Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2879/23.9T8AVR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA
Descritores: EMBARGO DE OBRA NOVA
FORMULAÇÃO DO PEDIDO
Nº do Documento: RP202406202879/23.9T8AVR.P1
Data do Acordão: 06/20/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMAÇÃO
Indicações Eventuais: 3. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O procedimento cautelar de embargo de obra nova requer a ofensa de um dos direitos enumerados no n.º 1 do art.º 397.º do CPC, não podendo ser usado para a defesa de direitos de personalidade ou de direitos reais de garantia ou de aquisição, como o direito de preferência legal.
II - A execução dos alicerces e fundações de uma obra num prédio, ainda que vá até ao limite deste, é um acto lícito; o que é ilícito é a retirada do apoio necessário para evitar desmoronamentos ou deslocações de terra no prédio vizinho.
III - O requerente do procedimento cautelar não pode formular um pedido genérico ou inespecífico, nem o pedido de uma providência a definir pelo tribunal, e tem sempre de terminar o requerimento inicial com a formulação expressa do pedido de uma providência concreta.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: RECURSO DE APELAÇÃO
ECLI:PT:TRP:2024:2879.23.9T8AVR.P1


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SUMÁRIO:
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ACORDAM OS JUÍZES DA 3.ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:




I. Relatório:
AA, contribuinte fiscal n.º ...54, residente na Rua ..., ..., instaurou procedimento cautelar de embargos de obra nova contra BB, contribuinte fiscal n.º ...07, residente da Rua ..., Aveiro, pedindo o embargo da obra que a requerida anda a executar no terreno confinante com a habitação da requerente ou qualquer outra providência conservatória ou antecipatória que o tribunal considere concretamente adequada e/ou mais eficaz a assegurar a efectividade dos direitos ameaçados.
Para o efeito alegou que a requerida adquiriu o terreno confinante com a habitação da requerente e começou a construir nele um prédio urbano, não respeitando as regras estabelecidas para o licenciamento camarário, retirando as vistas do logradouro e das varandas do alçado posterior do prédio da requerente, sendo que a obra não assenta em quaisquer critérios de composição de desenho arquitectónico, viola as condições de salubridade da propriedade da requerente, tapando a luminosidade dos blocos/tijolos de vidros instalados na fachada sul da moradia da requerente, as suas fundações ameaçam a sustentação e a estabilidade da habitação da requerente.
A requerida foi citada e apresentou oposição, impugnando os factos alegados e defendendo a improcedência do procedimento, alegando, para o efeito, que a obra se iniciou há mais de 4 meses pelo que está há muito ultrapassado o prazo do artigo 397º, n.º 1, do Código de Processo Civil, que a requerente não imputa à requerida quaisquer factos ilícitos que violem um qualquer seu direito.
Após a instrução da causa, foi proferida sentença, tendo o procedimento sido julgado improcedente e o decretamento da providência cautelar indeferido.
Do assim decidido, a requerente interpôs recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
I. Quanto ao segmento decisório do douto despacho recorrido que tem por objecto a impugnação da matéria de facto:
1. O presente recurso de apelação tem por objecto, por um lado, a reapreciação de alguns aspectos da matéria de facto, considerada indiciariamente não provada pelo Tribunal a quo, e por outro, a reformulação e reapreciação do direito aplicável.
2. Com o mais elevado respeito, a Recorrente não se pode conformar com a decisão proferida pelo Tribunal, porquanto aquele interpretou de forma manifestamente incorrecta e incoerente a prova produzida nos autos.
3. A respeito dos factos dados como indiciariamente não provados, considerou erroneamente a douta decisão recorrida como não provada a factualidade constante das alíneas f), g), h) e j).
4. No que concerne à matéria fáctica vertida na alínea f) indiciariamente dada como não provada, o Tribunal a quo não deu como provado que: f) A obra retire as vistas do logradouro e das varandas do alçado posterior do prédio da ora recorrente.”
5. Sucede que o Tribunal Recorrido andou mal ao concluir que a construção não afecta o direito de vistas do logradouro e varandas da habitação da ora recorrente.
6. Do próprio material probatório produzido pelo Tribunal a quo, nomeadamente dos fotogramas capturados aquando da inspecção ao local da obra em particular as imagens reproduzidas nas páginas 6, 7 e 8 do documento intitulado “folha”, junto aos autos sob a referência Citius n.º 131093066 (de 17.01.2024) e do teor dos depoimentos prestados pelas testemunhas CC e DD, é possível verificar que a construção da recorrida tapa efectivamente as vistas da apelante no piso térreo e do 1º piso, uma vez que a obra edificada se prolonga em altura e em toda a extensão - ao longo de 3,31metros - no terreno situado a sul do da Recorrente.
7. Neste segmento da decisão fáctica o Tribunal a quo revela, incompreensivelmente, uma total desatenção sobre o conteúdo da prova que o próprio carreou para os autos.
8. Em face dos identificados meios probatórios, a decisão que recaiu sobre a referida alínea f) dos factos indiciariamente não provados, ser alterada e, em consequência, ser a referida factualidade declarada como provada nos seguintes termos: “f) A obra retira as vistas do logradouro e das varandas do alçado posterior do prédio da ora recorrente.”.
9. A respeito da factualidade vertida na alínea g) dos factos indiciariamente não provados, entendeu o Tribunal Recorrido dar como não provado que “g) A obra coloque a descoberto as fundações da casa da requerente”.
10. Neste ponto particular da decisão fáctica o Tribunal a quo andou mal, pois, “hipervalorizou” os depoimentos das testemunhas EE e FF, em detrimento dos prestado pela testemunha DD, pessoa com experiência ligada à actividade da construção cível que prestou um depoimento espontâneo, coerente e credível, sendo merecedor valoração probatória.
11. Inversamente ao decidido pelo Tribunal Recorrido, das imagens reproduzidas no documento n.º 10 junto com o requerimento inicial e dos registos fotográficos capturados pelo próprio Tribunal a quo é perceptível: a extensão dos trabalhos de escavação que incidiram sobre as fundações da habitação da apelante (e que, segundo até mesmo as regras da experiência, são susceptíveis de afectar a sua estabilidade estrutural) e as fissuras que a mesma apresenta no alçado/parede virada a Sul.
