Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | LILIANA DE PÁRIS DIAS | ||
Descritores: | CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA BEM JURÍDICO PROTEGIDO REQUISITOS RELAÇÃO DE ESPECIALIDADE CONSUMAÇÃO | ||
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Nº do Documento: | RP20240612227/22.4PBMTS.P1 | ||
Data do Acordão: | 06/12/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL (CONFERÊNCIA) | ||
Decisão: | PROVIDO PARCIALMENTE O RECURSO INTERPOSTO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO | ||
Indicações Eventuais: | 4ª SECÇÃO | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | I - Objeto de tutela do crime de violência doméstica é a integridade das funções corporais da pessoa, nas suas dimensões física e psíquica, estando em causa, no essencial, a proteção de um estado de completo bem-estar físico e mental. II – O bem jurídico protegido pela incriminação da violência doméstica é, assim, a saúde – física, psíquica e emocional – e não, como surge defendido com alguma frequência na jurisprudência nacional, a dignidade humana. III - O crime de violência doméstica é uma forma especial de crime de maus-tratos e que se encontra também numa relação de especialidade com os crimes de ofensa à integridade física, de ameaça, de coação, de sequestro, de importunação sexual, de coação sexual, de abuso sexual de menores dependentes e ainda com os crimes contra a honra. IV – A consumação do crime de violência doméstica não exige que a conduta do agressor assuma um caráter violento, traduzido em maus tratos cruéis ou tratamento particularmente aviltante. Por outro lado, não pressupõe uma subjugação da vítima ao agressor. V - Com efeito, e para além do mais, podem existir maus tratos físicos e psíquicos, típicos do art.º 152.º do CP, sem o ambiente de subjugação ou dominação (não obstante ser esse o dolo do agente e o tipo sociológico prevalente das situações de violência doméstica). Ou seja, o agente tem o dolo de domínio, mas o crime consuma-se mesmo que não exista essa situação concreta de “subjugação”. (Sumário da responsabilidade da Relatora) | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | Proc. nº 227/22.4PBMTS.P1 Acordam, em conferência, na 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto. I - Relatório No âmbito do processo comum singular que, sob o nº 227/22.4PBMTS, corre termos pelo Juízo Local Criminal de Matosinhos, foi submetido a julgamento o arguido AA, tendo sido proferida sentença com o seguinte dispositivo: «Perante o exposto, julga-se a acusação improcedente, e em conformidade, decide-se: i. Absolver o arguido AA, pela prática, em autoria material, de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.ºs 1, alínea b), 2, alínea a), 4 e 5, do Código Penal. ii. Julgar o pedido de arbitramento de indemnização previsto no art.º 82.º-A, do Código de Processo Penal. iii. Declarar que não são devidas custas. iv. Declara-se extinta a medida de coação de Termo de Identidade e Residência a que estava sujeito o arguido». * Inconformado com a decisão, dela interpôs recurso o Ministério Público para este Tribunal da Relação, com os fundamentos descritos na respetiva motivação e contidos nas “conclusões”, que se transcrevem: «1- A sentença padece de vício de contradição insanável da fundamentação, previsto na alínea b) do n.º 2 do art.º 410.º do Código de Processo Penal, mais precisamente entre os fatos provados (fato 3.º) e os factos não provados (alínea c)), pois que várias ocasiões e modo reiterado são sinónimos, razão pela qual também a expressão modo reiterado deveria ter sido englobada nos factos provados. 2- A sentença recorrida padece de erro notório na apreciação da prova (alínea c) do n.º 2 do art.º 410.º do Código de Processo Penal), pois que o tribunal ao dar como provado o facto 3.º, conjugado com as posteriores situações concretizadas, nomeadamente vertidas nos factos 7.º e 9.º, tinha necessariamente que dar como provado a alínea n) dos fatos dados como não provados na sentença recorrida, de acordo com as regras da experiência comum, opção que também não se encontra devidamente fundamentada. 3- O tipo legal da violência doméstica não exige qualquer elemento subjetivo especial, bastando-se com o comum dolo do tipo, pelo que nem mesmo a circunstância de não se ter dado como provado o fato n) (a nosso ver erradamente), impedia a condenação do arguido pelo crime de violência doméstica. 4- O tribunal recorrido fez uma incorreta interpretação do art.º 152.º n.º 1 alínea b) e n.º 2 al. a) do Código Penal (art.º 412.º n.º 1 al. a) do Código de Processo Penal), ao entender que a factualidade dada como provada, não integra o crime de violência doméstica, por considerar que: a) as condutas do arguido, pese embora penalmente relevantes, surgem sobretudo em contexto de discussão, ciúme e fim de namoro; b) não espelham relação de domínio ou subjugação por parte do arguido sobre a vítima; c) não consubstanciam pela sua gravidade, maus tratos psíquicos, vocacionados, adequados e capazes de criar um sério risco para a saúde psíquica da assistente. 5- A gravidade dos fatos não é requisito constitutivo do tipo objetivo de ilícito, nem encontra a mínima adesão na letra da lei ou na teleologia da norma. 6- E jamais se aplicaria ao caso concreto, porque a conduta do arguido foi repetida e não isolada (jurisprudência e doutrina só o aplica - quanto a nós erradamente, em situações de factos isolados). 7- Ademais, a exclusão da gravidade dos factos porque contextualizado em situação de discussão, ciúme ou rutura de casal, traduz um inaceitável juízo de normalização da violência, que não tem qualquer respaldo legal. 8- Ao contrário do defendido na sentença recorrida, o tipo legal de crime de violência doméstica pode ser praticado sem o ambiente de subjugação ou dominação, que não é requisito legal. 9- O resultado da referida interpretação feita na sentença é inaceitável, pois que deixa por punir factos criminalmente relevantes, o que seria incompreendido pela sociedade em geral. Pelo exposto, deverá a sentença recorrida ser revogada, sendo proferida nova decisão que: - Inclua a expressão modo reiterado nos factos dados como provados (fato 3.º); - Dê como provado o fato n) dos factos não provados; - Integre a factualidade dada como provada na prática do crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152.º n.º 1 al. b), n.º 2 alínea a), 4 e 5 do Código Penal, e em consequência condene o arguido pela prática do referido ilícito criminal, em autoria material e na forma consumada, julgando também procedente o pedido de arbitramento de indemnização previsto no art.º 82.º-A, do Código de Processo Penal. V. Ex.as, porém, e como sempre, farão Justiça!». * O recurso foi admitido para subir nos próprios autos, de imediato e sem efeito suspensivo.
