Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
661/17.1GAFLG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: NUNO PIRES SALPICO
Descritores: CRIME DE EXPLOSÃO
ENGENHOS PIROTÉCNICOS
PERIGO CONCRETO
Nº do Documento: RP20240619661/17.1GAFLG.P1
Data do Acordão: 06/19/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL ( CONFERÊNCIA
Decisão: PROVIMENTO PARCIAL
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: No crime de explosão previsto no art.272º nº1 alínea b) do CP os índices de concretização típica do perigo para a vida ou integridade física, não obstante a perigosidade abstrata das cargas explosivas de pirotecnia, a existência de cargas explosivas não detonadas em determinados locais, a par do seu perigo abstrato, pode o mesmo transmutar-se em perigo concreto, pelas possibilidades de concretização do mesmo, quando essas cargas se situem em plena via de trânsito (atentas as possibilidades de fricção e impacto, em especial numa travagem), seja próximo de aglomerados populacionais, perante crianças, se forem esses os fatores de ignição.

(Sumário da responsabilidade do Relator)
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc.Nº661/17.1GAFLG.P1
X X X
Acordam em conferência, na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

No processo comum com intervenção do Tribunal Coletivo do Tribunal judicial da comarca do Porto Este, Juízo Central Criminal de Penafiel, realizado julgamento foi proferido acórdão julgando:
Pelo exposto, decide o Tribunal Coletivo.
a. Condenar o arguido AA pela prática de um (1) crime de incêndios, explosões e outras condutas especialmente perigosas agravado pelo resultado, previsto e punido pelas disposições conjugadas do artigo 272º, nº1, al. b) e 18º e 285º do Código Penal, na pena de 5 (cinco) anos de prisão que se suspende na sua execução por igual período, suspensão sujeita ao pagamento no mesmo lapso temporal, da quantia global a seguir fixada e devida a título de indemnização ao assistente/demandante, a pagar mensalmente, em quantia não inferior a €200 (duzentos euros) mensais, com inicio no mês subsequente ao trânsito em julgado da presente decisão – artigos 50º, nº1, 3, 5 e 51º, nº1, l. a) ambos do Código Penal, absolvendo-o do crime de que vinha acusado.
b. Julgar parcialmente procedente, por parcialmente provado o pedido de indemnização civil deduzido por BB e, em consequência,
c. condenar solidariamente os demandados AA; a sociedade “A..., Ldª” a pagar ao demandante a quantia global de €610 000 (seiscentos e dez mil euros) acrescida de juros à taxa legal desde a notificação até efetivo e integral pagamento, absolvendo-os do mais peticionado;
d. Condenar a seguradora B..., Companhia de Seguros, S.A. (solidariamente com a demandada “A..., Ldª”) ao pagamento do montante de €54 450 (cinquenta e quatro mil quatrocentos e cinquenta euros) acrescida de juros à taxa legal desde a respetiva notificação até efetivo e integral pagamento (consubstanciado no capital seguro, deduzido da franquia contratada);
e. Mais se absolve a demandada CC de tudo o que contra si foi peticionado.
f. Condenar o arguido AA nas custas da parte criminal com taxa de justiça que se fixa em 3 (três) unidades de conta;
g. Condenar o demandante BB, AA, a sociedade “A..., Ldª”, e a Companhia de Seguros B..., Companhia de Seguros, S.A.) nas custas da parte civil, na proporção do decaimento.
*
Não se conformando com a decisão, o arguido veio interpor recurso, com os fundamentos constantes da motivação e com as seguintes conclusões:
1º Por douto acórdão de fls. , proferido nos autos supra referenciados, de forma sintética, o arguido foi condenado pela prática de um crime de incêndios, explosões e outras condutas especialmente perigosas, agravado pelo resultado, p.p. pelas disposições conjugadas dos artigos 272º nº 1, alínea b), 18º e 285º, todos do Código Penal, na pena de 5 anos de prisão, suspensa na sua execução, por igual período, suspensão esta condicionada ao pagamento, no mesmo lapso temporal, de quantia não inferior a € 200,00, ao ofendido/assistente, com início no mês subsequente ao trânsito em julgado da decisão, nos termos do disposto nos artigos 50º nº 1, 3 e 5 e 51º nº 1 alínea a), todos do Código de Processo Penal, tendo, ainda, sido condenado, solidariamente com a sociedade A..., no pagamento, ao demandante, da quantia de € 610.000,00, acrescida de juros contados desde a notificação até efectivo e integral pagamento, bem como, finalmente, nas custas de parte criminal e nas custas civis na proporção do decaimento.
2º O recorrente discorda, em absoluto, com as condenações que lhe foram aplicadas, tanto na parte criminal, como na parte civil, na medida em que considera que a prova produzida em audiência de discussão e julgamento não foi devidamente apreciada e valorada, tendo ocorrido erro notório na sua apreciação, e até insuficiência para a decisão da matéria de facto dada como provada, tendo em conta todos os meios de prova carreados para os autos, designadamente, prova documental, testemunhal e até pericial, erros, estes, notórios e flagrantes que, na apreciação da prova produzida, conduziram a uma decisão totalmente desconforme e desajustada à realidade dos factos e ao que resultou das próprias audiências de julgamento, daí a instauração do presente recurso, tanto na parte criminal como na parte civil.
3º Com interesse para o presente recurso, o Tribunal a quo considerou, designadamente, e nomeadamente, como provados, todos factos que supra se elencaram nas alegações e que aqui se dão por integralmente reproduzidos para os devidos e legais efeitos, apenas não se procedendo à sua enumeração por meras questões de brevidade processual, tendo sido os factos acima referidos erradamente dados como provados, e tendo existido erro notório na apreciação de toda a prova produzida em audiência de julgamento sendo que, ao invés, deveriam ter sido, tais factos, dados como não assentes.
4º Em primeiro lugar, há que referir a forma como as declarações prestadas pelo arguido foram totalmente desconsideradas e até valoradas em sentido prejudicial ao próprio arguido, o que a lei, de todo, impede, nos termos do disposto no artigo 343º do CPP que, por conseguinte, foi objecto de violação, porquanto o silêncio do arguido nunca lhe pode ser prejudicial, chegando o douto acórdão recorrido a afirmar que, o facto de o arguido ter prestado declarações apenas no final da audiência de julgamento, e apenas sobre dois pontos concretos, impedem que as mesmas sejam devidamente consideradas.
5º Tal afirmação é inadmissível, uma vez que o silêncio do arguido nunca lhe pode ser desfavorável, bem como, nunca lhe pode ser desfavorável o momento em que preste declarações ou os concretos pontos sobre os quais pretenda prestar declarações, daí que as suas declarações deveriam ter sido valoradas no que tange ao local do lançamento que, como o arguido devidamente explicou, não ocorreu no local onde foram encontrados alguns resíduos, mas sim no meio do campo contíguo à propriedade onde o ofendido se encontrava a trabalhar no dia do acidente, tendo tal lançamento ocorrido no local onde estava licenciado, tendo sido cumprida a exigência legal e regulamentar nesse sentido.