12. Em face da referida prova testemunhal e do acervo documental produzido pelo próprio Tribunal a quo deverá a alínea g) dos factos indiciariamente não provados, ser alterada e, em consequência, ser a referida factualidade declarada como provada nos seguintes termos: “g) A obra colocou a descoberto as fundações da casa da requerente.”.
13. No que concerne à factualidade vertida na alínea h) dos factos não provados, entendeu o Tribunal Recorrido dar como não provado que “A obra da requerida não assente em quaisquer critérios de composição básicos de desenho arquitectónico, faltando-lhe equilíbrio, ritmo, harmonia e proporção, possuindo uma concepção arquitectónica excêntrica e ostensiva.”
14. Sucede que do teor dos depoimentos prestados pelas testemunhas DD e CC resulta efectivamente demonstrado que a obra executada pela apelada é arquitectonicamente desequilibrada, desarmoniosa, desproporcional, excêntrica e ostensiva.
15. A resposta positiva que o Tribunal ad quem deve dar sobre a referida factualidade facilmente se alcança, quer dos depoimentos prestados pelas testemunhas DD e CC, quer do teor dos fotogramas que o próprio Tribunal a quo capturou aquando da inspecção ao local da obra suspendenda por meio dos quais é possível constatar, à vista desarmada, que a construção é em si reveladora de uma total falta de equilíbrio e desproporção urbanística relativamente à toda a envolvente urbanística e à própria tipologia de imóveis edificados do lugar em questão.
16. Assim, deverá a alínea h) dos factos não provados, ser alterada e, em consequência, ser a referida factualidade declarada como provada nos seguintes termos: “h) A obra da Requerida não assenta em quaisquer critérios de composição básicos de desenho arquitectónico, faltando-lhe equilíbrio, ritmo, harmonia e proporção, possuindo uma concepção arquitectónica excêntrica e ostensiva”.
17. Por último, no que respeita à factualidade vertida na alínea j) dos factos indiciariamente não provados, entendeu o Tribunal Recorrido dar como não provado que “A construção da requerida privará o lado sul da habitação da recorrente da exposição normal e prolongada aos raios solares, onde se situam quartos de dormir dessa habitação.”.
18. Sucede que do teor do depoimento das testemunhas DD e CC (pessoa que, há longos anos, tem prestado serviços de jardinagem a favor da recorrente, sendo perfeito conhecedor do seu imóvel) resulta demonstrado que a construção da apelada efectivamente obstrói a exposição solar que era normal sobre ela incidir.
19. Consequentemente, deverá a decisão que recaiu sobre este ponto, que ora se impugna, deve ser alterada ser substituída por outra que, eliminando-o dos “factos não provados”, considere o identificado na alínea j) como provado, nos seguintes termos: “j) A construção da requerida privará o lado sul da habitação da recorrente da exposição normal e prolongada aos raios solares, onde se situam quartos de dormir dessa habitação.”.
II. Quanto ao erro de julgamento localizado no segmento da decisão de direito recorrida de não verificação dos pressupostos do decretamento do embargo.
20. A douta sentença recorrida é nula e, tal nulidade, que expressamente se argui, corporiza-se na circunstância de o Tribunal a quo ter decidido, com total desacerto, pela não verificação dos pressupostos do decretamento do embargo de obra nova.
21. Salvo o devido respeito, que é elevado, o Tribunal recorrido abordou erradamente a questão vertida nos presentes autos com ligeireza de raciocínio e, pior do que isso, decidiu mal.
22. Em face à matéria de facto dada por indiciariamente provada e atenta aquela que deve ser considerada provada no provimento deste recurso, na sua vertente que tem por objecto a impugnação e ampliação da matéria de facto, torna-se patente que o Tribunal a quo errou em larga medida.
23. Assim, e tendo em consideração a factualidade acima descrita não pode a recorrente conformar-se com o decidido pela primeira instância no tocante à não demonstração dos requisitos do decretamento da providência de embargo de obra nova e ao afastamento da tutela cautelar do direito de preferência invocado e indiciariamente demonstrado pela apelante, o que o levou a cometer o maior dos antagonismos decidindo pela improcedência do presente procedimento cautelar.
24. Considerando-se, em face da reapreciação da matéria de facto, como indiciariamente provado o que consta nos pontos f), g), h) e j) dos factos da douta sentença ora impugnada, impõe-se a reformulação e reapreciação do direito aplicável.
25. No caso sub judice, estamos perante a efectiva violação do direito de propriedade da apelante em consequência da construção ilegalmente levada a cabo pela recorrida.
26. O Tribunal ad quem deverá dar o seu apoio à melhor doutrina segunda a qual toda e qualquer a ofensa do direito de propriedade (ou qualquer outro direito real ou pessoal de gozo ou na sua posse) importa, por si, um dano jurídico justificativo do embargo – cf. nesse sentido, Moitinho de Almeida, in Embargo ou Nunciação de Obra Nova, 2ª ed., pág. 31.
27. No caso sub judice, afigura-se, sempre em termos de aparência do direito (juízo de verosimilhança ou de forte probabilidade), que a apelante provou a factualidade integradora do seu direito de propriedade, bem como o início de uma obra que lhe causa prejuízo.
28. O perigo para as fundações do prédio da recorrente consubstancia para a parede do lado sul (coincidente com a empena) o contínuo surgimento de patologias passíveis de comprometerem e/ou fragilizarem a estrutura do edifício, nomeadamente fendas e demais alterações estruturais no interior das fracções do edifício que comprometem a sua estabilidade, como supra se alegou.
29. Nem se diga que o facto de o projecto arquitectónico ter sido aprovado pelas entidades competentes (para efeitos de emissão de licença de construção) pode significar, só por si, que os critérios morfológicos e estéticos de uma construção tenham sido cumpridos, pois um acto administrativo / processo administrativo de obras particulares, não tem o condão, muito menos o alcance de branquear uma actuação ilícita de um qualquer particular na sua relação com outros particulares.
30. Em face da reapreciação da matéria de facto, dando-se como indiciariamente provado o que consta nos pontos f), g), h) e j) dos factos da douta sentença ora impugnada, ou seja, que a obra da recorrida viola, ostensivamente as condições de salubridade da propriedade contígua da ora recorrente.
31. Deverá, assim, o Venerando Tribunal da Relação do Porto dar como indiciariamente provado que a construção da apelada recorrida privará o lado sul da habitação da recorrente da exposição normal e prolongada aos raios solares, onde se situam quartos de dormir dessa habitação e a continuidade das obras de construção fará com que, no futuro, a exposição aos raios solares e o nível de luminosidade com que a residência da requerente fica não garanta minimamente a sua qualidade de vida, no que respeita à violação dos seus direitos de personalidade, em especial o seu direito à saúde.
