Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | TERESA FONSECA | ||
Descritores: | OMISSÃO DO PAGAMENTO DA TAXA DE JUSTIÇA CONFISSÃO | ||
Nº do Documento: | RP2024061712/22.3T8MTS.P1 | ||
Data do Acordão: | 06/17/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | REVOGADA | ||
Indicações Eventuais: | 5ª SECÇÃO | ||
Área Temática: | . | ||
Sumário: | I - A confissão de facto por a oposição deduzida não ter sido considerada devido a omissão do pagamento da taxa de justiça não ofende o direito a um processo equitativo. II - A alegação de que o inventariado se apropriou da conta bancária do interessado, para seu uso pessoal, sem qualquer outra concretização, não consubstancia matéria de facto bastante que se possa ter como confessada por falta de oposição nos termos do disposto no art.º 1106.º/1 do C.P.C.. | ||
Reclamações: | |||
Decisão Texto Integral: | Proc. 12/22.3T8MTS.P1 Sumário ……………………………… ……………………………… ……………………………… Relatora: Teresa Fonseca 1.ª adjunta: Anabela Morais 2.ª adjunta: Maria Fernanda Almeida Acordam no Tribunal da Relação do Porto I - Relatório No inventário aberto por óbito de AA, falecido em 12-1-2019, requerido por BB, em que são interessados o aquele e CC, na sequência da conferência de interessados, foi proferida sentença. Nesta julgou-se reconhecida a verba n.º 16 com fundamento na circunstância de não ter sido impugnada. * Inconformada, CC interpôs o presente recurso, rematando com as seguintes conclusões.A. A sentença recorrida aceitou e reconheceu a dívida hereditária relacionada, no presente inventário, e por não ter sido impugnada pelo recorrente. B. Porém, a falha na impugnação desta dívida deveu-se a facto de o recorrente não ter satisfeito a taxa de justiça devida pela apresentação da oposição. C. Assim, uma interpretação/aplicação do art. 1106º/1CPC na concordância com o art. 20º/4 CRP, desaconselha, desde logo, uma confissão eficaz da dívida, por não se tratar de ato processual espontâneo, informado (muito pelo contrário) e consentido pelo recorrente. D. Mas o argumento principal do recorrente, para além de defender a inconstitucionalidade do art. 1106º/1 CPC , na contrariedade com o art 20/4 CRP, se acaso for mantido o despacho impugnado (o que nestas conclusões aqui fica para prevenir o recurso para o T. Constitucional) é, ele, argumento em especial, o de que a sentença recorrida infringe literalmente o art.1106º/1 CPC, norma que em si e por si exclui a confissão da dívida hereditária na ausência de impugnação. E. Na verdade, o preceito exclui-a, por carência da escrita, forma estritíssima e legal da dívida, que não foi documentada na lide. F. A sentença recorrida infringiu, pois, o cit. art.1109/1CPC e o art.458/2CC. G. Deverá, s.m.o., ser reformada no sentido de não ser aceite e reconhecida a dívida hereditária em causa. * II - A questão a dirimir reside em determinar se a verba identificada sob o n.º 16 da relação de bens deve ser reconhecida ou se, ao invés, não se verificam os pressupostos do respetivo reconhecimento.* III - Fundamentação de facto (retirada do processo)1 - AA faleceu em 12-1-2019. 2 - BB requereu a abertura do presente processo de inventário. 3 - São interessados no inventário o requerente BB e CC, ambos filhos do inventariado. 4 - Da relação de bens consta no passivo da herança, identificada enquanto verba n.º 16: Dívida do Inventariado ao Interessado BB, no montante de € 19.855,62 (dezanove mil oitocentos e cinquenta e cinco euros e sessenta e dois cêntimos) referente a dinheiro que o Inventariado se apropriou da conta bancária do Interessado, para seu uso pessoal. 5 - A interessada CC deduziu oposição em que impugnou a existência da dívida. 6 - A oposição não foi admitida por omissão de pagamento da taxa de justiça devida. 7 - Da ata da conferência de interessados consta, assinaladamente, o seguinte: Quanto à Verba nº 16 do passivo, pelo Ilustre Mandatário do cabeça-de-casal foi dito que a verba deverá ser mantida, com o consequente reconhecimento do passivo por não ter sido impugnado. Pela interessada CC foi dito não reconhecer o passivo relacionado. 