Não foi apresentada resposta ao recurso pelo arguido. * * Cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, foi apresentada resposta ao parecer pela assistente, manifestando a sua concordância com o mesmo e pugnando pela procedência do recurso. * Procedeu-se a exame preliminar e foram colhidos os vistos, após o que o processo foi à conferência, cumprindo apreciar e decidir. * II - Fundamentação É pelo teor das conclusões que o recorrente extrai da motivação, onde sintetiza as razões de discordância com o decidido e resume o pedido (artigos 412.º, n.º 1 e 417.º, n.º 3, do CPP), que se delimita o objeto do recurso e se fixam os limites do horizonte cognitivo do Tribunal Superior, sem prejuízo das questões que devem ser conhecidas oficiosamente, como sucede com os vícios a que alude o art.º 410.º, n.º 2 ou o art.º 379.º, n.º 1, do CPP (cf., por todos, os acórdãos do STJ de 11/4/2007 e de 11/7/2019, disponíveis em www.dgsi.pt). Assim, podemos equacionar como questões colocadas à apreciação deste tribunal, as seguintes [1]: * Delimitado o thema decidendum, importa conhecer a factualidade em que assenta a decisão proferida. * Factos provados e não provados; motivação da decisão de facto (segue transcrição): «Realizada a audiência de discussão e julgamento, resultaram provados para a decisão da causa: FACTOS PROVADOS 1) O arguido AA e a assistente BB mantiveram uma relação de namoro sem coabitação, a partir de finais de maio de 2015, tendo depois, em data não concretamente apurada, mas compreendida entre o início de 2016 e o início de 2017, estabelecido uma relação de comunhão de leito, mesa e habitação, como se de marido e mulher se tratassem, tendo essa relação terminado a 15 de fevereiro de 2022. 2) Fixaram residência em casa da assistente, sita na Rua ..., ..., Matosinhos e, em fevereiro de 2022 encontravam-se a fazer mudanças para uma nova habitação na Rua ..., ..., ..., Matosinhos. 3) Durante o relacionamento, em várias ocasiões, sobretudo no interior da residência comum, o arguido dirigiu à assistente as seguintes expressões: “Vaca! Puta! Eu mato-me e digo que a culpa é tua! Havias de morrer! Deus havia de te dar um cancro, havias de morrer!”, “Andas com os outros”, “És uma badalhoca!”, “Estás comigo só pelo dinheiro”; 4) Em dia não concretamente apurado do mês de dezembro de 2018, pelas 14.00h, o arguido transportava a assistente para o local de trabalho, alegando que queria falar com ela, acabando o casal por discutir. 5) Quando o arguido abrandou a viatura, a assistente saiu do carro, refugiou-se na praia, onde se acalmou, tendo depois se dirigido para o local de trabalho a pé. 6) No dia 15 de fevereiro de 2022, pelas 14.30 h., no interior da residência comum, a assistente comunicou ao arguido que iria abrir a porta da habitação para onde se iriam mudar, sita na Rua ..., ..., 2.º esquerdo traseiras, ..., e pretendia ficar lá a tarde toda à espera dos técnicos para ligarem a luz. 7) Nesse momento, o arguido dirigiu-lhe as seguintes palavras: “Vais para cima porque já tens um macho à tua espera!”. 8) A assistente deslocou-se para essa habitação, sendo seguida pelo arguido. 9) Já no interior da habitação sita na Rua ..., ..., 2.º esquerdo traseiras, ..., desenrolou-se outra discussão, na sequência da qual o arguido dirigiu à assistente as expressões: “Não vales nada! Queres é estar aqui sozinha, vem aqui o macho!” 10) A assistente abandonou a habitação, ligou para a sua irmã, a chorar, que a aconselhou a ir para casa, o que fez, sendo que pelas 20.00 h./20.30 h. iria ter com ela. 11) A irmã da assistente deslocou-se a casa desta a essa hora com elementos policiais, que registaram a ocorrência. 12) Durante o período compreendido entre 15 de fevereiro e 15 de abril de 2022, o arguido ligou várias vezes para a assistente e enviou-lhe várias mensagens de telemóvel, com um discurso de autovitimização e tentando persuadir a assistente a uma reconciliação. 13) O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo serem as suas condutas proibidas e punidas por lei penal. Mais se apurou quanto ao arguido: 14) O arguido encontra-se desempregado, realizando apenas biscates para uma loja de eletrodomésticos, ajudando no transporte, entrega e reparação de equipamentos. 15) O arguido esteve internado nos cuidados intensivos, de 20/11/2021 a 06/12/2021, após diagnóstico de meningite bacteriana, sinalizando, desde a alta clínica, fragilidades ao nível físico. Em agosto de 2023, foi-lhe reconhecida incapacidade permanente de 69%, tendo-lhe sido atribuída uma prestação social para a inclusão, no montante mensal de 488,22€. 16) O arguido abandonou o sistema de ensino durante a frequência do 2º ano de escolaridade. 17) O arguido tem uma filha com 17 anos de idade e um filho com 9, ambos a residir com as respetivas mães. Com a filha não tem qualquer contacto desde 2014 e com o filho mais novo mantém contactos e convívios regulares. 18) O arguido reside com a irmã e a sobrinha, em casa arrendada pela irmã, por vezes pernoitando na garagem de um amigo. Não comparticipa no pagamento das despesas com a habitação e a economia familiar. 19) Arguido e ofendida não têm qualquer contacto – para além dos referidos em 12) – desde fevereiro de 2022, tendo o arguido neste momento outra relação afetiva. 20) Como despesas fixas mensais pessoais, o arguido apresenta o pagamento de prestação de uma dívida contraída junto da Autoridade Tributária e Aduaneira, no valor de 118.84 euros mensais, bem como, a medicação para os seus problemas de saúde, em valor não concretamente apurado. 21) O arguido foi anteriormente condenado: a. pela prática de factos ocorridos em 16-03-2021 que consubstanciam um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 90 dias de multa, por decisão proferida em 17-03-2021 e transitada em julgado em 26-04-2021, no âmbito do processo n.º 21/21.0PFMTS, tendo sido a pena extinta pelo pagamento a 06-09-2021; b. pela prática de factos ocorridos em 12-10-2020 que consubstanciam um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 70 dias de multa, por decisão proferida em 07-09-2021 e transitada em julgado em 07-10-2021, no âmbito do processo n.º 149/20.3PFMTS, tendo sido a pena extinta pelo pagamento a 06-10-2021; FACTOS NÃO PROVADOS Realizada a audiência de discussão e julgamento, resultaram não provados para a decisão da causa: a) Arguido e assistente mantinham uma relação de namoro sem coabitação durante os anos de 2016 e 2017; b) Em janeiro de 2022, o casal fixou residência na Rua ..., ..., ..., Matosinhos; c) O arguido dirigia à assistente às expressões referidas em 3) de modo frequente e reiterado; d) Em finais de junho de 2015, no interior do veículo automóvel do arguido, junto à sua residência, o arguido desferiu uma bofetada na cara da assistente. e) Em datas não concretamente apuradas, no interior da residência dos pais da assistente, o arguido dirigiu-lhe as seguintes expressões: “Ai sua vaca, estás aqui, não disse para esperares por mim?!”; f) Durante todo o relacionamento, o arguido controlava as chamadas e o conteúdo do telemóvel da assistente. g) Em data não concretamente apurada, no interior da residência comum, o arguido apertou o pescoço da assistente, ao mesmo tempo que dizia: “Vou-te matar e depois mato-me a mim!”, tendo a agressão sido interrompida pela irmã da assistente, que agarrou o arguido e o afastou. h) Na situação referida em 4) o arguido desviou-se do percurso; i) Na situação referida em 4) enquanto conduzia, o arguido desferiu uma bofetada com as costas da mão, atingindo a assistente no nariz, causando-lhe imediata hemorragia nasal; j) Na situação referida em 4), à medida que a assistente procurava sair do carro, o arguido agarrou-a pelo braço, impedindo-a de se mover; k) Na situação referida em 5), a assistente, uma vez na praia, limpou o sangue que tinha na cara; l) Como resultado dos factos descritos em 4) e 5), a assistente sofreu dores e hematomas na face. m) Na situação descrita em 10), a assistente teve medo que a discussão evoluísse para agressões físicas e por esse motivo abandonou a casa; n) Sabia o arguido que com a sua descrita conduta lesava a sua namorada e companheira na saúde física e mental, como efetivamente lesou, causando-lhe dores e lesões corporais, humilhando-a, diminuindo-a como mulher, na sua autoestima, sabendo igualmente que prejudicava a sua liberdade de ação e de circulação, e que lhe causava medo, bem como que perturbava o seu bem-estar no lar, como efetivamente veio a suceder, não se coibindo de adotar tais comportamentos na residência da vítima, afetando negativamente a pacífica convivência doméstica e familiar, o que quis. O restante conteúdo das peças processuais que não resultem explanados nos factos supra elencados foi expurgado por corresponder a matéria de direito ou a juízos conclusivos, não sendo essenciais para o apuramento da responsabilidade criminal dos arguidos. MOTIVAÇÃO Nos termos do art.º 205, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa e 97.