32. Concluindo-se que a diminuição dessas condições, que da construção da apelada lhes resulta, deve ser considerada como uma consequência anormal e desnecessária da transformação do prédio vizinho da ora apelante.
33. A obra da apelada também acarreta a violação dos direitos de personalidade da recorrente.
34. Existe um direito a um nível de luminosidade conveniente à saúde, bem-estar e conforto na habitação dos autores, direito da apelante que se encontra patentemente violado pela construção da recorrida.
35. Assiste, por isso, à recorrente o direito de fazer cessar as causas de violação ao seu direito e pleno gozo e fruição do seu prédio, ou seja, de obter “a demolição do edifício construído ilícita e lesivamente ao direito de fruição do lesado (proprietário do prédio vizinho)” - cf. artigos 483º, 562º, 564º e 466º, todos do Código Civil e Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 17.01.1991, in Colectânea de Jurisprudência, 1991, Vol. I, pág. 127.
36. Em suma, a implantação da obra descrita ofende o direito de propriedade da apelante, e também a sua posse e prejudica-a gravemente, desde logo porque ameaça a sustentação e a estabilidade da sua habitação.
37. E prejudica-a gravemente, desde logo porque ameaça a sustentação e a estabilidade da sua habitação, para além de violar o direito de vistas da apelante, na medida em que a sua continuação conduzirá à perda total das vistas do seu logradouro.
38. O emprego dos presentes embargos para o fim útil de suspender a obra está, salvo melhor opinião, legalmente justificado uma vez que o prejuízo concreto da apelante pode ainda ser aumentado com a prossecução da obra, pelo que urge o mesmo ser eliminado com a sua suspensão, relativamente à afectação e integridade das paredes e demais partes componentes da moradia da ora recorrente.
39. Em face da matéria factual dada por provada e atenta aquela que deve ser considerada indiciariamente provada no provimento deste recurso, na sua vertente que tem por objecto a impugnação e ampliação da matéria de facto, deverá o Venerando Tribunal Portuense sanar o aleijão da sentença a quo concluindo pela decretamento do embargo de obra nova peticionada no requerimento inicial por se mostrarem verificados os seus pressupostos legais.
40. Quanto à questão do direito de preferência que a apelante detém relativamente ao prédio adquirido pela recorrida, entendemos que a decisão posta em crise incorreu num outro erro de julgamento, que consiste em ter violado o regime do direito legal de preferência do artigo 26º do D.L. n.º 73/2009 de 31 de Maio, que aprova o Regime Jurídico da Reserva Agrícola Nacional.
41. A douta sentença posta em crise refere, erroneamente, que a tutela dos eventuais direitos de preferência da requerente, não cabem no âmbito de protecção deste procedimento cautelar, quando na verdade abundam dezenas de arestos dos Tribunais Superiores a acautelar tal protecção.
42. Com o mais elevado respeito, consideramos que é do fim a atingir com a medida cautelar que se parte para a avaliação da oportunidade e adequação da providência em concreto requerida e sob escrutínio do Tribunal na base do requerimento inicial da providência, e não o contrário.
43. Ora, em face dos factos dados como indiciariamente provados, é forçoso concluir que a obra da apelada põe em causa o exercício do direito de preferência da ora recorrente.
44. Não pode ser negada à apelante a providência por si requerida - ou qualquer outra providência conservatória ou antecipatória formulada pelo próprio Tribunal e que este considere concretamente adequada e/ou mais eficaz a assegurar a efectividade dos direitos ameaçados, sob pena de se ofender a garantia constitucional da tutela jurisdicional efectiva – cf. artigo 5.º n.º 3, e nos artigos 362.º n.º 1, 376.º n.º 3, todos do Código de Processo Civil.
45. No caso em apreço, e em face da matéria de facto que da reapreciação da prova deverá ser considerada indiciariamente provada, deverá o Tribunal ad quem julgar verificados os pressupostos previstos no artigo 362º do Código de Processo Civil para que a providência cautelar de suspensão da obra sub judice seja decretada.
46. Tendo em conta que a apelante radica a sua pretensão cautelar no direito legal de preferência consagrado no artigo 26.º do Decreto-Lei n.º 73/2009 de 31 de Maio – Regime Jurídico da Reserva Agrícola Nacional, e tendo resultado indiciariamente provado que o seu terreno se insere em área classificada pelo instrumento de gestão territorial do município de Ílhavo, andou mal o Tribunal da Primeira Instância ao ter decidido pela sua exclusão do âmbito de protecção da citada norma.
47. No caso concreto, estando os prédios da recorrente e recorrida parcialmente integrados na RAN, é irrelevante a classificação registal ou matricial para a determinação da sua situação jurídica, pois, a afectação à RAN é imperativa.
48. Os terrenos/ solos das áreas submetidas ao regime da RAN devem ser, em princípio, exclusivamente afectos à agricultura, sendo proibidas todas as acções que lhes diminuam as suas potencialidades agrícolas.
49. Se assim não fosse, estaria encontrada a fórmula mágica de ultrapassar as fortes restrições impostas aos proprietários pelo regime imperativo da RAN – bastaria inscrever o prédio na matriz, e proceder ao seu registo predial, como urbano para que o mesmo pudesse ser livremente utilizado para outro fim, ou livremente transaccionado em clara violação do disposto nas regras imperativas do D.L. n.º 73/2009, de 31 de Março.
50. Em relação ao requisito do fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável do direito da recorrente entendemos que foram alegados provados factos constitutivos do mesmo, pois o que também está em causa é assegurar o futuro exercício do seu direito legal de preferência.
51. A demora - inevitável - na resolução definitiva do presente litígio comportará perigo para o direito da apelante e esse perigo a concretizar-se, é de caracterizar, em relação ao direito, como lesão grave e de difícil reparação.
52. Como resulta da factualidade que o próprio Tribunal a quo considerou para decidir erradamente pela improcedência dos presentes autos, a obra de que a recorrida é dona e que está a ser empreendida, impossibilita o exercício pela apelante do seu direito legal de preferente consagrado no artigo 26º do Regime Jurídico da Reserva Agrícola Nacional.
