Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | MIGUEL BALDAIA DE MORAIS | ||
Descritores: | FACTOS ESSENCIAIS INCAPACIDADE PARA OUTORGAR TESTAMENTO ÓNUS DA PROVA | ||
Nº do Documento: | RP20240710136/23.0T8BAO.P1 | ||
Data do Acordão: | 07/10/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Indicações Eventuais: | 5ª SECÇÃO | ||
Área Temática: | . | ||
Sumário: | I - Os factos essenciais têm de ser alegados pelas partes (artigo 5.º, nº 1 do Código de Processo Civil) e, como tal, não pode o juiz tomá-los em consideração na respetiva decisão mesmo que eles resultem da instrução e discussão da causa, sendo que, os que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado apenas podem ser considerados desde que sobre eles as partes tenham tido a possibilidade de se pronunciar e produzir prova sobre eles. II - A incapacidade relevante, para os efeitos do disposto no artigo 2199º do Código Civil, é apenas a que existe ao tempo da feitura do testamento, não tendo de atender-se a outro momento, posterior ou anterior. III - A presença do notário, que é um funcionário especializado que goza de fé pública, aditada à das duas testemunhas que, segundo o artigo 67º, nºs 1, al. a) e 3, do Código do Notariado, devem presenciar o ato, é uma primeira e qualificada garantia de que o testador gozava ainda, no momento em que foi revelando a sua vontade, de um mínimo bastante de capacidade anímica para querer e para entender o que afirmou ser sua vontade, IV - De acordo com as regras de distribuição do ónus da prova plasmada no artigo 342º do Código Civil, à parte que impugna a validade do testamento compete fazer a prova dos factos constitutivos do direito invocado (o estado de demência do testador em período que abrange o testamento outorgado). | ||
Reclamações: | |||
Decisão Texto Integral: | Processo nº 136/23.0T8BAO.P1
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este, Baião – Juízo de Competência Genérica Relator: Miguel Baldaia Morais 1º Adjunto Des. Jorge Martins Ribeiro 2ª Adjunta Desª. Maria de Fátima Andrade * SUMÁRIO ……………………………… ……………………………… ……………………………… * Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
I- RELATÓRIO
AA intentou a presente ação declarativa sob a forma comum contra BB, peticionando a declaração de nulidade do testamento outorgado, no dia 9 de agosto de 2021, por CC e no qual esta instituiu a ré como herdeira da sua quota disponível. Subsidiariamente impetra a anulação desse testamento. Para substanciar tais pretensões alega, em síntese, que CC, nascida em 25.12.1940, outorgou o referido testamento num momento em que se encontrava numa situação de incapacidade natural de entender e de querer o sentido da declaração testamentária. Citada a ré apresentou contestação impugnando a factualidade alegada pela autora, articulando que a falecida CC, na data em que o testamento foi feito, estava na posse plena das suas capacidades mentais tendo, na mesma ocasião, outorgado uma procuração a seu favor para a representar perante diversos organismos. Foi proferido despacho saneador em termos tabelares, definiu-se o objeto do litígio e fixaram-se os temas de prova. DD, EE, FF e GG, na qualidade de filhos da falecida CC, deduziram incidente de intervenção principal espontânea, aderindo aos articulados apresentados pela autora, incidente esse que foi admitido. Realizou-se audiência final com observância do formalismo legal, vindo a ser proferida sentença que julgou a ação improcedente, absolvendo a ré dos pedidos. Não se conformando com o assim decidido, a autora e os intervenientes interpuseram o presente recurso, recebido como apelação, a subir nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo. Com o requerimento de interposição do recurso apresentaram alegações, formulando, a final, as seguintes CONCLUSÕES: 1. A Meritíssima Juíza do Tribunal a quo fez uma incorreta interpretação (ainda que parcial) da prova produzida que importa a ampliação da matéria assente, a saber: a) Conjugados os depoimentos prestados em audiência de julgamento, designadamente das declarações transcritas para o presente Recurso, com a documentação junta aos Autos, de modo particular os Relatórios e informações médicas, o item 5 da matéria dada como provada deverá ter a seguinte redação: A Advogada Drª HH contactou o Sr. Notário a fim de fazer uma procuração a outorgar pela CC, e a realizar testamento a favor de BB. b) Conjugados os depoimentos prestados em audiência de julgamento, designadamente das declarações transcritas para o presente Recurso, com a documentação junta aos Autos, de modo particular os Relatórios e informações médicas, bem assim como o requerimento entregue pela R. no Ministério Público que impulsionou o processo de maior acompanhado, deverão ser dados como provados e aditados à matéria assente os seguintes factos: 12) O descrito em 9) sucedia há vários anos, em momento anterior a 09 de agosto de 2021. 13) Antes de 09.08.2021 CC não se conseguia orientar na casa onde residia, não tinha a noção do tempo, não identificava os dias, nem as estações do ano e não conhecia a sucessão dos dias, meses e anos. 14) Antes de 09.08.2021 CC estava acamada, não comia pela própria mão. 15) Antes de 09.08.2021 CC não mantinha uma conversa simples. 16) CC não sabia antes de 09.08.2021 proceder ao pagamento de contas correntes como água, luz, ou comprar bens sozinha. 17) Antes de 09.08.2021 CC não sabia limpar um fogão, usar as chaves, não reconhecia o dinheiro, não sabia efetuar contas, não sabia movimentar contas bancárias. 18) Em 2018 CC apresentava um quadro de declínio cognitivo, com um agravamento do seu estado de confusão. 19) No dia 09.08.2021 CC estava privada da capacidade de entender o sentido da sua declaração. 20) No dia 27.10.2021 BB transmitiu à Médica II “que há bem mais de 3-4 anos a mãe anda a ficar confusa de cabeça, mas nenhum dos irmãos valorizou. Esquecia-se de tudo, trocava assuntos – e cada vez pior. Atualmente não sabe os dias e troca as horas. Vê TV e não segue o que esteja a dar e transpõe pessoas que estão nas novelas, para acontecimentos do seu dia-a-dia. Deixou de saber lidar com o dinheiro, perceber o seu valor e até lidar com pagamentos, assim como de até de saber assinar para receber a reforma, pelo que é a filha que lhe trata de tudo”. c) Conjugados os depoimentos prestados em audiência de julgamento, designadamente das declarações transcritas para o presente Recurso, com a documentação junta aos Autos, de modo particular os Relatórios e informações médicas, bem assim como o requerimento entregue pela R. no Ministério Público que impulsionou o processo de maior acompanhado, deverão ser dados como provados e aditados à matéria assente os seguintes factos: 21. A R. BB tinha conhecimento, há mais de 3 anos sobre a data referida em 11) e 20), que a CC padecia de síndrome demencial – quadro demencial não recente, de etiologia degenerativa, já em estadio menos moderado a severo clinicamente, não existindo medicação curativa nem que mudasse a história natural da doença; 22. A R. BB subscreveu em 2 de agosto de 2021, um requerimento que entregou em 19 de agosto de 2021 nos Serviços do Ministério Público, acompanhada de Informação médica datada de 18 de agosto de 2021, de que constava que a CC era uma “doente acamada com concentrador fixo”, estando “impossibilitada de se deslocar” e com “síndrome demencial”, requerimento esse que se destinava a instruir o processo de maior acompanhado e de que constava que a CC “- Não consegue orientar-se sozinha em casa, por ex ir ao WC; Não consegue andar sozinha na rua e regressar a casa; Não sabia o ano em que nasceu, nem conhecia a sucessão dos dias, não sabia em que dia e estação do ano se estava; Que estava acamada; Que não conseguia cozinhar sozinha, não comia pela própria mão, que tomava os medicamentos com orientação e terceiros, que não se vestia sozinha, não conseguia realizar a higiene pessoal, nem sequer executar tarefas de casa; Que não conseguia ir sozinha ao médico, não conseguia comprar alimentos, roupa e outros, sozinha, não sabia fazer um telefonema, não sabia utilizar objetos da vida corrente – ligar o fogão, chaves, telefone; que só sabia assinar o nome; que não conhece o dinheiro (notas e moedas), não sabe contar e efetuar contas, sem capacidade para exercer qualquer atividade profissional; que não é capaz de memorizar factos novos.” 23. A evolução da doença neurológica – demência -, em outubro de 2021, estaria em estado semelhante ao de agosto de 2021, salvo se tivesse havido uma infeção muito grave, com dificuldades similares no seu entendimento, impedindo a D. CC de perceber o teor de um ato mais complexo, como os que subscreveu. 