desde setembro até novembro de 2009 e desde maio até dezembro de 2010, inclusive, no valor total de € 4.400,00, e que b) procediam à resolução do contrato de arrendamento vigente com a “A...”, devendo esta entregar-lhes de imediato o local arrendado livre de pessoas e bens e pagar-lhes todas as rendas em vencidas e vincendas até à desocupação efetiva; 14- Através de contrato de arrendamento de duração indeterminada datado de 3 de janeiro de 2011, com início em 1 de janeiro de 2011, EE e mulher FF declararam dar de arrendamento à “B...” o prédio misto sito no ... – ... (arts. ... e rústico ...), com o respetivo recheio discriminado em relação anexa, destinado a comércio de leitões a cru e assado, restauração, snack-bar e afins, com habitação de apoio, mediante renda anual de € 4.800,00, a pagar mensalmente em duodécimos de € 400,00, cujo cumprimento, a par com todas as cláusulas do contrato e até efetiva restituição do arrendado, o arguido AA declarou assumir solidariamente com a “B...” na qualidade de fiador, renunciando ao benefício da excussão prévia; 15- Em consequência das operações acima descritas, a “A...” viu as garantias dos créditos dos seus credores diminuírem substancialmente, o que era do conhecimento e vontade do arguido AA, sendo que também por causa disso, no exercício do ano de 2010, as vendas e prestações de serviços daquela sociedade reduziram-se para o valor de € 203.404,92; 16- A “A...” apresentou-se à insolvência em 22 de julho de 2011 e foi declarada insolvente por sentença datada de 14 de setembro do mesmo ano e transitada em julgado em 14 de outubro seguinte; 17- Em 21 de outubro de 2011, o administrador de insolvência procedeu à resolução em benefício da massa insolvente dos contratos mencionados em 8), 9) e 10); 18- Não foram encontradas evidências contabilísticas do pagamento à “A...” dos valores mencionado nos aludidos contratos; 19- À data da declaração de insolvência da “A...”, encontravam-se vencidos créditos de natureza laboral, nomeadamente, de GG, HH, II, JJ, KK e LL, trabalhadores daquela empresa; 20- Encontravam-se também vencidos, para além do mais, créditos de “Banco 1...”, “Banco 2...”, “Instituto da Segurança Social, IP”, MM, “D..., SA” e “E..., SA”; 21- A insolvência da sociedade “A...” foi considerada culposa por decisão proferida em 4 de novembro de 2016, já transitada em julgado, sendo declarado afetado pela qualificação o arguido AA; 22- A decisão de celebrar os supra descritos contratos foi tomada pelo arguido AA, o qual bem sabia que, mediante aqueles actos, diminuía o património da sociedade e, bem assim, retirava-lhe todo o valor económico e capacidade de exercício do seu objeto social; 23- Agiu de modo livre, voluntário e consciente, com o propósito de prejudicar os credores dessa sociedade, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei; 24- AA encontra-se reformado há cerca de 10 anos; 25- Aufere pensão de reforma no valor de € 502/ mês; 26- É casado com a arguida DD, a qual se encontra também reformada e aufere pensão de valor aproximado do marido; 27- Não têm filhos a cargo; 28- Vivem em casa arrendada, pela qual pagam € 350/ mês de renda; 29- O arguido AA possui de habilitações literárias a 4ª classe; 30- Do seu CRC consta um crime de ofensa à integridade física, praticado em fevereiro de 2009, pelo qual foi condenado em pena de multa; um crime de falsificação de documento, praticado em dezembro de 2009, pelo qual foi condenado em pena de multa; um crime de abuso de confiança contra a segurança social, praticado em junho de 2009, pelo qual foi condenado em pena de multa; um crime de ofensa à integridade física, praticado em julho de 2014, pelo qual foi condenado em pena de multa; (…).” 2.2. A fundamentação de Direito da decisão recorrida. “Enquadramento jurídico-penal Os arguidos vieram pronunciados pela prática de um crime de insolvência dolosa, p. e p. pelos arts. 227º, 1, b), e 3, e 229º-A, C. Penal. Reza assim aquele primeiro normativo da nossa lei penal: Dispõe assim aquele normativo: “1- O devedor que com intenção de prejudicar os credores: a) Destruir, danificar, inutilizar ou fizer desaparecer parte do seu património; b) Diminuir ficticiamente o seu activo, dissimulando coisas, invocando dívidas supostas, reconhecendo créditos fictícios, incitando terceiros a apresentá-los, ou simulando, por qualquer forma, uma situação patrimonial inferior à realidade, nomeadamente por meio de contabilidade inexacta, falso balanço, destruição ou ocultação de documentos contabilísticos ou não organizando a contabilidade apesar de devida (…), é punido, se ocorrer a situação de insolvência e esta vier a ser reconhecida judicialmente, com pena de prisão até cinco anos ou com pena de multa até 600 dias”; 3- (…) é punível nos termos dos nºs 1 e 2 deste art., no caso de o devedor ser pessoa colectiva, sociedade ou mera associação de facto, quem tiver exercido de facto a respectiva gestão ou direcção efectiva e houver praticado algum dos factos previstos no nº 1”. Trata-se de um crime exclusivamente doloso, face à conjugação daquele preceito com o art. 13º C. Penal – princípio da excepcionalidade da punição a título de negligência ou do numerus clausus. Tal como explanado por Pedro Caeiro (In Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, Coimbra Editora, Coimbra, 1999, pág. 402), “os crimes insolvenciais surgiram para punir os comerciantes que causavam um prejuízo aos seus credores, quer através do levantamento (…) quer através da quebra (…) em virtude de uma situação de impotência económica (…) que impedia o quebrado de satisfazer os seus credores”. O bem jurídico protegido com esta incriminação é o património dos credores, embora se pretenda salvaguardar indiretamente o bom funcionamento da economia, pois os devedores, ao praticarem condutas violadoras de princípios da boa-fé, da lealdade, da cooperação, da verdade e da boa informação, põem em causa a relação entre devedor-credor, que é essencial à economia de mercado – cfr., a este propósito, Susana Aires de Sousa, Os crimes insolvenciais, “Revista de Direito da Insolvência”, Almedina, Coimbra, 2016, pág. 48. Quanto às modalidades de acção, o Ministério Público imputou aos arguidos actos de diminuição fictícia do património, previsto na al. b) do nº 1 do preceito sub judice. Estão em causa, assim, condutas em que “o devedor simula uma situação de insolvência inexistente, assim se locupletando ocultamente, à custa dos créditos insatisfeitos, com os bens subtraídos à acção dos credores”, o que poderá ocorrer “através da diminuição fictícia do ativo (v. g., da dissimulação de coisas), como através do agravamento fictício do passivo (como seja a invocação de dívidas inexistentes)” – cfr. Pedro Caeiro, ob. cit., pág. 413. No caso dos autos, os actos praticados consistiram na «trafega» de património de uma empresa em dificuldades financeiras para outra empresa criada para cumprir exactamente a mesma actividade da anterior, privando assim os credores da primeira das garantias dos seus créditos – cfr. factos provados sob os nºs 7 a 10, 15, 22 e 23. Ora, tal conduta não consubstancia uma diminuição fictícia do património nem a simulação de uma situação patrimonial inferior à realidade, mas antes um esvaziamento de parte do património da sociedade, transferindo-o para uma entidade com personalidade jurídica diferente, e dessa forma, a privação dos credores da cobrança coerciva dos seus direitos. Impõe-se, por isso, a absolvição dos arguidos quanto ao ilícito de que vieram pronunciados. Vejamos, agora, o crime de insolvência dolosa, p. e p. pela al. a) do preceito em apreço. Atento o comportamento acima descrito, o mesmo é susceptível de integrar, efectivamente, em abstracto, a al. a) da referida norma jurídica (“fazer desaparecer parte do seu património”) – cfr., a este propósito, o Acórdão da Relação de Coimbra de 7 de abril de 2021, no Proc. nº 4093/15.8T9CBR.C1, relatado por Alcina da Costa Ribeiro, in www.dgsi.pt, e Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do C. Penal à luz da Constituição da República e da CEDH, 3ª Ed. Actualizada, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2010, pág. 878. Importa ter em consideração, todavia, que o crime sub judice contém dois requisitos essenciais: a situação de insolvência do devedor e o seu reconhecimento judicial (esta como condição objectiva de punibilidade). Daqui deriva, desde logo, uma consequência relevante, qual seja a de que a situação de insolvência deverá ser posterior (seja imediatamente ou mais diferido no tempo) ao acto de delapidação de património em causa (tendo em consideração o caso que nos ocupa). Questão que tem levantado divergências doutrinais é a de saber se a situação de insolvência exigida pelo tipo legal de crime em análise deverá ser provocada pelos ditos actos de delapidação do acervo patrimonial – neste sentido, cfr. Pedro Caeiro, ob. cit., pág. 421 – ou se é indiferente que a situação de insolvência esteja ou não relacionada com os aludidos actos, por a lei não exigir qualquer resultado típico – neste entendimento, cfr. Ana Luísa Mota Miranda, A Responsabilidade Penal nos Crimes Insolvenciais, Universidade Católica Portuguesa, Faculdade de Direito/ Escola do Porto, pág. 18. As aludidas divergências decorrem da evolução legislativa no tipo legal em apreço, posto que a redação do C. Penal de 1982 previa a punição “se vier a ser declarado estado de falência” e o DL nº 132/93, de 23 de abril, introduziu a atual redação, isto é, “se ocorrer a situação de insolvência e esta vier a ser reconhecida judicialmente”. Ora, em face da redacção vigente, é manifesta a exigência legal de a situação de insolvência (isto é, a impossibilidade de o devedor cumprir as obrigações vencidas – cfr. art. 3º, 1, CIRE) ser posterior aos actos nocivos do património da sociedade, não estando prevista a situação em que a incapacidade de solver as dívidas já existia à data em que tais actos foram praticados (“se ocorrer a situação de insolvência”). Por outro lado, perante o bem jurídico protegido com a incriminação, somos de parecer que, mesmo não se exigindo que a conduta típica seja determinante (única e exclusivamente) da situação de insolvência, não terá de se deixar de exigir que os actos praticados pelo agente tenham de alguma forma contribuído para o estado insolvencial, sob pena de qualquer acto que diminua o património do devedor e, bem assim, reduza a possibilidade de cobrança do respectivo credor, poder integrar o ilícito de insolvência dolosa sem que o mesmo tenha qualquer conexão com… a insolvência dolosa (desde que esta viesse a ocorrer por motivos de outra ordem). Por conseguinte, um acto dessa natureza constituiria somente uma frustração de créditos de terceiro, na medida em que o agente faria desaparecer parte do seu património para intencionalmente frustrar, total ou parcialmente, a satisfação de um crédito de outrem (ficando a tutela penal desse comportamento dependente dos condicionalismos previstos pelo art. 227º-A, C. Penal). Assim, perfilhamos o entendimento segundo o qual a situação de insolvência, e consequente (e posterior) declaração de insolvência, deve ter uma conexão histórica com os actos típicos (cfr., neste conspecto, Miguez Garcia e Castela Rio, Código Penal Anotado, Parte geral e especial com notas e comentários, Coimbra, Almedina, 2014, pág. 959, anotação 6ª), sendo particularmente sensíveis, por isso, as circunstâncias em que, para além dos actos típicos, outros factores tenham concorrido para a situação de insolvência. Em tais casos, deverá fazer-se “um juízo sobre a importância relativa destes factores, com vista a apurar qual ou quais foram determinantes da situação de insolvência. Concluindo-se que foram determinantes os actos típicos, estabelece-se uma conexão histórica entre estes actos e a declaração de insolvência, devendo considerar-se verificada a condição objectiva de punibilidade. Na dúvida, não se deve considerar verificada a condição objectiva de punibilidade” – cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, ob. cit., pág. 879. Ora, revertendo ao caso que nos ocupa, temos que a sociedade “A...” atravessava graves dificuldades financeiras desde pelo menos o ano de 2009, decorrentes de crédito malparado que detinha sobre clientes, o que implicou que deixasse de cumprir com os seus fornecedores e de ter possibilidade de solver as suas obrigações vencidas – ver pontos 5 e 6 do elenco factual apurado. Donde, a situação de insolvência já existia à data em que o arguido AA levou a cabo os aludidos actos de delapidação do património da sociedade, concretamente de venda de bens móveis, de trespasse de estabelecimento comercial e de cedência de espaço comercial – cfr. factualidade provada sob os nºs 2, 5 a 10 e 22. Assim, não obstante o necessário agravamento das dificuldades financeiras da “A...” mercê dos sobreditos actos negociais – a concorrer, do mesmo passo, para o decretamento judicial da insolvência – não ocorreu, in casu, qualquer relação entre tais actos e a situação de insolvência; é dizer, não existiu conexão histórica entre essa factualidade (praticada no primeiro trimestre de 2010) e a situação de insolvência da empresa, isto é, da situação em que esta se mostrou incapaz de solver as suas obrigações vencidas (que já remontava, pelo menos, a 2009) – cfr. acervo factual provado sob os nºs 6 a 10. Ou seja, o que se verificou foi um agravamento da situação de insolvência, mercê dos aludidos actos de diminuição patrimonial, não sendo tal comportamento penalmente relevante, pois o preceito em análise apenas prevê a ocorrência da situação de insolvência (na sequência daqueles actos), e já não o agravamento de uma situação insolvencial pré-existente, pelo que a punição penal da factualidade sub judice constituiria uma violação do princípio da legalidade – arts. 29º, 1, CRP, e 1º, 1, C. Penal. Por todo o exposto, é forçoso concluir que não se mostram preenchidos os elementos típicos do crime de insolvência dolosa, seja na variante pelo qual os arguidos vieram pronunciados, seja na hipótese legal objecto da comunicação determinada pelo Tribunal da Relação, pelo que se impõe a respectiva absolvição (…)”. 3. O enquadramento do recurso. Na decisão recorrida entendeu-se que, - o preceito em análise apenas prevê a ocorrência da situação de insolvência (na sequência daqueles actos), e já não o agravamento de uma situação insolvencial pré-existente, pelo que a punição penal da factualidade sub judice constituiria uma violação do princípio da legalidade – artigos 29.º/1 da CRP e 1.º/1 CP; - é forçoso concluir que não se mostram preenchidos os elementos típicos do crime de insolvência dolosa, seja na variante pelo qual os arguidos vieram pronunciados, seja na hipótese legal objecto da comunicação determinada pelo Tribunal da Relação, pelo que se impõe a respectiva absolvição. A isto contrapõe o recorrente que os factos provados são susceptíveis de integrar a alínea a) do n.º 1 do artigo 227.º do CP. Argumenta que: - ocorreram actos de efectiva e real diminuição do património da sociedade insolvente, mediante a celebração dos contratos identificados nos pontos 7 a 12 do elenco dos factos provados, designadamente contratos de compra e venda, trespasse, cedência de espaço comercial e através da constituição de uma nova sociedade, sem que entrasse no património da insolvente qualquer contrapartida pecuniária; - existiu uma total canalização de bens para uma outra empresa, deixando, assim, os bens que deveriam estar na esfera patrimonial da insolvente de aí serem localizados, de modo a não cumprirem a finalidade da satisfação das suas dívidas, independentemente da inexistência contabilística da entrada de contrapartida monetária; - actos que mais não são do que a delapidação do património da insolvente, através do acto de fazer desaparecer os seus próprios bens para uma outra sociedade; - as sucessivas alterações legislativas deste preceito vieram reforçar a ideia de que a incriminação da insolvência dolosa deixou de exigir na tipicidade que a actuação do devedor seja causa directa e necessária da situação e posterior declaração de insolvência, bastando apenas que se mostre preenchido o tipo de ilícito e que se verifique uma das actuações descritas no n.º 1 do preceito em análise, realizadas com intenção de prejudicar os credores. O arguido, por sua vez, defende que o recurso deve improceder in totum e a sentença de absolvição mantida, alegando que: - o MP entende que o objecto processual deste processo e da sua sentença deve ser subsumido à alínea a) do n.º 1 e não à alínea b) do artigo 227.º e n.º 3, conjugado com o artigo 229.º do Código Penal e que para que este normativo seja aplicado ao arguido prescinde (sic) do elemento subjectivo, ou seja do dolo do artigo 13.º do Código Penal, em virtude de entender que, esta alínea é preenchida simplesmente pelo elemento objectivo a partir da alteração levado a efeito pelo Decreto Lei 48/95,de 15 de Março; - preceitua a lei no n.º 3 do artigo 358.º do CPPenal que, o disposto no n.º 1 é correspondentemente aplicável quando o tribunal alterar a qualificação dos factos descritos na acusação ou na pronúncia e depois na motivação/conclusões partilha do entendimento vertido na sentença recorrida quanto à subsunção jurídica dos factos imputados na acusação e pronúncia; - quando, de toda a maneira não ficaram provados factos que possam imputar ao arguido o preceituado na alínea a) do n.º 1 do artigo 227.º CP; - não sendo o crime em causa de resultado mas de mera actividade; - de todas as maneiras o instituto da alteração dos factos descritos na acusação ou na pronúncia visa assegurar as garantias de defesa do arguido e concomitantemente assegurar as garantias de defesa do arguido, de acordo com o n.º 1 do artigo 32.