53. Com efeito, foi indiciariamente provado que o prédio onde a construção se desenrola foi adquirido pela apelada sob a forma de um prédio rústico – como, de facto, assim o era – como se alcança das declarações negociais vertidas na escritura pública junta com o requerimento Inicial sob o doc. n.º 6.
54. Inversamente à actual composição da descrição constante do registo predial, resulta indiciariamente provado que a recorrida adquiriu não um prédio urbano, mas sim um prédio rústico, composto de terreno de cultura.
55. Foi indiciariamente provado nos autos apelados que o identificado prédio se encontrava inscrito na matriz predial rústica sob um artigo (210) da Freguesia ..., tendo o mesmo provindo de um anterior artigo (491) mesma matriz rústica da sobredita freguesia.
56. É forçoso, assim, concluir que o averbamento que a apelada requereu em 23.08.2022 pela “AP ...42” foi um autêntico acto de “xico-espertismo” consubstanciado na alteração da natureza rústica do prédio para urbana.
57. A recorrida adquiriu, efectivamente, um terreno de cultura e quis, entretanto, travesti-lo de terreno para construção, bem sabendo que ao fazê-lo estaria a violar o direito de preferência da ora apelante, como proprietária confinante, como efectivamente violou.
58. O prédio da ora recorrente possui, de facto, natureza mista, sendo composto por casa de habitação com a área de implantação de 116m2, a par de um terreno agrícola situado na parte traseira com a área total de 1.144 m2.
59. O solo do prédio da recorrente, ora apelante integra uma área que, de acordo com a classificação do PDM – Plano Director Municipal de Ílhavo, está inserida na Reserva Agrícola Nacional – cf. doc n.º 11, junto com o requerimento inicial.
60. A ora apelante goza de direito de preferência na alienação do prédio rústico supra identificado por ser proprietária de prédio misto confinante e ambos os prédios estão inseridos em área da Reserva Agrícola Nacional.
61. É séria a probabilidade da existência do direito da recorrente, ora recorrente, tendo esta o fundado receio de que, não sendo a obra imediatamente suspensa, e atendendo à velocidade com que está a ser desenvolvida, o seu exercício lhe venha a ser dificultado pela recorrida, assim lhe causando lesão grave ou de difícil reparação.
62. In casu, está suficientemente indiciado o receio da apelante de que o seu direito continuará a ser violado pela recorrida.
63. A supra acção da recorrida configura uma lesão grave, pois atinge o conteúdo essencial da servidão de passagem, que é o direito de passar pelo caminho em questão.
64. Além disso, configura lesão dificilmente reparável, pois, se não for assegurado à apelante o direito legal de preferência até à decisão final da causa, o que sucederá é que, quando esta for proferida, o mais que ela pode aspirar, no caso de ela lhes ser favorável, é uma indemnização dos prejuízos causados pela violação do seu direito.
65. A indemnização reparará ou compensará os prejuízos emergentes de tal violação, mas nem ela nem o reconhecimento do direito, na decisão final, tornarão efectivo o direito de a recorrente de se tornar dona e legítima possuidora do terreno (adquirido e travestido, de modo ardiloso, no registo predial e matricial pela recorrida) sem que o mesmo continue a ser invadido de novas construções, enquanto aguarda pela decisão final.
66. Só depois do trânsito em julgado da decisão final – na hipótese de ela vir a ser favorável à apelante (como o será!) - e de ela ser cumprida voluntária ou coercivamente pela recorrida – é que o direito se tornará efectivo.
67. Em face da violação do seu direito, assiste à apelante a faculdade de requerer a providência adequada a assegurar a efectividade de tal direito.
68. Como decorre das regras da experiência comum, o prosseguimento da obra poderá dificultar o exercício do direito da recorrente, isto porque, atingindo a requerida, ilicitamente, a sua conclusão, e ocupando o imóvel para o fim a que se destina – a habitação – tal habilitará aquela a invocar em sua defesa, no confronto com a recorrente, outros direitos que hoje não existem.
69. Pelo exposto, deverá o Venerando Tribunal da Relação do Porto considerar suficientemente fundado o receio que a apelante requerentes de o seu direito legal de preferência ser lesado grave e dificilmente reparável.
Termos em que, com o douto suprimento de Vossas Excelências, Venerandos Juízes Desembargadores, deve o segmento da decisão recorrida que foi objecto da impugnação quanto à matéria de facto ser provido e determinada a sua modificação e ampliação nos termos propugnados nestas alegações. e, por consequência de tal modificação, deve ser concedido provimento ao recurso, com as legais consequências, deve ser concedido provimento à presente apelação, como é de Justiça!
A recorrida não respondeu a estas alegações.
Após os vistos legais, cumpre decidir.


II. Questões a decidir:

As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida as seguintes questões:
i. Se a decisão recorrida é nula.
ii. Se deve ser modificada a fundamentação de facto.
iii. Se estão preenchidos os pressupostos do decretamento dos embargos de obra nova.
iv. Se a requerente podia pedir e o tribunal decretar a providência genérica pedida: «a providência que o tribunal considere adequada ou necessária».


III. Nulidade da decisão recorrida:

A recorrente afirma na conclusão 20ª que a sentença recorrida «é nula e, tal nulidade, que expressamente se argui, corporiza-se na circunstância de o Tribunal a quo ter decidido, com total desacerto, pela não verificação dos pressupostos do decretamento do embargo de obra nova».
Salvo o devido respeito, que é elevado, trata-se de uma afirmação totalmente inútil e incorrecta do ponto de vista jurídico.
Inútil porque se o que está em causa é o erro da decisão, ao recorrente basta defender que a decisão deve ser revogada ou modificada para poder alcançar esse objectivo, não servindo a arguição de nulidade para absolutamente nada porque a Relação substituir-se-á ao tribunal recorrido proferindo a nova decisão (artigo 665.º do Código de Processo Civil).
Incorrecta porque é totalmente pacífico que as causas de nulidade da sentença são as previstas no artigo 615.º do Código de Processo Civil onde não se inclui o erro da decisão, aspecto que se relaciona com o seu mérito, não com aspectos formais do seu conteúdo (se está assinada, se conheceu apenas e de todas as questões de que devia conhecer, etc.).
A arguição de nulidade improcede, pois, sem necessidade de mais qualquer justificação.


IV. Impugnação da decisão sobre a matéria de facto:

A recorrente impugnou a decisão de julgar não provados quatro factos - alíneas f), g), h) e j) - que defende deverem ser julgados provados.
