Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
14311/23.3T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANA LUÍSA LOUREIRO
Descritores: MENOR
PODERES DE REPRESENTAÇÃO
REPRESENTAÇÃO DO MENOR EM JUÍZO
REGULAÇÃO DO EXERCÍCIO DAS RESPONSABILIDADES PARENTAIS
AÇÃO DE IMPUGNAÇÃO
PATERNIDADE
INDEFERIMENTO LIMINAR
Nº do Documento: RP2024062014311/23.3T8PRT.P1
Data do Acordão: 06/20/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Tendo o exercício das responsabilidades parentais relativamente aos filhos menores sido atribuído, no âmbito de ação de divórcio, à progenitora, nomeadamente quanto às questões de particular importância, não tem o progenitor dos referidos menores poderes quer para decidir sobre a necessidade/oportunidade/bondade quanto à impugnação da sua paternidade (presumida) e investigação da paternidade do pretenso progenitor, quer para, atuando em representação dos menores, propor ação de impugnação da paternidade presumida, cumulada com uma ação de investigação de paternidade.
II - Tal falta de poderes de representação do progenitor dos menores não integra uma mera irregularidade de representação passível de suprimento, não tendo aplicação o regime do art. 18.º do Cód. Proc. Civil, nem tendo sustentação legal a pretensão de admissibilidade de prosseguimento da ação, intentada em nome dos autores menores por quem não tem quaisquer poderes de representação destes, com apelo às disposições legais do Estatuto do Ministério Público, aprovado pela Lei n.º 68/2019, de 27 de agosto, quanto às atribuições do Ministério Público, nomeadamente no âmbito das competências referentes à representação dos incapazes, por tais disposições não afastarem as disposições específicas sobre a representação de incapazes pelo Ministério Público previstas no Código de Processo Civil, designadamente, nos seus arts. 21.º e 23.º.
III - A decisão quanto à propositura da ação pelo Ministério Público, em representação dos menores, depende de um juízo seu – do Ministério Público – quanto à necessidade e conveniência da propositura da referida ação para a tutela dos direitos e interesses dos menores.
IV - A decisão de indeferimento liminar de petição inicial de ação de impugnação da paternidade presumida, cumulada com uma ação de investigação de paternidade, por falta de poderes de representação do pai dos autores menores, não acarreta qualquer compressão inadmissível do direito de personalidade dos referidos menores ao apuramento da verdade biológica e direito à identidade pessoal e ao livre desenvolvimento da personalidade, previsto no artigo 26.º da Constituição da República Portuguesa. Tal decisão não retira aos menores o direito de intentarem as competentes ações de impugnação de paternidade e de investigação de paternidade, nos termos e moldes previstos nos arts. 1838.º, 1839.º e 1842.º, e nos arts. 1817.º (este, aplicável ex vi art. 1873.º) e 1869.º, todos do Cód. Civil.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo – Apelação n.º 14311/23.3T8PRT.P1
Tribunal a quo – Juízo de Família e Menores do Porto – J 3


Recorrente(s) – Os menores AA e BB, representados pelo pai CC

Recorrido(a/s) – DD; CC e EE


***

Sumário

……………………

……………………

…………………….


***


Acordam na 3ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:

I – Relatório:

Identificação das partes e indicação do objeto do litígio

Os autores menores AA e BB, nascidos em ../../2010, representados pelo pai CC, intentaram ação de impugnação e investigação da paternidade contra DD, CC e EE, peticionando:

a) Seja reconhecido e declarado que os Autores AA e BB não são filhos de CC, determinando-se a eliminação da paternidade e avoengas paterna registalmente estabelecidas;

b) Seja reconhecida e declarada a paternidade do Réu EE relativamente aos Autores, com o consequente estabelecimento e averbamento registal da paternidade e avoengas paternas, nos respetivos termos.

c) Sejam ordenadas todas e quaisquer modificações e necessários averbamentos registrais aos assentos de nascimento dos Autores, para efeitos do reconhecimento da paternidade destes a favor do Réu EE.

Foi ainda requerido:

«(…) se digne, nos termos do disposto no n.º 3 do art.º 18º do C.P.C. atribuir a representação dos menores AA e BB a CC, ou se assim não se entender, designar como curadora especial a Tia FF ( residente na Rua ..., ... Porto) ou em alternativa conferir a representação dos menores ao Ilustre Senhor(ª) Procurador (ª) do Ministério Público junto deste Tribunal. (…)».

Em 21-09-2023 (Ref. 451832703), após cumprimento do contraditório quanto ao conhecimento da irregularidade de representação dos autores, foi proferido despacho de indeferimento liminar da ação, por o réu CC carecer de poderes para, em nome dos menores, decidir da propositura da presente ação, exceção dilatória insuprível.

Foi interposto recurso de apelação pelos autores menores, representados pelo pai (e réu) CC, apresentando, no essencial, as seguintes CONCLUSÕES:

A. A decisão recorrida (ref.ª 451832703) viola o disposto no art. 590.º, n.º 1 do Código de Processo Civil; no artigo 4.º, n.º 1, al. b) e j) e art. 9º da Lei n.º 68/2019, de 27 de Agosto e nos artigos 26º n.º 1 e 33º da Constituição da República Portuguesa.