º da CRP; - não se vislumbra que a sentença seja nula ex vi da alínea b) do n.º 1 do artigo 379.º CPP. 4. Subsunção dos factos ao Direito Começando pelo fim, como parece medianamente evidente – e desprezando a errada leitura e interpretação que acaba por fazer das alegações do MP - nenhuma das razões, alegações, fundamentos, em que o arguido estrutura a sua resposta tem qualquer cabimento ou pertinência, em face do objecto do recurso, tendo presente a decisão recorrida no confronto com as razões apresentadas pelo recorrente. A questão reside em saber se, estando já a sociedade em situação de insolvência, os actos levados a cabo pelo arguido a colocaram, ou não, em situação diferente da que já existia, sobretudo e concretamente, se foram causa adequada da sua posterior declaração de insolvência. E, se não foram, qual a repercussão em sede da previsão do tipo legal de crime de insolvência dolosa, o que nos remete, inelutavelmente, para a interpretação da norma incriminatória. Atentemos nas regras da interpretação das normas jurídicas. Em termos de regras de interpretação, dispõe o artigo 9.º/1 do Código Civil C, que “a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos jurídicos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada”. Por outro lado, dispõe o n.º 2 da mesma norma que “não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso”. “Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados” – cf. n.º 3 da mesma norma. Na interpretação das normas jurídicas, o argumento literal, não deve ser desprezado e deve-lhe mesmo ser concedido peso decisivo, na tarefa, por vezes árdua (que, cremos, não ser o caso dos autos) de procurar o sentido da norma querido pelo legislador. O texto é o ponto de partida da interpretação, quando o sentido para que nos remete não seja paradoxal. Por um lado, apresenta-se com uma função negativa: a de eliminação daqueles sentidos que não tenham qualquer apoio, correspondência ou ressonância nas palavras da lei. E, por outro, com uma função positiva, nos seguintes termos: primeiro, “se o texto comporta apenas um sentido, é esse o sentido da norma – com a ressalva, porém, de se poder concluir com base noutras normas que a redacção do texto atraiçoou o pensamento do legislador; quando, como é de regra, as normas, fórmulas legislativas, comportam mais que um significado, então a função positiva do texto produz-se em dar mais forte apoio a, ou sugerir mais fortemente, um dos sentidos possíveis; e que, de entre os sentidos possíveis, uns corresponderão ao significado mais natural e directo das expressões usadas, ao passo que outros só caberão no quadro verbal da norma de uma maneira forçada, contrafeita; ora, na falta de outros elementos que induzam à eleição do sentido menos imediato do texto, o intérprete deve optar em princípio por aquele sentido que melhor e mais imediatamente corresponde ao significado natural das expressões verbais utilizadas, e designadamente ao seu significado técnico-jurídico, no suposto, nem sempre exacto, de que o legislador soube exprimir com correcção o seu pensamento” (cfr. Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 12ª reimpressão, 2000, 182). A interpretação tem como escopo fundamental a determinação da chamada voluntas legislatoris. Para tanto o intérprete deve socorrer-se de dois elementos distintos: - o elemento gramatical - o texto da lei e, - o elemento lógico – o espírito da mesma lei. Se se deve começar pela análise do elemento gramatical, mas pode não bastar, como da mesma forma não basta o elemento lógico. Nenhum deles, de resto, se basta a si próprio na tarefa de interpretação. Na análise do elemento gramatical o intérprete começará por determinar o significado verbal das expressões usadas – segundo os critérios linguísticos, a conexão dos vários termos e períodos e concluirá por arrancar de todo esse aglomerado de palavras, um ou vários sentidos. Na hipótese de o texto admitir apenas um sentido, devemos reputá-lo, em princípio, como tradutor da verdadeira vontade real do legislador. No entanto, as mais das vezes o texto da lei comporta, desde logo, mais do que um sentido. Há que recorrer, então ao elemento lógico, que permite corrigir, esclarecer ou consolidar as sugestões dadas pelo texto legal ou que permite vencer os obstáculos criados pelo texto das normas mais obscuras. O elemento lógico tem a ver com a razão de ser da lei, com os motivos que a devem ter determinado e tem em devida conta a sua conexão com outras normas jurídicas e obriga muitas vezes a recorrer aos próprios princípios que estão na base de todo o sistema jurídico. O elemento lógico subdivide-se em 3 elementos distintos: o racional, o sistemático e o histórico. O racional consiste na razão de ser da lei, na ratio legis, no fim para que a norma foi promulgada e ainda nos motivos históricos e nas circunstâncias exteriores que a determinaram – occasio legis. O elemento sistemático, ao qual o intérprete deve recorrer, importa o não perder de vista o facto de que nenhuma disposição legal constitui uma regra isolada dentro do sistema jurídico. Relaciona-se sempre com as outras normas afins e paralelas, sobretudo com as que se integram no mesmo instituto, ou com as que regulam problemas logicamente relacionados. O elemento histórico tem por objecto as diversas leis que versado sobre a mesma matéria, hajam vigorado antes da disposição, cujo sentido se procura determinar, bem como os trabalhos em que se tenha inspirado o legislador e os diversos elementos – projectos, actas, relatórios, comentários, relativos à elaboração da lei. Vejamos então, começando pelo elemento gramatical e o lógico-histórico. O crime de falência dolosa ou fraudulenta era previsto e punido pelos artigos 1277.º e 1278.º CPC, disposições que foram revogadas com a entrada em vigor do CP de 1982, que no seu artigo 325.º previa e punia o crime de falência dolosa, prevendo, concretamente, no que ao caso releva, o seu n.º 1, na alínea a) que, o devedor comerciante que com a intenção de prejudicar os seus credores, destruir, danificar, inutilizar ou fizer desaparecer parte do seu património, será punido, se vier a ser declarado em estado de falência, com prisão até 5 anos. Com a Reforma operada pelo Decreto Lei 48/95 de 18 de Março, passou o crime de insolvência dolosa a estar previsto e punido no artigo 227.º CP, nos seguintes termos, no que ao caso releva: "1 - O devedor que com intenção de prejudicar os credores: a) Destruir, danificar, inutilizar ou fizer desaparecer parte do seu património é punido, se ocorrer a situação de insolvência e esta vier a ser reconhecida judicialmente, com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa”. Dispunha o n.º 2 desta norma que, “se a falência vier a ser declarada em consequência da prática de qualquer dos factos descritos no número anterior, o devedor é punido com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias”. Redacção que, no que aqui releva, não foi alterada pela Lei 65/98 de 2 de Setembro. Tendo, por força do Decreto Lei 53/2004 de 18 de março, a moldura penal abstracta, prevista no n.º 1, passado a ser de prisão até 5 anos ou multa até 600 dias, tendo caído o referido n.º 2, que passou a ser o anterior n.º 3. Da mesma forma a Lei 8/2017 de 3 de Março, manteve inalterado o segmento aqui em causa. Será que daqui se pode concluir, como se entendeu na decisão recorrida, que: - se a situação de insolvência já existia à data em que o arguido levou a cabo os actos descritos na alínea a) do n.º 1 do artigo 227.º CPenal, não obstante o necessário agravamento das dificuldades financeiras da sociedade mercê dos sobreditos actos negociais – a concorrer, do mesmo passo, para o decretamento judicial da insolvência – não ocorreu, in casu, qualquer relação entre tais actos e a situação de insolvência; - não existiu conexão histórica entre essa factualidade (praticada no primeiro trimestre de 2010) e a situação de insolvência da empresa, isto é, da situação em que esta se mostrou incapaz de solver as suas obrigações vencidas (que já remontava, pelo menos, a 2009); - o que se verificou foi um agravamento da situação de insolvência, mercê dos aludidos actos de diminuição patrimonial, não sendo tal comportamento penalmente relevante, pois o preceito em análise apenas prevê a ocorrência da situação de insolvência (na sequência daqueles actos), e já não o agravamento de uma situação insolvencial pré-existente, pelo que a punição penal da factualidade sub judice constituiria uma violação do princípio da legalidade – artigos 29.º/1 da CRP e 1.º/1 C.P.? Cremos que não. “O crime de insolvência dolosa, p. e p. pelo artigo 227.º CPenal, tem como bem protegido o património dos credores e mediatamente, o correcto funcionamento da economia de mercado, como peça fundamental do sistema sócio-económico” (cfr. ac. da RL de 21-05-2015, proc. n.