º, n.º 5 do Código de Processo Penal, cumpre ao tribunal especificar os motivos de facto e de direito que sustentam a decisão da causa. O Tribunal formou a sua convicção relativamente aos factos provados com base na análise crítica da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, apreciada de acordo com as regras da experiência comum, nos termos do art.º 127 do Código de Processo Penal. Atendendo à natureza eminentemente íntima dos factos em análise – muitas vezes localizados na esfera intrafamiliar –, cumpre salientar que a convicção do tribunal está forçosamente fundamentada no cruzamento e na leitura coordenada dos diferentes depoimentos em sede de audiência, procurando confrontá-los, sempre que possível, com a prova documental existente nos autos. Fazendo a leitura dos diferentes depoimentos, cumpre em primeiro lugar salientar a grande disparidade dos relatos produzidos em sede de audiência, desencontrando-se por vezes até quanto à própria natureza da relação constituída entre o arguido e a assistente, tornando assim mais exigente o processo de cruzamento da prova produzida de forma a solidificar a convicção do julgador. Neste contexto, a factualidade não provada – que nos presentes autos é maioritária – resulta muitas das vezes da falta de prova consistente produzida no seu sentido, coroada pela aplicação do princípio in dubio pro reo. O arguido prestou declarações no início da audiência julgamento, negando em suma a existência de qualquer agressão física, mas reconhecendo a existência de uma relação de namoro marcada pelas constantes discussões, onde existiam ofensas verbais. O discurso do arguido, ainda que marcado por um constante esforço em se desculpabilizar, demonstrou-se detalhado e circunstanciado, reconhecendo livremente alguns factos que lhe são desfavoráveis e trazendo aos autos uma versão alternativa dos acontecimentos que se mostra também credível à luz das regras da experiência comum. Relativamente à assistente, cumpre antes de mais salientar que prestou em sede de audiência um depoimento bastante vivo e pormenorizado. Apesar de se encontrar visivelmente emocionada – e de se registar também um esforço em acentuar a culpa do arguido – a assistente demonstrou-se capaz de responder de forma objetiva à inquirição. No entanto, a credibilidade do seu depoimento verifica-se diluída quando confrontada com a restante prova. Com efeito, de acordo com a versão dos factos trazida pela própria, na sequência de uma das agressões (situação datada de dezembro de 2018) teria mostrado presencialmente os ferimentos à testemunha CC. Em sede de audiência, a testemunha, arrolada pela própria acusação, veio contradizer tal facto, afirmando nunca ter visto ferimentos nem tido conhecimento de qualquer agressão. De igual forma, quando confrontada com a existência nos autos de fotografias que retratam o arguido com arranhões na face (fls. 75), a assistente afirmou que tais fotografias eram de uma relação anterior do mesmo e que nada tinham a ver com o período em que estiveram juntos. Tal versão veio também a ser negada pela testemunha DD, que confirmou, neste capítulo – embora não se tratem de fatos incluídos na acusação – a versão do arguido, quanto à existência de uma discussão entre o casal no dia 26 de abril de 2020. Não se ignora que as referidas testemunhas são respetivamente prima e irmã do arguido, mas a primeira foi até indicada pela própria assistente como a pessoa a quem tinha mostrado os ferimentos no rescaldo da agressão. Para além disso, inexiste nos autos qualquer elemento que permita percecionar uma ação coordenada das mesmas no sentido de descredibilizar a assistente. Dada a existência de tais contradições, ainda que não conduzam a uma descredibilização em bloco do depoimento da assistente, é forçoso considerar a força probatória do depoimento mais fragilizada, sobretudo quando incidem sobre factos sobre os quais não existe qualquer outra prova e o tribunal se vê confrontado com duas versões diametralmente opostas. Relativamente às testemunhas inquiridas em sede de audiência, cumpre salientar que os depoimentos de EE e CC, respetivamente amiga da assistente e prima do arguido, revelaram-se bastante objetivos, demonstrando, no entanto, apenas uma limitada convivência com o casal. O mesmo se dirá quanto à testemunha DD, irmã do arguido, que apenas foi questionada quanto a uma situação em concreto. Por outro lado, as testemunhas FF e GG, respetivamente nora e irmã da assistente, apesar de responderem de forma objetiva às perguntas e de terem maior proximidade com o casal, demonstraram por vezes algum envolvimento pessoal na causa, pautando os respetivos depoimentos com juízos de valor quanto ao caráter do arguido. Assim, mais concretamente: Relativamente ao facto provado n.º 1, não sobram dúvidas de que o arguido e a assistente começaram uma relação de namoro em 2015 – ambos referiram ter-se conhecido em maio, numa festa, tendo a partir daí criado uma relação amorosa. Quanto à data em que o arguido foi viver para casa da assistente, os depoimentos são dissonantes, revelando-se impossível indicar uma data concreta – daí o facto não provado a). O arguido reiterou ter começado a viver em casa da assistente no início de 2016, após a morte da mãe da assistente, em dezembro de 2015. Por outro lado, a assistente afirma que tal aconteceu apenas em 2017, descrevendo um processo mais faseado. Verifica-se efetivamente que até a própria natureza da relação é objeto de discórdia, sendo que a assistente afirma que se tratava de uma relação espaçada, em que o arguido tanto podia pernoitar em casa dela durante uns dias, como estar ausente durante igual período. Já o arguido descreve uma efetiva relação de namoro com coabitação. Cruzando os diferentes depoimentos é, porém, seguro que o arguido terá começado a coabitar com a assistente, na casa onde esta já morava anteriormente, entre o início de 2016 e o início de 2017, sendo que a partir desse momento tinham uma relação de comunhão de leito, mesa e habitação. Ainda que a própria assistente tenha feito menção que a relação era irregular – algo igualmente referido pela testemunha FF, nora da assistente – todo o relato produzido pela própria, bem como a restante prova testemunhal, faz referência à convivência típica de um casal, que partilha quarto e refeições, marca presença em eventos em conjunto, e discute por força de tarefas diárias ou de situações de ciúmes. A irmã da assistente afirmou inclusivamente ter ido passar um fim-de-semana fora, em casal, com o arguido e a assistente. Quanto ao término da coabitação, não existem dúvidas em fixá-lo a 15 de fevereiro de 2021, sendo que os factos ocorridos a esta data foram largamente referidos, quer pelo arguido, como pela assistente, como ainda pela testemunha GG, todos de forma coincidente e nunca tendo sido posta em causa tal data. Quanto ao facto n.º 2 – e ao facto não provado alínea b) – resulta dos depoimentos tanto do arguido como da assistente que o casal fixou residência na Rua ..., ..., na casa onde a assistente já morava. Ambos explicaram que o arguido anteriormente vivia com outra mulher e que, findo tal relacionamento, viu-se sem casa, tendo sido acolhido pela assistente. Como a referida habitação faz parte do parque habitacional da Câmara ..., foi atribuída à assistente uma nova habitação no início de 2021, sendo que à data da dissolução do namoro, encontravam-se em mudanças para a nova casa, na Rua ..., ..., .... Assim, verifica-se que o casal nunca efetivamente fixou residência nesta segunda morada. Quanto ao facto n.º 3 – e ao facto não provado alínea c) – resulta do cruzamento dos diferentes depoimentos com a prova documental existente nos autos. O próprio arguido reconheceu a existência de insultos, ainda que os enquadrando sempre em discussões pautadas pela agressividade mútua. Reconheceu inclusivamente a utilização da expressão “filha da puta”, dirigindo-a à assistente. A assistente citou de forma espontânea as expressões: “Puta. Vaca. Desejava-me a morte. Deus havia de te dar um cancro”. Também a testemunha FF, nora que coabitou com o casal durante o período de quase um ano (de janeiro a novembro de 2019), referiu expressamente ter assistido a discussões em que o arguido intitulava a assistente de “badalhoca” e que a acusava de apenas andar com ele por dinheiro. De igual forma, a testemunha GG afirmou ter assistido a várias situações de insultos, normalmente motivadas por ciúmes. A irmã da assistente referiu que era recorrente o arguido acusar a assistente de ter outros homens, e, por fim, referiu-se expressamente a uma situação em que o arguido se dirigiu à assistente, num café, chamando-a de “Vaca. Puta. Filha da Puta”. Acresce que, resulta da prova documental junta aos autos, nomeadamente das mensagens escritas enviadas pelo arguido à assistente (cf. fls. 151/162) – neste caso já após o término do relacionamento – que o arguido, para além do uso reiterado do calão