24. A BB omitiu ao Senhor Notário os antecedentes mentais da D. CC; 25. O Senhor Notário, se tivesse sido informado previamente dos antecedentes mentais da CC, designadamente quanto ao quadro demencial não recente, de etiologia degenerativa, já em estadio menos moderado a severo clinicamente, de que a senhora padecia, não praticaria o ato sem que se habilitasse com o parecer de 2 peritos médicos, já que, manda a prudência e a lei, quando há dúvidas, pedir um Relatório médico. 26. À data da outorga do testamento e da procuração, a CC estava totalmente dependente, física, psíquica e emocionalmente, dependente da R., com ela residente. 2. O Senhor Notário, colocado perante a circunstância de, com a sua observação não ter tido dúvidas e se lhe tivessem colocado as mesmas, relativamente ao estado mental da testadora, se tais informações clínicas e outras chegassem ao seu conhecimento previamente à realização do ato, não o realizaria sem que antes, como “Manda a prudência e a lei, quando há dúvidas, pedisse um Relatório médico, a realizar por peritos médicos”. 3. O estadio da doença não permitia que a D. CC outorgasse, com total liberdade e com conhecimento do respetivo alcance, o testamento que ora se pretende anular, nem sequer da Procuração, bastando para tanto compulsar o depoimento da médica neurologista testemunha Drª II, que nos disse que, a mesma não estava em condições de entender os documentos que subscreveu, nem sequer o seu alcance, bem assim como o da médica de família e todos os documentos (requerimento formulado pela R. e apresentado no Ministério Público e Relatórios Médicos), conjugados com os depoimentos das testemunhas que se transcrevem. 4. A testadora, mercê do estado demencial, estava privada da capacidade de entender o sentido da sua declaração, o que torna legítima a anulação do testamento que, nessas condições, outorgou, a que acresce a circunstância de estar numa situação de dependência física, psicológica e afetiva, porquanto residia em casa da R., que lhe prestava todos os serviços. 5. É bem sabido, pela experiência comum, e com maior propriedade pela experiência médica, que uma demência se desenvolve durante anos, antes da morte (podendo a causa de morte nem sequer ser o estado de demência), como foi o caso da falecida CC e como, de resto, a Ré bem sabe porquanto até reconheceu perante os médicos, e de que deu conhecimento, em momento que não se pode precisar, mas que ocorreu o primeiro semestre de 2021, aos seus irmãos. 6. Sendo a demência uma patologia irreversível, progressiva, incurável, atenta a perda de faculdades mentais que lhe são próprias, a idade avançada da testadora e o comprovado estado em que se encontrava já em 2018, em março de 2021, à data do testamento, em agosto de 2021 e 27 de outubro de 2021, há que concluir que à data da outorga do testamento (9 de agosto de 2021), se mantinha a evolução e degenerescência das suas capacidades de perceção, compreensão e inteleção do mundo circundante e vivencial, as perdas cognitivas, o desmemoriamento e a incapacidade de verbalização do pensamento real. Nestes termos e nos melhores de direito que V. Exªs. doutamente suprirão, deve revogar-se a douta Sentença recorrida, substituindo-a por outra que decida pela: 1. Declaração de que a testadora CC, em período que abrangia o ato praticado, se encontrava numa situação de incapacidade natural de entender e de querer o sentido da declaração testamentária; 2. Pela nulidade do testamento outorgado pela testadora em 9 de agosto de 2021, perante o Licenciado JJ, Notário de Baião, numa casa sita na Rua ..., freguesia ..., Lº. ... Fls. 65. 3. Subsidiariamente, pela anulabilidade do testamento referido em 2; 4. Pela condenação da R. nos termos peticionados. * A ré apresentou contra-alegações pugnando pela improcedência do recurso. * Após os vistos legais, cumpre decidir. *** II- DO MÉRITO DO RECURSO 1. Definição do objeto do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. arts. 635º, nº 4, 637º, nº 2, 1ª parte e 639º, nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil[1]. Porque assim, atendendo às conclusões das alegações apresentadas pelos apelantes, são as seguintes as questões solvendas: *** 2. Recurso da matéria de facto 2.1. Factualidade considerada provada na sentença
O tribunal de 1ª instância considerou provada a seguinte matéria de facto: 1) CC nasceu em 25 de dezembro de 1940, mostrando-se registado que o seu óbito ocorreu em 26 de maio de 2022. 2) Antes de 09.08.2021 CC tomava medicação com a ajuda de terceiros e evidenciava incontinência urinária. 3) Desde data não concretamente apurada, mas já em momento anterior a 09.08.2021 CC não procedia ao pagamento de contas correntes como água, luz e não comprava bens sozinha. 4) CC, no dia 09 de agosto de 2021, declarou, perante Notário, numa casa sita na Rua ..., ..., Baião, que instituía BB, consigo residente, herdeira da quota disponível da sua herança. 5) CC disse ao Sr. Notário que pretendia realizar testamento a favor de BB. 6) O Sr. Notário leu e explicou em voz alta o conteúdo de Testamento outorgado no dia 09 de agosto de 2021, que CC assinou. 7) CC, no dia 09 de agosto de 2021, declarou perante notário que constituía sua bastante procuradora BB para a representar, no mais, perante quaisquer repartições públicas. 8) CC apresentava as seguintes patologias, conforme consta de Relatório médico, datado de 07.04.2022: “#Hipertensão arterial #Diabetes mellitus tipo 2 #Obesidade #Esteatose Hepática Moderada #Doença Renal crónica #Dislipidemia # Anemia de causa desconhecida (estudo limitado perante as comorbilidades da utente) #Antecedentes de embolia pulmonar tendo ficado com oxigénio permanente # Insónia # patologia degenerativa óssea múltipla #Défice cognitivo” 9) Consta do Relatório médico, datado de 07.04.2022, que a médica subscritora descreve: “Utente está acamada pelas patologias descritas, diz poucas palavras e várias vezes incompreensíveis. Por vezes reconhece os filhos mas a amior parte dos dias não os reconhece. Dependência grave na escala de Barthel – necessita de ajuda para se alimentar, para se vestir e na higiene pessoal, incontinência urinária e fecla (utiliza fralda), sem capacidade de andar estando imóvel no leito. Sem capacidade na tomada de decisões. Filha é a principal cuidadora”. 10) CC teve a seguinte história clínica, conforme consta do Relatório médico, criado e datado de 28.11.2022: “27-10-2021/09:20 – II Neur-Demencia UPA (con) 1.ª Consulta 80 anos Enviada por suspeita de deterioração cognitiva notada por familiares, não recente. P1 de Março/2021: “esquecimentos mais frequentes e também maior irritabilidade. Realizou teste relógio sem grande dificuldade. Efectuei estudo de despiste de demencias mostrou alteração na vitamina B12 que ira iniciar reposição. Contudo a TAC cerebral mostra TAC Crânio ANORMAL – pequena lesão calcificada com 8mm de diámetro que pode corresponder a pequeno meningioma calcificado que não causa conflito no espaço nem contacta com o cortex dado o grau de atrofia cortical. Sinais moderados de leucoencefalopatopia esquemica na substancia branca frontal justaventrivular. Atrofia é cortical frontal interhemisférica e dorso lateral bilateral e alargamento dos solvianos a traduzir atrofia temporal lateral. P1 foi recusado com indicação para repetição de provas de rastreio cognitico dentro de 9/12 meses que o achado neurorradiológico não tem correlação com a clínica e o meningioma está calcificado. Se documentar um agravamento das funções neurológicas superiores, reenviar P1. Novo P1 agosto/2021 “A Utente teve recentemente um TEP bilateral (ainda sem causa identificável) e apesar de valores da vitamina b12 agora normais, o Quadro parece mais deteriorado com maior repetição das frases e alteração da memória. Neste sentido, envio novamente a solicitar a observação por me parecer estar diante de um quadro de demência. Via S. Clínico e RSE: Já em 2018 com registos em consulta de possível declínio cognitivo. 11) Na consulta de 27.10.2021 a médica fez constar do processo clínico de CC: “Assim, quadro demencial não recente, de etiologia degenerativa, já em estadio pelo menos moderado a severo clinicamente. Não há medicação curativa nem que mude a história natural do problema, sendo de priorizar os cuidados de saúde gerais, dado que sempre que esteja pior de alguma doença crónica ou intercorrência aguda, estará pior do cognitivo. Alta”. * 2.2. Factualidade considerada não provada na sentença