º 770/10.8TATVD.L1-9, www.dgsi.pt). “I. No crime de insolvência dolosa tutela-se, directamente, o património dos credores do insolvente; e mediatamente, o correcto funcionamento da economia de mercado. II. Com tal crime, punem-se condutas intencionalmente orientadas à frustração dos direitos de crédito, tanto quando elas conduzem a uma situação de insolvência é aparente ou simulada. III. A declaração judicial de insolvência constitui uma condição objectiva de punibilidade” (cfr. acórdão deste Tribunal de 17-10-2012, sumário retirado da CJ, 2012, T4, pág.179). São elementos do tipo: - objectivos: - que o agente seja um devedor, cuja insolvência possa ser reconhecida judicialmente; - acção de destruir, danificar, inutilizar ou fazer desaparecer parte do seu património; - subjectivo: - a intenção de prejudicar os credores. É certo que sem reconhecimento judicial de insolvência o agente não comete o crime de insolvência dolosa. No entanto, o tipo legal não exige que a actuação do arguido, devedor seja causa directa e necessária da situação e posterior declaração de insolvência. A declaração de insolvência não é elemento constitutivo do tipo de crime - bastando apenas que se verifique uma qualquer das actuações descritas nas diversas alíneas do n.º 1, realizadas com intenção de prejudicar os credores. “A verificação da insolvência constitui uma mera condição objectiva de punibilidade. É o reconhecimento judicial da insolvência que evidencia a insatisfação dos credores e, portanto, o perigo penalmente perseguido. A punibilidade das condutas previstas no n.º 1 está subordinada ao reconhecimento judicial da situação de insolvência, acto que, não se confundindo com a ocorrência dessa situação, constitui uma condição objectiva de punibilidade, não necessitando por isso de ser abarcado pelo dolo do agente” (cfr. Pedro Caeiro, Comentário Conimbricense do Código Penal, II, 425). E, a propósito da revogação do que se poderia ter como insolvência agravada pelo resultado, se a falência viesse a ser declarada em consequência da prática de qualquer dos factos descritos no n.º 1 do artigo 227.º, conforme até determinada altura dispunha o n.º 2 de tal norma, o acórdão da RC de 13-03-2019 (proc. n.º 1530/12.7TALRA.C1, www.dgsi.pt), citado pelo MP, decidiu que, “a argumentação do recorrente (de que o crime de insolvência dolosa é, quanto à conduta, um crime de resultado) – tese aqui acolhida na decisão recorrida - estaria correcta se o n.º 2 do preceito, na redacção dada pelo citado Decreto Lei 48/95 ainda estivesse em vigor, visto que, se exigia que a falência viesse a ser declarada em consequência da prática das respectivas condutas típicas, daí resultando a existência de uma relação de causalidade entre essas condutas e a declaração de falência. Só que, a declaração de insolvência já não é elemento do tipo. Actualmente, já não se exige que a actuação do devedor seja causa directa da situação de insolvência e do respectivo reconhecimento judicial, bastando, apenas, que se mostre preenchido o tipo de ilícito com uma das actuações previstas no n.º 1, realizadas com intenção de prejudicar os credores, sendo que a declaração de insolvência, como já mencionado, constitui apenas uma condição objectiva de punibilidade. Assim, o crime de insolvência dolosa não tem resultado típico, ou seja, as condutas não têm de causar necessariamente a situação de insolvência (ainda que in casu ela tenha acontecido), não se exigindo, pois, qualquer nexo de causalidade entre as condutas típicas e a situação de insolvência”. E, já agora, no acórdão, também citado pelo MP, do mesmo Tribunal, de 27-05-2020 (proc. n.º 144/13.9TAACB.C3, no mesmo sítio), decidiu-se que, “I – O tipo de crime de insolvência dolosa, hoje previsto no artigo 227.º do CP, deixou de exigir que a actuação do devedor seja causa directa e necessária da situação posterior de declaração de insolvência, bastando apenas a ocorrência de uma das actuações descritas no n.º 1 do referido preceito legal, realizada com a intenção de prejudicar os credores. II – A situação de insolvência, com o respectivo reconhecimento judicial, constitui agora uma condição objectiva de punibilidade.” Desconhecemos decisões dos Tribunais superiores a sufragar o entendimento acolhido na decisão recorrida, traduzido em que o tipo legal apenas prevê a ocorrência da situação de insolvência (na sequência dos actos previsto no n.º 1) e já não o agravamento de uma situação insolvencial pré-existente – o que constituiria uma violação do princípio da legalidade, previsto nos artigos 29.º/1 da CRP e 1.º/1 CP. Cremos, pelo contrário, estarmos perante um entendimento reiterado e uniforme que acolhe o defendido pelo MP no recurso. Como bem refere o recorrente a jurisprudência vem decidindo esta questão, que de polémico e controvertido já nada tem, de modo absolutamente uniforme e convergente. E, assim a título meramente ilustrativo, citamos os seguintes acórdãos: - deste Tribunal de 17-10-2012, já mencionado supra, “1 – No crime de insolvência dolosa tutela-se directamente o património dos credores da insolvente e mediatamente o correcto funcionamento da economia de mercado. 2 – Com tal crime punem-se condutas intencionalmente orientadas à frustração de direitos de crédito, tanto quando elas conduzem a uma situação de insolvência real ou efectiva, como quando a insolvência é aparente ou simulada. 3 – A declaração judicial de insolvência constitui uma condição objectiva de punibilidade”; - da RE de 26-02-2013 (proc. n.º 9/06.0TAAVS.E1, www.dgsi.pt), “I- A condição objectiva de punibilidade constitui circunstância extrínseca ao delito, que não interfere na configuração típica deste”; - da RE de 19-12-2013 (proc. n.º 248/08.0TATVR.E1, www.dgsi.pt), “I – O crime de insolvência dolosa, na sua tipologia, não exige que a actuação do devedor seja causa directa e necessária da situação e posterior declaração de insolvência, já que a declaração de insolvência não é elemento do tipo, bastando apenas que se verifique uma das actuações previstas no n.º 1 do artigo 227.º CPenal, realizadas com intenção de prejudicar os credores. II – A verificação da insolvência constitui mera condição objectiva de punibilidade e que não interfere na configuração do tipo de crime.” - deste Tribunal de 10-05-2017 (proc. n.º 832/12.7TAPFR.P1, www.dgsi.pt) “II – Ao retirarem da titularidade da sociedade devedora os bens que integravam o seu património, os arguidos provocaram a impossibilidade de os credores da sociedade (que veio a ser declarada insolvente) poderem obter satisfação do credito social através da execução coerciva desses bens, pelo que esse comportamento é causa directa e adequada do facto subsequente de os credores ficarem sem obter a satisfação dos seus créditos, na medida em que o valor desses bens o permitiria, caso eles os mantivessem, como deveria ter acontecido, na esfera jurídica da sociedade proprietária dos mesmos”; - da RC de 20-30-2019 (proc. n.º 135/12.7TACNF.C1, www.dgsi.pt) “I – O tipo de crime de insolvência dolosa, hoje previsto no artigo 227.º CPenal, deixou de exigir que a actuação do devedor seja causa directa e necessária da situação posterior de declaração de insolvência, bastando apenas a ocorrência de uma das actuações descritas no n.º 1 do referido preceito legal, realizada com a intenção de prejudicar os credores. II – A situação de insolvência, com o respectivo reconhecimento judicial, constitui agora uma condição objectiva de punibilidade. III – A punibilidade das condutas descritas no n.º 1 do artigo 227.º CPenal depende da existência de uma situação de insolvência, com verificação judicial, e não de um caso de falência meramente técnica”; - da RC de 27-05-2020 (proc. n.º 144/13.9TAACB.C3, www.dgsi.pt), “I – O tipo de crime de insolvência dolosa, hoje previsto no artigo 227.º CPenal, deixou de exigir que a actuação do devedor seja causa directa e necessária da situação posterior de declaração de insolvência, bastando apenas a ocorrência de uma das actuações descritas no n.º 1 do referido preceito legal, realizada com a intenção de prejudicar os credores. II – A situação de insolvência, com o respectivo reconhecimento judicial, constitui agora uma condição objectiva de punibilidade. - da RC de 07-04-2021 (proc. n.º 4093/15.8T9CBR.C1, www.dgsi.pt), “I – O tipo de crime de insolvência dolosa, hoje previsto no artigo 227.º do CP, deixou de exigir que a actuação do devedor seja causa directa e necessária da situação posterior de declaração de insolvência, bastando apenas a ocorrência de uma das actuações descritas no n.º 1 do referido preceito legal, realizada com a intenção de prejudicar os credores. II – A situação de insolvência, com o respectivo reconhecimento judicial, constitui agora uma condição objectiva de punibilidade. III – A diminuição real do activo patrimonial da insolvente pode resultar das acções típicas previstas na al. a) do n.º 1 do artigo 227.