8 - Na conferência de interessados foi proferida a seguinte sentença: Quanto ao passivo relacionado, atento o disposto no artigo 1106.º, n.º 1 do C.P. Civil e uma vez que a verba n.º 16 não resultou impugnada nos autos, considera-se a mesma reconhecida. Considerando, ainda, que o passivo reconhecido perfaz a quantia de 19.855,62 (dezanove mil oitocentos e cinquenta e cinco euros e sessenta e dois cêntimos) e, por outro lado, que a soma de todo o ativo relacionado, já considerando as alterações realizadas à relação de bens, na presente conferência de interessados, perfaz a quantia total de €16.943,66 ( dezasseis mil novecentos e quarenta e três mil euros e sessenta e seis cêntimos) e, inexistem ulteriores operações de partilha a realizar, porquanto todo o ativo da Herança será afeto à liquidação das dívidas da Herança. Em face do exposto, ao abrigo do citado artigo 1106.º, n.º 1, parte final do C.P.Civil, condena-se a Herança ao pagamento do referido passivo e, em consequência, determina-se a extinção da instância, ao abrigo do artigo 277.º, al. a) do C.P.C. * IV - Fundamentação jurídicaCom o presente recurso a apelante pretende ver invertida a decisão proferida em 1.ª instância que julgou confessada a existência de dívida da herança em que é credor o outro interessado no inventário. Esta verba foi reconhecida, já que, embora a recorrente tenha impugnado a verba do passivo identificada sob o n.º 16, na decorrência da não admissão da oposição por omissão do pagamento da taxa de justiça devida, o passivo da herança foi dado como assente. O art.º 1106.º/1 do C.P.C., sob a epígrafe verificação do passivo, preceitua que as dívidas relacionadas que não hajam sido impugnadas pelos interessados diretos consideram-se reconhecidas, sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 574.º, devendo a sentença homologatória da partilha condenar no respetivo pagamento. Como se sumaria no ac. do Tribunal da Relação do Porto de 9-11-2023 (proc. 252/21.2T8VLC.P1, Isabel Peixoto Pereira), o regime legal do inventário previsto nos artigos 1082.º a 1135.º do Código de Processo Civil, na redação da lei 117/2019 de 13/09, introduziu um novo paradigma do processo de inventário, mediante novo modelo processual assente em fases processuais relativamente estanques, nas quais rege o princípio da concentração. Na medida em que fixado pela lei para cada ato das partes um momento próprio para a sua realização, resultam cominações e preclusões. É na subfase da oposição que se procede à delimitação do património hereditário (ativo e passivo), antecipando-se (tendencialmente) para esse momento processual a verificação do passivo, que antes ocorria na conferência de interessados (cfr. artigos 1104º a 1106º). Não oferece dúvidas que não foi admitida a oposição deduzida pela interessada CC, em que esta impugnou a existência da dívida, por omissão do pagamento da taxa de justiça devida. A apelante não põe em crise as normas preclusivas atinentes ao não pagamento de taxa de justiça. Antes defende que outra devia ter sido a interpretação do art.º 1106.º/1 do C.P.C.. Sustenta que o art.º 20.º/4 da Constituição da República Portuguesa (C.R.P.) desaconselha (…) uma confissão eficaz da dívida, por não se tratar de ato processual espontâneo, informado (muito pelo contrário) e consentido pelo recorrente. Segundo o n.º 4 do aludido art.º 20.º da C.R.P., todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objeto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo. O disposto no citado art.º 1106.º/1 do C.P.C. em nada prejudica a celeridade da justiça. Por outro lado, é certo que os princípios gerais de direito constituem os alicerces do ordenamento jurídico e enformam as decisões dos tribunais, mas não precludem a aplicação de normas expressas, assinaladamente aquelas que marcam a marcha processual. É inadmissível a obnubilação de normas expressas a pretexto da relevância da pretensão da parte e da justiça do caso concreto. Defender tese oposta equivaleria a fragilizar intoleravelmente a segurança jurídica, já que em todas as fases processuais, e qualquer que fosse o fundamento, seria sempre possível adotar solução diversa e