B. Por força da presunção de paternidade estabelecida nos termos do disposto no número 1 do artigo 1826º do Código Civil, a paternidade dos menores ficou, falsamente, estabelecida a favor de CC.

C. No entanto, a paternidade (presumida) dos Autores a favor do Recorrido CC foi clínica e medicamente excluída.

D. A Mãe dos Autores assumiu que os Menores são filhos biológicos de EE (padrinho dos menores, visita de casa do ex-casal e um dos melhores amigos do presumido pai dos menores) aqui 3º Réu/Recorrido.

(…)

H.  A Recorrida DD sempre garantiu e prometeu ao Recorrido CC, que a verdade biológica dos filhos, aqui Autores, seria retificada e estabelecida em nome do verdadeiro pai – o Recorrido EE – o que jamais sucedeu, até à presente data.

(…)

Acresce que,

K. O exercício das responsabilidades parentais relativas às questões de particular importância para a vida dos Autores, ficaram atribuídas à Progenitora, com quem os menores residem habitualmente cabendo-lhe ainda as decisões relativas a todos os atos das vidas dos menores.

L. Os Autores têm conhecimento de que o seu pai biológico é o Recorrido EE e não o Recorrido CC.

M. Em 05.06.2020, correu termos processo de impugnação de investigação da paternidade instaurado pelo Ministério Público (processo n.º 9130/20.1T8PRT, Juízo de Família e Menores do Porto – J3, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto), contra os Autores, a Recorrida DD e os Recorridos CC e EE.

N. Sucede que, por erro do Ministério Público aquando da instauração da ação, foi proferida decisão de absolvição dos Réus da instância, por falta de legitimidade do MP para promover o processo em causa, tendo a instância sido extinta e não sido feita JUSTIÇA, por meras questões de índole processual, que não foram devidamente acauteladas pelo Ministério Público.

O. Em 03.08.2023, deu entrada em juízo a presente ação de impugnação e investigação da paternidade, instaurada pelos menores AA e BB, ao abrigo do disposto nos artigos 1839º e 1842º do Código Civil.    

P. Os menores foram representados em juízo pelo Recorrido CC.

Q. É pretensão dos Autores ver eliminada do seu registo de nascimento a menção ao pai registral (Recorrido CC), bem como o reconhecimento judicial da sua paternidade a favor do Recorrido EE, 3º Réu.

R. Na Petição Inicial, os Autores requereram a nomeação de curador especial para efeitos de representação dos menores em juízo, ou, em alternativa, a intervenção do Ministério Público para o efeito.

S. Pretensão que o Tribunal a quo decidiu, erradamente, não relevar. (…)

V. Em 21.09.2023, o Tribunal a quo proferiu despacho de indeferimento liminar da presente ação, com o qual os Autores não se conformam e que motiva o presente Recurso. ,…)

X. O entendimento do Tribunal a quo traduz-se, assim, num verdadeiro paradoxo, por um lado, reconhece que a decisão de propositura da presente ação apenas caberia à Progenitora, e, reconhece, por outro lado, a existência de um manifesto conflito de interesses entre a Progenitora e os Menores (Autores).

(…)

Z. O que significa que, segundo o entendimento do Tribunal a quo, a pessoa a quem compete a decisão de propositura da presente ação em nome dos menores, jamais a tomará positivamente!

AA. O que se traduz numa INCONSTITUCIONALIDADE, por violação dos direitos liberdades e garantias, consagrados constitucionalmente nos artigos 26º n.º 1 e 33º da CRP, e que para todos os devidos e legais efeitos aqui se argui.

Acresce ainda,

BB. No despacho de indeferimento liminar da presente ação, o Tribunal a quo entendeu que Ministério Público detém legitimidade para, em representação dos menores, decidir da propositura da ação!

CC. No entanto, tendo sido, reitera-se, formulado pedido de intervenção principal do Ministério Público nestes autos, atenta a (reconhecida) existência de um conflito de interesses entre os Progenitores (Recorridos) e os Menores (Autores), a Mm.ª Juiz a quo não relevou.

DD. Encontrando-se a presente ação já em juízo, com a alegação dos factos essenciais à descoberta da verdade, e tendo o Tribunal a quo, inclusive, entendido que o Ministério Público detém legitimidade para representar os menores nesta demanda, deverá, data vénia, ser deferida a intervenção principal do Ministério Público para, em nome e representação dos menores, prosseguir os ulteriores termos da presente ação, com vista à realização da merecida JUSTIÇA!

EE. Assim se sanando qualquer irregularidade processual no que respeita à representação dos menores e à propositura da presente ação, prosseguindo a presente demanda os seus ulteriores termos, e garantindo-se a regularidade da instância.

Concluem pela procedência do recurso, revogação da decisão de indeferimento liminar da ação e substituição por outra que determine a intervenção principal do Ministério Público para que, em nome e representação dos Menores, este prossiga com a ação.

 

Por despacho proferido em 30-10-2023 (Ref. 453288654), o tribunal a quo admitiu o recurso, ordenando o cumprimento do disposto no 641º, n.º 7, do Cód. Proc. Civil relativamente aos réus e o cumprimento do disposto no art. 325.º, do Cód. Proc. Civil.