O Tribunal de 1ª instância considerou não provados os seguintes factos: a) O descrito em 9) sucedia há vários anos, em momento anterior a 09 de agosto de 2021. b) Antes de 09.08.2021 CC não se conseguia orientar na casa onde residia, não tinha a noção do tempo, não identificava os dias, nem as estações do ano e não conhecia a sucessão dos dias, meses e anos. c) Antes de 09.08.2021 CC estava acamada, não comia pela própria mão. d) Antes de 09.08.2021 CC não mantinha uma conversa simples. e) CC não sabia antes de 09.08.2021 proceder ao pagamento de contas correntes como água, luz, ou comprar bens sozinha. f) Antes de 09.08.2021 CC não sabia limpar um fogão, usar as chaves, não reconhecia o dinheiro, não sabia efetuar contas, não sabia movimentar contas bancárias. g) Em 2018 CC apresentava um quadro de declínio cognitivo, com um agravamento do seu estado de confusão. h) No dia 09.08.2021 CC estava privada da capacidade de entender o sentido da sua declaração. i) No dia 27.10.2021 BB transmitiu à Médica II “que há bem mais de 3-4 anos a mãe anda a ficar confusa de cabeça, mas nenhum dos irmãos valorizou. Esquecia-se de tudo, trocava assuntos – e cada vez pior. Atualmente não sabe os dias e troca as horas. Vê TV e não segue o que esteja a dar e transpõe pessoas que estão nas novelas, para acontecimentos do seu dia-a-dia. Deixou de saber lidar com o dinheiro, perceber o seu valor e até lidar com pagamentos, assim como de até de saber assinar para receber a reforma, pelo que é a filha que lhe trata de tudo”. *** 2.3. Apreciação da impugnação da matéria de facto
Nas conclusões recursivas vieram os apelantes requerer a reapreciação da decisão de facto, em relação a um conjunto de factos julgados provados e não provados com fundamento em erro na apreciação da prova. Como é consabido, o art. 640º estabelece os ónus a cargo do recorrente que impugna a decisão da matéria de facto, nos seguintes termos: «1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. 2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte: a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes; b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes […]». O presente regime veio concretizar a forma como se processa a impugnação da decisão, reforçando o ónus de alegação imposto ao recorrente, prevendo que deixe expresso a solução alternativa que, em seu entender, deve ser proferida pela Relação em sede de reapreciação dos meios de prova. Recai, assim, sobre o recorrente, face ao regime concebido, um ónus, sob pena de rejeição do recurso, de determinar com toda a precisão os concretos pontos da decisão que pretende questionar – delimitar o objeto do recurso -, motivar o seu recurso através da transcrição das passagens da gravação que reproduzem os meios de prova, ou a indicação das passagens da gravação que, no seu entendimento, impunham decisão diversa sobre a matéria de facto - fundamentação - e ainda, indicar a solução alternativa que, em seu entender, deve ser proferida pela Relação. No caso concreto, realizou-se o julgamento com gravação dos depoimentos prestados em audiência e os apelantes impugnam a decisão da matéria de facto com indicação dos pontos de facto impugnados, prova a reapreciar e decisão que sugerem, mostrando-se, assim, verificados os enunciados pressupostos formais. Tal como dispõe o nº 1 do art. 662º a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto «[…] se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa», o que, na economia do preceito, significa que os poderes para alteração da matéria de facto conferidos ao tribunal de recurso constituem apenas um remédio a utilizar nos casos em que os elementos constantes dos autos imponham inequivocamente (em termos de convicção autónoma) uma decisão diversa da que foi dada pela 1ª instância. No presente processo a audiência final processou-se com gravação da prova pessoal prestada nesse ato processual. A respeito da gravação da prova e sua reapreciação, haverá que ter em consideração, como sublinha ABRANTES GERALDES[2], que funcionando o Tribunal da Relação como órgão jurisdicional com competência própria em matéria de facto, nessa reapreciação tem autonomia decisória, devendo consequentemente fazer uma apreciação crítica das provas, formulando, nesse julgamento, com inteira autonomia, uma nova convicção, com renovação do princípio da livre apreciação da prova. Assim, competirá ao Tribunal da Relação reapreciar as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, tendo em atenção o conteúdo das alegações do recorrente e recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados. Decorre deste regime que o Tribunal da Relação tem acesso direto à gravação oportunamente efetuada, mesmo para além dos concretos meios probatórios que tenham sido indicados pelo recorrente e por este transcritos nas alegações, o que constitui uma forma de atenuar a quebra dos princípios da imediação e da oralidade suscetíveis de exercer influência sobre a convicção do julgador, ao mesmo tempo que corresponderá a uma solução justificada por razões de economia e celeridade processuais[3]. Cumpre ainda considerar a respeito da reapreciação da prova, que neste âmbito vigora o princípio da livre apreciação, conforme decorre do disposto no art. 396º do Cód. Civil. Daí compreender-se o comando estabelecido na lei adjetiva (cfr. art. 607º, nº 4) que impõe ao julgador o dever de fundamentação da materialidade que considerou provada e não provada. Esta exigência de especificar os fundamentos decisivos para a convicção quanto a toda a matéria de facto é essencial para o Tribunal da Relação, nos casos em que há recurso sobre a decisão da matéria de facto, poder alterar ou confirmar essa decisão. É através dos fundamentos constantes do segmento decisório que fixou o quadro factual considerado provado e não provado que este Tribunal vai controlar, através das regras da lógica e da experiência, a razoabilidade da convicção do juiz do Tribunal de 1ª instância. Atenta a posição que adrede vem sendo expressa na doutrina e na jurisprudência, quando o Tribunal da Relação é chamado a pronunciar-se sobre a reapreciação da prova, no caso de se mostrarem gravados os depoimentos, deve considerar os meios de prova indicados pela partes e confrontá-los com outros meios de prova que se mostrem acessíveis, a fim de verificar se foi cometido ou não erro de apreciação que deva ser corrigido[4]. Tendo presentes estes princípios orientadores, cumpre agora dilucidar se assiste razão aos apelantes neste segmento recursório da impugnação da matéria de facto nos termos por eles preconizados. Como emerge das respetivas conclusões recursivas, os recorrentes advogam que: (i) devem ser aditadas aos factos provados as proposições referidas na alínea c) da conclusão 1ª; (ii) deve ser alterada a redação do facto provado nº 5; (iii) deve ser dado como não provada a afirmação de facto vertida no ponto nº 7 dos factos provados; (iv) devem ser dadas como provadas as afirmações de facto vertidas nas alíneas a), b), c), d), f) e g) dos factos não provados. Começando pelo primeiro fundamento impugnatório, pretendem os apelantes que sejam inseridas no elenco dos factos provados as seguintes proposições factuais (mencionadas na alínea c) da conclusão 1ª): . “A R. BB tinha conhecimento, há mais de 3 anos sobre a data referida em 11) e 20), que a CC padecia de síndrome demencial – quadro demencial não recente, de etiologia degenerativa, já em estadio menos moderado a severo clinicamente, não existindo medicação curativa nem que mudasse a história natural da doença”; . “A R. BB subscreveu em 2 de agosto de 2021, um requerimento que entregou em 19 de agosto de 2021 nos Serviços do Ministério Público, acompanhada de Informação médica datada de 18 de agosto de 2021, de que constava que a CC era uma “doente acamada com concentrador fixo”, estando “impossibilitada de se deslocar” e com “síndrome demencial”, requerimento esse que se destinava a instruir o processo de maior acompanhado e de que constava que a CC “- Não consegue orientar-se sozinha em casa, por ex ir ao WC; Não consegue andar sozinha na rua e regressar a casa; Não sabia o ano em que nasceu, nem conhecia a sucessão dos dias, não sabia em que dia e estação do ano se estava; Que estava acamada; Que não conseguia cozinhar sozinha, não comia pela própria mão, que tomava os medicamentos com orientação e terceiros, que não se vestia sozinha, não conseguia realizar a higiene pessoal, nem sequer executar tarefas de casa; Que não conseguia ir sozinha ao médico, não conseguia comprar alimentos, roupa e outros, sozinha, não sabia fazer um telefonema, não sabia utilizar objetos da vida corrente – ligar o fogão, chaves, telefone; que só sabia assinar o nome; que não conhece o dinheiro (notas e moedas), não sabe contar e efetuar