até mesmo contrária àquela resultante do direito estrito. A verdade material não pode nem deve servir para afastar as regras processuais que disciplinam o processo civil. Estas impõem prazos, ónus e preclusões à atividade das partes para se vir a obter um resultado probatório formalmente válido da verdade das alegações das partes. A verdade é aquela suscetível de ser alcançada com a observância das regras ordenadoras da marcha processual. No caso vertente, a parte poderia ter diligenciado pelo pagamento da taxa de justiça devida pela oposição, fazendo, por essa via, valer o seu direito. Esta linha de argumentação não merece, pois, acolhimento. A realidade é que a própria recorrente diz assentar a sua pretensão de ver como não reconhecida a dívida do inventariado ao interessado BB essencialmente na circunstância de, segundo alega, estar em causa matéria que não se pode ter como confessada. Vejamos se lhe assiste razão. Dispõe o art.º 1104.º/1/e do C.P.C. que os interessados diretos na partilha e o Ministério Público, quando tenha intervenção principal, podem, no prazo de 30 dias a contar da sua citação, impugnar os créditos e as dívidas da herança. Nos termos do n.º 2 do mesmo art.º, as faculdades previstas no número anterior também podem ser exercidas, com as necessárias adaptações, pelo requerente do inventário ou pelo cabeça de casal, contando-se o prazo, quanto ao requerente, da notificação referida no n.º 3 do artigo 1100.º e, quanto ao cabeça de casal, da citação efetuada nos termos da alínea b) do n.º 2 do mesmo artigo. Decorre deste artigo que é no prazo ali referido após a citação que devem ser concentradas todas as impugnações, reclamações ou outros meios de defesa que os interessados entendam deduzir. Adota-se, na fase de oposição, um princípio de concentração na invocação de todos os meios de defesa idêntico ao que vigora no artigo 573º do CPC: toda a defesa (incluindo a contestação quanto à concreta composição do acervo hereditário, ativo e passivo), deve ser deduzida no prazo de que os citados beneficiam para a contestação/oposição, só podendo ser ulteriormente deduzidas as exceções e meios de defesa que sejam supervenientes (…) (in Lopes do Rego, A recapitulação do inventário, Julgar Online, Dezembro de 2019). O processo de inventário adota uma primeira fase declarativa com apresentação dos articulados. O art.º 1106.º do C.P.C., como já se referiu, enuncia de forma expressa o efeito cominatório da não impugnação pelos interessados diretos das dívidas relacionadas, que é o de estas serem reconhecidas, sem prejuízo do disposto no n.º 2 do art.º 574.º.. O art.º 574.º, sob a epígrafe ónus de impugnação, por seu turno, prevê: 1 - Ao contestar, deve o réu tomar posição definida perante os factos que constituem a causa de pedir invocada pelo autor. 2 - Consideram-se admitidos por acordo os factos que não forem impugnados, salvo se estiverem em oposição com a defesa considerada no seu conjunto, se não for admissível confissão sobre eles ou se só puderem ser provados por documento escrito; a admissão de factos instrumentais pode ser afastada por prova posterior. A apelante pretende prevalecer-se do n.º 2 do art.º 574.º do C.P.C., sob a invocação de que está em causa um facto que só pode ser provado por documento escrito. Não explicita, porém, o porquê desta exigência, nem este tribunal o alcança. Menciona, é certo, o art.º 458.º/2 do Código Civil. Nos termos deste dispositivo, a promessa ou reconhecimento de dívida deve constar de documento escrito, se outras formalidades não forem exigidas para a prova da relação fundamental. Na situação presente, todavia, o reconhecimento não se reporta ao devedor, pelo que a norma em nada se relaciona com a questão sob discussão. Tampouco se trata de matéria que esteja em oposição com a defesa considerada no seu conjunto. A confissão é o reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária (art.º 352.