º CPenal. IV – O desaparecimento de parte do património do devedor não exige o desaparecimento absoluto, no sentido de tornar impossível o seu acesso ou conhecimento do paradeiro dos bens, devendo antes ser considerado na acepção de subtracção dos bens da esfera jurídica do devedor ao direito/conhecimento dos credores e às respectivas acções legais. V – De facto, uma das formas de desaparecimento de parte do património consiste no esvaziamento patrimonial da sociedade insolvente ou em vias de assim se tornar com recurso à alteração jurídica do património, através da transferência de todo o activo (bens e direitos) da massa insolvente para uma entidade com personalidade jurídica diferente, privando-se, por essa via, os credores da cobrança coerciva dos seus créditos e deixando a devedora na impossibilidade de prosseguir com a sua actividade de modo a obter proventos para satisfação das suas dívidas”; - da RG de 12-04-2021, (proc. n.º 366/11.7TAPTL.G1, www.dgsi.pt): “I) O crime de insolvência dolosa concretiza-se em qualquer das acções típicas descritas nas várias alíneas do n.º 1 do artigo 227.º CPenal, tratando-se de um crime de execução vinculada, pois o respectivo processo executivo tem que revestir uma dessas modalidades. II) Quanto ao elemento subjectivo, para além do dolo genérico, exige também um dolo específico, consistente na intenção do agente de prejudicar os credores. II) Apresenta ainda este crime uma condição objectiva de punibilidade: a situação de insolvência com reconhecimento judicial (não bastando uma situação de mera falência técnica), o que significa que sem esse reconhecimento não pode iniciar-se o procedimento criminal. Mas já não assume relevância a classificação que foi atribuída à insolvência”; - deste Tribunal de 14-09-2022 (proc. n.º 449/15.4T9OAZ.P1, www.dgsi.pt), “II. A declaração de insolvência é uma condição objectiva de punibilidade e não elemento essencialmente constitutivo do tipo legal de crime de insolvência. O agente que já se encontra numa situação efectiva de insolvência e que perspectiva isso como certo ou possível e mesmo assim, procede à dissipação dos bens e património para prejudicar os credores incorre na autoria material do crime de insolvência dolosa, sancionado e punido no artigo 227.º CPenal – independentemente de a sua conduta ser directamente causal da insolvência efectiva. Aqui se entendeu que a tese contrária, “levaria a situações verdadeiramente escandalosas e ofensivas das mais elementares regras da decência e ética empresarial, pois bastaria que alguém estivesse já, de facto, em falência técnica para em virtude de isso e escudando-se nessa situação de insuficiência, se aproveitar desse deficit e permitir assim a ocultação e dissipação dolosa de bens, com acentuado e grave prejuízo para os créditos e património dos credores, sem qualquer consequência e impunemente (…) A doutrina e jurisprudência vão todos no sentido de considerar a declaração de insolvência como condição objetiva de punibilidade e não como elemento essencialmente constitutivo do tipo legal de crime de insolvência. (…) De igual forma, só este ângulo de ver as coisas se compatibiliza com a consideração pacificamente aceite que o crime de insolvência é de perigo e não de dano ou resultado”; - da RG de 15-12-2022 (proc. n.º 60/18.8T9BRG.G1, www.dgsi.pt), “I. o crime de insolvência dolosa previsto no artigo 227.º Código Penal apresenta como condição objectiva de punibilidade que a situação de insolvência tenha sido reconhecida judicialmente – sem a qual não se inicia o prazo de prescrição do procedimento criminal”. Nesse sentido, refere o Professor Luís Menezes Leitão (Direito da Insolvência, Almedina, 2015, 343/4), que “no âmbito da redacção anterior, exigia-se que a falência que viesse a ser declarada em consequência da prática dos referidos factos, o que implicava a exigência de uma relação de causalidade entre os referidos comportamentos e a declaração da falência. Actualmente, no entanto, deixou de se exigir essa relação, exigindo-se apenas que ocorra a situação de insolvência e esta venha a ser judicialmente reconhecida (…). Estamos assim perante meras condições objectivas de punibilidade do agente, o que implica que hoje, os crimes insolvenciais tenham que ser qualificados como crimes de perigo abstracto, cuja ilicitude corresponderia aos comportamentos previstos no tipo respectivo e cuja punibilidade seria limitada de duas condições objectivas: a ocorrência da insolvência e o respectivo reconhecimento judicial. Estas condições de punibilidade teriam como função a confirmação da perigosidade típica dos comportamentos incriminados nas várias alíneas, e daí a exigência para que o agente possa ser sancionado”. Este entendimento vai, afinal, igualmente, de encontro com os elementos racional, sistemático e histórico, pertinentes a todo o regime, âmbito e objectivo que presidiu e está subjacente a esta incriminação. Carece, assim, sob qualquer perspectiva de análise, de fundamento legal o entendimento sufragado na decisão recorrida. O entendimento sufragado na decisão recorrida traduz um erro de percepção da realidade, por um lado e, por outro, de leitura e de interpretação das normas aqui em jogo, não se vislumbrando que o entendimento maioritariamente sufragado constitua qualquer violação do princípio da legalidade – artigos 29.º/1 da CRP e 1.º/1 CP. Com efeito, a solução para a enunciada vexata questio - de saber se o tipo legal exige que os actos descritos nas diversas alíneas do n.º 1 causem, só por si, de forma adequada a insolvência, ou nas palavras da decisão recorrida, saber se o tipo apenas prevê a ocorrência da situação de insolvência, como consequência dos aludidos actos descritos no n.º 1 e, já não o agravamento de uma situação pré-insolvencial já existente - tem de partir nuclearmente da intervenção e aplicação dos princípios, conjunto de valores e regras essenciais sedimentadas na dogmática, e pressupostos permanentes no enquadramento e na leitura das hipóteses controversas. A função de garantia do princípio da legalidade exige a qualidade da lei, previsibilidade e acessibilidade, de modo a que qualquer pessoa possa perceber e saber quais as consequências sancionatórias de uma sua acção ou omissão. A qualidade da lei supõe que o legislador formule a lei penal de modo preciso e não susceptível de interpretações gravemente díspares, sobretudo quanto à natureza, âmbito e círculo material da conduta proibida. Em matéria penal (e no direito sancionatório em geral), há princípios rectores, imanentes, que comandam a teoria do direito penal, desde a formulação à interpretação das respectivas normas: o princípio da legalidade e as especificidades da interpretação das normas de direito penal, nomeadamente a proibição da analogia. O princípio da legalidade, com inscrição constitucional no artigo 29.º/1 da CRP, significa, no conteúdo essencial, que “não pode haver crime nem pena que não resultem de uma lei prévia, escrita, estrita e certa (nullum crimen, nulla poena sine lege)” - cfr. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal - Parte Geral, Tomo I, "Questões Fundamentais. A Doutrina Geral do Crime", 2004, 165. A densificação convencional da garantia reverte à certeza, clareza ou previsibilidade da estatuição e suas consequências - estatuição que pode constar de lei escrita. O que releva, para efeitos da garantia, é que a estatuição seja clara, precisa, acessível e previsível. Que a lei seja de conteúdo e sentido determinado através de referências objectivas e com modelação operativa. Do ponto de vista da protecção dos direitos do homem é decisivo o princípio segundo o qual o legislador deve fixar de uma forma precisa e clara os limites entre os comportamentos permitidos e os comportamentos puníveis penalmente, interessando neste aspecto a previsibilidade da condenação por certo comportamento (acção ou omissão). Na elaboração que tem sido desenvolvida a propósito das noções utilizáveis na integração do princípio, tem-se entendido que a clareza da estatuição (norma, lei escrita, antecedente preciso) está preenchida quando o indivíduo possa saber, a partir do texto pertinente, e se necessário com o recurso e o auxílio da interpretação pelos tribunais, quais os actos ou omissões que constituem infracção e pêlos quais pode ser criminalmente responsabilizado, mesmo que para tal tenha de recorrer a um conselho esclarecido para avaliar, com adequado grau de razoabilidade, as consequências que podem resultar de determinado acto. Uma norma não pode ser considerada como "lei" se não for formulada com suficiente precisão, de modo a que habilite um indivíduo a regular a sua conduta: este deve poder antever e prever, com um grau de razoável exigência nas circunstâncias do caso, quais as consequências de natureza penal que podem resultar de uma sua acção ou omissão (cf., v. g., entre outros, as formulações do acórdão do TEDH, de 15 de Novembro de 1996, no caso Cantoni vs. França, Recueil 