contas, sem capacidade para exercer qualquer atividade profissional; que não é capaz de memorizar factos novos”; . “A evolução da doença neurológica – demência -, em outubro de 2021, estaria em estado semelhante ao de agosto de 2021, salvo se tivesse havido uma infeção muito grave, com dificuldades similares no seu entendimento, impedindo a D. CC de perceber o teor de um ato mais complexo, como os que subscreveu”; . “A BB omitiu ao Senhor Notário os antecedentes mentais da D. CC”; . “O Senhor Notário, se tivesse sido informado previamente dos antecedentes mentais da CC, designadamente quanto ao quadro demencial não recente, de etiologia degenerativa, já em estadio menos moderado a severo clinicamente, de que a senhora padecia, não praticaria o ato sem que se habilitasse com o parecer de 2 peritos médicos, já que, manda a prudência e a lei, quando há dúvidas, pedir um Relatório médico”; . “À data da outorga do testamento e da procuração, a CC estava totalmente dependente, física, psíquica e emocionalmente, dependente da R., com ela residente”. Consequentemente não pode obter acolhimento a pretensão de aditamento desses (novos) factos à materialidade provada. * Pretendem ainda os apelantes que a redação do ponto nº 5 dos factos provados (onde consta que “CC disse ao Sr. Notário que pretendia realizar testamento a favor de BB”) seja alterada, passando a ter o seguinte teor: “A advogada Dr.ª HH contatou o Sr. Notário a fim de fazer uma procuração a outorgar pela CC, e a realizar testamento a favor de BB”. De igual modo sustentam que o facto nº 7 dos factos provados[5] deverá ser dado como não provado e que os enunciados fácticos plasmados nas alíneas a) a i) dos factos não provados devem transitar para o elenco dos factos provados. Nas referidas alíneas deu-se como não provado que: . “O descrito em 9) sucedia há vários anos, em momento anterior a 09 de agosto de 2021” (alínea a)): . “Antes de 09.08.2021 CC não se conseguia orientar na casa onde residia, não tinha a noção do tempo, não identificava os dias, nem as estações do ano e não conhecia a sucessão dos dias, meses e anos” (alínea b)); . “Antes de 09.08.2021 CC estava acamada, não comia pela própria mão” (alínea c)); . “Antes de 09.08.2021 CC não mantinha uma conversa simples” (alínea d)); . “CC não sabia antes de 09.08.2021 proceder ao pagamento de contas correntes como água, luz, ou comprar bens sozinha” (alínea e)); . “Antes de 09.08.2021 CC não sabia limpar um fogão, usar as chaves, não reconhecia o dinheiro, não sabia efetuar contas, não sabia movimentar contas bancárias” (alínea f)); . “Em 2018 CC apresentava um quadro de declínio cognitivo, com um agravamento do seu estado de confusão” (alínea g)); . “No dia 09.08.2021 CC estava privada da capacidade de entender o sentido da sua declaração” (alínea h)); . “No dia 27.10.2021 BB transmitiu à Médica II “que há bem mais de 3-4 anos a mãe anda a ficar confusa de cabeça, mas nenhum dos irmãos valorizou. Esquecia-se de tudo, trocava assuntos – e cada vez pior. Atualmente não sabe os dias e troca as horas. Vê TV e não segue o que esteja a dar e transpõe pessoas que estão nas novelas, para acontecimentos do seu dia-a-dia. Deixou de saber lidar com o dinheiro, perceber o seu valor e até lidar com pagamentos, assim como de até de saber assinar para receber a reforma, pelo que é a filha que lhe trata de tudo” (alínea i). As transcritas proposições consubstanciam uma das essenciais questões de facto que se discutem no âmbito do presente processo e que se prende em apurar se CC estaria ou não incapacitada de entender e querer o sentido da disposição testamentária contida no testamento outorgado no dia 9 de agosto de 2021. Na motivação da decisão de facto, o juiz a quo fundamentou o juízo probatório negativo referente à descrita materialidade nos seguintes termos: «[e]m primeiro lugar há que referir que se esgrimem duas posições contraditórias, uma por parte da Autora e dos Intervenientes principais e outra da Ré. Começando pelos depoimentos de parte e declarações de parte, tudo o que não se mostra reduzido a assentada, foi livremente valorado pelo Tribunal sendo, logicamente, sopesado que as declarações prestadas pela parte não são naturalmente desinteressadas, isentas e imparciais, antes apresentando um relevante e direto interesse no desfecho da ação, sendo, por isso, as declarações da parte valoradas com particular exigência, dado que terão que ter algum suporte na restante prova testemunhal e documental oferecida. A Ré prestou depoimento e declarações de parte de forma breve, escorreita, simples, não se constatando incoerências internas ou externas determinantes do afastamento da credibilidade das suas declarações, que como a seu tempo se verá não são sequer afastadas suficiente e adequadamente por outros meios de prova. Já a Autora apresentou excurso emotivo, vago e impreciso, eivado de conclusões e hipóteses, para as quais não tem conhecimentos técnicos. Mais, foi justificativa, ao invés de descrever factos precisos, designadamente quando questionada sobre quando é que CC “acamou”, se antes ou depois de ficar infetada com o Vírus Sars Cov 19, tentou dar explicações técnicas para as quais, repete-se, não tem conhecimento. Foram ouvidos como “testemunhas” DD, EE e FF (GG foi prescindida, no momento em que ainda detinha a qualidade processual de Testemunha), que aos costumes disseram ser filhos de CC e irmãos da Autora e Ré. Declararam não ter interesse na causa, porém, no decorrer do seu excurso, já se afigurava o seu interesse, evidente por demais, porquanto na qualidade de herdeiros de CC, são afetados pelo ato cuja nulidade/anulabilidade requer a Autora. Ademais em face do depoimento da Testemunha KK, que descreveu em súmula que a presente ação foi concertada entre todos, ficou definitivamente esclarecido a este Tribunal o interesse das Testemunhas e afigurou-se que a decisão a proferir nos autos poderia não produzir o seu efeito útil por não estarem presentes todos os interessados em juízo, sem prejuízo de autoridade de caso julgado, havendo o risco de a situação concreta não ser regulada definitivamente. Posto isto, as declarações de DD, EE e FF, foram livremente valoradas, mas com particular exigência, à semelhança das declarações de Autora e Ré, dada a postura de clara parcialidade em função do lado ativo da lide. Foi tomado depoimento a LL, KK e MM, arroladas pela Autora, que aos costumes referiram ser cunhados de Autora e Ré, e NN, que aos costumes disse ser sobrinha da Autora e filha da Ré. Entre as Testemunhas supra-referidas que cada uma das partes apresentou em abono da sua versão, foi evidente desconfiança e animosidade, bem como uma postura de clara parcialidade em função da posição ocupada na lide, seja do lado ativo, seja do lado passivo. Acresce que no que tange ao interrogatório de DD, EE, FF, LL, KK e MM, resulta uma insistência em tomadas de posição opinativas e conclusivas, não manifestando nenhum dos inquiridos formação científica ou médica. Em suma, as declarações e depoimentos em causa foram de uma forma geral pouco rigorosos, pouco convincentes e determinados em função dos interesses conflituantes em disputa nos autos. Não se descurou a emotividade dos depoimentos, que se considera natural e, portanto, a diminuição da sua credibilidade não advém desta circunstância, sem prejuízo de a consistência das declarações de DD, EE, FF poder ser colocada em causa. O depoimento de NN – que disse ser filha da Ré e por esta arrolada - foi breve, simples, mas padeceu da mesma parcialidade em relação à lide, como as demais Testemunhas supra referidas, aliás foi patente e notória a sua preocupação em tentar explicar que a sua avó, CC tinha capacidade para fazer tudo, lides domésticas, entre outros. Com o devido respeito e salvo melhor opinião, aparentou tratar-se de discurso preparado neste conspecto. Donde, todas as declarações e depoimentos supra-referidos mereceram particular cuidado no seu ajuizamento crítico. Ademais, mesmo impressionando a forma como CC viveu, os factos essenciais discutidos no pleito depende de conhecimentos técnicos e científicos específicos - do domínio da neurologia e/ou da psicologia/psiquiatria - que não estão ao alcance dos supra referidos e diremos deste Tribunal - de pouco valendo as afirmações genéricas daqueles de que lhes parecia que CC não estava bem, umas vezes reconhecia-os outra não, falava em novelas, em nados-mortos, pessoas falecidas, mesmo que a própria Ré o reconhecesse, o que não sucedeu, exceto a partir do momento em que CC ficou infetada com o vírus Sars Cov 19. O testamento dos autos foi celebrado em 09.08.2021 e CC faleceu em 