Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
359/22.9T8BAO.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOÃO VENADE
Descritores: DESNECESSIDADE DE SERVIDÃO
Nº do Documento: RP20240710359/22.9T8BAO.P1
Data do Acordão: 07/10/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMAÇÃO
Indicações Eventuais: 3. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: Por regra, a desnecessidade deverá ser superveniente em relação à constituição da servidão, decorrendo de alterações ocorridas no prédio dominante.

(da responsabilidade do Relator)
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 359/22.9T8BAO.P1.


João Venade.

Paulo Duarte Teixeira.

António Carneiro da Silva.


*

         1). Relatório.

         AA e mulher, BB, residentes na Calçada ..., ..., ...,

         propuseram contra

         Heranças abertas por óbito de CC e DD, representada pelos seus filhos:

         a). EE, casada, residente na Rua ..., ..., ...;

         b). FF, casado, residente na Rua ..., em ...;

         pedindo que:

         a). ser declare que os Autores são donos e legítimos proprietários do prédio rústico identificado no artigo 1.º da petição inicial;

         b). os representantes da Ré sejam condenados a reconhecer que o prédio supra referido é propriedade dos Autores,

         c). os representantes da Ré sejam condenados a abster-se de praticarem atos que violem o direito de propriedade dos Autores;

         d). se declare que não se constituiu nenhuma servidão de passagem a onerar o referido prédio dos Autores e a favor do prédio da Ré identificado no artigo 13.º, da petição e, em consequência, que se declare que os representantes da Ré não têm direito a aceder à corte/palheiro pelo prédio dos Autores;

         e). caso assim se não entenda, se declarado que o prédio da Ré tem acesso direto à via pública e confronta com o caminho público, declarando-se a desnecessidade da alegada servidão de passagem e em consequência, ser declarada a sua extinção.

         Alegam em síntese que:

         . são donos de um prédio rústico sito no Lugar ..., União de Freguesias ... e ..., ..., descrito na C. R. P. de Baião sob o nº...00 – ...;

         . adquiriram o direito de propriedade por compra exarada em escritura pública de compra e venda outorgada no Cartório Notarial de Baião em 08/02/1983;

         . praticam igualmente atos de posse sobre o imóvel conducente à aquisição da propriedade por usucapião;

         . a Ré é proprietária de prédio rústico, sito no Lugar ..., ..., União de Freguesias ... e ..., ..., descrito na C. R. P. de Baião sob o n.º ...30;

         . o prédio dos Autores confronta pelo seu lado nascente com rego de água, fazendo este a marcação do prédio dos Autores com o prédio propriedade da Ré;

         . no prédio da Ré, junto à sua estrema poente, existe uma corte/palheiro para animais, com dois andares, construídos em épocas diferentes – o r/c há 20/25 anos, o 1.º andar em 2008 -;

         . no local onde está colocada a placa com o dizer “Caminho Privado”, colocada no caminho público situado a sul do prédio dos Autores e da Ré, tem início um atravessadouro, que vai terminar na antiga estrada municipal situada a Poente do prédio dos Autores;

         . este atravessadouro era usado, agora já não é, por algumas pessoas para ir, “tornar a água”;

         . os representantes da Ré alegam que o acesso ao prédio e às cortes/palheiro da Ré a pé, com animais, de carro de bois e de trator, é feito a partir do caminho público situado a sul dos prédios de Autores e Ré e pelo interior do prédio dos Autores por uma faixa de terreno com cerca de 1,5 metros de largura e cerca de 50 metros de comprimento, com início no referido caminho público e a terminar na estrema nascente do prédio dos Autores, junto à corte/palheiro existente no prédio dos da Ré (no sentido sul-norte);

         . em 2008, os representantes da Ré pediram autorização ao Autor marido para transportarem, com o trator pelo carreiro existente, os materiais necessários para a construção do 1º andar da corte, o que foi autorizado;

         . depois continuaram a passar no carreiro, que com a passagem do trator dos materiais e as sucessivas passagens dos representantes da Ré se foi alargando;

         . só desde 2008 é que os representantes da Ré começaram a aceder à corte/palheiro situada na extrema poente do prédio da Ré;

         . o prédio da Ré tem acesso direto à via pública e confronta com o caminho público, pelo seu lado sul, numa extensão de cerca de cem metros, o que permite o acesso fácil da via pública à corte do gado da Ré, a pé, de trator ou de carro de bois.