em tom de agressividade, tem uma das condutas descritas, afirmando por mensagem que vai acabar com a sua vida, mas deixar escrito que é a assistente a culpada. Não sobram dúvidas que as mensagens são escritas pelo próprio, dado que o seu teor corresponde à própria descrição dos factos relatada pelo arguido em sede de audiência e que vão sendo intercaladas com o envio de imagens do próprio ou do casal. Por fim, verificam transversalmente a mesma forma de escrita, pontuada por uma série de erros ortográficos, sendo que o próprio arguido reconheceu, dada a sua falta de escolaridade, ter muitas dificuldades a escrever. Das referidas mensagens importa, contudo, salientar que não permitem uma análise do contexto da conversa, na medida em que dos prints apenas constam as mensagens enviadas pelo arguido, e praticamente nunca qualquer resposta da assistente – mesmo quando se reportam a períodos em que o casal ainda mantinha uma relação conjugal. Quanto ao local em que estes insultos eram proferidos, a assistente salientou que normalmente seriam em casa, longe dos olhares de terceiros e preferencialmente quando não estava mais ninguém presente. Também a testemunha FF afirmou que as discussões a que assistiu foram em casa. Acresce que a testemunha GG salientou por variadas vezes – tal como a própria assistente – que as discussões eram motivo de embaraço perante os vizinhos. Por fim, resulta das regras de experiência comum que, tendo um casal discussões e existindo insultos dessa natureza, surjam com maior probabilidade e intensidade dentro de casa, onde é impossível a intervenção ou o olhar crítico de terceiros e onde os intervenientes se sentem mais confortáveis. Já quanto à periodicidade destes insultos – se eram reiterados ou frequentes – não existe prova bastante que permita chegar a tal conclusão – facto não provado alínea c). A assistente afirma que se tratava de um comportamento reiterado. Também a irmã GG afirma que eram uma constante. O arguido reconhece a existência de insultos, mas apenas de forma isolada e em contexto de discussão. As testemunhas EE e CC afirmaram nunca terem assistido a discussões e a testemunha FF – que coabitou com o casal durante quase um ano – afirmou que assistiu a discussões, mas que eram espaçadas, não sendo muito comum discutirem. Voltando a confrontar com as mensagens existentes nos autos, verifica-se efetivamente que o arguido recorre frequentemente ao calão, através de expressões como “puta” ou “merda”, entre outras. No entanto, nunca as dirige efetivamente como insulto à assistente, mesmo em contexto de discussão e mesmo após o término da relação, o mais gravoso que a intitula é de “má” e “tu és fina”. Tendo em conta que as mensagens descritas reportam-se a períodos distintos, entre 2018 e 2021 – e sempre a discussões – a sua leitura vem reforçar a dúvida quanto à existência reiterada de insultos. Por tudo o exposto, cruzando os diferentes depoimentos, a que acresce a prova escrita, resulta, para além da dúvida razoável que o arguido efetivamente dirigiu as expressões referidas à assistente, não se sabendo se foi um comportamento reiterado ou apenas repetido algumas vezes durante todo o relacionamento. Quanto ao facto não provado alínea d), a única prova existente são as declarações da assistente, que referiu inclusivamente ter feito queixa na polícia (o que nos reconduz aos factos investigados no inquérito n.º 1094/16.2PBMTS, que correu termos na 4.ª Secção do DIAP Regional do Porto, no âmbito do qual foi proferido despacho de arquivamento, nos termos do art.º 277.º, n.º 2, sem que tivesse sido determinada a sua reabertura, estando tais factos a coberto do efeito do caso julgado, não podendo por isso ser novamente apreciados, sob pena de violação do princípio do ne bis in idem - cópia de parte dos autos e denúncia e do despacho de arquivamento constantes de fls. 345/355). O arguido negou por completo a existência de qualquer bofetada. Nenhuma outra testemunha referiu ter conhecimento de tal facto, ainda que por mero relato posterior da assistente ou por ter conhecimento da queixa na polícia. Acresce que o depoimento da assistente, apesar de mencionar a existência de uma bofetada no interior do carro e de a localizar à porta de sua casa – sendo que nos termos da acusação tal facto aparenta ser localizado à porta de casa do arguido e não da assistente –, mostrou-se incapaz de a localizar no tempo e vem inclusivamente afastar a possibilidade de tal acontecimento datar de junho de 2015. A assistente referiu ao longo do seu depoimento, por várias vezes, que o arguido no início do relacionamento tinha um comportamento carinhoso, tendo apenas posteriormente dado sinais, primeiro de muitos ciúmes e depois de um carater agressivo. Tendo a relação começado em maio de 2015, este relato não é compaginável com a existência de uma agressão física logo no segundo mês de relação. Pelo exposto, inexistindo qualquer outra prova ou indício, é forçoso considerar tal facto como não provado. O mesmo se dirá quanto ao facto não provado alínea e), sobre o qual não foi produzida qualquer prova. Nem a assistente nem qualquer uma das testemunhas se referiu a uma situação em concreto em que o arguido teria referido a expressão “Ai sua vaca, estás aqui, não disse para esperares por mim?!” Quanto ao facto não provado alínea f), a assistente reiterou que o arguido a controlava de várias formas, não só quanto aos contactos telefónicos, mas também quanto as suas movimentações – vendo quantos quilómetros fazia por dia no carro –, e ainda quanto às pessoas que visitavam a casa – estando atento à posição do tapete da porta. Acrescentou que neste processo, de constante controlo, o arguido lhe teria inclusivamente partido quatro telemóveis, na sequência de surtos de ciúmes. Por sua vez o arguido negou tal controlo, formulando semelhantes acusações à assistente. Reconhece-se que é difícil a prova de tal comportamento, por se tratar de uma conduta normalmente dissimulada e que procura apagar qualquer rasto. No entanto, nenhuma das restantes testemunhas – inclusivamente a irmã da assistente ou a nora, que coabitou com o casal – referiu alguma vez ter presenciado ou registado tais comportamentos. Ainda que a mera monotorização das mensagens e telefonemas fosse dificilmente registada por terceiros, o ato de rotineiramente dirigir-se ao carro da assistente ver os quilómetros percorridos ou, de forma mais flagrante, partir mais do que um telemóvel por excesso de ciúmes, obrigando a assistente a adquirir um novo, seria facilmente notado por um terceiro, tendo em conta que durante o período da relação, a nora e alguns dos filhos da assistente coabitaram com o casal. A própria irmã da assistente, que se demonstrou sempre próxima do casal – estando juntos em festas, almoços de fim-de-semana, passando inclusivamente um fim de semana fora – refere a existência de um quadro de ciúmes, referindo que bastava o olhar de outro homem para o arguido ficar incomodado. Debruçando-se sobre a existência de constantes ciúmes por parte do arguido, seria expectável que a testemunha se referisse a comportamentos muito mais concretos e expressivos, como o ato de partir um telemóvel. Dada a inexistência de mais prova, atendendo às já referidas debilidades do depoimento da assistente, torna-se assim forçoso, á luz do princípio in dubio pro reo, considerar o facto como não provado. Quanto ao facto não provado alínea g) – a existência de uma agressão por parte do arguido sobre a assistente, tendo sido interrompida pela irmã desta – cumpre igualmente referir que a prova existente não permite dissipar as dúvidas quanto ao ocorrido. A assistente recordou o ocorrido com esforço, não tendo num primeiro momento referido tal facto. A irmã, na descrição que fez do ocorrido demonstrou-se incapaz de precisar o que tinha visto. Afirmou que tanto a assistente como o arguido se encontravam no sofá, mas que este último tinha apenas as mãos no ombro da primeira. Referiu que quando chegou se separaram, não tendo ouvido insultos ou visto quaisquer marcas no corpo da assistente. Para além disso, a irmã refere ter ouvido o arguido a dizer “Tu vais me pagar, tu vais pagar. Não sabes o que fizeste” – e não “Vou-te matar e depois mato-me a mim!” como consta do facto imputado ao arguido. Ora, tal descrição é igualmente consentânea com uma mera discussão, inexistindo elementos que nos permitam concluir, para lá da dúvida razoável, da existência de uma agressão física. De igual forma, quanto à dinâmica dos factos descritos em 4) e 5) – bem como nos factos não provados alíneas h) a l) – cumpre afirmar que a prova produzida não permite ultrapassar o nível da dúvida razoável. Tanto arguido como assistente recordaram efetivamente uma discussão no carro, quando o arguido levava a assistente ao trabalho. Ambos localizam a situação no tempo e espaço de igual forma. As versões divergem quanto a tudo o resto. A assistente afirma que o arguido fez um desvio no caminho e