26.05.2022, a presente ação entrou em juízo em 14.04.2023, razão pela qual era/é impossível realizar no âmbito do presente processo uma prova pericial para apurar os factos relevantes clinicamente e de forma retroativa. No entanto, cabe averiguar se os documentos médicos e demais prova produzida permitem afirmar a existência ou não de (in)capacidade da falecida. Mostram-se juntos aos autos três relatórios médicos datados de 07.04.2022 (elaborado um mês antes do falecimento de CC e mais de seis meses após 09.08.2021) e 28.11.2022 (elaborado cerca de meio ano após o falecimento de CC), informação médica, datada de 18.08.2021 (desconhecendo-se a partir de que elementos se fundou e quem os forneceu podendo, no entanto, admitir-se que tenha sido essencialmente o relatório médico datado de 07.04.2022). Os referidos documentos são de livre apreciação e naturalmente devem ser escamoteados de modo cauteloso e significativo. Vejamos agora os factos. (…) No que tange à factualidade vertida em 2) e 3), resultaram parcialmente da confissão da Ré, da sua admissão em como facilitava a CC medicação para diabetes, colesterol, entre outros, medicação esta que necessitava de acerto, antes de 09.08.2021, quando aquela ainda vivia sozinha. Atenta a coincidência foram igualmente valoradas as declarações de parte da Autora, em conjugação com o depoimento de OO, que aos costumes disse ser vizinha da Ré, e que de forma coerente, serena, plausível e credível manifestou conhecimento de que CC padecia de diabetes, e que viu a Ré a dar-lhe medicação. Atentou-se ainda no depoimento de NN, filha da Ré que de modo espontâneo e plausível explicou que a avó dava dinheiro para pagar contas, logo não realizava pagamento, mas com isso não se conclui que não os soubesse fazer, e uma vez que a prova produzida não permite concluir com segurança neste sentido verteu-se e) como não provado (…). No que tange aos factos provados 4) a 7) o Tribunal atentou no documento denominado Testamento, cuja autenticidade foi confirmada pelo seu emitente em juízo, a Testemunha JJ e no documento autêntico junto por Ilustre Mandatário, em sede de contestação. Neste conspecto foi ainda essencial para a formação da convicção do Tribunal o depoimento da Testemunha JJ, Licenciado que tem a seu cargo o Cartório Notarial de Baião, desde 2008, da Testemunha OO, que aos costumes disse ser vizinha da Ré, sendo que teve intervenção no documento denominado Testamento, e de PP, que aos costumes disse ser amigo do filho da Ré e também ter tido intervenção no Testamento dos autos. Escalpelizando. A Testemunha JJ referiu que interveio na elaboração do testamento em causa e que nesse contexto se deslocou e contactou com CC. Explicou a Testemunha de forma convincente, serena, plausível e credível que conversou com CC, no dia 09.08.2021, confirmou a identidade da mesma, explicou o que iria suceder e viu ser assinado, no mais por CC. De modo plausível e isento, a Testemunha JJ referiu que não se recorda do que possam ter conversado, a propósito da possibilidade de CC fazer deixa testamentária da totalidade dos seus bens a favor da Ré. De modo isento, escorreito, sem justificações, explicou a Testemunha JJ que a assinatura de CC apresenta traços de dificuldade, mas que não teve dúvidas em realizar o ato, pois não se lhe transpareceu qualquer tipo de limitação ou falta de vontade desta. No essencial as Testemunhas OO e PP confirmaram o referido pela Testemunha JJ, prestando assim corroboração e alavancando a sua credibilidade. É certo que as Testemunhas não têm conhecimentos médicos, e não se afigurou que acompanhassem CC no dia a dia, mas não deixaram dúvidas a este Tribunal de que em função do que percecionaram, naquele momento, de elaboração e assinatura de Testamento, em que estava presente CC, esta se lhes afigurou lúcida e ciente por isso do negócio jurídico que ia celebrar em favor da Ré. Por outro lado, não podemos olvidar a experiência profissional do Sr. Notário, que seguramente já o colocou em situações similares, aliás, o próprio explicou que se se apercebesse de algo errado, não praticaria o ato, e solicitaria outros elementos. Portanto a sua experiência proporcionará habilidade bastante para perceber os contornos da situação e saber o que fazer e como fazer. Mais, não se encontram motivos para duvidar da afirmação do Notário, e das Testemunhas, que estiveram com CC e que conversaram com ela, não se vislumbra qualquer interesse pessoal em afirmar falsamente uma capacidade de entendimento e decisão. Foi mencionada a intervenção de causídica, que não prestou depoimento, logo quanto à sua intervenção não houve contraditório, porém, também não se aventa um qualquer interesse pessoal de causídico para aceder a ajudar a concretizar aquilo que sabia não corresponder a uma vontade livre e consciente da sua cliente, nem tal foi aventado. Os factos provados 8) a 11) resultam do teor dos documentos (relatórios médicos) juntos em sede de Petição Inicial. Estes factos foram elencados porquanto vertidos em sede de petição inicial descontextualizados, ou contextualizados de outra forma, o que poderia fazer incorrer em conclusões erradas. Donde, o seu teor, relevante, foi factualizado de forma “seca”, simples, contextualizada e desprovida de conclusões. Os factos provados 8) a 11) devem ser lidos em conjugação com os factos provados 4) a 7) e toda a factualidade não provada, porquanto, a Autora em sede de petição inicial procurou enquadrar factualmente em termos temporais conclusões constantes dos aludidos relatórios e declarações constantes de PA Administrativo 107/21.0T9BAO, cuja certidão se mostra junta aos autos. Destarte, relembra-se a fundamentação expendida a propósito dos factos provados 4) a 7), acerca das inquirições de Autora, Ré, DD, EE e FF, LL, KK e MM e NN, e prossegue-se dizendo que não foi produzida prova suficiente para se julgar provado que CC quando outorgou o testamento não tinha as capacidades mentais necessárias e suficientes para celebrar a disposição de última vontade. Vejamos. A Testemunha QQ - que aos costumes mencionou ser médica, tendo trabalhado na USF ..., entre Agosto de 2021 a Agosto de 2022, elaborou relatório médico em 07.04.2022 - de nada se recordou, sendo que com relevância confirmou a autoria do aludido relatório. Não explicou os elementos que utilizou para o elaborar, sendo certo que terá procedido a consulta no sistema e “tem ideia de que viu” CC. Daqui se conclui pela insuficiência do depoimento em causa e do relatório em apreço para a sedimentação dos factos não provados a) a i) [com especial relevância quanto a h)], porquanto, a Testemunha começou a trabalhar na USF ..., em Agosto de 2021, quando foi outorgado testamento. Mais, o relatado na parte final do relatório elaborado pela Sr.ª Médica não lhe é atribuível, trata-se da descrição do que lhe terá sido relatado, desconhecendo-se quem será a filha a quem faz referência, que poderá plausivelmente ser a Autora ou a Ré [facto não provado i)]. Por outro lado, o relatório médico que elaborou a Testemunha QQ, foi-o um mês antes do falecimento de CC, e presume-se que terá sido solicitado (por quem não sabemos) para instruir processo de Maior acompanhado n.º 141/22.3T8BAO (Cf. certidão que se mostra junta aos autos), que entrou em juízo dias antes do óbito de CC. Apenas um parêntese para se mencionar que em termos probatórios, nenhuma conclusão se retira da atuação do Ministério Público ao intentar processo de Acompanhamento de Maior, tais factos não foram escrutinados e trata-se apenas (salvo seja e com o devido respeito) do nobre exercício da função de Magistrado do Ministério Público. Acresce que do Requerimento (datado de 19.08.2021) que deu origem a PA 107/21.0T9BAO, também não se extraem conclusões, sobre se no dia 09 de Agosto de 2021 CC não tinha as capacidades mentais necessárias e suficientes para celebrar a disposição de última vontade, tanto mais que o mesmo é composto de quadrados “sim/não” a preencher. Poder-se-ia gerar essa desconfiança, legítima aliás, dada a proximidade temporal entre a outorga de Testamento e a início daquele PA. Mas trata-se de desconfiança, hipótese, não confirmada, tanto mais que não se afere das diligências probatórias juntas com aquele PA, sob a forma de certidão, que o/a Magistrado/a do Ministério Público tenha ouvido/visto/ estado presencialmente com CC. Portanto, o Ministério Público apenas teve acesso a declarações de terceiros que não daquela CC. Ora, sendo tal perceção suficiente para intentar ação de Maior Acompanhado não o é (nem apto) nesta sede para sedimentar que CC quando outorgou o testamento não tinha as capacidades mentais necessárias e suficientes para celebrar a disposição de última vontade. De outra banda, mesmo que se considerasse que se encontra demonstrado que CC se encontrava num estado de saúde mental em que a incapacidade era a consequência mais provável, a Ré logrou cumprir o ónus de demonstrar que no momento da celebração do testamento, aquela se encontrava com aptidão natural para entender o sentido da declaração e exercer livremente o poder de dispor dos seus bens – cf. se conclui dos factos provados 4) a 7). Por outro lado, ainda, é de referir que os relatórios médicos de 28.11.2022, também foram elaborados depois do óbito de CC, e com relevância o relatório elaborado pela Sr.