6º Inexistem razões para duvidar de tais declarações, tanto mais que as mesmas acabam por ser corroboradas por fotografias constantes dos autos onde se verifica que tais resíduos consistem numas meras sobras, sem qualquer tipo de perigosidade, sendo constituídas por materiais inertes, plásticos e cartão, conforme até se pode verificar pelas fotografias juntas nos autos.
7º Quanto à questão do material encontrado no local pertencer à A..., inegavelmente, existia algum material que continha os dizeres desta sociedade, mas, conforme se pode verificar pelas fotografias juntas aos autos, esse material era exclusivamente constituído por cartão, plásticos e outro tipo de resíduos completamente inofensivos e sem qualquer aptidão ou capacidade de provocar qualquer tipo de explosão ou que, sequer, colocasse, por qualquer forma, quem quer que fosse, em qualquer tipo de risco para a integridade física.
8º No local onde o sinistro ocorreu apenas foram encontrados, com os dizeres da sociedade A..., cartões (balonas) vazias, que não continham qualquer artefacto explosivo no seu interior, e, por conseguinte, totalmente inofensivos, ao passo que os artefactos explosivos que foram encontrados não continham qualquer dizer ou referência à sociedade A..., acabando por ter sido destruídos, pelas autoridades policiais, nesse mesmo dia, conforme consta dos autos, pelo que inexistiu qualquer prova segura e cabal, e para além de qualquer dúvida, que o artefacto, ou artefactos explosivos que causaram as lesões na vítima tenham a sua origem na A... e/ou no lançamento efectuado pelo arguido dias antes, sendo inadmissível que o douto acórdão recorrido parta para a pressuposição (inadmissível), que os artefactos explosivos fossem da A... e resultassem do lançamento realizado pelo arguido quando nenhuma relação segura foi possível estabelecer.
9º Existe, assim uma total insuficiência da matéria provada para a decisão tomada, pois não se pode dar como assente, para além de qualquer dúvida, que esses artefactos explosivos encontrados e não deflagrados, pertencessem à A..., e muito menos se pode assegurar que o, ou os artefactos, que explodiram e causaram as lesões na vítima fossem provenientes da A... e do lançamento realizado pelo arguido, ocorrendo, assim, uma total ausência de prova.
10º O material explosivo que foi encontrado deveria ter sido peritado para permitir uma inequívoca relação entre o lançamento efectuado pelo arguido e o material pertença da A..., o que não ocorreu, tendo-se optado pela destruição de material de prova fulcral, pretendendo agora o douto acórdão suprir uma deficiência inultrapassável a nível probatório, tirando conclusões que vão muito além daquilo que resulta da matéria provada.
11º As considerações quanto à limpeza do local na sequência dos lançamentos efectuados pelo arguido, embora possam constituir contraordenações, são totalmente irrelevantes para a questão destes autos, pois necessário se torna estabelecer uma inequívoca relação entre a explosão ocorrida e artefactos propriedade da A... e lançados pelo arguido, pois os materiais encontrados no local (para além dos explosivos que não continham qualquer indicação ou dizer da sociedade A..., nem do arguido) em nada foram causadores ou sequer eram aptos a produzir qualquer resultado nefasto na vida ou integridade física de qualquer pessoa, sendo que, A ESTE TÍTULO TUDO FICOU POR SABER E TUDO FICOU POR PROVAR, PELO QUE AS DEDUÇÕES EFECTUADOS NO DOUTO ACÓRDÃO CARECEM, TOTALMENTE, DE MATÉRIA PROBATÓRIA NESSE SENTIDO.
12º Quanto às circunstâncias em que o rebentamento ocorreu e na sua sequência foram causadas lesões na vítima, as contradições são imensas e insanáveis, para além da prova produzida ir no sentido diametralmente oposto da decisão tomada.
13º Ao longo dos autos existiram várias versões do sucedido, aquando do rebentamento ocorrido, tendo todas estas versões passado para segundo plano quando o ofendido se apresentou em Tribunal de manga curta, exibindo, ostensivamente, as suas lesões que, de imediato, sensibilizaram, o Tribunal que, a partir daí, relegou para segundo plano o apuramento cabal dos factos efectivamente sucedidos, desvalorizando, claramente, todas as contradições e inconsistências que lhe foram colocadas.
14º Naturalmente que se lamenta o sucedido ao ofendido, mas tal não pode, de modo algum, orientar o sentido da decisão final sem uma criteriosa e rigorosa análise de toda a prova produzida e das suas inconsistências e contradições.
15º No auto de notícia, aquando da ocorrência do sinistro, quando todos os factos estão bem presentes no espírito de todos os intervenientes, é referido que o ofendido e a testemunha DD “andavam a verificar o sistema de rega dos kiwis e que a vítima encontrou uma caixa de cartão com a forma cilíndrica suspeitando desde logo que se tratava de um artigo pirotécnico (…)”, ISTO SEGUNDO INFORMAÇÕES TRANSMITIDAS PELA DITA TESTEMUNHA DD.
16º Posteriormente, e já a 21/03/2018, e já depois do ofendido ter sido inquirido em sede de inquérito, veio esta testemunha DD referir que estava afastado da vítima e que ouviu um forte estrondo, que associou, de imediato, a uma explosão, vinda do local onde o colega (ofendido) estava a trabalhar, apenas tendo visto que ele (ofendido) estava com as mãos decepadas, ou seja, no momento em que os factos ocorrem, a testemunha DD recorda-se perfeitamente de ter visto a vítima a encontrar uma caixa de cartão de forma cilíndrica, que logo suspeitaram ser artigo pirotécnico, tendo relatado este facto aos agentes que elaboraram o auto de notícia, mas depois, decorridos 7 meses, já não se recordava deste facto essencial de ter o ofendido encontrado a dita caixa de cartão cilíndrica que suspeitaram ser um artigo pirotécnico (!!!) tudo, ainda, cumulado com o facto de esta ausência de memória ser muito conveniente com o depoimento que entretanto o próprio ofendido havia prestado!!!
17º Na douta acusação pública é referido que o ofendido se encontrava “a trabalhar numa plantação de kiwis na quinta sita na Rua ..., ..., Felgueiras, mais concretamente a verificar o sistema de rega e a retirar a lenha seca” e que, no seu artigo 15º:
“O ofendido BB pegou no artigo pirotécnico e ia afastá-lo do local onde passava o tractor e de imediato deu-se o rebentamento.”
18º Já no fim das audiências de discussão e julgamento, o Tribunal recorrido decidiu proceder aquilo que designou por alteração da qualificação jurídica dos factos quando, na realidade, efectuou uma alteração substancial dos factos relatados na acusação, como infra melhor se explanará, e que constitui uma inadmissível nulidade e não deverá ser acolhida, porquanto veio considerar que:
“14. Então, a cerca de 46,70 metros do local do seu lançamento e sem que ele dele (artigo pirotécnico) se apercebesse, rebentou junto de BB, explodindo, um artigo pirotécnico lançado nos termos referidos em 10);
19º No pedido de indemnização civil o ofendido/demandante afirma que “estava a proceder à limpeza dos aspersores que se encontravam pendurados nos tubos de água de rega automática que se encontravam na ramada dos kiwis, a cerca de 80 cm de altura e à limpeza de lenhas secas”.