         . mesmo que se entenda que se constituiu uma servidão de passagem sobre o prédio dos Autores a favor do prédio da Ré, a mesma não é necessária, devendo por isso ser extinta, nos termos do disposto no artº.1569º nº2 e 3 da C. c.


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         Citada a Ré, a mesma contestou alegando que existe a apontada servidão e que não se extinguiu por desnecessidade.

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         Elaborou-se despacho saneador, onde se fixou como

         . objeto do litígio - determinar se:

         . deverá ser declarado que os Autores são os únicos donos e legítimos possuidores do prédio rústico acima referido;

         . deverão as Rés ser condenadas a reconhecer tal direito e a abster-se de praticar quaisquer actos que o violem;

        . se deverá ser declarado que inexiste título que legitime a utilização pelas Rés do caminho acima referido;

        . na afirmativa, apurar se deverá ser declarada a desnecessidade por banda das Rés de aceder às cortes/palheiro através do prédio denominado dos Autores e, consequentemente, declarada a sua extinção.

         E como

         Temas da prova

       a) Da (in)existência do direito dos Réus a entrar e passar a pé, com animais, de carro de bois e de trator, para o referido prédio;

         b) Se e onde o prédio denominado “Campo ...”, sito no Lugar ..., tem acesso direto à via pública e confronta com o caminho público, pelo seu lado sul, numa extensão de 100 metros.

         c) Na afirmativa, se tal acesso permite a entrada e passagem a pé, com animais, de carro de bois e de trator, para o referido prédio, de que forma de acesso e qual a sua configuração.


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         Realizou-se audiência de julgamento, tendo sido proferida sentença com o seguinte teor:

         «julga-se a presente acção parcialmente procedente, e em consequência,

         a) Declaram-se os Autores AA e mulher BB, proprietários do prédio, sito no Lugar ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de Baião sob o nº...00, da freguesia ..., Concelho ..., e inscrito na respectiva matriz sob os artigos ...39 e ...71 da União de Freguesias ... e ....;

         b) Condena-se a Ré Herança aberta por óbito de CC e DD, Identificação Fiscal ...48....66....60, representada por EE e FF, a reconhecer o direito de propriedade dos Autores AA e mulher BB sobre o bem descrito em a).

         c) Absolve-se a Ré Herança aberta por óbito de CC e DD, representada por EE e FF, dos demais pedidos formulados, a título principal ou subsidiário, pelos Autores AA e mulher BB.


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         Inconformados , recorrem o Autores, formulando as seguintes conclusões:

         «1-) Os factos que os Recorrentes consideram ter sido mal julgados são factos não provados a-) e b-);

         2-) Estes factos deviam ter sido julgados provados, pela análise do depoimento da testemunha GG, que explica claramente o pedido de autorização, sendo aliás, a única testemunha que prestou depoimento sobre esse facto.

         3-) Esta testemunha explica a configuração do caminho antes da construção da parte de cima da corte dos Réus e o que motivou o pedido ao seu pai para o transporte dos materiais.

         4-) Pela análise do depoimento desta testemunha, impunha-se que os factos julgados A e B, fossem julgados provados, devendo em consequência a acção ser julgada procedente.

         5-) O prédio rústico dos Réus tem acesso directo à via pública, facto provado nº15;

         6-) Nos termos do disposto no artº.1569 nº2 do C. Civil, “as servidões constituídas por usucapião serão judicialmente declaradas extintas a requerimento do proprietário do prédio serviente, desde que se mostrem desnecessários ao prédio dominante”.