ª Médica RR, não menciona demência. De outra banda, o relatório elaborado pela Sr.ª Médica SS (em 28.11.2022) foi elaborado, como bem explicou a Testemunha II - que aos costumes disse ser médica neurologista, em especialidade desde 2013, que trabalha no Centro Hospitalar ... desde 2014 até ao presente - com base em registo clínico do processo, ou seja, SS não consultou CC. Mais mencionou a Testemunha II, de forma isenta, clara, assertiva, plausível e credível, quando confrontada com o aludido relatório, uma vez que não se recorda do caso concreto, que apenas consultou CC uma vez- 27.10.2021, após 09.08.2021, conclui-se - tendo em conta o que consta do aludido relatório. Analisado o teor do relatório em apreço, conclui-se que em 2018 havia registos em consulta de possível declínio cognitivo, daí não se concluindo que o possível declínio cognitivo evoluísse provavelmente para uma incapacidade de CC, tanto mais que em Março de 2021 foi expedido P1 que foi recusado, no sentido de que “o achado neurorradiológico não tem correlação com a clínica e o meningioma está calcificado”. Mais a médica de família emitiu novo P1 em Agosto de 2021, por suspeita de quadro de demência, contudo não se conclui dessa suspeita que a consequência provável seria a de que no dia 09.08.2021 CC estivesse incapacitada de dispor dos seus bens. Continuando, o relatório elaborado pela Sr.ª Dr.ª SS, em 28.11.2021, com base em registo clínicos, mostra-se em consonância com o TAC crânio-Encefálica que se mostra junto aos autos. Aliás, ponderando o Tac em questão datado de Fevereiro de 2021, que menciona que o mesmo deve “ser valorizado clinicamente sob a hipótese de demência do grupo frontotemporal”, compreende-se a emissão pela médica de família de P1 em Março para neurologia. Porém este P1 foi recusado, conclui-se, pois, que estávamos apenas perante uma suspeita e não que CC no dia 09.08.2021 estivesse incapacitada de dispor dos seus bens. Conjugando os esclarecimentos da Testemunha II, com o relatório elaborado pela Sr.ª Dr.ª SS, em 28.11.2021, retira-se de forma clara que episódios de menor capacidade cognitiva de CC poderiam ser associados por exemplo aos episódios de descontrolo dos diabetes (doença crónica de que padecia CC, sendo que as situações de hipoglicemia podem, como é consabido, gerar alterações do nível de consciência e, portanto, confusão mental e desorientação do doente), conjugados, ainda, com as demais patologias de que a mesma padecia (designadamente relacionados com os pulmões, pois resulta das regras da experiência que a falta de oxigénio no sangue pode levar a situações de alucinação ou outros). Portanto, o que podemos concluir é que eventuais episódios de desorientação, com alucinações seriam pontuais, não se concluindo que comprometessem, em termos permanentes, a capacidade de querer e entender de CC. Recorrendo às regras da experiência e da normalidade do acontecer, dir-se-á que é normal e consentâneo com a idade avançada de CC (mais de 79 anos) e as suas patologias que a mesma tivesse falhas de memória, sendo certo que pessoas bem mais novas também as têm, nada havendo de anormal ou inusitado nesse comportamento, nem se concluindo daí o comprometimento da capacidade daquela. É certo que a Testemunha II explicou, e teve-se a mesma com credível e isenta, que tendo em conta, a sua experiência, da evolução da doença, não seria expectável que em Agosto de 2021 CC estivesse diferente do que encontrou na consulta de 27.10.2021. Trata-se de um juízo probabilístico, com base em escrito, e não em análise pessoal de CC antes de Outubro de 2021, logo falível, tanto mais confrontado com o depoimento de quem esteve com CC, no dia 09.08.2021, como supra se referenciou. Ademais, não podemos deixar de referir que o depoimento, credível é certo, da Testemunha II, prende-se com uma probabilidade tendo em conta o que observou (como leu em sede de Audiência e não do que se lembra) numa única consulta, sendo que se desconhece os meios como chegou ao que se mostra plasmado no dito relatório de 28.11.2021, elaborado pela Sr.ª Dr.ª SS. Concluindo e em suma, os depoimentos testemunhais produzidos em audiência de julgamento, por familiares de CC, não se nos revelaram suficientemente sérios, objetivos, rigorosos e credíveis para, com base nos mesmos, decidir em termos positivos quanto à verificação da factualidade não provada de a) a i), sendo que as suas opiniões e conclusões, não estão suficientemente alcandoradas na prova documental que se mostra junta aos autos, porquanto a mesma não é apta, nem suficiente para se concluir pela sedimentação dos factos, sendo que os depoimentos de quem interveio na elaboração ou proveu informação para a sua elaboração, são igualmente insuficientes para a sua sedimentação, como supra exposto. Finalmente, e agora sim em jeito de conclusão, cumpre referir que para além de não ter sido produzida prova segura quanto aos factos e) e f), decorre da normalidade do acontecer que as pessoas de idade avançada e com as patologias evidenciadas por CC, recorrem, normalmente, a um familiar próximo para auxílio naquelas tarefas, por já não o assegurarem com a mesma eficácia de outrora, sem que isso signifique ou equivalha, só por si, seja a que título for, que a mesmas estejam incapazes para entender e decidir segundo a sua vontade». Colocados perante a transcrita motivação da decisão de facto, os apelantes sustentam que, ao invés do que foi decidido pelo tribunal de 1ª instância, resultou da prova produzida no processo que CC por ocasião da feitura do testamento já padecia de doença mental que a impedia de compreender o sentido do que aí declarou. Para tanto convocam os depoimentos prestados por KK, FF, EE, DD, II e QQ, e bem assim os relatórios médicos juntos aos autos, sendo que, na sua perspetiva, a concatenação de tais meios probatórios permite, na leitura que deles fazem, demonstrar o erro na apreciação da prova e justificam a alteração da decisão no sentido que preconizam. Relativamente aos depoimentos a que aludem verifica-se que, nas alegações recursivas, os recorrentes se limitam, praticamente, a indicar extratos desses depoimentos, não os cotejando, porém, com os concretos elementos probatórios que o tribunal a quo adrede relevou na fixação do sentido decisório que acolheu quanto à materialidade alvo de impugnação. Ora, para este efeito impugnatório, não basta a mera indicação, sem mais, de um determinado meio de prova, e também se revela insuficiente no que respeita à prova pessoal, o extrato de uma simples declaração de testemunha ou das próprias partes, sem correspondência com o sentido global dos depoimentos produzidos de tal modo que não permita consolidar uma determinada convicção acerca de matéria controvertida. Como quer que seja, depois de se proceder à audição da totalidade da prova pessoal produzida na audiência final, constata-se que parte substancial das pessoas inquiridas na audiência final são filhos (a autora, a ré e os intervenientes DD, FF e EE), neta (NN), genro (KK) e noras (MM e LL) da testadora CC, tendo um manifesto interesse no desfecho da lide, como, aliás, o julgador de 1ª instância deixou evidenciado na transcrita motivação da decisão de facto e resulta, de forma marcada, do modo como depuseram, sendo que para uns (a autora, intervenientes principais, genro e noras) a Dª. CC, por ocasião da feitura do testamento, apresentava problemas “da cabeça”, havendo momentos que nem sequer conhecia os filhos, enquanto outros (ré e neta) referiram que a D.ª TT, apesar de alguns problemas físicos, se mostrava lúcida e orientada. Para além das referidas pessoas foram ainda inquiridas em julgamento as testemunhas QQ, II (ambas médicas que exerceram funções no Centro Hospitalar ...), JJ (notário que lavrou o ajuizado testamento), OO e PP (amigos e vizinhos da Dª. CC e que a conhecem desde longa data). Dos depoimentos prestados pelas testemunhas médicas, apenas o depoimento produzido pela segunda assume relevância, posto que a testemunha QQ sequer viu a D.