1996 – V e https://hudoc.echr.coe.int/eng#{%22itemid%22:[%22001-58068%22]}). O princípio da legalidade exige, pois, que a infracção esteja claramente definida na lei, estando tal condição preenchida sempre que o interessado possa saber, a partir da disposição pertinente, quais os actos ou omissões que determinam responsabilidade penal; a disposição tem de se revele suficientemente clara. A amplitude da noção de previsibilidade depende em larga medida do conteúdo do texto que esteja em causa, do domínio que cobre, bem como do número e qualidade dos seus destinatários. Por outro lado, a previsibilidade da lei não é incompatível com a exigência de adequada informação, nem deixa de ser considerada mesmo que o interessado deva recorrer a conselhos esclarecidos para avaliar, em medida razoável e perante as circunstâncias do caso, quais as consequências que podem resultar de determinado acto, especialmente quando se trate de situações em que os agentes, pelo rigor e exigências próprias das respectivas actividades, devam fazer prova de uma grande prudência, esperando-se que coloquem um particular cuidado na avaliação dos riscos que a sua actividade comporta. Por isso, o princípio significa “que por mais socialmente nocivo e reprovável que se afigure um comportamento, tem o legislador de o considerar como crime (descrevendo-o e impondo-lhe como consequência jurídica uma sanção criminal) para que ele possa como tal ser punido. Esquecimentos, lacunas, deficiências de regulamentação ou de redacção funcionam por isso sempre contra o legislador e a favor da liberdade, por mais evidente que se revele ter sido intenção daquele (ou constituir finalidade da norma) abranger na punibilidade também certos (outros) comportamentos” (cf. Figueiredo Dias, op. cit, pág. 168). O princípio da legalidade significa também a proibição da analogia, importando sempre determinar o que é susceptível de interpretação permitida (o sentido literal, as expressões polissémicas, os conceitos normativos e descritivos) e o que pertence já à analogia proibida em direito penal pelo princípio da legalidade. De todo o modo, toda a interpretação possível em direito penal tem de ser “teleologicamente comandada, isto é, em definitivo determinada à luz do fim almejado pela norma; e por outro que ela seja funcionalmente justificada, quer dizer, adequada à função que o conceito (e, em definitivo, a regulamentação) assume no sistema” (cfr. Figueiredo Dias, op. cit., pág. 178). E os princípios - da legalidade e da consequente proibição da analogia, e da interpretação teleologicamente comandada - apontam, logo e decisivamente, para que comete o crime de insolvência dolosa o agente que - já se encontrando numa situação efectiva de insolvência e que perspectiva isso como certo ou possível e mesmo assim - procede à dissipação dos bens e património para prejudicar os credores, independentemente de a sua conduta ser directamente causal da insolvência que venha a ser declarada. Na verdade, e uma vez que anteriormente assim não era em relação ao que por facilidade de expressão designamos de insolvência dolosa agravada pelo resultado e, que entretanto o legislador deixou cair a previsão de “a falência vier a ser declarada em consequência da prática de qualquer dos factos descritos no número anterior”, então resulta claro, evidente que tal circunstância deixou de ser vigorante, em qualquer situação no âmbito do tipo legal. Este será o resultado derivado da construção interpretativa. O sentido da norma contida no aludido n.º 1 do artigo 227.º CP, na coordenação possibilitada pelo princípio da legalidade, será o de que o legislador teve em mente que, hoje, em face, desde logo, da actual letra da lei e, por um lado, dos interesses jurídicos tutelados pela incriminação e, por outro, pela natureza do crime de insolvência dolosa – não, crime de resultado, mas – como crime de mera actividade, não se exige que a actuação do devedor seja causa directa e necessária, sequer, que contribua de algum modo e, muito menos de forma adequada, para a posterior de declaração de insolvência. Circunstância que assume a natureza de condição objectiva de punibilidade e que, por isso, é absolutamente indiferente à consumação do crime que se basta com a verificação de uma das várias situações previstas nas várias alíneas do n.º 1 do artigo 227.º CP, realizadas com a intenção de prejudicar os credores. Não se exige qualquer nexo causal entre a conduta típica e a posterior declaração de insolvência. Nada impede, bem pelo contrário, que um agente que se encontre já em situação de falência técnica e proceda à transferência dos seus bens para uma outra sociedade, com o fito de impedir a satisfação de créditos, pratique o referido crime de insolvência dolosa - desde que, como vimos, esta venha a ocorrer e seja judicialmente reconhecida. O agente que já se encontra numa situação efectiva de falência, e que perspectiva isso como certo ou possível e mesmo assim procede à dissipação dos bens e património para prejudicar os credores, incorre na autoria material do crime de insolvência dolosa p. e p. pelo artigo 227.º/1, a) do Código Penal – independentemente de a sua conduta ser directamente causal da insolvência judicial que veio a ser declarada. No caso sub judice, a sociedade já estava em situação de insolvência e, se é certo que os actos praticados pelo arguido em nada a colocou em situação diferente da que existia em momento anterior - apenas a agravando - não menos certo é que tal não tem a virtualidade de impedir o preenchimento dos elementos constitutivos do tipo legal de crime de insolvência. Resulta provado que o arguido procedeu ao esvaziamento patrimonial da sociedade, através da transferência de praticamente todo o activo (bens e direitos) da mesma para uma entidade com personalidade jurídica diferente, privando-se, por essa via, os credores da cobrança coerciva dos seus créditos e deixando a devedora na impossibilidade de prosseguir com a sua actividade de modo a obter proventos para satisfação das suas dívidas. E, fê-lo com o propósito de prejudicar os patrimónios dos credores da dita sociedade, cuja insolvência veio a ser judicialmente reconhecida. Assim, os factos provados preenchem, na totalidade, quer os elementos constitutivos, objectivos e subjectivo do tipo legal de crime de insolvência dolosa, bem como a condição objectiva de punibilidade que lhe acresce. Isto porque o legislador não estabeleceu qualquer “ponto de partida”, na previsão do tipo mas apenas e tão só “ponto de chegada”, a título de condição objectiva de punibilidade. Donde, independentemente do concreto estado de saúde económico-financeira do devedor, aquando da prática pelo agente dos factos descritos no artigo 227.º/1, a) CP – a implicar sempre uma (absolutamente irrelevante) situação do seu agravamento – com a intenção de prejudicar os credores, está o crime consumado. E, assim, que concluir que com a sua apurada conduta incorreu o arguido na prática, enquanto autor material, na forma consumada, de um crime de insolvência dolosa, p. e p. pelo artigo 227.º/1, a) CP, agravado no termos do artigo 229.º-A, que dispõe que, “as penas previstas no n.º 1 do artigo 227.º (…) são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, se, em consequência da prática de qualquer dos factos ali descritos, resultarem frustrados créditos de natureza laboral, em sede de processo executivo ou processo especial de insolvência”. 5. Operada a subsunção dos factos provados ao Direito, no que no caso concreto, resulta ao tipo legal de crime de insolvência dolosa, p. e p. pelo artigo 227.º/1 agravado pelo artigo 229.º-A do Código Penal, a que corresponde em abstracto a moldura penal de prisão de 40 dias até 6 anos e 8 meses ou multa de 13 até 800 dias, nos termos dos artigos 41.º/1 e 47.º/1 CPenal, há, agora, que, em consequência, proceder à operação de determinação da medida e da espécie da pena. E, assim, se impõe, desde já, a aplicação da respectiva sanção - com justeza e adequação - a determinação da espécie e medida da pena, nos termos dos artigos 70.º e 71.º do CP, aqui se convocando o AUJ n.º 4/2016, de 22-02, em que se decidiu “Em julgamento de recurso interposto de decisão absolutória da 1.ª instância, se a relação concluir pela condenação do arguido deve proceder à determinação da espécie e medida da pena, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 374.º, n.º 3, alínea b), 368.º, 369.º, 371.º, 379.º, n.º 1, alíneas a) e c), primeiro segmento, 424.º, n.º 2, e 425.º, n.º 4, todos do Código de Processo Penal.” Se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição (artigo 70.º CP), referindo o artigo 40.º/1 do CP, que a aplicação das penas visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. A escolha da pena, nos termos do artigo 70.