         7-) Ora, se o prédio dos Réus tem um acesso directo à via pública, não é legítimo impor um ónus sobre o prédio dos Autores.

          8-) Entendem os Réus que uma correcta interpretação do disposto no artº.1569 nº2, obrigava a declarar a desnecessidade da servidão e consequentemente a sua extinção.

          9-) E não se contraponha com a dificuldade do acesso, pois os Réus não fizeram qualquer prova do muito ou pouco custo ou da muita ou pouca dificuldade em fazer um acesso desde o portão situado a Nascente até à corte.

          10-) Deve a douta sentença recorrida ser revogada e ser substituída, julgando-se a acção procedente, assim se fazendo Justiça.».


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         As questões a decidir são:

         . apreciação da matéria de facto relativo a pedido de autorização formulado pelos Réus aos Autores para usar o caminho em causa;

         . extinção da servidão de passagem a favor dos Réus por desnecessidade (pedido subsidiário).


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         2). Fundamentação.

         2.1). De facto.

         Resultaram provados os seguintes factos:

         «1) Mostra-se registado a favor dos Autores o prédio, sito no Lugar ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de Baião sob o nº...00, da freguesia ..., Concelho ..., pela apresentação 18 de 1993/02/05, por compra a HH e mulher II, inscrito na respectiva matriz sob os artigos ...39 e ...71 da União de Freguesias ... e ....

         2) Consta da descrição predial do prédio referido em 1) que o mesmo se denomina de ... e ....

         3) Os Autores cortam o mato do prédio referido em 1) e cultivam-no, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, convictos de que tais actos não lesavam os interesses ou direitos de ninguém e de que se tratam de legítimos proprietários do prédio.

         4) A Ré é titular do prédio rústico denominado “Campo ...”, sito no Lugar ..., ..., União de Freguesias ... e ..., Concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de Baião sob o n.º ...30 e inscrito na respectiva matriz sob o artigo ...55.

         5) O prédio referido em 1) confronta pelo seu lado Nascente com o rego de água, sendo que, o rego de água faz a marcação deste prédio com o prédio mencionado em 4).

         6) No prédio da Ré, junto à sua extrema poente, existe uma corte/palheiro para animais.

         7) O rés do chão da corte/palheiro, que existe há mais de 25 anos, desde essa altura que é utilizado para criação e guarda de animais, sendo que as suas portas estão viradas para o prédio da Ré e não para o dos Autores.

         8) O primeiro andar dessa corte foi edificado, em data não concretamente apurada, mas pelo menos desde 2008, destinando-se o mesmo a armazenamento de alimento para os animais.

         9) O acesso à corte referida em 6), é feito pela Ré, na convicção de exercer um direito próprio e não lesando terceiros, a pé, com animais, de carro de bois e de tractor há mais de 20 anos, através do prédio dos Autores, por um caminho, constituído por faixa de terreno com cerca de 1,5 metros de largura e cerca de 50 metros de comprimento, que tem início no caminho público situado a sul do prédio da Ré, que atravessa o prédio dos Autores, flecte à direita no sentido nascente e termina na sua estrema nascente junto às cortes.

         10) O acesso referido em 9) era usado por algumas pessoas para ir “tornar” a água, sem serem impedidas pelos Autores.

         11) No início do caminho referido em 9) os Autores colocaram quer no sentido ascendente, quer no sentido descendente, uma placa com os dizeres “Caminho Privado”.

         12) O caminho referido em 9) servia de acesso a JJ para os seus terrenos.

         13) Antes de 2010, a Ré não tinha carro de bois, mas recorria a vizinhos, que tinham carro de bois ou tractor, para levar à corte e de lá retirar animais, bem como para lá levar mato para a cama dos animais e de lá retirar estrume para adubar os campos.

         14) Em data não concretamente apurada, mas após 2010, a Ré deixou de recorrer a vizinhos para usar tractor, passando a usar veículo em nome próprio.