ª CC, tendo-se limitado a emitir, a pedido de um familiar da senhora, o relatório médico junto com a petição inicial como documento nº 4, o que fez com base nas informações clínicas existentes no sistema, acrescentando que “não sei de mais nada que não esteja no relatório”. Já a testemunha II adiantou que consultou, pela primeira vez, a D.ª CC em 27 de outubro de 2021 por suspeita de deterioração cognitiva. Nessa ocasião a D.ª CC foi acompanhada por uma filha que lhe referiu que a mãe há cerca de 3/4 anos “andaria a ficar confusa da cabeça, mas que nenhum dos irmãos valorizou” esse facto, dando-lhe igualmente notícia das informações que fez verter no processo clínico (cfr. fls. 2 do relatório médico junto com a petição inicial como documento nº 5). Estabeleceu conversação com a D.ª CC a qual lhe referiu ter frequentado a escola até à 4ª classe e que trabalhou no campo, tendo a mesma apresentado queixas de um papo subcutâneo que tinha no couro cabeludo. Confirmou o que fez constar do dito relatório, ou seja, que a paciente apresentaria “quadro demencial não recente, de etiologia degenerativa, já em estadio pelo menos moderado a severo clinicamente. Não há medicação curativa nem que mude a história natural do problema, sendo de priorizar os cuidados de saúde gerais, dado que sempre que esteja pior de alguma doença crónica ou intercorrência aguda, estará pior do cognitivo”. Quando diretamente questionado se o mencionado “estadio pelo menos moderado a severo clinicamente” já se registaria em agosto desse ano de 2021 (data da outorga do testamento) referiu que “não seria de esperar que em agosto estivesse muito melhor do que a vi em outubro”, acrescentando ainda que, na sua opinião, em função do que percecionou quanto ao estado da D.ª CC, “não pode garantir que a senhora tivesse o entendimento completo do que seria um contrato, do que seria um documento complexo”. No caso, a disposição testamentária não se revela complexa, tratando-se antes da outorga de um testamento simples no qual a testadora se limita a instituir a sua filha BB como herdeira da sua quota disponível, estando em linha com o que, aliás, as testemunhas OO e PP (que estavam presentes aquando da feitura do testamento) afiançaram ser a vontade daquela por ser essa filha a pessoa que então dela vinha tratando. É de notar que nos encontramos num domínio em que as presunções judiciais podem desempenhar um papel determinante[6]. Ora, neste conspecto, é comum que o testador beneficie quem o acolhe nos últimos anos de vida sobretudo se se tratar de familiar próximo. Tal é a situação vertente, posto que a deixa testamentária foi feita a favor da filha da testadora que dela vinha cuidando, recebendo-a em sua casa, não sendo despiciendo ressaltar que, como expressamente se consignou no testamento, essa disposição testamentária (instituindo-a herdeira da sua quota disponível) foi feita “sob a condição de a instituída herdeira, cuidar e tratar de si em vida, providenciando-lhe todos os cuidados necessários de alimentação, de vestuário e de transporte no caso de sua necessidade”. Ou seja, houve da parte da D.ª CC uma intenção de beneficiar a pessoa que dela cuidava, dispondo da sua quota disponível a seu favor, mas, tão-somente, sob a condição de esses cuidados serem prestados até à data do seu óbito, não prejudicando com esse ato dispositivo a legítima dos demais herdeiros legitimários. De igual modo nos parece ser especialmente de relevar o facto de o ajuizado testamento ter sido exarado perante notário, sendo que, mais do que acontecerá com a generalidade das pessoas, este é um profissional familiarizado tanto com as dificuldades e motivações das pessoas de idade que se apresentam a outorgar testamento, como com as situações de aproveitamento por parte de terceiros das debilidades físicas ou mentais do testador ou dos efeitos que podem projetar-se a partir de situações de dependência em que se encontre. A simples presença do notário, que é um funcionário especializado que goza de fé pública, aditada à das duas testemunhas que, segundo o art.67º, nºs 1, al. a) e 3, do Código do Notariado, devem presenciar o ato, é uma primeira e qualificada garantia de que o testador gozava ainda, no momento em que foi revelando a sua vontade, de um mínimo bastante de capacidade anímica para querer e para entender o que afirmou ser sua vontade, enfatizando-se, a este respeito, na doutrina e na jurisprudência[7] “não poder deixar de se entender que, tendo o testamento sido exarado perante o notário, existe uma forte presunção de que o testador tem aptidão para entender o que declara”. Na audiência final procedeu-se à audição de JJ (notário que lavrou o ajuizado testamento) que referiu ter-se deslocado à casa onde residia a D.ª CC a fim de a mesma “fazer o seu testamento”. Acrescentou não ter ideia de, nessa ocasião, lhe terem falado de eventuais antecedentes de saúde mental da Dª. CC, afiançando, no entanto, “não ter qualquer dúvida de que a mesma lhe estava a transmitir a vontade que ficou a constar do testamento”, tendo a mesma aposto a sua assinatura no testamento. Essa realidade foi outrossim confirmada pelas testemunhas PP e OO (que estiveram presente aquando da outorga do testamento), que atestaram que a Dª TT estava perfeitamente lúcida, manifestando então vontade de beneficiar a filha BB por ser ela que vinha cuidando de si, sendo de ressaltar que essas testemunhas (amigos e vizinhos da testadora e que com ela conviviam há muitos anos) prestaram um depoimento escorreito, não tendo qualquer interesse no desenlace da causa. Relativamente à prova documental relevam essencialmente os relatórios médicos juntos aos autos, sendo que no concernente ao requerimento apresentado pela ré no âmbito de processo administrativo pendente nos serviços do Ministério Público de Baião (a que coube o nº 107/21.0T9BAO), tal como entendeu o decisor de 1ª instância, também se nos afigura que não assume um especial préstimo para a materialidade em discussão, tratando-se de um formulário preenchido em modelo fornecido para o efeito de desencadear processo de maior acompanhado. Quanto aos ditos relatórios, conforme referido pelas testemunhas QQ e II (que os subscreveram), as informações neles vertidas - respeitantes à condição de saúde da Dª. CC - basearam-se, em grande medida, no que lhes transmitido por familiares da mesma, tendo a testemunha II adiantado que efetuou o diagnóstico de síndrome demencial (que menciona no relatório por si subscrito) por exame objetivo, não constando dos autos que tenham sido realizados exames psiquiátricos ou neurológicos, exceção feita à TAC crânio-encefálica realizada em 24 de fevereiro de 2021, onde se deixou consignado que a paciente revela “pequena lesão calcificada com 8mm de diâmetro, implantada na tábua interna frontal direita, sem significado como causa de conflito de espaço. Não contacta com o córtex dado o grau de atrofia cortical (…). O grau de atrofia frontotemporal é relativamente pouco acentuado mas deve ser valorizado clinicamente sob a hipótese de demência do grupo frontotemporal”. A este propósito cabe ainda referir que a demência que foi diagnosticada à testadora, sobretudo no seu estadio inicial ou fase ligeira, mas também na fase moderada, caracteriza-se pela alternância mais ou menos duradoura de momentos de lucidez com outros de perturbação de pensamento, memória e atenção, como, aliás, é mencionado na literatura médica[8] e foi explicado pela testemunha II, adiantando que, em geral, na demência pode haver momentos de lucidez, de tal modo que é perfeitamente possível que um leigo não se aperceba da demência. Ainda a respeito da existência desse quadro demencial, não será despiciendo registar que, de acordo com as informações plasmadas nos ditos relatórios, em março de 2021 (portanto, cerca de quatro meses antes da outorga do testamento), a Dª CC efetuou o teste do relógio[9] “sem grande dificuldade”, o que é reveladora de que então a mesma se mantinha orientada e lúcida. Questão que, então, se coloca é a de saber se os descritos meios de prova são, ou não, suficientes para considerar demonstrados os factos objeto de impugnação, o que importa a prévia determinação do padrão de prova exigível, rectius, do standard de prova aplicável[10]. Como a este respeito escreve LEBRE DE FREITAS[11], quanto ao grau de convicção exigível em processo civil, “no âmbito do princípio da livre apreciação da prova, não é exigível que a convicção do julgador sobre a validade dos factos alegados pelas partes equivalha a uma absoluta certeza, raramente atingível pelo conhecimento humano. Basta-lhe assentar