que, num determinado momento, fruto da discussão, o arguido lhe terá desferido uma bofetada, com as costas da mão, causando-lhe uma hemorragia nasal e deixando-lhe um hematoma na cara. Na sequência de tal facto, a assistente tenta sair do carro, até que o arguido efetivamente abranda o carro e a assistente consegue sair. A versão do arguido é diametralmente oposta. De acordo com o seu depoimento, no meio da discussão e de acusações mútuas, a assistente teria colocado em causa a sua virilidade, tendo ele nessa sequência parado o carro, expulsando-a do mesmo. Nega alguma vez ter feito algum desvio ou exercido força física. Ambas as versões são verosímeis à luz das regras da experiência comum e ambas as versões foram descritas com algum grau de detalhe. No entanto, são obviamente incompatíveis. Neste ponto, cumpre salientar que a assistente produziu um relato bastante vivo dos acontecimentos, tendo reafirmado que a bofetada lhe tinha deixado um hematoma na cara e o lábio rebentado, sendo que passados dois dias, a testemunha CC tinha visto os ferimentos e tomado conhecimento da agressão. Ora, em sede de audiência, a testemunha negou tal conhecimento, afirmando nunca ter visto qualquer lesão e que à data a assistente lhe tinha dito que o arguido lhe tinha “oferecido porrada”, ou seja, ameaçado, sem nunca ter batido. Cruzando os depoimentos referidos, conclui-se que efetivamente a discussão tida em dezembro de 2018 terá sido especialmente marcante, por ventura por se terem excedido nesse momento alguns limites entre o casal. No então, os relatos não permitem concluir, para além da margem da dúvida razoável, quanto à existência de uma agressão física. Por muito que o depoimento da assistente tenha sido circunstanciado no tempo e no espaço, a sua credibilidade viu-se ferida pela apresentação de uma versão totalmente diferente pela testemunha. Assim, à míngua de outros elementos probatórios – como seria um relatório médico ou um registo fotográfico – é forçoso dar como não provada a existência de uma agressão física. Quanto aos factos decorridos a 15 de fevereiro de 2022 – factos provados n.ºs 6 a 11 e factos não provados alíneas l) e m) – verifica-se que a versão do arguido e da assistente são coincidentes em muitos pontos. O arguido negou ter dito “Vais para cima porque já tens um macho”, mas acabou por reconhecer que existiu uma troca mútua de insultos por razões de ciúme. A Assistente recordou as palavras textualmente, concluindo-se assim que tal expressão foi efetivamente ocorreu. Quanto ao restante, ambos referiram ter ido em carros diferentes da primeira casa para a segunda e que no local a discussão se espoletou sobretudo por causa da placa do fogão. Quanto ao medo, por parte da assistente, de que a discussão redundasse em agressões físicas, tal receio nunca foi referido, tendo esta centrado a sua preocupação na vergonha de criar alvoroço perante a nova vizinhança. Quanto ao facto provado n.º 12 – embora se registe o caráter conclusivo da expressão “discurso de autovitimização” – tal conduta foi confirmada pelo próprio arguido, sendo que se encontra ainda documentalmente sustentada pelas mensagens e registos de chamadas presentes nos autos (cf. fls. 154 a 162) Quanto ao facto n.º 13, relativamente ao dolo da conduta, importa referir que o caráter ilícito das condutas em análise são do conhecimento da generalidade dos cidadãos com capacidade intelectual mínima, padrão do qual o arguido não se afasta. Os factos n.ºs 14 a 20 resultam do relatório social elaborado pela DGRSP e junto aos autos a 15-12-2023 O facto n.º 15 resulta diretamente dos Certificado de Registo Criminal do arguido, consultado pela última vez a 11-12-2023». * Apreciando os fundamentos do recurso. I) Vícios decisórios. Considera o Ministério Público/recorrente que a decisão recorrida enferma dos vícios de «contradição insanável da fundamentação» e de «erro notório na apreciação da prova», respetivamente previstos nas alíneas b) e c) do n.º 2, do art.º 410.º do Código de Processo Penal. Argumenta, para tanto, que «A sentença padece de vício de contradição insanável da fundamentação, previsto na alínea b) do n.º 2 do art. 410.º do Código de Processo Penal, mais precisamente entre os factos provados (facto 3.º) e os factos não provados (alínea c)), pois que várias ocasiões e modo reiterado são sinónimos, razão pela qual também a expressão modo reiterado deveria ter sido englobada nos fatos provados» e que «A sentença recorrida padece de erro notório na apreciação da prova (alínea c) do n.º 2 do art. 410.º do Código de Processo Penal), pois que o tribunal ao dar como provado o facto 3.º, conjugado com as posteriores situações concretizadas, nomeadamente vertidas nos fatos 7.º e 9.º, tinha necessariamente que dar como provado a alínea n) dos factos dados como não provados na sentença recorrida, de acordo com as regras da experiência comum, opção que também não se encontra devidamente fundamentada». Vejamos se lhe assiste razão. Os poderes de cognição deste Tribunal da Relação abrangem matéria de facto e matéria de direito (cf. art.º 428.º do Código Processo Penal). A matéria de facto pode ser questionada por duas vias, a saber: - no âmbito restrito, mediante a arguição dos vícios decisórios previstos no art.º 410.º, n.º 2, do Código Processo Penal, cuja indagação tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo, por isso, admissível o recurso a elementos àquela estranhos para a fundamentar, ainda que se trate de elementos existentes nos autos e até mesmo provenientes do próprio julgamento; - mediante a impugnação ampla a que se reporta o art.º 412.º, nº 3, 4 e 6, do Código Processo Penal, caso em que a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência. As hipóteses que configuram o chamado recurso de «revista ampliada» integram-se nas patologias catalogadas nas alíneas do n.º 2, do art.º 410.º do CPP, que devem surgir evidenciadas no texto decisório, por si ou em conjugação com as regras de experiência, sem recurso a quaisquer outros elementos que o extravasem. O elenco legal destes vícios, como decorre das alíneas a), b) e c), do citado normativo legal, abrange a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada [lacunas factuais que podiam e deviam ter sido averiguadas e se mostram necessárias à formulação de juízo seguro de condenação ou absolvição], a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão [incompatibilidade entre factos provados ou entre estes e os não provados e entre a matéria fáctica e a conclusão jurídica] e o erro notório na apreciação da prova [erro patente que não escapa ao homem comum] [2]. Assim, os erros da decisão, para poderem ser apreciados ou mesmo conhecidos oficiosamente, devem detetar-se, sem esforço de análise, a partir do teor da própria sentença, sem recurso a elementos externos como seja o cotejo das provas disponíveis nos autos e/ou produzidas em audiência de julgamento. O vício de insuficiência da matéria de facto para a decisão reporta-se a lacunas no elenco factual vertido na decisão, pelo que tal vício ocorre quando da leitura desta se evidencia a omissão de factos que podiam e deviam ter sido averiguados - por se mostrarem necessários à formulação de juízo seguro de condenação ou absolvição - e não o foram, em prejuízo do dever de descoberta da verdade e boa decisão da causa que incumbe ao tribunal, como nos dá conta o acórdão deste TRP, de 15/11/2018 [3]. O vício decisório previsto na referida alínea b), do n.º 2 do art.º 410.º do CPP abrange, na verdade, dois vícios distintos: - A contradição insanável da fundamentação; e - A contradição insanável entre a fundamentação e a decisão. No primeiro caso incluem-se as situações em que a fundamentação desenvolvida pelo julgador evidencia premissas antagónicas ou manifestamente inconciliáveis. Ocorre, por exemplo, quando se dão como provados dois ou mais factos que manifestamente não podem estar simultaneamente provados ou quando o mesmo facto é considerado como provado e como não provado. Trata-se de “um vício ao nível das premissas, determinando a formação deficiente da conclusão”, de tal modo que “se as premissas se contradizem, a conclusão logicamente correta é impossível” [4]. Por seu turno, a contradição entre a fundamentação e a decisão abrange as situações em que os factos provados ou não provados colidem com a fundamentação da decisão. É o vício que se verifica, por exemplo, quando a decisão assenta em premissas distintas das que se tiveram como provadas [5]. Já o «erro notório na apreciação da prova» – vício decisório contemplado na alínea c), do n.º 2, do art.º 410.º do CPP - refere-se às situações de falha grosseira e ostensiva na análise da prova e não se confunde com a mera discordância ou diversa opinião quanto à valoração da prova produzida levada a efeito pelo julgador, antes traduz-se em distorções de ordem lógica entre os factos provados ou não provados, ou na evidência de uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável e, por isso, incorreta e que, em si mesma, não passe despercebida imediatamente à observação e verificação comum do homem médio - ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente.[6] Ou seja, há um tal erro quando o homem médio suposto pela ordem jurídica, perante o que consta do texto da decisão, facilmente se dá conta que o tribunal violou as regras de experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis, traduzindo o vício em questão “um erro supino, crasso e inquestionável a partir da simples leitura do texto da decisão recorrida, que escapa à lógica das coisas, ou seja, quando sendo usado um processo lógico racional se extrai de um facto uma conclusão ilógica, irracional, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência comum” [7]. Em síntese, deve tratar-se de um erro manifesto, isto é, facilmente demonstrável, dada a sua evidência perante o texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum. Começa o recorrente por apontar à sentença recorrida a verificação do vício decisório contemplado no art.º 410.º, n.º 2, alínea b), do CPP, invocando a existência de uma contradição insanável entre os factos provados (facto 3.º) e os factos não provados (alínea c)), pois que «várias ocasiões e modo reiterado são sinónimos, razão pela qual também a expressão modo reiterado deveria ter sido englobada nos factos provados». Julgamos assistir razão ao recorrente. Com efeito, a expressão «reiterado» significa algo que se repete, pelo que a inclusão desta palavra («reiterado») nos factos não provados revela-se incongruente com o afirmado no referido ponto 3), o qual tem o seguinte teor: «Durante o relacionamento, em várias ocasiões, sobretudo no interior da residência comum, o arguido dirigiu à assistente as seguintes expressões: “Vaca! Puta! Eu mato-me e digo que a culpa é tua! Havias de morrer! Deus havia de te dar um cancro, havias de morrer!”, “Andas com os outros”, “És uma badalhoca!”, “Estás comigo só pelo dinheiro”. A consideração de que os factos aqui descritos ocorreram em «várias ocasiões» é efetivamente inconciliável com a inclusão, na matéria de facto não provada, da expressão «reiterado». Uma vez que a ideia de repetição/reiteração já que se encontra suficientemente traduzida na redação dada ao ponto 3), concretizando-se na utilização da expressão «várias ocasiões», e dado que o termo «reiterado», para além de conclusivo, consubstancia uma expressão legal (cf. o art.º 152.º, n.º 1, do CP), consideramos que a desarmonia atrás assinalada resolve-se pela sua eliminação da alínea c) da matéria de facto não provada [8]. * Como se assinala no acórdão do TRP de 22/6/2016 [9], o reenvio do processo para novo julgamento, previsto no art.426.º, do CPP, deve constituir a exceção e a sanação dos vícios do art.º 410.º, n.º 2, do CPP, deve ser a regra. O tribunal de recurso só deve proceder ao reenvio quando for objetivamente inviável a decisão da causa pela segunda instância com os elementos de que dispõe.No presente caso, é possível sanar no tribunal de recurso os aludidos vícios, alterando a decisão sobre a matéria de facto. Assim, elimina-se da alínea c) da matéria de facto não provada a palavra “reiterado” e adita-se ao elenco dos factos provados os seguintes, reproduzindo parcialmente a factualidade constante do ponto 20) da acusação [10]: «Sabia o arguido que, comportando-se nos moldes descritos, lesava a sua namorada e companheira na sua saúde mental e na sua autoestima, humilhando-a e diminuindo-a como mulher, sabendo igualmente que perturbava o seu bem-estar no lar, como efetivamente veio a suceder, não se coibindo de adotar tais comportamentos na residência da vítima, afetando negativamente a pacífica convivência doméstica e familiar, o que quis». Procede, assim, parcialmente o presente fundamento do recurso. * II) Enquadramento jurídico-penal. a) Verificação dos elementos objetivos e subjetivos do crime de violência doméstica. Considera o recorrente que o tribunal a quo fez uma incorreta interpretação do art.º 152.º n.º 1 alínea b) e n.º 2 al. a) do Código Penal, por ter entendido que a factualidade dada como provada não integra o crime de violência doméstica, apoiando-se no seguinte conjunto de argumentos: a) as condutas do arguido, pese embora penalmente relevantes, surgem sobretudo em contexto de discussão, ciúme e fim de namoro; b) não espelham relação de domínio ou subjugação por parte do arguido sobre a vítima; c) não consubstanciam, pela sua gravidade, maus tratos psíquicos, vocacionados, adequados e capazes de criar um sério risco para a saúde psíquica da assistente. Vejamos, então. Estabelece o art.º 152.º, n.º 1, do Código Penal, sob o título “violência doméstica”, na redação em vigor à data da prática dos factos em análise: «1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais: a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge; b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação; c) A progenitor de descendente comum em 1.º grau; ou d) A pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite; é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal. 2 - No caso previsto no número anterior, se o agente: a) Praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima; ou b) Difundir através da Internet ou de outros meios de difusão pública generalizada, dados pessoais, designadamente imagem ou som, relativos à intimidade da vida privada de uma das vítimas sem o seu consentimento; é punido com pena de prisão de dois a cinco anos». O bem jurídico protegido pela incriminação da violência doméstica é complexo, abrangendo a tutela da saúde nas dimensões física, psíquica e emocional. Objeto de tutela é assim a integridade das funções corporais da pessoa, nas suas dimensões física e psíquica, estando em causa, no essencial, a proteção de um estado de completo bem-estar físico e mental [11]. A consumação do crime de violência doméstica não exige que a conduta do agressor assuma um caráter violento, traduzido em maus tratos cruéis ou tratamento particularmente aviltante. Como diz André Lamas Leite (in “A violência relacional íntima”, Revista Julgar nº 12, Set-Dez. 2010, páginas 23/66), identifica-se no tipo uma especial relação entre agente e ofendido, relação que «é sempre de proximidade, se não física, ao menos existencial, ou seja, de partilha (atual ou anterior) de afetos e de confiança em um comportamento não apenas de respeito e abstenção de lesão da esfera jurídica da vítima, mas de atitude pro-ativa, porquanto em várias hipóteses do art. 152º são divisáveis deveres legais de garante». Daí que, como observa este autor, «o fundamento último das ações abrangidas pelo tipo reconduz-se ao asseguramento das condições de livre desenvolvimento da personalidade de um indivíduo no âmbito de uma relação interpessoal próxima, de tipo familiar ou análogo» [12]. Essa especial relação de afeto e de confiança fundamenta a ilicitude e justifica a punição, não sendo necessário, para a pôr em causa, «que a conduta do agente assuma um carácter violento, no sentido de exceder o crime de ameaça e de injúria e transformar-se em maus-tratos cruel e degradante» [13]. Entre a multidão de ações que podem ser tidas como maus tratos físicos contam-se todo o tipo de comportamentos agressivos que se dirigem diretamente ao corpo da vítima e, em regra, também preenchem a factualidade típica do delito de ofensa à integridade física, como murros, bofetadas, pontapés e pancadas com objetos ou armas, para além empurrões, arrastões, apertões de braços ou puxões de cabelos, mesmo que não se comprove uma efetiva lesão da integridade corporal da pessoa visada. Por sua vez, estão em condições de ser qualificados como maus tratos psíquicos os insultos, as críticas e comentários destrutivos, achincalhantes ou vexatórios, a sujeição a situações de humilhação, as ameaças, as privações injustificadas de comida, de medicamentos ou de bens de primeira necessidade, as restrições arbitrárias à entrada e saída da habitação (ou de partes dela), as privações de liberdade, as perseguições, as esperas inopinadas e não consentidas, os telefonemas a desoras, etc. [14] Para se assumirem como atos típicos de maus tratos, estes comportamentos não têm de possuir relevância típica específica no seio de outros tipos legais de crime, afigurando-se também desnecessária a reiteração dos atos de violência para que os mesmos possam ser qualificados como de maus tratos para efeitos de preenchimento do tipo de ilícito de violência doméstica. Embora sendo predominante, a reiteração dos maus tratos – configurando casos de microviolência continuada, em que a opressão de um dos (ex) parceiros sobre o outro é exercida e assegurada normalmente através de repetidos atos de violência psíquica, que, apesar da sua baixa intensidade, são adequados a causar graves transtornos na personalidade da vítima quando se transformam num padrão de relacionamento, até casos extremos, de verdadeiro terror doméstico – não é obrigatória. Como salienta Inês Ferreira Leite (estudo citado, pág. 19), «O legislador de 2007, ao qualificar a reiteração como elemento típico possível, mas não obrigatoriamente exigível, terá tido em vista o contexto social e judiciário da violência doméstica, visando acautelar o sucesso do processo penal ainda que não se consigam individualizar vários eventos concretos de violência saliente. Ainda assim se justifica uma condenação pelo crime de violência doméstica, desde que subjacente a um evento concreto de violência (de qualquer tipo, e ainda que não tenha extrema gravidade), se encontre – de modo demonstrável, através da prova indiciária, em julgamento – o tal ambiente global de intimidação, menorização, subalternização, a partir de um contexto de imparidade e dependência, que caracterizam o tipo social da violência doméstica». Coincidentemente, afirma-se no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 28/1/2010 (disponível em www.dgsi.pt), que «basta um único ato para se integrar o tipo legal de crime em referência, desde que o mesmo, por si só, atinja o bem jurídico violado. Este consubstanciar-se-á, pois, na perpetração de qualquer ato de violência que afete, por alguma forma, a saúde física, psíquica e emocional do cônjuge vítima, diminuindo ou afetando, do mesmo modo, a sua dignidade enquanto pessoa inserida numa realidade conjugal igualitária». É de salientar, ainda, que estamos perante um crime de perigo abstrato, que traduz uma tutela antecipada do bem jurídico protegido. Não é, pois, necessário, para que se verifique o crime em questão, que se tenham produzido efetivos danos na saúde psíquica ou emocional da vítima; basta que se pratiquem atos em abstrato suscetíveis de provocar tais danos.[15] Finalmente, o tipo legal da violência doméstica não exige qualquer elemento subjetivo especial, bastando-se com o comum dolo do tipo (art.º 14.º do CP). No presente caso, ficaram inequivocamente demonstrados comportamentos (insultos, humilhações e ameaças) suscetíveis de integrarem o tipo de crime de violência doméstica por que o arguido foi acusado. Diversamente considerou o tribunal a quo, fazendo notar, na sentença recorrida, que «as condutas do arguido, embora penalmente relevantes, surgem sobretudo em contexto de discussão e fim de namoro, resultando da factualidade provada outras situações de discussão entre o casal (cfr. factos provados n.ºs 4, 7 e 9), bem como a existência clara de ciúmes e de sentimentos de desconfiança por parte do arguido (cfr. factos provados n.º 7 e 9), acompanhados por estratégias de autovitimização e chantagem emocional (cfr. facto provados n.º 3)», e concluindo que «mesmo analisadas no seu todo, e à luz da supracitada jurisprudência, é forçoso considerar que os comportamentos em análise não espelham uma relação de domínio ou subjugação por parte do arguido sobre a assistente, nem consubstanciam, pela sua gravidade, maus tratos psíquicos, vocacionados, adequados e capazes de criar um sério risco para a saúde psíquica da assistente ou de a submeter a uma vivência de medo».
Não acompanhamos as reservas enunciadas pelo tribunal a quo quanto à delimitação do tipo objetivo do ilícito em questão. Desde logo, e como já tivemos oportunidade de assinalar, o bem jurídico protegido pela incriminação da violência doméstica é a saúde – física, psíquica e emocional – e não, como surge defendido com alguma frequência na jurisprudência nacional, e parece ter sido pressuposto pelo tribunal a quo, a dignidade humana. É verdade que alguma doutrina apela também à dignidade da pessoa humana como bem jurídico tutelado pelo crime de violência doméstica, mas apenas como elemento complementar e nunca como exigência central de interpretação do tipo legal. Objeto de tutela é assim a integridade das funções corporais da pessoa, nas suas dimensões física e psíquica, estando em causa, no essencial, a proteção de um estado de completo bem-estar físico e mental [16]. Além disso, e como também já tivemos oportunidade de salientar, a consumação do crime de violência doméstica não exige que a conduta do agressor assuma um caráter violento, traduzido em maus tratos cruéis ou tratamento particularmente aviltante. Por outro lado, não pressupõe uma subjugação da vítima ao agressor. Este tipo de densificações introduzidas por parte da jurisprudência e acolhidas na sentença recorrida ferem o princípio da legalidade, na medida em que pretendem fazer introduzir na tipicidade dos delitos pressupostos que não foram delineados pelo legislador, como nem observa o recorrente. Com efeito, e para além do mais, podem existir maus tratos físicos e psíquicos típicos do art.º 152.º do CP, sem o ambiente de subjugação ou dominação (não obstante ser esse o dolo do agente e o tipo sociológico prevalente das situações de violência doméstica). Ou seja, o agente tem o dolo de domínio, mas o crime consuma-se mesmo que não exista essa situação concreta de “subjugação”. Como exemplarmente se afirma no acórdão do TRC, de 22/9/2021 [17], condensando tudo o que acabámos de expor: «I - O crime de violência doméstica é uma forma especial de crime de maus-tratos e que se encontra também numa relação de especialidade com os crimes de ofensa à integridade física, de ameaça, de coação, de sequestro, de importunação sexual, de coação sexual, de abuso sexual de menores dependentes e ainda com os crimes contra a honra. II - A estrutura típica do crime p. e p. no artigo 152.º do CP não exige a verificação de qualquer relação de dependência ou de domínio exercida pelo autor desse ilícito sobre a vítima. III – A opção pelo tipo do artigo 152.º, em detrimento da opção por um dos crimes que tutelam singularmente bens jurídicos por aquele atingidos, impõe a ocorrência de um aliud, que consiste precisamente na circunstância de a prática do crime de violência doméstica ser indissociável da relação presente ou passada prevista no normativo indicado. Se é possível estabelecer o nexo entre os maus tratos e a relação presente ou pretérita, ocorre violência doméstica; se, pelo contrário, esse nexo não pode ser estabelecido, a imputação deverá fazer-se pelo tipo de crime que a factualidade objetivamente representa». O crime de violência doméstica não traduz um tipo legal qualificado ou, sequer, agravado, pela relação pessoal intercorrente entre o autor e a vítima, mas sim um crime autónomo que, como já referimos, se encontra numa relação de especialidade e que visa responder a uma impactante realidade social, multifacetada, é certo, mas suficientemente identificada, de frequente verificação, geradora de consideráveis danos físicos, psíquicos e sociais, carecida de uma específica tutela jurídico-criminal [18]. Deste modo, o comportamento do arguido, denotando o especial desvalor de ação pressuposto pelo crime de violência doméstica, justifica a sua autonomização face aos outros tipos de ilícito (designadamente, injúria e ameaça) com os quais se encontra numa relação de concurso aparente. Procede, por conseguinte, o presente fundamento do recurso, impondo-se que este tribunal extraia as consequências do preenchimento do tipo de ilícito objetivo e subjetivo do crime de violência doméstica, para além do respetivo tipo de culpa. * Importa, agora, determinar a medida concreta da pena a aplicar ao arguido AA, sendo certo que o crime de violência doméstica por ele praticado é punido com pena de prisão de dois a cinco anos (cf. o artigo 152.º, n.º 2, alínea a), do Código Penal). A tarefa de determinação da medida concreta da pena, dentro dos limites legalmente determinados, realiza-se em função da culpa do agente e das exigências de prevenção (geral de integração e especial de socialização) que se façam sentir no caso concreto, nos termos do disposto no nº 1 do art.º 71º do C. Penal. A pena visa, assim, finalidades exclusivamente preventivas (de prevenção geral e especial), constituindo a culpa pressuposto e limite inultrapassável da pena (cf. Jorge Figueiredo Dias, “Direito Penal – Parte Geral”, Tomo I, 2004, pág. 75 e seguintes).[19] Através das exigências de prevenção, dá-se satisfação à necessidade comunitária de reafirmação da confiança geral na validade da norma violada, bem como ao objetivo de reinserção social do delinquente e, por esta via, à realização dos fins das penas no caso concreto (art.º 40º, nº 1 do C. Penal). A consideração da culpa do agente, liga-se à vertente pessoal do crime e decorre do incondicional respeito pela dignidade da pessoa humana - a culpa é entendida como um "princípio liberal, limitador do poder punitivo do Estado" (na expressão de Claus Roxin), e estabelece um limite inultrapassável às exigências de prevenção (art.º 40º, nº 2 do C. Penal). Necessidade, proibição do excesso ou proporcionalidade e adequação são os princípios orientadores que devem presidir à determinação da pena. Relevantes para a determinação da medida concreta da pena são os fatores elencados no art.