Apresentaram resposta às alegações de recurso:

– O Ministério Público, pugnando pela improcedência do recurso e confirmação da decisão recorrida (requerimento de 06-11-2023, Ref. 37173462);

– O réu EE, igualmente defendendo a improcedência do recurso (requerimento de 18-12-2023, Ref. 37603301).

Após os vistos legais, cumpre decidir.

II – Objeto do recurso:

São as conclusões das alegações de recurso que – exceto quanto a questões de conhecimento oficioso – delimitam o objeto e âmbito do recurso, nos termos do disposto nos arts. 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1 e n.º 2, ambos do Cód. Proc. Civil.

Assim, cumpre apreciar o mérito da decisão de indeferimento liminar da petição inicial, nomeadamente, avaliando se a mesma viola o disposto no art. 590.º, n.º 1 do Código de Processo Civil; no artigo 4.º, n.º 1, al. b) e j) e art. 9.º da Lei n.º 68/2019, de 27 de agosto e nos artigos 26.º, n.º 1 e 33.º da Constituição da República Portuguesa.

III – Fundamentação:

De facto

A matéria de facto a considerar para a apreciação do recurso é, além da factualidade já vertida no relatório, nomeadamente, quanto à instauração da ação objeto da decisão recorrida e identificação das partes nessa ação, ainda a seguinte:

1. No dia 13 de setembro de 2008, DD contraiu casamento com CC.

2. Na pendência desse casamento, em ../../2010, nasceram os  irmãos gémeos, AA e BB, constando dos respetivos assentos de nascimentos identificado como pai o referido CC e como mãe a referida DD.

3. No dia 05 de junho de 2020 o Ministério Público, como requerente, intentou ação de impugnação e investigação da paternidade em cumulação/coligação com ação declarativa não oficiosa de investigação e reconhecimento da paternidade biológica, contra os requeridos DD, AA e BB, CC e EE, alegando, em síntese, que os menores AA e BB não são filhos biológicos do requerido CC mas sim do requerido EE, pedindo: a) Declarar-se que os menores AA e BB não são filhos do réu CC, determinando-se a eliminação da paternidade e avoengas paternas registralmente estabelecidas de GG e HH; // b) Declarar também que as mesmas crianças AA e BB são filhos biológicos do réu EE, com o consequente estabelecimento e averbamento registral da paternidade e avoengas paternas de II e JJ; e // c) Ordenar as inevitáveis modificações e necessários averbamentos registrais aos assentos de nascimento dos referidos menores AA e BB nos precisos termos ora requeridos.

4. No processo n.º ..., que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo de Família e Menores do Porto – J5, foi em 22 de setembro de 2020 proferida sentença que decretou o divórcio por mútuo consentimento entre a requerida DD e o requerido CC, tendo sido, quanto ao exercício das responsabilidades parentais referentes aos menores AA e BB sido determinado que «As responsabilidades parentais, relativas às questões de particular importância para a vida da criança, serão exercidas pela progenitora, nos termos do art.º 1906.º, n.º 1 C.C. (na redação da Lei nº 61/2008, de 31/10), cabendo ainda à progenitora com quem os menores residem habitualmente, as decisões relativas a todos os atos da sua vida, nos termos do art.º 1906º, n.º 3 do C. C. (na redação da Lei nº 61/2008, de 31/10).», tudo conforme consta da Ata de Tentativa de Conciliação realizada no aludido processo, junta como doc. 4 com a petição inicial.

5. Na petição inicial da ação intentada pelos autores menores, representados pelo seu pai CC, que foi objeto da decisão de indeferimento liminar da qual foi interposto o recurso de apelação aqui em apreciação, foi alegado, além do mais, que na ação intentada pelo Ministério Público referida no n.º 3.:

– Foram juntos exames de hematologia forense e histocompatibilidade sanguínea realizados aos autores e aos requeridos DD e CC, dos quais resultou a exclusão da paternidade deste último;

– Foi proferido despacho de absolvição dos réus da instância por falta de legitimidade do Ministério Público para promover o referido processo.

Subsunção dos factos ao direito

São as seguintes as questões de direito parcelares a abordar:
1. Fundamentação da decisão recorrida
1.1. Ação intentada
1.2. Incapacidade dos autores para o exercício de direitos – representação
1.3. Incapacidade judiciária – suprimento
1.4. Conclusão
2. Apreciação dos fundamentos do recurso
2.1. Possibilidade de suprimento da irregularidade de representação dos autores
2.2. Inconstitucionalidade da decisão recorrida
3. Responsabilidade pelas custas


1. Fundamentação da decisão recorrida

A decisão recorrida fundamentou assim o indeferimento liminar da petição inicial:

«(…) Pela presente ação pretendem os autores, menores de idade, que se declare que não são filhos de CC e que se reconheça a paternidade de EE.

Mostram-se representados pelo progenitor, réu na ação, CC.

Ora, dúvidas não temos de que nunca o réu poderia representar os autores na presente ação, face ao manifesto conflito de interesses derivado da sua qualidade de réu.

Porém, coloca-se-nos ainda a questão de saber quem poderia decidir da conveniência de intentar a presente ação em nome dos menores.

De facto, se os menores fossem representados por ambos os progenitores, tal decisão, em caso de desacordo, caberia ao Tribunal (cfr artigo 18º/1 do C.P.C.).