Mostram-se cumpridos de modo satisfatório os requisitos específicos desta impugnação, consagrados no artigo 640.º do Código de Processo Civil, nada obstando à apreciação da mesma.
Na alínea f) afirmava-se que «a obra retira as vistas do logradouro e das varandas do alçado posterior do prédio da ora requerente».
Vendo as fotografias do local tiradas na inspecção ao local realizada pelo tribunal no decurso da audiência, pode afirmar-se que a implantação do prédio da requerida e mais propriamente o seu corpo mais a poente diminui o campo de observação para sul de que se dispunha a partir da fachada poente do prédio da requerente, onde esta tem uma varanda e uma marquise.
Por conseguinte, salvo melhor opinião, deve efectivamente julgar-se indiciariamente provado, não o que consta da alínea f) mas o facto referido e cuja redacção é a seguinte:
«O corpo do prédio da requerida situado mais a poente diminui o campo de observação para sul de que se dispunha a partir do alçado poente do prédio da requerente, onde esta tem uma varanda e uma marquise.»
Na alínea g) afirma-se que «a obra coloca a descoberto as fundações da casa da requerente». A alínea só diz isso, não diz que por via da colocação a descoberto as fundações da casa da requerente tenham sido afectadas, colocadas em risco ou desprotegidas.
É das regras da experiência que a construção de uma casa num terreno que confina com outro terreno no qual já se encontra construída outra casa é feita com implantação de ambas as casas na estrema do respectivo terreno. Isso ocorre sobretudo quando, como aqui sucede, os terrenos têm uma largura muito pequena que obriga as casas a terem igualmente pouca largura e a prolongarem-se pelo terreno dentro, ao comprido.
É por isso perfeitamente natural que as fundações da nova casa sejam implantadas mesmo ao lado das fundações da casa vizinha e que no decurso da abertura das valas para execução dos alicerces das fundações seja necessário retirar terra deixando à vista o subsolo de ambos os prédios e, portanto, também os alicerces do prédio do lado. Esse facto observa-se claramente nas duas últimas fotografias juntas com o requerimento inicial e, por isso mesmo, tenham as testemunhas dito o que que quer que seja, não podia deixar de ser julgado provado, uma vez que a fotografia documenta seguramente o local e as obras ali executadas, as quais só podem ser as motivam o procedimento.
Por conseguinte, adita-se à fundamentação de facto o seguinte ponto:
«Na execução dos alicerces para as fundações da casa da requerida, houve momento em que as fundações da casa da requerente chegaram a estar destapadas pela terra do prédio da requerida.»
A alínea h) afirma que «a obra da requerida não assenta em quaisquer critérios de composição básicos de desenho arquitectónico, faltando-lhe equilíbrio, ritmo, harmonia e proporção, possuindo uma concepção arquitectónica excêntrica e ostensiva».
Não há como deixar de referir o absurdo que constitui esta alegação. A mesma não encerra qualquer facto, apenas um juízo opinativo de natureza estética, profundamente subjectivo e questionável, atenta a circunstância de a casa da requerida possuir uma licença de construção para obtenção da qual deve ter sido apresentado um projecto de arquitectura. Não é, portanto, um facto; é apenas uma opinião assente em critérios não factuais, mas estéticos, de gosto pessoal.
Mais absurdo ainda é a requerente pretender fazer a prova disso com recurso a duas testemunhas que não possuem qualquer habilitação pessoal, académica ou profissional que as tenha dotado do apurado grau de sensibilidade e sentido do belo da requerente que parece presidir a esta alegação, e, sobretudo, do grau que devesse ser acolhido pelo tribunal como o ... critério a aceitar, em vez do critério do arquitecto, do dono da obra (que é livre, como a requerente, de construir o mamarracho que entender) ou da Câmara Municipal cujos técnicos deverão zelar pela observância dos critérios a que deverão obedecer as construções urbanas e que (infelizmente, é verdade) são os únicos que administrativamente podem condicionar as escolhas dos proprietários e dos arquitectos que escolhem.
A alínea h), que não sendo um facto, nem sequer devia constar do elenco dos «factos» não provados, manter-se-á afastada da fundamentação «de facto».
Por fim, temos a alínea j) onde se afirma que «a construção da requerida privará o lado Sul da habitação da requerente da exposição normal e prolongada aos raios solares, onde se situam quartos de dormir dessa habitação».
Em função do que as fotografias do local nos revelam, não se compreende que este facto tenha sido integralmente julgado não provado, da mesma forma que não se aceita que possa ser julgado inteiramente provado ou provado com a extensão e significado que a requerente lhe quer atribuir.
No seu lado sul a casa da requerente confinava com um terreno sem qualquer construção ou objecto acima do nível do solo. Por isso, a fachada sul daquela casa dispunha de total exposição ao sol desse lado uma vez que depois do terreno encontra-se uma Rua e só depois desta está construída outra casa.
É assim forçoso concluir que se ao lado da casa da requerente, encostada a esta, vai ser implantada outra casa, essa implantação não pode deixar de determinar a redução daquela exposição solar na medida em que a casa da requerida se vai interpor entre a casa preexistente e os raios de sol provenientes desse lado e orientação.
Trata-se de algo incontornável e indesmentível, independentemente de saber qual o seu relevo jurídico. Por isso, adita-se à fundamentação de facto o seguinte ponto:
«A construção da obra vai reduzir a exposição solar de que beneficiava o prédio da requerente pelo lado sul, na medida em que o volume da obra se interpõe entre aquele prédio e os raios de sol vindos desse lado».


V. Fundamentação de facto:
Encontram-se julgados provados em definitivo os seguintes factos:
1. A recorrente é dona de um prédio urbano composto de casa de rés-do-chão e primeiro andar, destinado a habitação, com a área total de 1.260 m2, sito na Rua ..., ... ..., concelho de Ílhavo, inscrito na matriz predial da referida freguesia sob o artigo ...78 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Ílhavo sob o n.º ...01.
2. Encontrando-se a aquisição a favor da ora impetrante ali registada pela inscrição G- AP. ... de 2008/02/01.
3. Este imóvel foi adquirido pela ora recorrente por compra a GG e mulher HH por escritura pública outorgada a 01 de Fevereiro de 2008, lavrada a fls. 99 a 100 do Livro ...1-F do Cartório Notarial a cargo da Notária II.