º do C.C.). Diga-se ainda que relativamente à possibilidade de existir confissão a propósito da apropriação indevida de quantia monetária do interessado pelo de cujus, não se trata de facto que deva ser do conhecimento pessoal da apelante. Tal não invalida, porém, o efeito cominatório da falta de oposição. Afigura-se-nos, todavia, que a questão há de ser precedida de uma análise a montante da alegação do interessado. Revisitando o teor da verba 16 dos factos assentes, surpreende-se que esta foi descrita pelo requerente do inventário como sendo uma dívida do inventariado de € 19 855, 62. E acrescentou estar em causa dinheiro de que o inventariado se apropriou da conta bancária do interessado, para seu uso pessoal. Os factos são, na aceção do art.º 574.º do C.P.C., realidades não criadas pelo próprio direito, realidades pré-jurídicas que criam, impedem, modificam ou extinguem as realidades jurídicas que são os direitos e as obrigações (art.º 342.º/1/2 do C.C.). Os factos são passíveis de prova pelos meios processualmente previstos. A prova pode ter lugar através de presunções (art.º 349.º do C.C.), por confissão (art.º 352.º C.C. e art.º 452.º e ss. do C.C.), por declarações de parte (art.º 466.º do C.P.C.), através de documento (art.º 423.º e ss. do C.P.C.), através de testemunha (art.º 495.º do C.P.C.) ou mediante perícia (art.º 467.º e ss. do C.P.C.). Os eventuais efeitos jurídicos dos factos são declarados pelo tribunal, socorrendo-se este das normas jurídicas congruentes com o caso. A descrição efetuada pelo interessado BB não contém, porém, factualidade bastante passível de prova. O interessado cinge-se a afirmar que o inventariado tinha para consigo uma dívida de € 19 855, 62. E acrescentou estar em causa dinheiro de que o inventariado se apropriou da conta bancária do interessado, para seu uso pessoal. Dívidas da herança são aquelas que o falecido tinha à data da sua morte, a que a lei equipara as despesas com o funeral e sufrágios do seu autor, os encargos com a testamentaria, administração e liquidação do património hereditário, e o cumprimento dos legados (art.º 2068.º do C.C.). Vista a declaração do interessado, é forçoso o entendimento de que nos encontramos perante uma afirmação eminentemente conclusiva. Nada sabemos acerca da conta bancária cuja existência é invocada e das circunstâncias da apropriação, como sejam o tempo e o modo. Aliás, embora seja mencionado o destino da quantia, é-o também genericamente. Não se entrevê, assim, como, a ser caso disso, se pudesse produzir prova, seja ela documental, pericial ou através de testemunhas, da alegação. Afinal, a prova respeitaria a que conta bancária e a que deslocações patrimoniais? Como se terá o inventariado apropriado de quantia afeta a conta do ora interessado? Quando é que o fez e por que montantes? Em rigor, o interessado mais não fez do que concluir que é titular de um crédito sobre a herança, reportando a dívida de forma totalmente imprecisa a uma apropriação indevida, ao que se alcança, através da imputação da prática de um ilícito penal a seu pai. Entende-se, assim, que não se poderá dar como confessada a existência de dívida da herança do montante assinalado, não propriamente por se verificar algum dos óbices previstos no n.º 2 do art.º 574.º do C.P.C., mas por ausência de alegação bastante. Outra alternativa não resta que não a consistente na revogação da decisão que julgou reconhecida a verba n.º 16 com fundamento na ausência de impugnação, com a anulação dos atos do inventário que em absoluto dependam deste reconhecimento. Os autos de inventário deverão prosseguir os seus termos, assinaladamente para que se convide o interessado BB a alegar factos atinentes à dívida por si invocada contra a herança ou para outros efeitos que o senhor juiz de 1.ª instância tenha como adequados. Impõe-se, em conformidade, julgar a apelação procedente. * V - DispositivoNos termos sobreditos, acorda-se em revogar a decisão recorrida que julgou reconhecida a verba n.º 16, anulando-se os atos subsequentes dependentes desta decisão, devendo os autos prosseguir nos termos assinalados. * As custas serão suportadas pela recorrente, atenta a não oposição do interessado BB, e por ser quem da apelação pode retirar proveito (art.º 527.º/1/2 do C.P.C.).* Porto, 17-6-2024Teresa Fonseca Anabela Morais Fernanda Almeida |