° do CP, depende unicamente de considerações de prevenção geral e especial, e será mediante uma apreciação dos elementos de prova disponíveis, que se legitimará uma escolha entre as penas detentivas e não detentivas. No artigo 70.° do CP, condensa-se a filosofia subjacente ao sistema punitivo do Código, que embora aceitando a existência da prisão como pena principal para os casos em que a gravidade dos crimes ou de certas formas de vida a impõem, afirma-se claramente que o recurso às penas privativas de liberdade só será legítimo quando, dadas as circunstâncias, se não mostrem adequadas as sanções não detentivas - cfr. Maia Gonçalves, Código Penal Português, 13ª ed. 247. As finalidades exclusivamente preventivas devem presidir à operação da escolha da espécie da pena, devendo o Tribunal dar preferência à pena não detentiva, a não ser que razões ligadas à socialização do arguido, no seu conteúdo mínimo de prevenção da reincidência ou de preservação do limite mínimo da prevenção geral positiva, no sentido da defesa do ordenamento jurídico, imponham a pena de prisão. Em caso de conflito entre a prevenção geral e a prevenção especial, será de conferir o primado à prevenção geral. No domínio da dita criminalidade económica, latu sensu, as exigências de prevenção geral são prementes porquanto é sabido que, desprezando as elevadas cifras negras, as suas consequências assumem proporções inusitadas e desastrosas, desde logo para o desenvolvimento sustentado e salutar da economia nacional, provocando, tratando-se de uma situação que mina os alicerces da justiça social, que cria e agrava desigualdades sociais, ostensivas, que cria uma imagem de impunidade, que coloca em causa a coesão da dimensão social do Estado e que faz vacilar o sentimento de dever que cada cidadão deve ter em cumprir com as obrigações que assume no âmbito da sua empresarial. Por outro lado, neste tipo de criminalidade os agentes já contam com o proveito económico que o crime lhe traz, fazendo repercutir esse risco nas relações comerciais que mantém com os outros, donde a diminuta ou nenhuma consequência, suficientemente dissuasora, que as penas de multa provocam na sua esfera patrimonial. Daí que se defenda que, normalmente, neste tipo de criminalidade e, salvo situações excepcionais, seja de optar pela aplicação de pena de prisão em detrimento da pena de multa. No caso, entendemos, então, não se poder concluir que a opção pela pena não detentiva se mostre adequada e suficiente para satisfazer as necessidades de prevenção geral - e, já agora de prevenção especial, atendendo ao antecedentes criminais do arguido -, tendo em vista, por um lado, a sua recuperação social e, por outro, o objectivo de dar satisfação às exigências de reprovação e de prevenção do crime. Importa, então, agora determinar a medida concreta da pena não detentiva, dentro dos limites definidos na lei, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção (artigo 71.°/1 CP), atendendo-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente, as circunstâncias enumeradas exemplificativamente, nas alíneas a) a f), do n.º 2 do citado artigo 71.º do CP. A este processo deve presidir uma preocupação de tratamento justo do caso concreto, adequado à vontade e intenções da lei, que haverá que passar pela escolha de reacção sancionatória com aptidão e eficácia bastantes à ideal/tendencial protecção do bem jurídico violado e à dissuasão da prática de novos crimes, constituindo a retribuição justa do mal praticado, dando satisfação ao sentimento de justiça e segurança da comunidade e contribuindo, na medida do possível, para a reinserção social do delinquente. Esta medida concreta da pena a aplicar ao arguido, tendo em atenção que a mesma assenta na “moldura de prevenção”, cujo máximo é constituído pelo ponto mais alto consentido pela culpa do caso e cujo mínimo resulta do quantum da pena imprescindível, no caso concreto, à tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias, deve ser encontrada dentro dos limites definidos na lei, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção (artigo 71.°/1 CP), sendo que em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa, artigos 40.º/2 e 71.°/1 do Código Penal. Conforme salienta o Ac. do STJ de 11-05-2000 (CJ, S, II, 188), “a função primordial da pena consiste na protecção de bens jurídicos, ou seja, consiste na prevenção dos comportamentos danosos dos bens jurídicos, sem prejuízo da prevenção especial positiva, sempre com o limite imposto pelo princípio da culpa – nulla poena sine culpa”. Citando o Ac. do STJ de 01.03.2000, proc. n.º 53/200 – 3ª Secção, afirma-se, no aresto mencionado em primeiro lugar, “a culpa, salvaguarda da dignidade humana do agente, não sendo o fundamento último da pena, define em concreto, o seu limite mínimo absolutamente intransponível, por maiores que sejam as exigências de carácter preventivo que se façam sentir. A prevenção especial positiva, porém, subordinada que está à finalidade principal de protecção dos bens jurídicos, já não tem virtualidade para determinar o limite mínimo; este, logicamente, não pode ser outro que não o mínimo de pena que, em concreto, ainda realiza, eficazmente, aquela protecção”. Devendo proporcionar ao condenado a possibilidade de optar por comportamentos alternativos ao criminal, a pena tem de responder, sempre positivamente, às exigências de prevenção geral de integração. Continuando a citar o mesmo Ac. do STJ de 01-03-2000, “se, por um lado, a prevenção geral positiva é a finalidade primordial da pena e se, por outro, esta nunca pode ultrapassar a medida da culpa, então parece evidente que – dentro, claro está, da moldura legal – a moldura da pena aplicável ao caso concreto - moldura de prevenção - há-de definir-se entre o mínimo imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias e o máximo que a culpa do agente consente; entre tais limites, encontra-se o espaço possível de resposta às necessidades da sua reintegração social”. No caso sub judice, há a ponderar todo o descrito circunstancialismo, concretamente, - o mediano grau de ilicitude do facto, consubstanciado na forma concreta de actuação do arguido e os valores pecuniários envolvidos; - o facto de o arguido ter actuado com dolo, de normal intensidade (inerente a situações similares), na modalidade de directo; - as suas condições pessoais e a sua situação económico-social, onde releva o facto de: - se encontrar reformado há cerca de 10 anos; - auferir pensão de reforma no valor de € 502/mês; - ser casado com a arguida DD, a qual se encontra também reformada e aufere pensão de valor aproximado do marido; - não terem filhos a cargo; - viverem em casa arrendada, pela qual pagam € 350/ mês de renda; - como habilitações literárias o arguido ter a 4ª classe; - o arguido ter já sido condenado, - por um crime de ofensa à integridade física, praticado em fevereiro de 2009, em pena de multa; - por um crime de falsificação de documento, praticado em dezembro de 2009, em pena de multa; - por um crime de abuso de confiança contra a segurança social, praticado em junho de 2009, em pena de multa e, - por um crime de ofensa à integridade física, praticado em julho de 2014, ainda, em pena de multa, - a premente necessidade de prevenção geral, dado o cada vez maior número, inusitado e assustador, de crimes desta natureza. Assim, tem-se por ajustada a cominação de pena de 2 anos e 3 meses de prisão. Nos termos do disposto no artigo 50.º/1 CP, “o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior a posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”. Os factores a tender neste juízo de prognose são, então: - a personalidade do agente; - as suas condições da sua vida; - a conduta anterior e posterior ao facto punível e, - as circunstâncias deste. Estas são as circunstâncias que tornam possível uma conclusão sobre a conduta futura do agente e sendo esta favorável, o tribunal decidirá se a simples censura do facto e a ameaça da pena bastarão para satisfazer as finalidades da punição. Por sua vez, o artigo 40.º CP, que tem por epígrafe “finalidades das penas e as medidas de segurança”, dispõe no seu n.