         15) O prédio rústico referido em 4), na sua estrema nascente tem acesso directo à via pública.

         16) O prédio referido em 4) é delimitado a sul pelo rego de água que também o delimita a poente, em extensão não concretamente apurada, mas de cerca de 100 metros.

         17) Entre esse rego de água, referido em 16), e o caminho existente a sul do prédio da Ré existe ainda uma tira de terreno (com cerca de um metro de largura) que não pertence ao prédio referido em 4.

         18) Na zona referida em 16) e 17) o prédio referido em 4) encontra-se a pelo menos três metros abaixo do nível do piso da estrada que aí passa.

         19) No troço referido em 9) a Ré não fez um espaço para o tractor poder virar.

         20) No terreno referido em 4), no sentido nascente/poente existem muros em pedra, taludes e declives.».


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         E resultaram não provados:

       «a) Em 2008, os representantes da Ré pediram autorização ao Autor marido para transportarem, com o tractor pelo troço referido em 9) dos factos provados, os materiais necessários para a construção do 1.º andar da corte.

         b) Após a autorização do Autor marido para a passagem e após a construção do primeiro andar da corte, os representantes da Ré com a passagem do tractor dos materiais e as suas sucessivas passagens alargaram o troço referido em 9) dos factos provados.

         c) Até 2008, os representantes da Ré acediam à corte dos animais pelo interior do seu prédio rústico, onde a mesma está implantada.

         d) Só desde o ano de 2008 é que os representantes da Ré começaram a aceder à corte/palheiro situada na extrema poente do prédio da Ré, pelo acesso descrito em 9) dos factos provados.

         e) O rés do chão da corte/palheiro que existe há mais de 30 anos.

         f) O primeiro andar dessas cortes destina-se à guarda de alfaias e de produtos agrícolas.».


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         2.2). Do recurso.

         A). Impugnação da matéria de facto.

         Factos não provados a) e b).

         Em 2008, os representantes da Ré pediram autorização ao Autor marido para transportarem, com o trator pelo troço referido em 9) dos factos provados, os materiais necessários para a construção do 1.º andar da corte.

         Após a autorização do Autor marido para a passagem e após a construção do primeiro andar da corte, os representantes da Ré com a passagem do trator dos materiais e as suas sucessivas passagens alargaram o troço referido em 9) dos factos provados.

         Os recorrentes entendem que os factos deveriam ter sido julgados provados, com base no depoimento de GG. Os mesmos transcreveram, em parte, o depoimento não indicando as passagens exatas da gravação mas, lendo o excerto, apreende-se facilmente o que se pretende pelo que se consideram preenchidos os requisitos do artigo 640.º, do C. P. C..

         O tribunal recorrido, sobre os mesmos factos, menciona que:

         «No que tange ao facto não provado a) relembra-se o expendido a propósito da credibilidade das Testemunhas GG e KK, que de forma insistente se referiram a este facto, decorrendo ainda do seu depoimento que o que transmitiram ao Tribunal se baseia em ouvir dizer.

         A propósito da Testemunha GG, este mencionou que o caminho em causa foi alargado, o que implicitamente é infirmado pelo depoimento da Testemunha LL – filho dos Autores e arrolado por estes - que reconheceu que o caminho terá cerca de 1.50m de largura. Por outro lado, as Testemunhas arroladas pela Ré atestam que o caminho se mantem igual ao que sempre foi, e aqui, há que mencionar o depoimento desinteressado - pois a questão da largura do caminho não lhe aproveita de modo, pelo menos apreensível - escorreito, minucioso, e credível neste conspecto de MM, a cuja razão de ciência já nos referimos supra.

         Pelas Testemunhas NN e OO foi feita menção a um Sr. de nome PP, que seria Regedor, que seria o antecessor dos Autores em relação ao prédio referido em 1), e que é relacionado com a Testemunha MM, assim se confirmando a razão de ciência desta última.