20º Ainda em julgamento, o mesmo ofendido vem com outra versão afirmando que andava a tirar ramos secos dos kiwis. Um desabafo neste momento apenas para deixar bem expresso que o ofendido nunca poderia vir carrear para os autos, no seu depoimento, uma versão que o “incriminasse” ou que determinasse a sua inelutável contribuição para o
sucedido, pois bem sabia que se assim o fizesse a lide teria um desfecho totalmente diferente daquele que teve, e que veria todas as suas exageradas pretensões ruir que nem um castelo de cartas.
21º Verificou-se, então, que a testemunha DD, de forma totalmente comprometida, acabou por relatar em julgamento que nada viu, quando, em inquérito, e aos agentes que elaboraram o auto de notícia, relatou que havia visto, com clareza, que a vítima havia encontrado uma caixa de cartão cilíndrica que suspeitaram ser um artigo pirotécnico!!!
22º Aqui chegados, à vítima, bastou manter a sua versão de que ao puxar uns ramos secos ocorreu um rebentamento (!!!!) para o Tribunal balizar o seu raciocínio, tendente à condenação, no facto do rebentamento ter tido origem num artefacto pirotécnico, do qual nada se sabe, nem peritagens existem, nem vestígios existem, nem tão pouco os outros artefactos que supostamente foram encontrados foram peritados ou analisados ou sequer houve o cuidado de verificar se neles existia algum dizer que o relacionasse à A... ou ao arguido!!!
23º Acresce que todos os agentes de autoridade pública que depuseram em Tribunal orientaram os decisores sempre relatando supostas situações semelhantes e extremamente perigosas, mas nunca concretizando de que forma as mesmas ocorreram, apenas relatando acidentes ocorridos em circunstâncias totalmente diversas das aqui em causa, designadamente, em paióis, durante o processo de fabrico ou armazenamento, e que nada têm que ver com o caso dos autos em que terá ocorrido um rebentamento a céu aberto.
24º O Tribunal, “sensibilizado” pela visualização das lesões do ofendido, “colocou tudo no mesmo saco” no que diz respeito à forma como ocorreram explosões de artefactos pirotécnicos, pretendendo apenas obter uma condenação do arguido e dos responsáveis civis, não cuidando de perceber se o próprio ofendido não teria contribuído para o evento danoso na sua totalidade ou sequer em parte, chegando a ser referido no douto acórdão recorrido que “(…) importa salientar que não resultou da prova produzida qualquer indício de um qualquer contributo do ofendido para o rebentamento do artefacto, designadamente, por ignição fosse de que forma fosse.”
25º Mas é caso para perguntar…
Estaria, sinceramente, o Tribunal à espera que o ofendido confessasse que Tinha tido qualquer tipo de intervenção ou contribuição para a produção desse resultado que lhe sucedeu?? Fosse contribuição total… fosse contribuição parcial??
26º Os apelidados depoimentos experimentados e conhecedores dos agentes da autoridade (como é referido no douto acórdão recorrido) não deveriam ter sido valorados na forma como o foram na simples medida em que as situações por eles relatadas em nada têm que ver com a situação dos presentes autos, tendo essas relatadas ocorrido em condições totalmente diversas daquelas aqui em análise, e relatadas de forma orientada, vaga, imprecisa e ligeira, pretendendo sempre orientar o Tribunal apenas num sentido (da condenação do arguido e responsáveis civis).
27º Quanto aos depoimentos das testemunhas EE e FF, ambos pirotécnicos (o último reformado), os seus depoimentos foram totalmente desvalorizados e até ridicularizados, sendo pessoas com dezenas de anos de experiência no sector e no manuseamento, lançamento, produção e transporte deste tipo de artefactos, sendo que as mesmas, recorrendo à sua vasta experiência, foram unânimes em referir que era impossível ocorrer a explosão de um artefacto pirotécnico nas condições em que este ou estes teriam ocorrido (ao ar livre e passados vários dias ou meses de ali se encontrarem), a não ser que tivesse ocorrido ignição realizada pelo próprio ofendido, cumulado com o facto das lesões por ele sofridos isso mesmo revelarem, conforme depoimentos que supra se transcreveram em sede de alegações e aqui se dão por reproduzidos.
28º Como se tal não bastasse, veio a ser inquirida uma outra testemunha (Professor Universitário GG) que, esse sim, não só devido aos seus conhecimentos científicos na matéria (de física e química), não permitiu que o Tribunal ridicularizasse o seu depoimento, sendo uma pessoa reconhecida a nível nacional e internacional nesta matéria, em que trabalha já desde o ano de 1990, sendo que, contudo, não se coibiu o douto acórdão recorrido de o desvalorizar totalmente, e até o interpretar em sentido diametralmente oposto aquilo que por esta testemunha foi dito, tendo esta testemunha esclarecido, devidamente, as únicas circunstâncias em que estes engenhos pirotécnicos podem explodir, quando em condições semelhantes aquelas em que estes foram encontrados (ao ar livre), afirmando, inequivocamente, que só explodem por IGNIÇÃO, FRICÇÃO, ou IMPACTO, sendo que não se entende como é que o douto acórdão recorrido recolhe um exemplo e paralelismo com um objecto metálico exposto à luz solar
e à areia da praia!!!!!!
29º Esta testemunha relatou, de forma clara o que acima se transcreveu em alegações e que aqui se dá por integralmente reproduzido, para os devidos e legais efeitos, sendo que tal depoimento assentou numa profunda credibilidade e conhecimentos técnicos e científicos, totalmente descomprometido com qualquer resultado da lide aqui em causa e que permitiu concluir que um artefacto pirotécnico como o destes autos apenas poderia deflagrar por:
- ignição (temperatura superior a 200º);
- fricção intencional;
- impacto igualmente intencional;
30º Nenhuma destas situações se compagina com o facto do ofendido se encontrar, supostamente, a verificar o sistema de rega e a recolher ramos secos dos kiwis, quando, sem nada o fazer supor, algo explodiu (!!!), sendo que todas as outras situações que as autoridades policiais referem, ocorrem em ambientes totalmente diversos do aqui em causa, ou seja, ambientes de produção de materiais pirotécnicos, paióis, armazéns, ou seja, espaços confinados, onde estes materiais possuem comportamentos diversos e onde concorrem outros elementos que não aqui se encontram presentes.