º 1, que, “a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”. Só deve ser decretada a suspensão da execução da pena de prisão quando se concluir, face a todos estes elementos que tal medida é adequada a afastar o delinquente da criminalidade, desde que seja, igualmente suficiente à defesa do ordenamento jurídico. São, assim, finalidades exclusivamente preventivas, de prevenção especial e de prevenção geral e não finalidades de compensação da culpa, que justificam, que impõem a preferência pela suspensão da execução da pena, como de resto, de qualquer outra pena de substituição. Perante uma pena inferior a 5 anos de prisão o tribunal deve suspender a sua execução, se, antes de mais, esta pena de substituição satisfizer de forma suficiente as finalidades de prevenção geral positiva prosseguida pelas penas – a protecção de bens jurídicos pela tutela das expectativas comunitárias na manutenção e reforço da validade da norma violada. Se não existirem razões de prevenção geral positiva que obstem à substituição - exigência que limita, mas por que se limita sempre o valor da socialização em liberdade - deve o tribunal ponderar, então, se a aplicação desta pena é adequada às necessidades de prevenção especial presentes no caso concreto. Assim, se as necessidades de prevenção geral positiva ou de integração não se mostrarem satisfeitas de forma suficiente com a pena de substituição, o tribunal, desde logo, não deve aplicar a pena de substituição – ainda que se mostre particularmente adequado às necessidades de prevenção especial que o caso impõe. Apenas no caso de a substituição se mostrar suficiente (a reafirmar a validade da norma jurídica violada) se segue o passo seguinte a verificação da sua adequação (à socialização). Importa, então determinar como se comportam, neste âmbito, as exigências de prevenção geral e de prevenção especial. “É inteiramente distinta a função que umas e outras exercem neste contexto. A prevalência deve ser concedida a considerações de prevenção especial de socialização, por serem elas que justificam, sobretudo, numa perspectiva político-criminal, todo o movimento de luta contra a pena de prisão. Prevalência a 2 níveis diversos: em primeiro lugar, o tribunal só deve negar a aplicação de uma pena alternativa ou de uma pena de substituição, quando a execução da prisão se revele, do ponto de vista da prevenção especial de socialização necessária, ou em todo o caso, provavelmente mais conveniente do que aquelas penas; coisa que só raramente acontecerá se não se perder de vista o já tantas vezes referido carácter criminógeno da prisão, em especial da de curta duração; em segundo lugar, sempre que, uma vez recusada pelo tribunal a aplicação efectiva da prisão, reste ao seu dispor mais do que uma espécie de pena de substituição, designadamente a suspensão da execução da pena de prisão, são ainda considerações de prevenção especial de socialização que devem decidir qual das espécies de penas de substituição abstractamente aplicáveis deve ser a eleita. As considerações de prevenção geral surgem, unicamente sob a forma de conteúdo mínimo de prevenção de integração indispensável à defesa do ordenamento jurídico, como limite à actuação das exigências de prevenção especial de socialização. O que quer dizer que, desde que impostas ou aconselhadas à luz de exigências de socialização, a pena alternativa ou a pena de substituição só não serão aplicadas se a execução da pena de prisão se mostrar indispensável para que não sejam postas irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias” (Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, 227 e ss). Determinar se as medidas não institucionais são suficientes para promover a recuperação social do delinquente e dar satisfação às exigências de reprovação e de prevenção do crime não é uma operação abstracta ou atitude puramente intelectual, mas fruto de uma avaliação das circunstâncias de cada situação concreta. Só caso a caso se legitimará uma escolha entre as penas detentivas e não detentivas, pelo que competirá em última instância aos tribunais a selecção rigorosa e, sempre fundamentada, dos delinquentes que hão-de ser sujeitos a umas e a outras (Robalo Cordeiro, Escolha e Medida da Pena, “Jornadas de Direito Criminal,” 237.) Com a determinação de que sejam tomadas em consideração as exigências de prevenção geral, procura dar-se satisfação à necessidade da comunidade, de punição do caso concreto, tendo-se em conta, de igual modo, a premência da tutela dos respectivos bens jurídicos e com o recurso à vertente da prevenção especial, procura satisfazer-se as exigências de socialização do agente com vista à sua integração na comunidade. A este propósito, não falta quem sustente que em caso de dúvida, que não possa ser ultrapassada, sobre o carácter favorável da prognose, impor-se-ia fazer funcionar imediatamente o princípio in dubio pro reo e, em função dele, decretar a suspensão da execução da pena. Entendimento que não é de aceitar, pois que não está aqui em causa uma qualquer certeza, mas antes a esperança fundada de que a socialização em liberdade possa ser lograda. O Tribunal deve encontrar-se disposto a correr um certo risco – fundado e calculado – sobre a manutenção do agente em liberdade. Havendo, porém, razões sérias para duvidar da capacidade do agente de não repetir crime, se for deixado em liberdade, o juízo de prognose deve ser desfavorável e a suspensão negada. Como nota Jescheck, o princípio in dubio pro reo vale só para os factos que estão na base do juízo de probabilidade, mas desta deve o Tribunal estar convencido - cfr. Prof. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As consequência jurídicas do crime, 344. Se a existência de condenações anteriores não é impeditiva, a priori da concessão da suspensão, compreende-se que o prognóstico favorável se torne, nestes casos, bem mais difícil e questionável – mesmo que os crimes sejam de natureza diferente, e se exija para a concessão uma particular fundamentação. Por um lado, a personalidade do recorrente, reformado há cerca de 10 anos e, por outro, a sua carreira criminal, com condenações, a última por factos ocorridos há mais de 10 anos e todas elas no espaço de 5 anos que antecedeu a última, sempre em penas de multa, pelos crimes de ofensa à integridade física, praticado em fevereiro de 2009, de falsificação de documento, praticado em dezembro de 2009, de abuso de confiança contra a segurança social, praticado em junho de 2009 e, novamente, de ofensa à integridade física, praticado em julho de 2014, acabam por demonstrar, ainda assim, a desnecessidade de um tratamento ressocializador, não se podendo afirmar que a mera intimidação não tenha qualquer possibilidade de êxito. Cremos poder, ainda assim, formular um juízo de prognose social favorável de que o arguido vai a partir de agora – como, de resto, fez na última década - adequar o seu comportamento com o direito vigente. Se o agente está socialmente integrado bastará uma função de advertência da pena; se o agente não está integrado e apresenta um défice de socialização o indicado é um tratamento ressocializador de forma ambulatória ou estacionária. Donde, podemos afirmar estar verificado o critério legal para a aplicação de uma pena de substituição – prognose favorável no sentido da socialização em liberdade e a não oposição das exigências de defesa da ordem jurídica. E, assim, cremos se impõe se não aplique uma pena detentiva quando existe outra viável de menor gravidade. Em resumo: a personalidade revelada pelo arguido, evidenciada pela sua integração familiar, pelo facto de estar reformado e pelos seus, remotos antecedentes criminais, não está fortemente carecida de socialização, não se evidenciando, no presente, um patente défice de valores, a envolver, por isso, exigências de prevenção especial que reclamam a aplicação de pena de prisão efectiva; nada aponta, ou sequer, sugere, o facto de que a desejável socialização do arguido, se possa verificar com a suspensão da execução da pena; ou, recuperando a posição inicial - de que o tribunal só deve negar a substituição da pena de prisão quando a execução da pena se revele, do ponto de vista da prevenção especial de socialização, necessária ou, em todo o caso, provavelmente mais conveniente do que a substituição - a conjugação de tais factores permite se conclua que o patenteado défice de socialização do arguido se equaciona com uma função de advertência da pena, podendo-se concluir que a ameaça da pena basta para o afastar da criminalidade. E, assim, se decreta a suspensão da execução da pena de 2 anos e 3 meses de prisão, pelo período de 3 anos - cfr. artigo 50.º/5 do CP. Concluindo, está, pois, o recurso votado ao sucesso, nos termos acabados por definir. * III. DispositivoNestes termos e com os fundamentos mencionados, acordam os Juízes que compõem este Tribunal em julgar totalmente provido o recurso interposto pelo MP e, consequentemente: - revogar a sentença recorrida e, - condenar o arguido AA, pela prática, como autor material, na forma consumada, de um crime de insolvência dolosa, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 227.º/1, a) e 229.º-A CP, na pena de 2 (dois) anos e 3 (três) de prisão, cuja execução se suspende pelo período de 3 (três) anos. Depois da baixa do processo serão remetidos boletins ao registo criminal. * Sem tributação, atenta a procedência do recurso (artigo 513.º/1 CPP), acrescendo que o MP está isento de custas nos termos do disposto no artigo 4.º/1, a) do R.C.P.* Notifique.* Porto, 18-12-2024Elaborado e integralmente revisto pela relatora, nos termos do artigo 94.º/2 do CPP. Assinado digitalmente pela relatora e pelas Senhoras Juízes Desembargadoras Adjuntas Maria João Ferreira LopesPaula Pires Carla Carecho |