         A Testemunha MM confirmou tal relação, explicou as transmissões do prédio referido em 1) até à esfera dos Autores. Manifestou de modo claro, sereno e convincente conhecimento da existência do caminho referido em 9) e sua configuração, desde os tempos do Sr. de nome PP, que seria Regedor, e da autorização por este de utilização do troço em causa nos autos, ou seja, já antes de aquisição pelos Autores. Donde, sendo plausível que a passagem com tractor e carros de bois, pela Ré, tivesse sido causa de eventual alargamento do caminho, o depoimento da Testemunha MM, colocou o Tribunal em estado dubitativo sobre se houve alargamento do troço pela Ré e/ou o seu motivo. Pelo que competindo aos Autores a prova do facto b), por este lhe aproveitar, consignou-se o mesmo como não provado.

         Ouvida toda a prova, resta-nos concordar com a análise ora transcrita. Quanto à alínea a), o depoimento de GG foi isolado e sem conhecimento direto sobre essa factualidade o que, como já foi explicado, retira força ao depoimento para, por si só, conseguir sustentar a prova do facto.

         No que se reporta à alínea b), não se detetando qual possa ser a relevância de se saber a largura do caminho em questão, afigurando-se-nos mais que os recorrentes pretenderam demonstrar que, só com a autorização da passagem aos recorridos, dada pelo recorrentes, é que aqueles, por terem alargado o mesmo caminho, decidiram começar a passar por aí com o uso de viaturas.

         No entanto, resultou provado, sem ser questionado, que a recorrida por aí passa há mais de 20 anos e não só desde 2008 (facto 9), o que desde logo inviabiliza a prova do que consta na citada alínea b).

         Acresce que não houve prova segura de que tenha havido um alargamento voluntário do caminho, com divergências a nível testemunhal sobre tal situação (QQ, KK, no sentido de ter sido alargado, OO, MM, RR no sentido oposto); pode eventualmente ter ocorrido um alargamento natural pela passagem de carros de bois e trator. Com tais divergências e sem fotografias da época em que o caminho alegadamente seria mais estreito, pensamos que efetivamente não se podia dar como provada tal factualidade.

         Improcede assim a pedida alteração de factos.


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         B). Do direito.

         Na sentença decidiu-se que os Autores não tinham razão em pedir que se declarasse que as Rés (heranças abertas por óbito de CC e DD) não tinham a seu favor uma servidão de passagem por um caminho que se integra no prédio dos mesmos Autores.

         Como se denota dos factos provados, provou-se a factualidade contrária a tal pedido pois o acesso à corte (local onde se guardavam animais) referida em 6), é feito pela Ré, na convicção de exercer um direito próprio e não lesando terceiros, a pé, com animais, de carro de bois e de trator há mais de 20 anos, através do prédio dos Autores, por um caminho, constituído por faixa de terreno com cerca de 1,5 metros de largura e cerca de 50 metros de comprimento, que tem início no caminho público situado a sul do prédio da Ré, que atravessa o prédio dos Autores, flete à direita no sentido nascente e termina na sua estrema nascente junto às cortes.

         Esta ação surge na sequência da procedência de um procedimento cautelar (restituição provisória de posse) aqui apenso, intentado pelos aqui Réus contra os aqui Autores no sentido de determinar a retirada dos obstáculos colocados pelos aqui Autores no sentido de impedirem a passagem pelo caminho.

         Tal procedimento foi julgado procedente nos seguintes termos:

         «Determina-se a imediata restituição provisória da posse aos requerentes EE e FF da passagem identificada em 8. e 9., condenando-se os requeridos AA e BB a removerem a vedação descrita em 12., por forma a deixarem livre a referida passagem, bem como a não praticarem quaisquer atos ou omissões que impeçam ou dificultem o exercício da passagem a pé, de carro de bois e de trator mecânico pelos requerentes.