No entanto, resulta da sentença de regulação das responsabilidades parentais (junta com a petição inicial como documento 4) que a decisão das questões de particular importância cabe apenas à progenitora, sendo certo que a decisão de propor uma ação judicial integra claramente questão de particular importância.

Concluímos, assim, que o progenitor não detém poderes para decidir da propositura da presente ação pelos menores.

E nem se diga que, face a tal solução, os menores se veem coartados do exercício dos seus direitos. De facto, qualquer dos intervenientes é livre de se dirigir ao Ministério Público, que detém legitimidade para, em representação dos menores, decidir da propositura da ação (neste sentido, cfr Assento do STJ de 16/04/1982, uma vez que a jurisprudência aí firmada mantém atualidade, pois a norma constante do artigo 9º/1/c) da Lei 68/2019 é semelhante à da norma constante do artigo 5º/1/e) da Lei 39/78, de 05/07, a qual fundamentou a posição exarada no Assento).

Concluímos, assim, que o réu CC carece de poderes para, em nome dos menores, decidir da propositura da presente ação, exceção dilatória insuprível que conduz ao indeferimento liminar da mesma.


*

Face a exposto, indefiro liminarmente a presente ação (artigo 527º do C.P.C.).

Apreciemos, em primeiro lugar, os fundamentos do indeferimento liminar da petição inicial atenta a natureza da ação intentada e as disposições legais aplicáveis relativamente à capacidade judiciária e suprimento da incapacidade dos menores.

1.1. Ação intentada

A ação intentada, cuja petição inicial foi objeto da decisão recorrida de indeferimento liminar, é uma ação de impugnação da paternidade presumida, cumulada com uma ação de investigação de paternidade.

A finalidade da ação de impugnação da paternidade é contrariar a filiação paternal baseada na presunção estabelecida no n.º 1 do art. 1826.° do Código Civil, ou seja, é demonstrar que o marido da mãe não é o pai biológico, estando o respetivo regime jurídico previsto e regulado nos arts. 1838.º a 1846.º do Cód. Civil.

A ação de investigação da paternidade tem como finalidade a «atribuição jurídica da paternidade do filho ao progenitor biológico deste, pelo que o facto de onde emerge tal direito é a procriação biológica/geração, constituindo tal facto jurídico procriador (relação sexual fecundante) a respetiva causa petendi.» - cfr. Ac. do STJ de 31-01-2017, proc. 440/12.2TBBCL.G1.S1.

O pedido próprio da ação de investigação da paternidade está dependente da procedência do pedido de impugnação da paternidade, como resulta do disposto no art. 1848.º, n.º 1, do Cód. Civil.

Está-se aqui perante ações sobre o estado das pessoas, tendo por objeto uma alteração do estado familiar, resultando do regime jurídico estabelecido pelo legislador que são vários os direitos e interesses em jogo.

É na ponderação desses interesses e direitos que é delineado o respetivo regime jurídico. Assim, e a título exemplificativo, o direito fundamental à identidade pessoal (direito à verdade pessoal) subjacente à consagração, a favor do presumido pai ou marido da mãe, do direito de impugnar a sua paternidade presumida (art. 1839.º, n.º 1, do Cód. Civil), não é absoluto; tem que ser – e é – conciliado com o direito à identidade pessoal do próprio filho (artigo 26.º, n.º 1, da CRP) e o interesse da proteção da família constituída (artigo 67.º da CRP): daí que existam prazos de caducidade (e a diferença de tais prazos, consoante a ação seja intentada pela mãe, pelo marido da mãe ou pelo filho – art. 1842.º do Cód. Civil)  para exercício das ações de impugnação – sobre o assunto, veja-se o Ac. do TC n.º 446/2010 [1].


1.2. Incapacidade dos autores para o exercício de direitos – representação

Conforme resulta do disposto no art. 67.º do Cód. Civil, os menores (art. 122.º do Cód. Civil), embora dotados de capacidade jurídica, entendida como capacidade de gozo (suscetibilidade de serem titulares de direitos e obrigações; de serem sujeitos de relações jurídicas), carecem, por regra, de capacidade negocial. Tal é o que resulta do disposto no art. 123.º do Cód. Civil.

Esta incapacidade de exercício de direitos por parte dos menores é suprida, nos termos previstos no art. 124.º do Cód. Civil, pelo poder paternal – ver ainda arts. 1877.º e 1881.º, ambos do Cód. Civil.

No caso em análise, resulta da factualidade apurada que na sentença que decretou o divórcio entre os requeridos DD e CC, o exercício das responsabilidades parentais atinentes aos aqui autores foi atribuído, nomeadamente quanto às questões de particular importância, à progenitora (incumbindo ainda à mesma as decisões relativas a todos os atos da vida dos filhos).

Assim, é esta progenitora que tem o poder de representação dos aqui autores, seus filhos menores, nos termos conjugados do disposto nos arts. 1878.º, n.º 1, e 1881.º, e no art. 1906.º, n.º 2 e n.º 3, todos do Cód. Civil.