4. O prédio em questão confronta do Norte com terceiro, do Sul com a requerida BB, do Nascente e Poente com caminho público.
5. O lote de terreno é rectangular, terminando a poente em forma de triângulo, com o vértice voltado para o exterior.
6. A recorrente, por si e seus ante possuidores, utiliza o prédio em causa para sua habitação própria permanente, há mais de 20 anos, sem a oposição de quem quer que seja, de forma ininterrupta, à vista de todas pessoas, na convicção de ser a sua proprietária.
7. A requerida é proprietária de um prédio urbano sito na Rua ..., da Freguesia ..., concelho de Ílhavo, inscrito na matriz predial urbana com o n.º ...83 da Freguesia ... extinta, descrito na Conservatória do Registo Predial de Aveiro sob o n.º ...75.
8. Tal prédio proveio do prédio inscrito na matriz predial rústica com o art. ...10 que por sua vez é proveniente do artigo rústico ...91.
9.Foi adquirido pela requerida, ainda como prédio rústico, composto por terreno de cultura, por meio de compra celebrada por escritura pública, em 09/06/2021.
10. Constando da actual inscrição matricial do prédio as seguintes confrontações: do Norte: JJ, do Sul, Nascente e Poente: caminho e a área total de 1.180 metros quadrados.
11. Estando registada a aquisição a favor da requerida na referida Conservatória do Registo Predial pela inscrição “AP ...62 de 2021/06/09”.
12. A respectiva descrição foi actualizada, já depois de celebrada a escritura referida em 9, através de um requerimento dirigido à Conservatória de Registo Predial de Vagos na qual a requerida declarou que: “a área total de 540 m2 constante na descrição predial não corresponde à área total. A área verdadeira é e sempre foi de 1180 m2 e a qual foi actualizada na matriz actual, devendo-se o lapso a mero erro de medição aquando da organização das matrizes. Tal prédio nunca sofreu qualquer alteração na sua configuração. Assim requer-se que a descrição seja actualizada quanto à área nos termos do art. 28º C e que passe a constar a área total de 1180 m2. Mais requer que o prédio actualmente passe a ter a seguinte composição: - Urbano, terreno destinado a construção urbana, sito na Rua ..., Freguesia ..., concelho de Ílhavo, composto de terreno destinado a construção urbana com a área de 1180 m2 a confrontar do Norte com JJ, do Sul, Nascente e Poente com caminho, artigo urbano ...83.
13. A requerente não foi notificada deste requerimento.
14. A [por lapso não se diz, mas quer dizer-se requerente] apercebeu-se que sobre aquele terreno da requerida estava a ser iniciada a implantação de uma obra, em finais de Abril, princípios de Maio, mais precisamente, a terraplanagem do terreno tendo em vista a execução de fundações.
15. Nessa altura, no local da obra estavam vários trabalhadores, sendo visíveis materiais de construção e uma retroescavadora e equipamentos diversos de construção civil.
16. Nos três ou quatro primeiros dias de obra não esteva afixado qualquer aviso de obra.
17. A recorrente tentou indagar junto dos trabalhadores sobre o tipo de obra que ali iria ser empreendida, sendo que nenhuma resposta concreta lhe foi dada.
18. A recorrente verificou, entretanto, em data não concretamente apurada, que iria ser implantada sobre a estrema comum aos dois prédios (do lado Sul) a construção de um prédio destinado a habitação, mais concretamente, uma moradia de rés-do-chão e primeiro andar, paralelamente em relação àquela estrema.
19. A nova construção tem um comprimento de 33,66 m desde o seu ponto mais a nascente até ao seu ponto mais a poente.
20. O prédio da ora recorrente é composto por casa de habitação com a área de implantação de 116m2 e com área descoberta de 1.144 m2.
21. O solo do prédio da recorrente integra uma área que, de acordo com a classificação do PDM – Plano Director Municipal de Ílhavo, está inserida na Reserva Agrícola Nacional.
22. A recorrente desenvolve no seu prédio plantações diversas.
23. O prédio da Requerida insere-se, igualmente, na referida Reserva Agrícola Nacional.
24. A obra da requerida respeita o projecto aprovado pela Câmara Municipal de Ílhavo.
25. O corpo do prédio da requerida situado mais a poente diminui o campo de observação para sul de que se dispunha a partir do alçado poente do prédio da requerente, onde esta tem uma varanda e uma marquise.
26. Na execução dos alicerces para as fundações da casa da requerida, houve momento em que as fundações da casa da requerente chegaram a estar destapadas pela terra do prédio da requerida.
27. A construção da obra vai reduzir a exposição solar de que beneficiava o prédio da requerente pelo lado sul, na medida em que o volume da obra se interpõe entre aquele prédio e os raios de sol vindos desse lado.


VI. Matéria de Direito:
A requerente instaurou contra a requerida um procedimento cautelar nominado de embargo de obra nova, mas, a final, deduziu o pedido de decretamento da providência cautelar de embargo da obra ou, subsidiariamente, «qualquer outra providência conservatória ou antecipatória que o tribunal considere concretamente adequada e/ou mais eficaz a assegurar a efectividade dos direitos ameaçados» (sic).
O embargo de obra nova é uma providência cautelar preventiva ou conservatória e inibitória, cujo objecto é a proibição de algo a alguém, melhor dizendo, a imposição da suspensão de uma obra, de um trabalho ou de um serviço.
O seu objectivo é impedir a violação ou a continuação da violação do direito de propriedade, de outro direito real ou pessoal de gozo ou da posse, que advenham da execução da obra, trabalho ou serviço novo e cuja execução cause ou ameace causar prejuízo ao seu titular, de forma garantir a estabilização da situação de facto até que o direito seja declarado e reconhecido e evitar danos ou o agravamento dos danos.
Nos termos do artigo 397º do Código de Processo Civil, tal pode ser obtido por duas vias: o embargo judicial (procedimento cautelar instaurado no tribunal) ou o embargo extrajudicial (em que o interessado realiza ele mesmo o embargo, intimando verbalmente, perante duas testemunhas, o dono da obra, ou, na sua falta, o encarregado ou quem o substituir, para que este a não continue, ficando a sua subsistência dependente de posterior ratificação judicial).