31º Só por aqui seria suficiente para o Tribunal considerar que a ter explodido um artefacto pirotécnico nas mãos do ofendido, ele tenha ocorrido porque o ofendido para tal contribuiu tendo, necessariamente, que proceder à sua ignição, e só assim poderia se porque o Tribunal não atentou noutro pormenor de extrema relevância, a saber, AS LESÕES DO OFENDIDO E O LOCAL ONDE AS MESMAS SE LOCALIZAM…
32º Veja-se que o ofendido ficou com as duas mãos amputadas e com lesões no tronco e cabeça, o que permite concluir, para além de qualquer dúvida, que o artefacto explodiu NAS MÃOS DO OFENDIDO, LESIONANDO AINDA O SEU TRONCO E CABEÇA, MAS QUE, PARA TAL OCORRER DESSA FORMA, O OFENDIDO TERIA DE ESTAR A AGARRAR E SEGURAR NO ARTEFACTO PIROTÉCNICO QUANDO ESTE EXPLODIU, E ESSE ARTEFACTO PIROTÉCNICO (como o Prof. GG explicou cabalmente) SÓ EXPLODIRIA SE:
SUJEITO A UMA IGNIÇÃO SUPERIOR A 200º OU FOSSE SUJEITO A FRICÇÃO
OU FOSSE SUJEITO A IMPACTO Nunca esquecendo que a própria testemunha DD ter transmitido aos agentes que elaboraram o auto de notícia, no próprio dia do sinistro e uns minutos depois do mesmo ter ocorrido, QUE O OFENDIDO HAVIA ENCONTRADO UM ARTEFACTO PIROTÉCNICO!!
33º Não olvidar, ainda, que foram as próprias testemunhas EE e FF que referiram que, tendo em conta a sua experiência, as lesões vistas no ofendido apenas poderiam ter ocorrido se o mesmo tivesse procedido à ignição de um artefacto pirotécnico, E QUE ESSES ARTIGOS PIROTÉCNICOS SÓ DEFLAGRAM NAS CONDIÇÕES JÁ REFERIDAS SUPRA QUANDO NOS REFERIMOS AO DEPOIMENTO DA TESTEMUNHA PROFESSOR GG., conforme depoimentos destas testemunhas transcritos em alegações e que aqui se dão por reproduzidos.
34º DE TODAS AS TRANSCRIÇÕES DOS DEPOIMENTOS ORA REALIZADAS, SIGNIFICA QUE, SENDO O OFENDIDO, PESSOA CAPAZ DE QUERER E ENTENDER, PERCEBENDO E COMPREENDENDO QUE NÃO DEVERIA PROCEDER À IGNIÇÃO DE UM ARTEFACTO PIROTÉCNICO, NÃO SE COIBIU DE O FAZER, TENDO SIDO ELE PRÓPRIO O ÚNICO RESPONSÁVEL NA PRODUÇÃO DO EFEITO DANOSO, daí que se deveria ter dado como não provada, designadamente, toda a matéria acima referida e transcrita, dando-se como provado que o ofendido contribuiu, exclusivamente, para a produção do efeito danoso, sendo que, mesmo que assim não se entendesse, sempre teve o mesmo uma contribuição decisiva e fulcral na produção desse evento danoso, com as devidas e legais consequências.
35º Errou, assim, notoriamente, o Tribunal a quo na apreciação da prova produzida e acima referida, não tendo atentado devidamente nas contradições entre ela existentes e nas reais condições em que este tipo de artefactos pirotécnicos explodem, ignorando que as lesões sofridas pelo ofendido apenas são compatíveis com o facto de estar a segurar/agarrar um engenho pirotécnico e não a limpar ramos de kiwis ou a verificar o sistema de rega quando, subitamente, sem qualquer tipo de acção externa, um artefacto pirotécnico rebenta (!!!!!!).
36º Toda a factualidade dada como assente pela douta sentença recorrida no que diz respeito à forma como o sinistro sucedeu e na forma como a douta sentença o entendeu e nos concretos pontos acima referidos, deverá ser dada como não provada, dando-se como assente, ao invés, que foi o ofendido que, com a sua actuação, de segurar e agarrar artefactos pirotécnicos e a eles fazer chegar uma fonte de ignição, concorreu para o resultado verificado (lesões no próprio), devendo absolver-se o arguido, com as devidas e legais consequências,
37º Sendo que as provas que impõem decisão diversa da recorrida são aquelas que supra se referiram, transcreveram e ainda a conjugação dessas mesmas provas com as regras da experiência comum, e verificando a existência das contradições apontadas nas declarações e versões da acusação e do ofendido, com os resultados produzidos, naturalmente que devem impor.
DO PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CÍVEL
38º Devendo o arguido ser absolvido, naturalmente que o pedido de indemnização cível deverá improceder, não apenas relativamente ao arguido, como também relativamente aos demais demandados civis, o que se requer e invoca, ao abrigo do disposto no artigo 402º nº 2 alínea b) do CPP.
39º Mesmo que assim não se entenda, sempre se dirá que os valores arbitrados no douto acórdão recorrido se revelam de um exagero desmesurado, não só face ao que vem sendo decidido em termos jurisprudenciais, como até doutrinais e por fim face até a questões de bom senso e equilíbrio.
40º Quanto aos danos patrimoniais, em primeiro lugar, a incapacidade fixada nos relatórios periciais juntos aos autos foi baseada num relatório elaborado em sede laboral, afirmando, mesmo que, neste momento, não é possível aferir o valor exacto desse prejuízo (!!), havendo, ainda, a possibilidade do exercício de outras profissões, desconhecendo-se, em concreto, quais, e ainda quais os esforços acrescidos que terá o ofendido de levar a efeito para as realizar, não sendo, assim, possível determinar a diferença entre o ganho profissional antes do evento em causa e os ganhos previsíveis após a consolidação das lesões, não sendo possível determinar, com exactidão, estes últimos ganhos.
Conclui o douto acórdão recorrido que existem uma variedade de circunstâncias que impedem a averiguação do valor exacto dos danos, pelo que apenas resta o recurso à equidade.
41º Postas estas dificuldades, reconhecidas pelo próprio acórdão recorrido, entende e justifica o mesmo apenas que tendo presente a idade do ofendido, e tendo presente a experimentação da sua incapacidade (que, realce-se, ainda nem sequer se encontra definitivamente fixada, dadas as variáveis acima enunciadas e reconhecidas pelo próprio acórdão recorrido) acaba este por entender como adequada a fixação de uma indemnização no valor de € 320.000,00 (!!!)
42º Nada mais é justificado, sendo que mesmo alegando a equidade, necessário se torna explicar porque se fixou esse valor e não um outro, a fim de que os sujeitos processuais e a comunidade em geral o possam entender e sobretudo sindicar.
Ora, com base nesta singela “explicação”, como poderão os demandados sindicar ou pretender rebater o valor fixado?? Que, naturalmente, peca por um exagero gritante, além de totalmente desprovido de qualquer fundamento ou justificação?? E tendo ainda ignorado, totalmente, a contribuição do lesado para a verificação do resultado, pelo que violou, assim, o douto acórdão recorrido o disposto nos artigos 493º e 497º do CC, e 205º nº 1 da Constituição da República Portuguesa.
43º Quanto aos danos morais, fixados em € 290.000,00 vale, em toda a linha, o mesmo raciocínio anteriormente expendido, e sobretudo a total ausência de um raciocínio lógico e consubstanciado com a realidade, revelam-se os mesmos totalmente exagerados e desprovidos de fundamento, tentando o douto acórdão recorrido afirmar que à luz da jurisprudência actual o valor agora fixado a este título se revela justo e equilibrado.