1.3. Incapacidade judiciária – suprimento

Em conformidade com o disposto no art. 15.º do Cód. Proc. Civil, os aqui autores, sendo menores, não têm capacidade judiciária: carecendo de capacidade de exercício de direitos (capacidade negocial), também não detêm capacidade judiciária – a suscetibilidade de estarem, por si, em juízo, ou seja, não podem por si intentar ações, nem podem, por si, intervir nelas como réus.

Tal incapacidade judiciária dos aqui autores é suprida, no caso, e em conformidade com o disposto no art. 16.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil., pela intervenção da sua progenitora, à qual foi atribuído em exclusivo o exercício das responsabilidades parentais: é a mesma que detém, em exclusivo, o poder de representação dos aqui autores.


1.4. Conclusão

Concluímos, assim, pelo acerto da fundamentação da decisão recorrida, quer quanto à conclusão de que o progenitor dos autores menores, que intentou a presente ação em nome daqueles, não tem poderes quer para tomar a decisão em nome e representação dos menores sobre a necessidade/oportunidade/bondade quanto à impugnação da sua paternidade (presumida) e investigação da paternidade do pretenso progenitor, quer para a prática do ato processual de propositura da referida ação pelos autores (atuando o progenitor em representação dos mesmos).


2. Apreciação dos fundamentos do recurso  

Como emerge da leitura das conclusões das alegações do recurso, o apelante não contesta nem impugna que o poder de representação dos menores cabe à mãe daqueles.

Não obstante, pretende que a decisão recorrida violou o disposto no arts. 590.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil, o disposto nos arts. 4.º, n.º 1, al. b) e j) e art. 9º da Lei n.º 68/2019, de 27 de agosto, e os artigos 26º n.º 1 e 33º da Constituição da República Portuguesa.

Se bem compreendemos a posição do apelante, o mesmo considera que está em causa – apenas – uma irregularidade de representação dos autores, suprível mediante a nomeação de curador especial para efeitos de representação dos menores em juízo, ou mediante a intervenção do Ministério Púbico para que este, em nome e representação dos menores, prossiga os ulteriores termos da ação como representante destes.

E invoca ainda que a decisão recorrida viola os direitos, liberdades e garantias constitucionalmente previstos nos arts. 26.º, n.º 1 e 33.º da CRP, por a decisão proferida implicar que nunca será proposta pela progenitora a ação em nome e representação dos menores.


2.1. Possibilidade de suprimento da irregularidade de representação dos autores

Não se está aqui, diferentemente do que defende o apelante, perante uma mera irregularidade de representação dos menores passível de suprimento.

Estando o exercício das responsabilidades parentais atribuído à mãe dos menores, é esta e só esta que, nos termos conjugados do disposto nos arts. 1878.º, n.º 1, e 1881.º, e no art. 1906.º, n.º 2 e n.º 3, todos do Cód. Civil, detém o poder de representação dos menores como meio de suprimento da sua incapacidade (art. 16.º do Cód. Proc. Civil).

Não tendo o pai dos menores poderes de representação destes, não pode, em nome daqueles, praticar o ato de propositura da ação suprindo a incapacidade judiciária dos mesmos.

Defende o apelante que a ação pode prosseguir com a intervenção de um curador especial, como havia requerido na petição inicial, fundamentado tal pretensão na aplicação do regime do art. 18.º, n.º 3, do Cód. Proc. Civil.

O regime do art. 18.º do Cód. Proc. Civil não tem aqui aplicação. Tal regime é aplicável aos casos em que o menor é representado por ambos os pais e há desacordo entre os mesmos acerca da conveniência de intentar a ação ou quando, estando já instaurada uma ação e no decurso do processo, surge desacordo entre os pais quanto à orientação do processo, sendo na sequência da decisão do juiz quanto à questão do desacordo que pode 1) ser atribuída a representação do menor a um dos progenitores, 2) proceder-se à designação de curador especial ou 3) atribuir a representação do menor ao Ministério Público.

No caso em análise, os menores são representados exclusivamente pela mãe (não cabendo tal situação na previsão legal da existência de desacordo entre progenitores que exercem, em conjunto, as responsabilidades parentais), pelo que é desprovido de fundamento o pedido efetuado na petição inicial de nomeação de curador especial ou de atribuição da representação dos menores ao Ministério Público nos termos e ao abrigo do disposto no art. 18.º do Cód. Proc. Civil.

É ainda invocado no recurso interposto que o apelante ‘suscitou/requereu’ a  intervenção principal do Ministério Público em representação dos menores, face ao «manifestado conflito de interesses entre os Progenitores e os Menores, máxime, entre a Progenitora (a quem cabe tomar as decisões de particular importância na vida dos menores, de entre as quais se inclui a presente demanda) e os Menores» e que, face a tal conflito, «deverá, data vénia, ser deferida a intervenção principal do Ministério Público para, em nome e representação dos menores, prosseguir os ulteriores termos da demanda.»

Diferentemente do que é defendido no recurso, a decisão recorrida apontou a existência de manifesto conflito de interesses entre o progenitor e os menores (e não entre os menores e a progenitora). Independentemente desta precisão, não tem sustentação legal a pretensão de admissibilidade de prosseguimento de uma ação, intentada em nome dos autores menores por quem não tem quaisquer poderes de representação destes, com apelo às disposições legais do Estatuto do Ministério Público, aprovado pela Lei n.º 68/2019, de 27 de agosto, quanto às atribuições do Ministério Público, nomeadamente no âmbito das competências referentes à representação dos incapazes.