º 71º do Código Penal e que, fundamentalmente, se relacionam quer com o facto típico praticado, quer com a personalidade do agente neles documentada, podendo tais fatores ser valorados, simultaneamente, por via da culpa e da prevenção [20]. Assim, o nº 2 do artigo 71º do Código Penal, manda atender, no caso concreto, a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o arguido, nomeadamente: “o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente; a intensidade do dolo ou da negligência; os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; as condições pessoais do agente e a sua situação económica; a conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime; a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena”. Como bem salienta o Conselheiro Henriques Gaspar [21], “As circunstâncias e critérios do art.º 71.º do CP devem contribuir tanto para co-determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afetação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (as circunstâncias pessoais do agente, a idade, a confissão, o arrependimento), ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objetivas para apreciar e avaliar a culpa do agente”. No presente caso, não se afigurando especialmente grave o comportamento do arguido, consideramos adequada à sua culpa e necessária para responder às exigências de prevenção especial de socialização e geral de integração verificadas a pena de 2 anos de prisão. Resultando da matéria de facto que o arguido e assistente não têm contactos desde fevereiro de 2022, não se afigura necessária a aplicação da pena acessória de proibição de contactos com a assistente. Já a pena acessória de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica, pelo seu conteúdo pedagógico e ressocializador, revela-se útil à prevenção da reincidência, devendo ser aplicada ao arguido (cf. o n.º 4 do art.º 152.º do CP). * Analisemos, agora, a possibilidade de suspensão da execução da pena de prisão, hipótese que a nossa lei penal expressamente contempla no artigo 50.º. Como é sabido, são finalidades exclusivamente preventivas que devem presidir à operação da escolha da espécie de pena a aplicar ao agente, devendo o tribunal dar preferência à pena não detentiva, a não ser que razões ligadas à socialização do delinquente (no seu conteúdo mínimo, traduzido na prevenção da reincidência) ou de preservação do limite mínimo da prevenção geral positiva, no sentido de "defesa do ordenamento jurídico", imponham a pena de prisão [22]. Por outro lado, em caso de conflito entre os vetores da prevenção geral e especial, o primado pertence à prevenção geral.[23] A suspensão da execução da pena de prisão constitui uma medida de conteúdo reeducativo e pedagógico, tendo na sua base uma prognose social favorável ao arguido: a esperança fundada – e não uma certeza – de que a socialização em liberdade será possível, que o arguido sentirá a sua condenação como uma advertência solene e que, em função desta, não sucumbirá, não cometerá outro crime no futuro, que saberá compreender, e aceitará, a oportunidade de ressocialização que lhe é oferecida, pautando a conduta posterior no sentido da fidelização ao direito. Para aplicação da pena em causa necessário se torna que o julgador se convença de que a ameaça da pena, como medida de reflexos sobre o seu comportamento futuro, evitará a repetição de condutas delitivas e ainda que a pena de substituição não coloca em causa de forma irremediável a necessária tutela de bens jurídicos (cf., neste sentido, o acórdão do STJ de 14/5/2009, disponível em www.dgsi). Como salientado no acórdão deste Tribunal da Relação do Porto, de 17/1/2017 [24] (igualmente disponível em www.dgsi.pt), reproduzindo o ensinamento do Prof. Figueiredo Dias, "A finalidade político-criminal que a lei visa com o instituto da suspensão é clara e terminante: o afastamento do delinquente, no futuro, da prática de novos crimes e não qualquer «correção», «melhora» ou – ainda menos - «metanoia» das conceções daquele sobre a vida e o mundo. Constitui um elemento decisivo aqui o «conteúdo mínimo» da ideia de socialização, traduzida na «prevenção da reincidência». Apesar de se mostrarem exacerbadas as exigências de prevenção geral associadas a este tipo de criminalidade, constituindo o fenómeno da violência doméstica um autêntico flagelo social [25], consideramos que a necessária manutenção da ordem jurídica e da fidelidade do público ao direito ainda consente a condenação do arguido numa pena não detentiva. Com efeito, embora não sendo primário, o arguido nunca foi condenado por este tipo de criminalidade e beneficia de apoio familiar, fatores que, naturalmente, favorecem a sua reinserção social. Decide-se, assim, nos termos do art.º 50º do C. Penal, por ser mais favorável à recuperação social do arguido AA e ainda suportável ao nível da comunidade, suspender a execução da pena aplicada pelo período de dois anos, na confiança de que o arguido se manterá afastado da criminalidade. Contudo, por forma a reforçar o efeito sancionatório da pena não detentiva e a prevenir a reincidência [26], a suspensão da respetiva execução fica condicionada a regime de prova, assente num plano individual de reinserção social, e à obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica, nos termos previstos nos artigos 50.º, n.ºs 2, 3 e 5, 51.º, n.º 1, 52.º, n.º 2, b) e 53.º, todos do Código Penal. * c) Indemnização oficiosa. O Ministério Público, ao abrigo do disposto no artigo 82.º-A do Código de Processo Penal e do artigo 21.º, n.º s 1 e 2, da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro, requereu a atribuição de uma quantia não inferior a € 3.000,00 a título de reparação dos danos sofridos pela vítima BB. Dispõe o n.º 1 do art.º 82.º-A do CPP, sob a epígrafe “Reparação da vítima em casos especiais”, que «Não tendo sido deduzido pedido de indemnização civil no processo penal ou em separado, nos termos dos artigos 72.º e 77.º, o tribunal, em caso de condenação, pode arbitrar uma quantia a título de reparação pelos prejuízos sofridos quando particulares exigências de proteção da vítima o imponham», estabelecendo, por seu turno, o artigo 21.º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro, que «1. À vítima é reconhecido, no âmbito do processo penal, o direito a obter uma decisão de indemnização por parte do agente do crime, dentro de um prazo razoável. 2 - Para efeito da presente lei, há sempre lugar à aplicação do disposto no artigo 82.º-A do Código de Processo Penal, exceto nos casos em que a vítima a tal expressamente se opuser». No presente caso, e como já foi salientado a propósito da análise da responsabilidade criminal do arguido, é inequívoco que o mesmo atuou de forma ilícita e culposa, causando danos de natureza não patrimonial à assistente (cf. o ponto aditado à matéria de facto provada). Encontrando-se verificados todos os pressupostos de ordem formal e tendo sido assegurado o respeito pelo contraditório imposto pelo n.º 2 do art.º 82.º-A, do CPP, resta fixar o montante que, a título de compensação pelos danos causados à vítima, deve ser arbitrado. Os danos não patrimoniais reportam-se a valores de ordem espiritual, ideal ou moral [27], o que os torna insuscetíveis de avaliação pecuniária, visando, por isso, o seu ressarcimento uma compensação das dores físicas ou morais sofridas pelo lesado, bem como sancionar, em alguma medida, a conduta do lesante. A ressarcibilidade destes danos está dependente de um juízo de valoração objetivo, tendente a afirmar a sua gravidade, nos termos do disposto no nº 1 do art.º 496º do C.C. Como vem salientando a jurisprudência, a compensação por danos não patrimoniais, para constituir uma efetiva possibilidade compensatória, deve ser significativa e não meramente simbólica. Refere-se, a este propósito, no acórdão do STJ de 24/4/2013 (disponível em www.dgsi.pt), que a fixação da indemnização não deve ser simbólica, miserabilista ou arbitrária, mas nortear-se por critérios de equidade, tendo em atenção as circunstâncias referidas no art.º 494.º do CC. [28] Os danos não patrimoniais suscetíveis de reparação abrangem, no presente caso, o sofrimento moral causado à vítima como consequência, direta e necessária, do comportamento ilícito e culposo do arguido. Atendendo à natureza e gravidade dos danos demonstrados e, bem assim, à precária condição económica do arguido (sendo certo que desconhecemos a da vítima), documentada na sentença recorrida, consideramos equitativa a quantia de € 1.500,00 para compensá-la por todos os danos de natureza não patrimonial que lhe foram causados. * III – Dispositivo Pelo exposto, acordam os juízes da 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, como consequência da verificação dos vícios decisórios previstos no art.º 410.º, n.º 2, alíneas b) e c), do CPP, determinam: Não são devidas custas criminais (cf. o art.º 513.º, n.º 1, “a contrario”, do CPP). Notifique. * (Elaborado e revisto pela relatora – art.º 94º, nº 2, do CPP – e assinado digitalmente) |