         Mais se decide decretar a inversão do contencioso e dispensar os requerentes do ónus de propositura da ação principal

         Por ter ocorrido a inversão de contencioso nos termos do artigo 369.º, n.º 1, do C. P. C. - - «…o juiz, na decisão que decrete a providência, pode dispensar o requerente do ónus de propositura da ação principal se a matéria adquirida no procedimento lhe permitir formar convicção segura acerca da existência do direito acautelado e se a natureza da providência decretada for adequada a realizar a composição definitiva do litígio -, passaram então os requeridos nesse procedimento a terem o ónus de propor a ação principal, ou seja, a terem de convencer o tribunal que os requerentes, aqui Réus, não eram titulares do direito de servidão que sustentou a procedência da restituição provisória de posse como se denota da leitura da decisão (páginas 14 e 15).

         Daí que os pedidos dos aqui Autores sejam que, definido que o caminho se encontra na sua propriedade (o que nunca foi questionado pelas partes):

         . se declare que não se constituiu servidão de passagem a onerar o referido prédio dos Autores;

         . caso assim se não entenda, se declare que o prédio da Ré tem acesso direto à via pública e confronta com o caminho público, declarando-se a desnecessidade da alegada servidão de passagem e em consequência, ser declarada a sua extinção.

         Improcedente a impugnação da matéria de facto, inexiste qualquer circunstancialismo que possa alterar a conclusão de que se constitui uma servidão de passagem, por usucapião, no prédio dos Autores a favor dos Réus (os recorrentes, bem, só colocam essa hipótese no caso de ser procedente a impugnação da matéria de facto).

         Assim, o recurso incide unicamente sobre a procedência daquele pedido subsidiário; alegam os recorrentes que «… se o prédio dos Réus tem um acesso direto à via pública, não é legítimo impor um ónus sobre o prédio dos Autores. …uma correta interpretação do disposto no artº.1569 nº2, obrigava a declarar a desnecessidade da servidão e consequentemente a sua extinção. E não se contraponha com a dificuldade do acesso, pois os Réus não fizeram qualquer prova do muito ou pouco custo ou da muita ou pouca dificuldade em fazer um acesso desde o portão situado a Nascente até à corte.».

         Vejamos então.

         Já referimos que os Réus viram constituída a seu favor uma servidão de passagem sobre um caminho que atravessa um prédio que é pertença dos Autores. Na sentença recorrida menciona-se que:

         «Assim sendo, terá de se reconhecer que sobre o prédio dos Autores referido em 1) por usucapião foi constituída uma servidão permanente de passagem a pé, com animais,  de carro de bois e trator, a favor do prédio da Ré referido em 4).

         No caso dos autos resultou provado que o prédio da Ré tem na sua estrema nascente acesso direto à via pública. Porém demonstrou-se igualmente que no aludido prédio existem muros em pedra, taludes e declives, pelo que inexiste uma situação de encrave absoluto. Ou seja, o prédio da Ré padece de um encrave relativo, assim, mesmo que pelo seu interior fosse permitido o acesso à via pública das cortes, este seria insuficiente para permitir à Ré passar com animais e trator, por forma a acomodá-los nas cortes e dessa forma fazer chegar a alimentação dos animais, conforme vêm fazendo à cerca de 20 anos, mas com acesso pelo dito caminho.

         Dito de outra forma, atendendo aos muros, taludes e declives do terreno pertença da Ré, esta encontra-se factualmente impedida de passar com animais, carros de bois ou trator, das cortes para a via pública através da entrada existente na sua estrema nascente, (comunicação insuficiente para as necessidades normais). Ainda que fosse possível tal passagem com animais, de carro de bois ou trator, a partir do prédio da Ré, só o seria, em geral, com excessivo incómodo e até dispêndio (uma longa pavimentação, quiçá colocação de manilhas, desaterros, entre outros, através de terreno de cultivo, mole, não preparado, ou então com uma remodelação completa, com destruição - fosse destruição da corte e colocação noutro local; fosse alterando a morfologia do terreno desaterrando-o, por exemplo, por completo). Assim sendo, é permitida por lei a servidão de passagem que se constituiu. Conclui-se, portanto, que a Ré é titular de uma servidão de passagem, adquirida por usucapião, sobre o aludido caminho. (…).