Mas é caso para perguntar… que jurisprudência??
É que, tão pouco, o acórdão recorrido fornece um exemplo da dita jurisprudência que fixe ou atribua valores semelhantes a estes ou que permita uma dedução lógica e substanciada destes mesmos valores.
44º Existe uma omissão total de justificação desses mesmos valores, para além deles se relevarem totalmente exagerados, e para além de ignorarem a contribuição do ofendido na produção do resultado, violando, aqui, igualmente, o douto acórdão recorrido, o disposto nos artigos 493º e 497º do CC e e 205º nº 1 da Constituição da República Portuguesa.
QUESTÕES DE DIREITO
45º O Tribunal recorrido pretendeu, no final das audiências de discussão e julgamento, realizar uma alteração substancial dos factos relatados naquela douta acusação pública, relativamente aos quais acabou por não ser dado ao arguido e demandados civis a oportunidade de se pronunciarem devidamente e produzirem prova no sentido do esclarecimento dos factos então aduzidos, pois, sob a capa de uma mera alteração da qualificação jurídica dos factos relatados na acusação pública, veio o Tribunal a quo, de facto, proceder a aditamentos e alterações aos próprios factos relatados naquela douta acusação pública, o que, de forma inelutável, conduz à dita alteração substancial dos factos prevista no artigo 359º do CPP.
46º Toda a factualidade relatada naquele despacho de alteração da qualificação jurídica, e designadamente, o vertido sob os pontos 9 a 14, inclusive, e 17 a 24, inclusive, desse despacho, constituem factos novos, sobre os quais, o arguido não teve oportunidade de se pronunciar, nem produzir prova, tendo o arguido se oposto a tal alteração, nos termos do disposto nos nº 3 e 4 do artigo 359º do CPP e até requereu que lhe deveria ser dada a oportunidade de sobre esses factos se pronunciar (e nunca num prazo de 3 dias!!!!) e sobre eles produzir prova, no que não foi atendido.
47º Atente-se no facto 14 constante do despacho agora em causa em que foi expresso:
“14. Então, a cerca de 46,70 metros do local do seu lançamento e sem que ele dele (artigo pirotécnico) se apercebesse, rebentou junto de BB, explodindo, um artigo pirotécnico lançado nos termos referidos em 10); Sublinhado nosso
Sendo que este “singelo” facto contraria, em absoluto, a factualidade descrita na douta acusação pública, constituindo, assim, uma gritante alteração substancial dos factos aí descritos, pois, nessa douta acusação pública é referido, sob o artigo 15º o seguinte:
“O ofendido BB pegou no artigo pirotécnico e ia afastá-lo do local onde passava o tractor e de imediato deu-se o rebentamento.” Sublinhado nosso
48º É óbvio que esta alteração, então pretendida, consubstanciava, como consubstancia, claramente, a dita alteração substancial dos factos, pois tendo-se referido na douta acusação pública que o ofendido pegou no artefacto pirotécnico, acabou por ser referido, no douto despacho em crise, que um engenho pirotécnico explodiu, sem que o ofendido dele se tivesse apercebido…
49º Pelo que se verificou, neste particular, uma completa, total e nova versão da factualidade aduzida na acusação pública, que determina uma total alteração do circunstancialismo fáctico em que o sinistro ocorreu, alterando, por completo, toda a versão dos factos em discussão e orientando numa forma diametralmente oposta toda a discussão realizada em sede de audiência de julgamento, nunca tendo sido dada oportunidade ao aqui arguido e demandados civis para se pronunciarem e defenderem sobre esta tese, totalmente distinta e contraditória, daquela pela qual ele (arguido) vinha acusado e eles (intervenientes civis) demandados.
50º Violou, assim, o douto acórdão recorrido, o disposto no artigo 359º do CPP.
Termos em que devem ser consideradas procedentes as conclusões acima descritas, assim se fazendo ao recorrente (e demandados civis) a inteira e devida, JUSTIÇA.
*
O Digno Procurador apresentou contra-motivação sustentando em síntese o seguinte:
DO OBJECTO DO RECURSO
Por Douto Acórdão de 1 de Setembro de 2023, foi decidido:
Condenar o arguido AA pela prática de um (1) crime de incêndios, explosões e outras condutas especialmente perigosas agravado pelo resultado, previsto e punido pelas disposições conjugadas do artigo 272º, nº1, al. b) e 18º e 285º do Código Penal, na pena de 5 (cinco) anos de prisão que se suspende na sua execução por igual período, suspensão sujeita ao pagamento no mesmo lapso temporal, da quantia global a seguir fixada e devida a título de indemnização ao assistente/demandante, a pagar
mensalmente, em quantia não inferior a €200 (duzentos euros) mensais, com inicio no mês subsequente ao trânsito em julgado da presente decisão – artigos 50º, nº1, 3, 5 e 51º, nº1, l. a) ambos do Código Penal, absolvendo-o do crime de que vinha acusado.

Inconformado, vem o recorrente alegar que a prova produzida em audiência de discussão e julgamento não foi devidamente apreciada e valorada, tendo ocorrido erro notório na sua apreciação, e até insuficiência para a decisão da matéria de facto dada como provada, tendo em conta todos os meios de prova carreados para os autos, designadamente, prova documental, testemunhal e até pericial, erros, estes, notórios e flagrantes que, na apreciação da prova produzida, conduziram a uma decisão totalmente desconforme e desajustada à realidade dos factos e ao que resultou das próprias audiências de julgamento

Ora, entendemos não assistir razão ao recorrente.
Uma vez que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, na respectiva motivação, são as seguintes as questões a apreciar, já que o recorrente nelas alicerça a sua posição, quanto ao que ao Ministério Público cumpre apreciar.
(…)
II – DO LOCAL DO LANÇAMENTO E DA PROPRIEDADE DOS ARTEFACTOS ENCONTRADOS NO TERRENO CONTÍGUO
Da prova produzida e audiência de julgamento e da prova documental junta aos autos, não resultam dúvidas acerca do local de lançamento, não obstante o arguido, a final ter requerido que lhe fosse concedida a palavra e ter dito que o local do lançamento não era o que ali tinha sido referido como tendo sido. Com efeito tal resultou provado dos testemunhos, nomeadamente de HH, militar da GNR à data e agora a exercer funções no Posto Territorial ... e que foi quem logo se deslocou ao local após a explosão tendo sido quem elaborou o auto de notícia e recolheu os primeiros elementos objetivos que exarou em croquis que anexou àquele; de II, militar da GNR, que então desempenhava funções na Secção SEOD (Explosive Ordenance Disposal) do Comando Territorial ... e agora desempenha idênticas funções para o Parlamento Europeu integrado no exército da Bélgica que se deslocou ao local, o examinou e recolheu todo o material pirotécnico que ainda aí se encontrava; da testemunha JJ, Sargento-Mor da GNR atualmente na reserva mas à data a chefiar a equipa de EOD do Comando Territorial ... e que subscreveu o documento de fls. 147 e ss.; da testemunha KK, também operador EOD no Comando Territorial ... e que participou na elaboração de tal documento.