num juízo de suficiente probabilidade ou verosimilhança, que o necessário recurso às presunções judiciais (arts. 349 e 351 CC) por natureza implica, mas que não dispensa a máxima investigação para atingir, nesse juízo, o máximo de segurança”. Ainda sobre esta temática explica PIRES DE SOUSA[12] que o standard que opera no processo civil é o da probabilidade prevalecente ou “mais provável do que não”, o qual se consubstancia em duas regras fundamentais que enuncia nos termos seguintes: “(i) Entre as várias hipóteses de facto deve preferir-se e considerar-se como verdadeira aquela que conte com um grau de confirmação relativamente maior face às demais; (ii) Deve preferir-se aquela hipótese que seja “mais provável que não”, ou seja, aquela hipótese que é mais provável que seja verdadeira do que seja falsa”. Como se referiu, in casu, as afirmações de facto que foram dadas como não provadas dizem essencialmente respeito à alegada falta de capacidade da testadora CC de entender o sentido da ajuizada disposição testamentária. Ora, ponderando os meios probatórios que foram produzidos nos autos sobre essa realidade, não se antolha existir razão bastante para divergir do sentido decisório que foi acolhido na sentença recorrida, já que a argumentação expendida pelos apelantes não teve, quanto a nós, o condão de desconstruir a motivação adrede tecida (aliás, de forma exaustiva e assertiva) nesse ato decisório, afigurando-se-nos que essa prova não impõe (como é suposto pelo nº 1 do art. 662º) decisão diversa, porquanto a decisão de considerar provada a proposição plasmada no ponto nº 5 e não provadas as proposições factuais vertidas nas alíneas a) a i) é, nos termos expostos, perfeitamente racional e lógica. *** 3. FUNDAMENTOS DE DIREITO
Como se deu nota, a autora e intervenientes principais fazem ancorar a concreta pretensão de tutela jurisdicional que formulam nestes autos no facto de o testamento outorgado, em 9 de agosto de 2021, por CC enfermar de vícios que importam a sua invalidade. Desde logo, e a título principal, advogam que o dito negócio jurídico unilateral é nulo, porque a testadora não exprimiu conscientemente a sua vontade, como é exigido pelo artigo 2180º do Cód. Civil. Postula o citado normativo que «[é] nulo o testamento em que o testador não tenha exprimido cumprida e claramente a sua vontade, mas apenas por sinais ou monossílabos, em resposta a perguntas que lhe fossem feitas». Em anotação a este preceito referem ANTUNES VARELA e PIRES DE LIMA[13] que “com a alusão expressa e direta aos casos em que a expressão da vontade do testador se tenha processado, não através de declarações verbais acabadas, mas de puros sinais ou acenos (de cabeça ou de mão) ou de simples monossílabos, em resposta a perguntas que lhe foram feitas, facilmente revela ao intérprete, que a lei se quer, especificada, concreta e restritamente referir aos casos excecionais, mas verificáveis na prática, em que as declarações imputadas ao disponente não oferecem já (pelo estado de inconsciência, semiconsciência ou de depressão psicológica, e que se encontra, possivelmente com o espectro da morte à sua frente ou com a presença inibitória de algumas pessoas à sua volta) as garantias mínimas de certeza e de autenticidade psicológica”. Ora, como deflui da exegese da peça processual com que a demandante deu início à presente demanda, a mesma sequer alegou qualquer materialidade no sentido de densificar faticamente a invocada nulidade, invocação essa que, nesse contexto, se revela deslocada, sendo de registar, de qualquer modo, que da factualidade provada nada se extrai quanto a ter a testadora manifestado a sua vontade através de sinais ou monossílabos. Como assim, sem necessidade de maiores considerações, improcede esse fundamento recursório. Face a tal conclusão importa avançar para a apreciação da pretensão aduzida subsidiariamente, que se traduz em dilucidar se, no caso, o testamento padece de vício de anulabilidade em virtude de, na data da sua feitura, a testadora se encontrar numa situação de incapacidade natural de entender e de querer o sentido da respetiva declaração testamentária. Sobre esta matéria rege o art. 2199º do Cód. Civil, no qual, sob a epígrafe “Incapacidade acidental”, se dispõe que «[É] anulável o testamento feito por quem se encontrava incapacitado de entender o sentido da sua declaração ou não tinha o livre exercício da sua vontade por qualquer causa, ainda que transitória». O inciso normativo transcrito enuncia uma regra específica[14] do testamento, reportando-se à incapacidade (tomada a expressão no sentido rigoroso próprio da falta de aptidão natural para entender o sentido da declaração ou da falta do livre exercício do poder de dispor mortis causa dos próprios bens) por qualquer causa verificada no momento em que a disposição testamentária é lavrada. De igual modo, a norma em causa alude expressamente ao caráter transitório da incapacidade, o que significa que o vício da vontade (rectius, vício na formação da vontade) aí visado se traduz na deficiência psicológica do testador que comprovadamente se verifica no momento em que a disposição testamentária é feita. Como a este propósito tem sido sublinhado na doutrina[15], estão em causa episódios que afetam a compreensão e a vontade do testador, como situações de embriaguez, situações de consumo de estupefacientes, surtos psicóticos provocados por anomalias psíquicas, estados de delírio, ou demência permanentes que não tenham gerado ainda uma decisão de interdição do testador. Assim sendo, esta norma pode abranger situações acidentais, esporádicas e transitórias, como surtos psicóticos momentâneos, que diminuam momentaneamente o discernimento e o livre exercício da vontade de dispor. Pode abarcar ainda situações permanentes, como por exemplo, uma doença que, no plano clínico, é comprovada e cientificamente suscetível de afetar a sua capacidade de perceção, compreensão, discernimento e entendimento, e passível de disturbar e comprometer qualquer ato de vontade que pretenda levar a cabo, na sua vivência quotidiana e corrente, podendo justificar a propositura de uma ação especial de acompanhamento de maiores que ainda não foi intentada. Portanto, para operância da causa invalidante prevista no citado art. 2199º, o determinante não é saber se o testador poderia ou não ter querido dispor dos seus bens, por morte, da forma como fez, não fosse a afeção mental de que sofria (o que, vendo bem, apenas pode conjeturar-se), mas sim, se, no momento da feitura do testamento, o mesmo se encontrava ou não privado de uma vontade sã, o que não significa que a razoabilidade da disposição de última vontade do testador não constitua um elemento a ter em atenção na avaliação da capacidade do mesmo para querer e entender o alcance do seu ato. A essa luz - conforme, aliás, vem sendo enfatizado na jurisprudência pátria[16] -, não é qualquer psicopatia que tira ao indivíduo a possibilidade de dispor dos seus bens: a doença mental, designadamente a síndrome demencial, há de obnubilar-lhe a inteligência ou enfraquecer-lhe de tal jeito a vontade, que possa afirmar-se que não entendeu o que disse ou, em condições normais, não quereria o que declarou. Tendo em conta as regras do ónus da prova plasmadas nos arts. 342º e seguinte do Código Civil (que, segundo entendimento dominante, consagram o pensamento fundamental da teoria das normas), a demonstração dessa realidade – isto é, dos factos integradores da incapacidade acidental do testador no momento da feitura do testamento – incumbe, naturalmente, ao interessado na invalidade desse ato de disposição de última vontade. In casu, perante a materialidade que julgou provada e não provada, o decisor de 1ª instância considerou que a autora (e intervenientes) não provaram que a testadora, na data da outorga do testamento, estivesse em situação de incapacidade (no apontado sentido normativo) de compreender o alcance da disposição testamentária que fez. Os apelantes rebelam-se contra esse segmento decisório no pressuposto da alteração do substrato factual considerado na sentença recorrida, o que, todavia, não lograram. Porque assim, tal como afirmado na sentença sob censura, igualmente entendemos que o quadro factual apurado (que não foi alvo de alteração nesta sede recursiva) não permite afirmar estarem demonstrados os pressupostos normativos para operância da invocada causa invalidante do ajuizado testamento. Impõe-se, por conseguinte, a improcedência do recurso. *** III- DISPOSITIVO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando-se a sentença recorrida. Custas do recurso a cargo dos apelantes (art. 527º, nºs 1 e 2). |