         As servidões legais e constituídas por usucapião apenas se extinguem por desnecessidade, nos termos do disposto nos n.ºs 2 e 3, do artigo 1569.º do Código Civil. … (e, citando-se doutrina) desnecessidade, que em matéria de servidão se considera, supõe uma mudança na situação, não no prédio onerado ou serviente, mas do prédio dominante. Por virtude de certas alterações neste sobrevindas, aquela utilização, sempre possível, do prédio serviente, perdeu utilidade para o prédio dominante.

         Portanto, a aferição da desnecessidade implica um juízo de proporcionalidade que deve ser encontrado na ponderação das circunstâncias concretas de cada caso, na existência de alternativa que, sem ou com um mínimo de prejuízo para o prédio dominante, permite eliminar o encargo incidente sobre o prédio serviente, uma vez que, v. g., está garantida uma acessibilidade, em termos de comodidade e regularidade, ao prédio dominante, sem onerar, desnecessariamente, o prédio serviente. O que significa que não basta (para a extinção da servidão por desnecessidade) que, para além da passagem objecto da servidão, exista outra via de acesso do prédio dominante para a via pública, porquanto é necessário que este outro acesso ofereça condições de utilização similares, ou, pelo menos, não, desproporcionalmente, agravadas. Vertendo ao caso dos autos, não se apurou que por qualquer outra forma é possível o acesso ao palheiro da Ré, sem necessidade de obras ou qual o custo de obras necessárias para se fazer esse acesso por forma a assegurar as mesmas utilidades e comodidades do direito de passagem existente. Não se demonstrou a existência de uma outra passagem até às cortes proporcionante de utilidades iguais e igualmente cómodas às proporcionadas pela servidão de passagem pelo prédio serviente. De outra banda não se apurou que a Ré tivesse usado um outro caminho por meio de trator ou carro de bois, que não o caminho referido em 9) para aceder às cortes.».

         Concordamos com a essência desta argumentação. Como meio de sustentar a sua pretensão – extinção da servidão por desnecessidade -, competia aos Autores provar que ocorria essa mesma desnecessidade (artigo 342.º, n.º 1, do C. C.).

         A extinção visa, no fundo, libertar a propriedade pois um ónus é algo que a desvaloriza e/ou prejudica a sua exploração (Isabel Menéres campos, Comentário ao Código Civil, Direito das Coisas, Universidade Católica, página 740).

       Ora, no caso dos autos, pensamos que há duas vias para considerar que não é possível julgar a servidão de passagem, constituída por usucapião, extinta por desnecessidade:

         . desde logo não resulta dos factos que os Réus não precisam de usar esse caminho para aceder ao seu terreno, em específico, para acederem ao local onde guardam animais (cortes), matéria que lhe incumbia provar. Na verdade, resulta provado que:

         . o prédio rústico pertencente aos Réus (referido em 4), na sua estrema nascente tem acesso direto à via pública (15) mas tal prédio é delimitado a sul por rego de água que também o delimita a poente, em extensão não concretamente apurada, mas de cerca de 100 metros (16) e, entre esse rego de água e o caminho em causa, existe ainda uma tira de terreno (com cerca de um metro de largura) que não pertence ao prédio dos Réus. Depois, nessa zona, o prédio dos Réus encontra-se a pelo menos três metros abaixo do nível do piso da estrada que aí passa (17). Ou seja, existem alguns potenciais obstáculos – rego, nível do terreno inferior à via pública -, que podem dificultar/impedir a circulação de automóveis ou a travessia de animais – vacas, porcos -. E, como competia aos Autores a prova da desnecessidade do uso da servidão, havendo aquela dúvida sobre a outra via permite o acesso em causa, a mesma tem de ser resolvida em seu desfavor, nos termos do artigo 414.º, do C. P. C.[1] e, no caso concreto, também face ao disposto no artigo 346.º, do C. C.[2] (foi, perante a alegação e prova dos Réus de que havia obstáculos à passagem por outro local que se criaram as dúvidas).