O local onde foi efectuado o lançamento do fogo nos dias 29 de Julho e 5 e 6 de Agosto de 2017, resulta, sem margem para dúvidas, da Licença para lançamento ou queima de fogos de artifício da sociedade A... de fls. 9 e ss;
do pedido autorização para utilização de fogo de artificio – fls. 15 e ss;
da declaração junta com o pedido de licenciamento de onde decorre a indicação do lançador inicialmente previsto, assim como o tipo de fogo, quantidade e calibre previsto de fls. 16;
do plano de Montagem elaborado pela Sociedade A... de fls.17;
do plano de Segurança de fls. 18;
e do relatório de fls. 37-39 e fotografias juntas decorre ter sido encontrados logo após o evento vários vestígios e artefactos pirotécnicos com a identificação da Sociedade A... e onde é descrita a forma como foram destruídos
Além do mais, resultou provado que, após o lançamento do fogo de artifício referido, nem o arguido nem qualquer outra pessoa a mando da sociedade “A...…” procederam à recolha das sobras resultantes do lançamento do fogo de artifício, assim como não recolheram os artigos pirotécnicos que, por qualquer razão e apesar de lançados, não deflagraram; o que criou para as pessoas que encontrassem os artigos pirotécnicos lançados e não deflagrados ou que estivessem nas suas imediações o perigo de perder a vida ou de sofrer lesões na sua saúde e integridade física.
Além do mais, o facto de o arguido ter dito que o local foi outro, um pouco mais afastado nunca iria alterar a sua responsabilidade, pois resultou provado que os artefactos de explodiram e os que ficaram na quinta dos kiwis eram da A....
Acresce que tendo sido a sociedade A... e o arguido AA quem fez o lançamento nas festas ... realizadas entre 29 de Julho e 6 de Agosto de 2017, não tendo ocorrido segundo as testemunhas Pároco LL e Presidente da Junta daquela freguesia, MM, ali ou nas proximidades, qualquer outra festa em que tivesse sido lançado fogo de artificio; não tendo a sociedade “A...” sido objeto de qualquer furto de material pirotécnico (como confirmou CC para o efeito instada) e estando parte do material encontrado no local onde se deu a explosão identificado com os dizeres e identificação de tal sociedade (cfr. já citado documento de fls. 8), impõe-se concluir que o artigo pirotécnico que rebentou no dia 18 de Agosto de 2017, quando o ofendido BB se encontrava a trabalhar no sistema de rega e limpeza da plantação de kiwis na descrita Quinta, era um dos artefactos pirotécnicos pelo arguido lançados no interesse da sociedade “A...”, que não explodiu no momento próprio e não foi por estes oportunamente recolhido.
Assim, dúvidas não restam quanto ao local do lançamento do fogo, e quanto à propriedade dos artefactos como sendo da A....
III – DAS CIRCUNSTÂNCIAS EM QUE OCORREU O REBENTAMENTO
Resulta da factualidade provada que:
No dia 18 de Agosto de 2017, cerca das 14.20 horas, BB encontrava-se a trabalhar numa plantação de Kiwis numa quinta sita na Rua ..., ..., em Felgueiras, juntamente com DD, mais concretamente a verificar o sistema de rega e a retirar a lenha seca. Então, a cerca de 46,70 m do local do seu lançamento e sem que ele dele (artigo pirotécnico) se apercebesse, rebentou junto de BB, explodindo, um artigo pirotécnico lançado pelo arguido.
No que respeita às circunstâncias do rebentamento propriamente dito e provadas o tribunal assentou a respetiva convicção nas declarações coerentes e firmes do assistente, no essencial corroboradas pela testemunha DD, as únicas pessoas que estavam no local e indiretamente corroboradas, pelos demais elementos probatórios.
“Conforme consta na douta sentença O assistente, BB, como afirma e o colega e testemunha DD e testemunha NN seu patrão à data, atestam, tinha há pouco iniciado o trabalho de que havia sido incumbido - verificar o sistema de rega e retirar a lenha seca da plantação de Kiwis - utilizando no momento as mãos quando ocorreu a explosão do que se veio a verificar posteriormente ser um artefacto pirotécnico, logo correndo a gritar de dor em direção ao colega solicitando ajuda, de imediato se apercebendo da perda dos membros e do sangramento abundante, sem que nunca tivesse
perdido os sentidos.
E que foi um artefacto pirotécnico que explodiu (designadamente um artefacto lançado pelo arguido nos já enunciados moldes) decorre à saciedade dos depoimentos experientes das testemunhas II e KK à data a exercer funções na equipa de explosivos (EOD) do comando distrital da GNR ... que foram quem esteve no local, e que procederam às buscas no perímetro de segurança que criaram e vieram a encontrar restos de carne humana e outros artefactos pirotécnicos por deflagrar que identificaram e documentaram – cfr. fls. 37 a 39 - mas que tiveram de ser detonados no local, com especiais cuidados de manuseamento à distância, por não oferecerem condições de segurança para daí serem retirados. O que a testemunha militar da GNR a exercer então funções no Posto ... e a primeira entidade policial a ocorrer ao local corrobora e sustenta, justificando e atestando o auto de notícia e suporte descritivo que elaborou de acordo com o que se deparou.
De igual forma e a este nível relevantes se mostrou o depoimento objetivo conhecedor das testemunhas JJ, então Sargento-Mor também da Equipa EOD e que não tendo estado no local elaborou de acordo com as informações e vestígios recolhidos no local pelos demais elementos, II e KK o auto de fls. 147.
Os depoimentos conhecedores e experimentados das identificadas testemunhas que no exercício das suas funções por inúmeras e bastas vezes se depararam com situações como as dos autos, que concretizaram em moldes não sé empíricos como técnicos, inclusivamente tendo por vitimas colegas altamente habilitados no manuseamento de tais artefactos foram amplamente elucidativos a propósito da instabilidade de tais materiais, designadamente, como foi o caso dos autos, depois de terem sido expostos a uma primeira ignição (e fonte de calor) que os lançou sem que tivessem deflagrado ficando à mercê das
condições climatéricas, humidade ou calor (condições que se apresentaram neste período temporal bem adversas como a informação do IPMA supra indicada). Aliás todos estiveram ou tiveram conhecimento de situações em que explosões se deram sem qualquer ignição ou manuseamento em armazém, no seu transporte ou ao ar livre.
E tais depoimentos são no essencial os únicos que se conformam com as exigências legais da atividade e da sua classificação como perigosa que as testemunhas EE, empresário de pirotecnia e FF pirotécnico reformado, da arte, em particular o segundo tentaram em vão desvirtuar. E se o primeiro revelou compreender e corroborar, ainda que parcialmente, a sua necessidade e pertinência, já o segundo quase os
ridicularizou, assim e simultaneamente não revelando qualquer credibilidade ou objetividade.
No que concerne ao depoimento prestado pela testemunha Professor Universitário GG, sem prejuízo dos conhecimentos científicos de física e química que demonstrou, aliás compatíveis com as suas habilitações académicas, e com o respeito que lhe é devido, não lograram abalar a convicção do tribunal no que respeita à forma como o evento sucedeu e redundou provado.