O decretamento da providência depende da alegação e prova (ainda que sumária ou perfunctória, como é norma nos procedimentos cautelares) de factos que revelem: (i) a ofensa do direito de propriedade, singular ou comum, de qualquer outro direito real (direito de usufruto, direito de uso e habitação, direito de superfície, servidões prediais) ou pessoal de gozo (locação, arrendamento, comodato, depósito) ou da posse do requerente; (ii) que a ofensa seja resultado da execução de uma obra, trabalho ou serviço novo e ainda não concluído; (iii) que estes causem ou ameacem causar prejuízo.
Como se vê, o procedimento cautelar de embargo de obra nova requer a ofensa de um dos direitos enumerados no n.º 1 do artigo 397.º do Código de Processo Civil. Por esse motivo, tal como não pode ser requerido com fundamento por exemplo na ofensa a direitos subjectivos absolutos ou de personalidade (v.g. direito à saúde ou à privacidade, defensáveis pela via do procedimento cautelar comum), também não pode ser instaurado para a defesa de direitos reais de aquisição ou de garantia.
Daí decorre de imediato que este procedimento cautelar não pode ter por fundamento a defesa, por exemplo, do direito de preferência legal que tem a natureza apenas de direito real de aquisição, não de gozo, e que no caso constitui um dos fundamentos do pedido da requerente.
Vejamos agora em concreto se os factos provados permitem afirmar a ofensa do direito de propriedade da requerente ou de qualquer outro direito real de gozo.
A resposta deve ser, cremos, negativa.
Não há na matéria de facto nenhum facto que evidencie que as obras ofendem ou há o risco de ofenderem o direito de propriedade da requerente. No nosso sistema jurídico, o direito de propriedade não tem conteúdo ou amplitude que permitam ao proprietário, só por virtude da titularidade desse direito, impedir que os prédios confinantes sejam usados de um modo que ele não deseja ou até, como aqui parece pretender-se, que não sejam usados ... como ele usa o seu. Logo, a mera construção de uma casa ao lado da casa da requerente não ofende o direito de propriedade da requerente.
Tal como não ofende o direito de propriedade a circunstância de essa construção implicar a movimentação do solo do prédio vizinho e na execução, por exemplo, dos alicerces e das fundações da obra nova, a construção antiga ficar menos protegida ou com partes destapadas e que até então estavam tapadas pelo solo do prédio vizinho. O conteúdo do direito de propriedade sobre um prédio abrange o solo, o subsolo e o espaço aéreo (artigo 1344.º do Código Civil) do próprio prédio (artigo 1305.º do Código Civil), não qualquer desses elementos ... dos prédios vizinhos.
Nos termos do artigo 1348.º do Código Civil o proprietário de um imóvel tem a faculdade de abrir no seu prédio minas ou poços e fazer escavações, desde que não prive os prédios vizinhos do apoio necessário para evitar desmoronamentos ou deslocações de terra. Portanto, a execução dos alicerces e fundações de uma obra num prédio, ainda que vá até ao limite deste, é um acto lícito; o que é ilícito é a retirada do apoio necessário para evitar desmoronamentos ou deslocações de terra no prédio vizinho, ou seja, que o proprietário actue sem se importar com a consequência da obra que vai realizar para a estabilidade do prédio vizinho.
A mera colocação à vista (destapada) dos alicerces do prédio vizinho implantados junto à estrema dos prédios não constitui retirada do apoio necessário para evitar desmoronamentos ou deslocações de terra no prédio vizinho. Tudo depende da extensão e da profundidade com que essa libertação do solo que encostava aos alicerces do prédio vizinho foi realizada e/ou dos cuidados adoptados ou omitidos para executar tal trabalho. A fundamentação de facto não evidencia minimamente essa situação, a qual, aliás, não foi sequer alegada no requerimento inicial onde se alega a ocorrência do destapamento de fundações, mas sem fornecer qualquer pormenor, detalhe ou especificação desse evento.
O titular do direito de propriedade também não goza da faculdade de apropriação da exposição solar e das vistas que o seu imóvel lhe proporciona se e enquanto o proprietário confinante não faz uso do seu prédio para nele implantar uma construção. Por conseguinte, o titular do direito de propriedade sobre um prédio que confina com um terreno no qual não existe qualquer obstáculo à acção dos raios solares e do vento ou ao desfrute dos horizontes visuais, não pode invocar esse direito e essa circunstância para se opor a que esse terreno seja igualmente aproveitado pelo seu proprietário para nele edificar, p. ex., uma casa, e que esta constituía total ou parcialmente um obstáculo daquela natureza.
O mais que pode suceder é o proprietário ter adquirido um direito legal de servidão e então poder defender esse seu direito real menor, de gozo, contra qualquer aproveitamento do solo do prédio serviente que afecte ou prejudique a utilidade que constitui o objecto da servidão, designadamente no caso de servidão de vistas, arejamento, passagem. Nesse caso, o que estará em causa já não é a violação do direito de propriedade, mas sim a violação do direito de servidão que onera o prédio vizinho em proveito exclusivo do outro. Mas para que a defesa desse direito possa ser exercida judicialmente é necessário que se aleguem ao menos os factos jurídicos concretos de constituição desse direito real menor de gozo.
Sucede que em nenhuma passagem do requerimento inicial ou da fundamentação de facto se evidencia a possibilidade sequer de estar constituída a favor da requerente qualquer servidão de vistas que pudesse agora ser defendida em relação à construção que a requerida está a realizar no seu prédio.
Por isso, falecem inteiramente os pressupostos do procedimento cautelar de embargos de obra nova.
A recorrente esgrime ainda com o alegado direito de preferência na compra pela requerida no prédio onde está a ser construída a obra a embargar. Como já vimos, a defesa desse direito não pode servir de fundamento a um embargo de obra nova, porque o procedimento cautelar correspondente exclui do seu objecto a defesa de outros direitos reais para além da propriedade de dos direitos reais de gozo.
Todavia, tendo a requerente formulado subsidiariamente o pedido de decretamento de «qualquer outra providência conservatória ou antecipatória que o tribunal considere concretamente adequada e/ou mais eficaz a assegurar a efectividade dos direitos ameaçados» (sic), vejamos o que se oferece dizer sobre o assunto.
Refira-se que em 1.ª instância não foi apreciada a questão que essa formulação do pedido colocava da admissibilidade da cumulação de providências cautelares e/ou da adequação do meio processual do procedimento cautelar de embargo de obra nova para a decisão sobre uma providência desse tipo que caberia quando muito no procedimento cautelar comum.
A primeira objecção ao pretendido pela requerente prende-se com o pedido.