         . por outro lado, maioritariamente, vem entendendo-se que a desnecessidade tem de resultar de um circunstancialismo posterior à relação de constituição da servidão, decorrendo de alterações ocorridas no prédio dominante – veja-se, por exemplo, Acs. do S. T. J. de 16/03/2011, processo n.º 263/1999.P1.S1, em que se sumaria que «2. Em princípio, a desnecessidade será superveniente em relação à constituição da servidão, decorrendo de alterações ocorridas no prédio dominante.», sumário muito idêntico ao Ac. do S. T. J. de 17/12/2019, processo n.º 797/17.9T8OLH.E1.S[3] (Em princípio, a desnecessidade deverá ser superveniente em relação à constituição da servidão, decorrendo de alterações ocorridas no prédio dominante) [4].

         Veja-se ainda, com a menção de doutrina e jurisprudência em ambos os sentidos (ou seja, também referindo que a desnecessidade pode advir desde o tempo da constituição da servidão, Ac. da R. P. de 15/09/2022, desta mesma secção, relatado por Paulo Dias da Silva, em que o aqui relator foi 2.º adjunto, todos em www.dgsi.pt).

         Pensamos que se houve factos que determinaram que se constituísse a servidão, então têm de existir outros factos (ou deixarem de existir os primitivos) que imponham que se conclua que essa alteração impõe a extinção, não se devendo (re)analisar a constituição e a extinção de uma servidão à luz dos mesmos factos (pensamos que neste sentido, Antunes Varela e Pires de Lima, Código Civil Anotado, III, página 677). Eventualmente, se se descortinar que afinal existia uma situação abusiva por parte do prédio dominante, poder-se-ia reanalisar os mesmos factos a uma luz diferente, focada no abuso de direito (artigo 334.º, do C. C.).

         Ora, não está provado qualquer facto novo que permita concluir que ocorre a apontada desnecessidade já que as configurações dos terrenos e caminhos, do modo que resultam provados, não contêm menções a datas recentes, no sentido de os obstáculos ou o acesso à via pública terem passado a existir após a constituição da servidão; e muito menos que haja uma situação abusiva dos Réus, aliás, nem sequer alegada pelos recorrentes.

         Não se trata, na nossa opinião, de aferir se há um encrave absoluto ou relativo do prédio dos Réus pois o que está em causa não é a constituição de uma servidão legal de passagem (artigo 1550.º, n.º 1, do C. C.) mas de uma servidão voluntária de passagem, constituída por usucapião, nos termos dos artigos 1547.º e 1548.º, do C. C..

         Assim, não havendo a prova daquela nova factualidade que pudesse levar à conclusão que ocorria a desnecessidade de uso da servidão, deve improceder, como improcedeu, o pedido subsidiário.

        Conclui-se assim pela improcedência do recurso, confirmando-se a decisão recorrida.


*

         3). Decisão.

         Pelo exposto, julga-se totalmente improcedente o presente recurso e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida.

         Custas do recurso pelos recorrentes.

          Registe e notifique.


Porto, 2024/07/10.

João Venade.

Paulo Duarte Teixeira.

António Carneiro da Silva.


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[1] A dúvida sobre a realidade de um facto e sobre a repartição do ónus da prova resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita.
[2] Salvo o disposto no artigo seguinte, à prova que for produzida pela parte sobre quem recai o ónus probatório pode a parte contrária opor contraprova a respeito dos mesmos factos, destinada a torná-los duvidosos; se o conseguir, é a questão decidida contra a parte onerada com a prova.
[3]Sumário que também iremos aproveitar naquele elaborado pelo relator.
[4]Nestes dois Acórdãos do S. T. J. também se entende que o ónus da prova da desnecessidade incumbe à parte que requer a extinção.