É o próprio que após explicitar que só a ignição por temperatura superior a 200 graus poderia provocar o rebentamento de tais materiais e que a exposição climatérica ao invés de potenciar a sua perigosidade a reduz (pelo menos após alguns meses, o que sempre não seria o caso porquanto só haviam passados alguns dias) conclui, após ser instado a esclarecer se se poderia dar o caso de o objeto em apreço ter atingido uma temperatura mais elevada do que a climatérica (como ocorre com um metal exposto à luz solar ou até à areia da praia) que nunca se debruçou laboratorialmente sobre tal matéria.”
Revertendo ao caso dos autos, entendemos que a prova, que foi produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, impunham a decisão sobre a matéria de facto tal qual foi levada a cabo, nomeadamente, entendemos que, a prova produzida, determinava que se dessem como provados a generalidade os factos elencados na acusação, com uma ou outra
precisão, e que determinavam que o arguido fosse condenado pela prática do em causa.
Por conseguinte, não houve um erro de julgamento, uma vez que foram dados como não provados, factos que o deveriam ter sido.
Pretende o recorrente a impugnação da matéria de facto a que se reporta o n.º 3 e respetivas alíneas e o n.º 4 do art. 412.º do Código de Processo Penal.
Trata-se da impugnação ampla da decisão da matéria de facto, que lavra fundo na apreciação da prova.
Salienta-se que não se pode confundir a invocação dos vícios previstos nas alíneas do n.º 2 do art. 410.º do Código de Processo Penal, com os requisitos da impugnação da matéria de facto a que se reporta o n.º 3 e respetivas alíneas e o n.º 4 do art. 412.º do referido Corpo de Leis: trata-se de institutos distintos com natureza e consequências distintas.
A chamada revista alargada configura uma impugnação restrita da matéria de facto, mas não é a verdadeira impugnação da matéria de facto conforme o disposto no art. 412.º, n.º 3 do Código de Processo Penal.
Com efeito, pode não existir nenhum dos vícios previstos no n.º 2 do art.410.º do Código de Processo Penal e no entanto a prova ter sido mal apreciada, ocorrer um verdadeiro erro de julgamento. Daí que nas motivações recursórias não possa existir confusão nem amálgama entre invocação dos referidos vícios e a impugnação da decisão da matéria de facto, nos termos do art. 412.º, nºs 3 e 4 do Código de Processo Penal.
Podem coexistir a invocação dos vícios do n.º 2 do art. 410.º e a impugnação de acordo com o referido 412.º, n.º 3 e 4, e pode existir uma sem a outra.
O que verdadeiramente o recorrente não aceita é apreciação da prova levada a efeito pelo Tribunal. Claramente, a questão nada tem a ver com os vícios do art. 410.º, nº 2 mas com a impugnação da matéria de facto nos termos do art. 412.º, n.º 3 do Código de Processo Penal.
Nos termos do disposto no art. 428.º do Código de Processo Penal, o Tribunal da Relação conhece de facto e de direito, podendo modificar a decisão de facto quando a decisão tiver sido impugnada nos termos do art. 412.º, n.º 3 do Código de Processo Penal. Cumpre salientar que essa dimensão do recurso não constituiu um novo julgamento do objeto do processo, como se a decisão da 1.ª instância não existisse, mas sim, e apenas, remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir erros in judicando ou in procedendo, expressamente indicados pelo recorrente.
Quando o recorrente impugna a decisão proferida sobre matéria de facto, no corpo motivador e depois nas conclusões deve especificar, isto é, indicar devidamente, os concretos pontos de facto que consideram incorretamente julgados (cf. n.º 3 do art. 413.º do Código de Processo Penal). Isto facilmente se compreende pela singela razão de que o Tribunal de recurso não vai rever a causa, mas apenas pronunciar-se sobre os concretos pontos de facto que os recorrentes consideram incorretamente julgados.
Na verdade, necessário se torna que o recorrente identifique corretamente o ponto de facto que foi dado como provado ou não provado, se é o caso, e não devia tê-lo sido, na sua ótica.
Em segundo lugar, o recorrente deve especificar as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida.
O recorrente, tratando-se de prova testemunhal deve identificar as testemunhas cujos depoimentos, a seu ver, quanto ao concreto ponto de facto em questão, impõem decisão diversa [apontando as concretas passagens dos depoimentos dessas testemunhas em que se funda a impugnação (cf. art. 412.º n.º 4 do Código de Processo Penal)].
De facto, foi o que o arguido tentou fazer, ao transcrever parte do depoimento das testemunhas, das passagens que lhe interessavam, descontextualizadas, de GG, EE e FF.
Sobretudo o recorrente pretende fazer crer que um artefacto pirotécnico só explodiria se:
sujeito a uma ignição superior a 200º ou fosse sujeito a fricção ou fosse sujeito a impacto.
Pois a essas transcrições, contrapõe o Ministério Público os depoimentos das testemunhas II, JJ e KK.
Com efeito, estas três testemunhas, especialistas em explosivos afirmam que os artigos pirotécnicos sujeitos a uma cadeia de fogo, ou seja, se foram lançados, houve uma iniciação da cadeia de fogo, e dá-se a detonação no ar normalmente para fazer a abertura da balona e continuar a cadeia de fogo e, se ele por algum motivo não funciona, ele cai seja lá onde for e depois por ação dos elementos externos pode detonar por ele próprio.
Assim, quanto ao depoimento de II, militar na Guarda Nacional Republicana (Operador EOD, inativação de explosivos), atualmente a trabalhar no parlamento, depoimento esse prestado na audiência de 25-01-2023, extrai-se:
II —Detetemos também um pedaço de carne, que depreendemos que pudesse ser um dedo, tudo indiciava que fosse um pedaço de carne humana, havia vestígios de sangue no local, recolhemos alguns artefactos pirotécnicos, incluindo o corpo de uma balona, que tinha dentro da mesma um artefacto pirotécnico por detonar e fizemos um pit, um pit é um pequeno buraco onde colocamos todos esses artefactos e fizemos uma destruição à distância, todos esses artefactos foram recolhidos com recurso a um meio semi-remoto, ou seja, uma garra para cumprir distância e tivemos de utilizar meios de proteção caso se desse algum tipo de detonação.
Digníssima Procuradora
—Ó senhor agente mas esses artigos pirotécnicos que encontraram eram o quê?
II
—Nós chamamos àquilo tiro de foguete, o que é que um pirotécnico lhe pode chamar, podem ter nomes próprios do serviço deles.
Digníssima Procuradora
—Sim.
II
—Normalmente no nosso serviço chamamos tiro de foguete, porque aquilo trabalha dentro de um foguete, é projetado e depois efetua o som semelhante a um tiro. Digníssima Procuradora
—Olhe e esses tiros podem explodir só pelo manuseamento?