A previsão da atribuição de competência ao Ministério Público para a representação dos incapazes, mediante a sua intervenção principal nos processos em que atua em representação dos mesmos, constante dos arts. 4.º, n.º 1, al. b), e 9.º, nº 1, al. c), do Estatuto do Ministério Público, não afasta as disposições específicas sobre a representação de incapazes pelo Ministério Público previstas no Código de Processo Civil, designadamente, nos seus arts. 21.º e 23.º.

Nos termos do n.º 1 deste art. 23.º do Cód. Proc. Civil, incumbe ao Ministério Público, em representação de incapazes e ausentes, intentar em juízo quaisquer ações que se mostrem necessárias à tutela dos seus direitos e interesses. Assim, é ao Ministério Público que cabe decidir da oportunidade e conveniência da instauração de uma ação de impugnação da paternidade em nome e representação dos menores, o que poderá vir a fazer, em representação dos menores – nos termos conjugados dos arts. 1839.º, n.º 1, 1842, n.º 1, al. c), art. 23.º, n.º 1, todos do Cód. Proc. Civil, e arts. 4.º, n.º 1, al. b), e 9.º, nº 1, al. c), do Estatuto do Ministério Público – se e quando entender que tal é necessário à tutela dos direitos dos menores) – sobre a competência própria do Ministério Público para intentar ação de impugnação da paternidade em representação do menor, ver Ac. do TRE de 24-05-2007, proc. 2473/06-2.

Cabendo a decisão quanto à propositura da ação pelo Ministério Público, em representação dos menores, de um juízo seu – do Ministério Público – quanto à necessidade e conveniência da propositura da referida ação para a tutela dos direitos e interesses dos menores (e não de um juízo do pai dos mesmos, que foi quem intentou a ação em nome dos menores apesar de não ter quaisquer poderes de representação destes, não lhe estando atribuído o poder de decisão quanto a questões de particular importância na vida dos menores, como é a decisão de instauração de uma ação para impugnar a paternidade dos menores),  é manifesto que a pretensão do apelante não se traduz num suprimento de uma mera irregularidade através da intervenção principal do Ministério Púbico na ação (na qual, de resto, o mesmo tem intervenção acessória): traduzir-se-ia num obrigatório prosseguimento da ação já intentada, o que contende com a necessidade de prévia  formulação pelo Ministério Público do juízo justificativo da sua intervenção em defesa dos interesses e direitos dos incapazes, traduzindo-se numa inadmissível e infundada imposição de manutenção e prosseguimento de ação intentada em nome dos menores por quem não tinha qualquer poder de representação dos mesmos.

De igual modo, a decisão recorrida não viola a al. j) do n.º 1 do art. 4.º do Estatuto dos Ministério Público: o facto de incumbir ao Ministério Público, no exercício das suas atribuições, velar para que a função jurisdicional se exerça em conformidade com a Constituição e as leis, em nada é beliscado com a decisão de indeferimento liminar objeto de recurso; de resto, o Ministério Público tem intervenção no processo e, no exercício da atribuição prevista na invocada al. j) do nº 1 do art. 4.º do respetivo Estatuto, pronunciou-se (na resposta às alegações de recurso) pelo acerto da decisão recorrida.

Improcedente, deste modo, este fundamento do recurso.


2.2. Inconstitucionalidade da decisão recorrida

Invocou ainda o apelante a inconstitucional da decisão recorrida, por violação dos direitos, liberdades e garantias consagrados nos arts. 26.º, n.º 1, e 33.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), dado que, reconhecendo o tribunal a quo a existência de um conflito de interesses entre a progenitora e os autores, a defesa de que a propositura da ação apenas caberia à progenitora equivale a uma privação dos autores ao exercício dos seus direitos, porque cabendo-lhe única e exclusivamente a decisão de propositura da ação em nome dos menores, tal ação nunca será proposta e nunca será feita justiça.

Dispõe o art. 26.º, n.º 1, da CRP, nos seguintes termos:

Artigo 26.º

(Outros direitos pessoais)

1. A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à proteção legal contra quaisquer formas de discriminação.

Por seu turno, dispõe o art. 33.º da CRP:

Artigo 33.º

(Expulsão, extradição e direito de asilo)

1. Não é admitida a expulsão de cidadãos portugueses do território nacional.

2. A expulsão de quem tenha entrado ou permaneça regularmente no território nacional, de quem tenha obtido autorização de residência, ou de quem tenha apresentado pedido de asilo não recusado só pode ser determinada por autoridade judicial, assegurando a lei formas expeditas de decisão.

3. A extradição de cidadãos portugueses do território nacional só é admitida, em condições de reciprocidade estabelecidas em convenção internacional, nos casos de terrorismo e de criminalidade internacional organizada, e desde que a ordem jurídica do Estado requisitante consagre garantias de um processo justo e equitativo.

4. Só é admitida a extradição por crimes a que corresponda, segundo o direito do Estado requisitante, pena ou medida de segurança privativa ou restritiva da liberdade com carácter perpétuo ou de duração indefinida, se, nesse domínio, o Estado requisitante for parte de convenção internacional a que Portugal esteja vinculado e oferecer garantias de que tal pena ou medida de segurança não será aplicada ou executada.