As regras processuais não permitem ao requerente formular um pedido genérico ou inespecífico, muito menos o pedido de uma providência a definir concretamente por outrem, mais tarde, designadamente pelo tribunal no momento da decisão. O requerente tem sempre de terminar o seu requerimento inicial com a formulação expressa do pedido e este tem de consistir numa providência concreta, aquela que o requerente, no uso do seu poder dispositivo, considera adequada à tutela do seu direito ameaçado (cf. A. Geraldes, in Temas da Reforma do Processo Civil, III volume, 5- Procedimento cautelar Comum, 1998, página 142).
Isso é assim desde logo pela necessidade de assegurar ao requerido o exercício cabal do seu direito de defesa, visto que o requerido só pode defender-se de forma eficaz conhecendo de antemão, isto é, no momento em que vai exercer a sua defesa, não só o fundamento da pretensão do requerente como ainda o que pretende ele concretamente do tribunal e que o tribunal pode vir a decidir.
Por conseguinte, a requerente não podia pedir o decretamento da providência que o tribunal entenda, tinha de pedir uma providência concreta, específica, expressa e inteligível, sem prejuízo de o tribunal não estar adstrito à providência concretamente requerida (n.º 3 do artigo 376.º do Código de Processo Civil) e, portanto, poder vir a decretar uma providência algo diferente, sem prejuízo de, no dizer de M. Teixeira de Sousa, in Código de Processo Civil Online, https://blogippc.blogspot.com/2024/04/cpc-online-20.html, na anotação ao artigo 376.º, «o disposto no n.º 3 1.ª parte não permite o decretamento pelo tribunal do procedimento cautelar de um aliud ou de um plus da providência pedida pelo requerente».
A segunda objecção prende-se com a natureza do direito a tutelar.
Como vimos, a preferência legal é um direito real de aquisição, isto é, um direito cujo objecto jurídico é o direito potestativo do preferente de em determinadas condições se substituir ao adquirente num determinado negócio de transmissão ou alienação no qual a lei lhe atribui a preferência.
Não basta, portanto, ao preferente alegar que tem preferência para que se deva ou possa passar a considerar que ele se encontra ou encontrará na posição do adquirente. Para isso é necessário que o preferente demonstre que tem intenção de exercer a preferência, que está em condições de a exercer e que previsivelmente obterá vencimento na acção de preferência.
Contudo, da fundamentação da decisão não consta nenhum facto que permita considerar preenchidos ainda que indiciariamente estes requisitos, nem vem arguida no recurso a insuficiência da matéria de facto para o efeito e/ou impugnada a decisão sobre a matéria de tais factos.
Constam da fundamentação de facto os pontos 21 e 23 dos quais resulta que os prédios da requerente e da requerida integram uma área que, de acordo com a classificação do PDM – Plano Director Municipal de Ílhavo, está inserida na Reserva Agrícola Nacional.
Na motivação da decisão de julgar provados estes pontos afirma-se que os «pontos 21 e 23 dos factos provados é facto não controvertido e foi constatado na inspecção ao local». Com todo o devido respeito, nem a ré admitiu que os prédios estejam incluídos em área da Reserva Agrícola Nacional do Concelho de Ílhavo, nem esse facto é passível de ser apurado pela mera observação do local.
Muito embora a decisão sobre estes pontos não tenha sido impugnada, encontra-se nos autos documento oficial da Câmara Municipal com a resposta ao pedido de informação prévia, junto em 31-01-2024, donde resulta aquele facto não é sequer verdadeiro. O que a Câmara afirma é que o prédio da requerida (e, presume-se, o prédio da requerente, por ser contíguo àquele) se estende por duas áreas de afectação bem distintas, mais concretamente «situa-se em Solo Urbanizado, num Espaço Residencial de Nível 1, com uma profundidade de 40 m, integrando-se a área restante em solo da Reserva Ecológica Nacional (REN), nos termos do Plano Director Municipal (PDM) de Ílhavo».
Até à profundidade de 40 metro é solo urbanizado, depois desse ponto é solo integrado na REN e não da RAN, sendo que o regime jurídico da REN não contém o direito de preferência que o artigo 26.º do regime jurídico da RAN contém.
Aliás, salvo melhor opinião só poderá ser assim porque a Câmara Municipal autorizou a construção até à profundidade dos 40 metros, quando nos termos do artigo 20.º do Regime Jurídico da Reserva Agrícola Nacional «as áreas da RAN devem ser afectas à actividade agrícola e são áreas non aedificandi», e diz que a mesma área se situa em área de Solo Urbanizado quando nos termos do artigo 10.º daquele regime jurídico «não integram a RAN as terras ou solos que integrem o solo urbano identificado nos planos territoriais de âmbito intermunicipal ou municipal».
Por outro lado, importa ter presente que a requerente adquiriu um prédio urbano e é com essa natureza que o seu prédio se encontra descrito no título de transmissão da titularidade do direito para a requerente, na Conservatória do Registo Predial e na matriz predial respectiva.
A circunstância de o mesmo prédio incluir uma área não edificada (precisamente porque essa área e só ela é que se encontra abrangida pela REN ... ou RAN) não transforma ipso facto o prédio num prédio misto porque a área e ocupação predominante que efectivamente caracteriza o prédio e representa a quase totalidade do seu valor é a parte urbana e a construção que nela se encontra.
Por isso mesmo, se for (fosse) de conjecturar a invocação pela requerente do direito de preferência previsto no artigo 26.º do Regime Jurídico da RAN haveria que concluir que os elementos do processo não indiciam que estejam reunidos os pressupostos para o reconhecimento desse direito.
Também por esse motivo haveria que recusar o decretamento de qualquer providência cautelar que, caso tal fosse possível, o tribunal considerasse adequada ou necessária, como pedido.
Improcede assim o recurso.



VII. Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação julgar o recurso improcedente e, em consequência, confirmam a decisão recorrida.

Custas do recurso pela recorrente, não havendo lugar ao pagamento de outro valor para além da taxa de justiça já paga porque a recorrida não respondeu ao recurso.
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Porto, 23 de Junho de 2024.




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Os Juízes Desembargadores
Relator: Aristides Rodrigues de Almeida (R.to 834)
1.º Adjunto: Carlos Portela
2.º Adjunto: Isabel Rebelo Ferreira


[a presente peça processual foi produzida pelo Relator com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas qualificadas]