5. O disposto nos números anteriores não prejudica a aplicação das normas de cooperação judiciária penal estabelecidas no âmbito da União Europeia.

6. Não é admitida a extradição, nem a entrega a qualquer título, por motivos políticos ou por crimes a que corresponda, segundo o direito do Estado requisitante, pena de morte ou outra de que resulte lesão irreversível da integridade física.

7. A extradição só pode ser determinada por autoridade judicial.

8. É garantido o direito de asilo aos estrangeiros e aos apátridas perseguidos ou gravemente ameaçados de perseguição, em consequência da sua atividade em favor da democracia, da libertação social e nacional, da paz entre os povos, da liberdade e dos direitos da pessoa humana.

9. A lei define o estatuto do refugiado político.

Afastamos desde já, sem necessidade de qualquer outra explicação além de que os direitos consagrados no art. 33.º da CRP não são passíveis de serem afetados, seja de que forma for, pela decisão recorrida, uma vez que a mesma nada tem que ver com o exercício de quaisquer direitos protegidos pelas disposições aí consagradas, referentes à expulsão, extradição e direito de asilo, a putativa inconstitucionalidade por violação do disposto no art. 33.º da CRP.

É defendido no recurso que, resultando do processo administrativo de averiguações levado a cabo pelo Ministério Público (n.º ..., junto da Procuradoria do Juízo de Família e Menores do Porto), no qual foram realizados exames periciais de histocompatibilidade hemática aos Autores, ao presumido pai destes (CC) e à Recorrida DD,  médica e clinicamente excluída a paternidade dos autores atribuída ao progenitor inscrito no registo, CC, a decisão recorrida violou o direito fundamental dos autores à sua identidade pessoal, com assento constitucional no art. 26.º, n.º 1, da CRP, por o apuramento da paternidade biológica integrar tal direito fundamental.

É certo que estando em causa uma questão de filiação, um dos direitos com assento constitucional a salvaguardar é o direito à identidade dos menores. Mas não é esse o único direito com proteção constitucional a considerar, como emerge da leitura dos inúmeros acórdãos do tribunal constitucional que têm vindo a recair quer sobre a atribuição da legitimidade para a propositura de ações de impugnação e de investigação da maternidade/paternidade, quer sobre os prazos estabelecidos para o exercício desses direitos – tendo sido, aliás, na sequência da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, da norma constante do n.º 1 do artigo 1817.º do Código Civil, aplicável por força do artigo 1873.º do mesmo Código, na medida em que prevê, para a caducidade do direito de investigar a paternidade, um prazo de dois anos a partir da maioridade do investigante, por violação das disposições conjugadas dos artigos 26.º, n.º 1, 36.º, n.º 1, e 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, decorrente do Acórdão nº 23/2006 do Tribunal Constitucional, que veio a ser alterado, pela Lei n.º 14/2009, de 1 de abril, o referido artigo 1817.º do Cód. Civil.

Assim, outros direitos com proteção constitucional existem que justificam que, inclusive, a proteção do direito do filho ao apuramento da paternidade (verdade) biológica, enquanto dimensão do direito fundamental à identidade pessoal, não seja absoluta, o que justifica o juízo quanto à constitucionalidade da existência de limites temporais para o exercício da instauração das ações de impugnação e de investigação da paternidade que tem vindo a ser maioritariamente afirmado pelo tribunal constitucional, precisamente pela necessidade de compatibilizar tal direito com os valores da certeza e segurança jurídicas, que ficariam colocados em causa com a consagração de um regime de imprescritibilidade das ações de impugnação e de investigação.

Tal resulta, nomeadamente, das decisões proferidas pelo Tribunal Constitucional quanto à suscitada inconstitucionalidade dos arts. 1817.º e do art. 1842.º do Cód. Civil, na redação dada pela Lei n.º 14/2009, de 1 de abril. Conforme é referido no recente Ac. do STJ de 01-02-2023, proc. 1352/21.4T8MTS.P1.S1, «(…) a constitucionalidade do art. 1817.º do Código Civil, na redacção da Lei n.º 14/2009, de 1 de Abril, continuou a ser discutida (….)», aí se enumerando diversos acórdãos do TC que decidiram no sentido da não inconstitucionalidade da atual redação dada ao art. 1817.º (acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 401/2011, de 22 de setembro de 2011; n.º 604/2015 de 26 de novembro de 2015; n.º 309/2016 de 18 de maio de 2016; n.º 89/2019 de 6 de fevereiro de 2019; n.º 499/2019 de 26 de setembro de 2019; ou n.º 173/2019 de 21 de outubro de 2019) e  aí se indicando, no sentido da inconstitucionalidade da ação redação dada ao art. 1817.º do Cód. Proc. Civil, o Ac. do TC n.º 488/2018 de 4 de outubro de 2018.

Como é, de igual forma, dada nota no aresto citado, «(…) a discussão em torno da constitucionalidade do art. 1817.º do Código Civil, na redacção da Lei n.º 14/2009, faz com que fosse proferido, em plenário, o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 394/2019 de 3 de Julho de 2019, em que se decidiu, ainda que por maioria, “[n]ão julgar inconstitucional a norma do artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil, na redacção da Lei n.º 14/2009, aplicável ex vi do disposto no artigo 1873.º do mesmo diploma, na parte em que, aplicando-se às acções de investigação de paternidade, por força do artigo 1873.º do mesmo Código, prevê um prazo de dez anos para a propositura da acção, contado da maioridade ou emancipação do investigante”.(…)», tendo na sequência desse acórdão do Tribunal Constitucional proferido em plenário a maioria da jurisprudência, quer do Tribunal Constitucional, quer do Supremo Tribunal de Justiça, seguido tal juízo de não inconstitucionalidade, com base no entendimento de que «(…) as disposições dos n.ºs 1 e 3 do art. 1817.º do Código Civil correspondem a uma compressão dos direitos do investigante adequada, necessária e proporcional à protecção do direito à reserva de intimidade da vida privada e familiar dos potenciais investigados [17], ou do interesse público na certeza e na estabilidade das relações jurídicas familiares [18].(…)».

No caso em análise, a decisão recorrida não acarreta qualquer compressão inadmissível do direito de personalidade dos apelantes (menores) ao apuramento da verdade biológica e direito à identidade pessoal e ao livre desenvolvimento da personalidade, previsto no artigo 26.º da CRP. A decisão recorrida não retira aos menores o direito de intentarem as competentes ações de impugnação de paternidade e de investigação de paternidade, nos termos e moldes previstos nos arts. 1838.º, 1839.º e 1842.º, e nos arts. 1817.º (este, aplicável ex vi art. 1873.º) e 1869.º, todos do Cód. Civil.

O que a decisão recorrida afirma é apenas que o progenitor dos menores, ao mesmo tempo que afirma que não é pai dos autores, por estar a sua paternidade biológica excluída, não detendo qualquer poder de representação daqueles em virtude o exercício das responsabilidades parentais se encontrar atribuído, por decisão judicial, exclusivamente à mãe dos menores, não pode atuar em representação destes, tomando a decisão de instaurar a presente ação – destinada, além do mais, a impugnar a sua paternidade presumida – em nome e representação dos referidos menores.

E também não é a decisão recorrida que afeta qualquer direito constitucionalmente protegido do progenitor presumido (até porque a decisão recorrida não incide sobre qualquer direito de ação deste, uma vez que a ação em causa foi intentada pelo mesmo não em nome próprio, mas em nome dos menores autores).

Compreende-se, obviamente, o interesse do progenitor presumido (art. 1826.º do CPC) no afastamento da presunção de paternidade, quando tem conhecimento de circunstâncias de onde resulta afastada a sua paternidade presumida. Daí que a lei preveja o direito do ‘pater que não é o genitor’ de impugnar, por si, tal paternidade presumida, conforme resulta do disposto nos arts. 1838.º, 1839.º e 1842.º, todos do Cód. Civil.

 O marido da mãe podia intentar a ação de impugnação da paternidade presumida nos termos e prazos previstos na lei. Se o não fez, sibi imputet (e não ao Ministério Público). Tinha esse direito, em seu nome e na defesa do seu legítimo interesse quanto à impugnação de uma paternidade que considera não ter, o qual lhe foi atribuído por lei, incumbindo-lhe exercê-lo nos termos, prazos e moldes previstos na lei.

Não estando aqui em causa um direito seu, mas sim o direito de personalidade dos autores consagrado no art. 26.º da CRP, a inadmissibilidade da atuação do progenitor na propositura de uma ação em nome dos menores autores relativamente aos quais não possui poderes de representação não afasta nem contende com o direito dos menores poderem ulteriormente praticar os atos necessários à propositura da impugnação da paternidade presumida e de ação de investigação da paternidade (quer ainda enquanto menores, se a progenitora que detém o poder de representação dos mesmos, ou o Ministério Público, na defesa do interesse destes, assim o entenderem; quer após a sua maioridade, dentro do prazo estabelecido na lei – art. 1842.º, n.º 1, al. c) e art. 1817.º, n.º 1, este aplicável por força do disposto no art. 1873.º, todos do Cód. Proc. Civil).

Não existe, assim, nenhuma inconstitucionalidade nem violação de qualquer das disposições legais invocadas, sendo de manter a decisão recorrida.


3. Responsabilidade pelas custas

A decisão sobre custas da apelação, quando se mostrem previamente liquidadas as taxas de justiça que sejam devidas, tende a repercutir-se apenas na reclamação de custas de parte (art. 25.º do Reg. Cus. Proc.).

A responsabilidade pelas custas (da causa e da apelação) cabe ao progenitor dos apelantes, CC, que praticou os atos em nome e representação dos mesmos mas sem poderes de representação, atento o vencimento (art. 527.º do Cód. Proc. Civil).

IV – Dispositivo:

Pelo exposto, na improcedência da apelação, acorda-se em confirmar a decisão recorrida.

Custas a cargo do progenitor dos apelantes menores, CC, que praticou os atos em nome e representação destes mas sem poderes de representação.


*

Notifique.


Porto, 20 de junho de 2024

Ana Luísa Loureiro

António Vasconcelos

Ernesto Nascimento


______________________
[1] Acessível em https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20100446.html?impressao=1.