II
—Depende do que é que eles tiverem lá dentro e são os pirotécnicos que os fazem, é que podem saber isso, agora para mim…
Digníssima Procuradora
—Pois, é que esteve aqui a gerente da empresa de pirotecnia, que disse que é perfeitamente possível pegar nos artigos, mesmo já depois de terem sido lançados e que não explodiram e que caíram em qualquer sítio, que é perfeitamente possível pegar-lhes, que não há qualquer risco deles detonarem.
II
—Pronto, então eu questionaria porque é que eu encontrei diversas situações ao longo da minha carreira…
(…)
II
—Não há problema, não há problema.
Eu encontrei diversas situações ao longo da minha carreira, com diversos incidentes de artigos semelhantes, alguns em que não houve vítimas felizmente, mas diversas situações com o mesmo enquadramento da situação, houve uma festa, houve um lançamento, as pessoas começam a detetar isto nos seus terrenos e depois chamamnos e também lhe posso dizer que conheço pirotecnias que trabalham todos os dias há muitos anos, muitos sistemas de segurança e essas detonações dão-se, podemos ir já por exemplo à GJR, que está aí em Penafiel e conseguirá ver que existiram alguns incidentes ao longo dos últimos anos e estamos a falar de pirotécnicos altamente habilitados, que cumprem todas as regras de segurança e essas situações dão-se e eu questiono porquê, não é, eu não sei o que é que está lá dentro, muito menos passado uma semana ou quinze dias do artigo ter estado exposto aos meios ambientais.
(…)
II
—Eu em toda a minha carreira tive sempre medo de trabalhar com a pirotécnica, medo, refiro-me, muito mais precaução a trabalhar com pirotecnia do que encontrar uma granada, uma granada sei perfeitamente como é que ela funciona.
Digníssima Procuradora
—E o senhor, e o senhor trabalha, e o senhor trabalha na secção de explosivos, não é?
II
—Trabalhava.
Digníssima Procuradora
—Já não, mas na altura trabalhava.
II
—(Imperceptível) concorri ao parlamento europeu e neste momento estou no parlamento europeu, olhe, neste momento estou precisamente na, na base EOD do exército da Bélgica, estou aqui também a receber formação nisso. Agora, pirotécnico…
Digníssima Procuradora
—Ó senhor…
II
—…A isso, eu posso-lhe dizer a ele, vá você recolhê-los à mão.
Digníssima Procuradora
—Pois. Ó senhor militar, acha possível…
II
—Revolta-me um bocadinho isso.
Digníssima Procuradora
—…Acha possível, naturalmente teve conhecimento do que é que se passou aqui com o senhor BB, o senhor ofendido, acha possível que ele, que a versão dele, que pegou na balona que estava em cima dos kiwis e que ela explodiu, acha que isso possa ter sido possível?
II
—Olhe, só Deus sabe, depende do, de muitos fatores, mas eu já vi isso a acontecer, após três, quatro horas de se ter dado uma explosão nomeadamente na GJR, eu estava a fazer recolha precisamente com uma garra para me conseguir distância, colete balístico, viseira balística e tiros e balonas a serem accionadas do nada.
Digníssima Procuradora
—Portanto, não é preciso, como ela, como aqui a senhora gerente da empresa de pirotecnia disse, não é preciso haver um fósforo ou um isqueiro, ou uma ignição de qualquer forma? Pode explodir…
II
—É difícil que isso aconteça, mas pode acontecer e na minha experiência pessoal, eu estou-lhe a dizer aquilo que se passou, não foi uma semana, foi passadas três ou quatro horas por exemplo na GJR, no último incidente que estive, em que felizmente não houve mortes, eu estava a fazer recolha de artigos desses para fazer destruição e havia artigos que do nada começaram a detonar, agora, a que é que esses artigos tiveram expostos, qual era o calor, essas coisas, eu não sei, mas eu muitas vezes pergunto-me, e se fosse uma criança, eu lembro-me de ser pequeno, isto é uma questão um bocado cultural, eu lembro-me de ser pequeno, esperar pelas festas e ir apanhar os foguetes que caiam em casa da minha avó, porque ninguém, ninguém queria saber e eu desmontava-os e felizmente tenho as mãos todas, tenho tudo.
(…)
Digníssima Procuradora [00:10:01]
—As chamadas bombetas. E diz aqui, em perigo de detonação iminente, o senhor agente para dizer isto…
II
—Eu digo isso porquê, porque para nós todo o artigo que é lançado e que depois não detona, é considerado uma falha de tiro e uma falha de tiro para nós é perigosíssimo, porquê, porque o artigo, houve uma tentativa de iniciação e depois por algum motivo ele não funciona corretamente, sendo que se considera para todos os efeitos, em termos de segurança, que está iminente a detonação, é por isso que eu utilizo uma garra e utilizo um colete balístico e um, e um capacete balístico, senão para isso ia lá e fazia como disse, não sei, um pirotécnico, ou alguém, ia lá e pegava neles à mão.
—Pois.
II
—Agora, eu vi muitas coisas ao longo de dez anos e eu sinceramente não recomendo isso.
Digníssima Procuradora
—E quando fizeram, fizeram então, disse o senhor militar que fizeram um buraco e puseram lá todos os artigos e detonaram, não é?
II
—Exatamente, não os podíamos transportar naquelas condições.
Digníssima Procuradora
—Não podiam transformar, transportar exatamente pelo grau de perigosidade de quem os manuseasse, não é?
II
—Exatamente, mesmo para nós que somos especialistas e temos conhecimentos e meios para os transportar, digamos, com alguma segurança, mesmo para nós, nós após aquela situação não os consideramos em segurança para fazer esse tipo de transporte.
Digníssima Procuradora
—Ó senhor agente, o senhor é, está na área específica de explosivos há quantos anos?
II
—Tive mais de dez anos nos explosivos.
Meritíssima Juiz
—Formação?
II
—Fiz a minha formação em 2010 e em 2011, dezanove de abril de 2011 integrei a equipa de inativação de engenhos explosivos do Comando Territorial ....
Digníssima Procuradora
—Então já lhe perguntei, é possível, acha que é possível que o senhor só tenha pegado na balona que estava em cima dos kiwis e que ela tenha explodido?
II
—É como eu lhe digo, não é provável, mas pode acontecer, é por isso que nós fazemos este tipo de, de procedimentos, precisamente porque essa possibilidade está lá.
Digníssima Procuradora
—Certo.
II
—É reduzida mas está lá. Na minha opinião pessoal, se tivesse sido feita a limpeza, creio que é isso que está na lei.
Digníssima Procuradora
—Exato.
II
—Após o lançamento, nada disto teria acontecido, assim como não teria acontecido salvo erro agora em Aveiro, no ano passado, assim como não teria acontecido numa série de atos que fazem os lançamentos e que vai acontecer no próximo verão de certeza, nomeadamente quando fazem lançamentos em igrejas, que muitas das vezes são perto de escolas e em que os miúdos depois andam a apanhar isto.
(…)
Meritíssima Juiz
—Ó senhor agente, só antes de dar ali a palavras aos senhores Doutores, também vão fazer perguntas, este ano de 2017 foi um ano, pronto, terrível para Portugal, até porque ocorreram vários incêndios, entre os quais aquele de ..., as temperaturas ambientais, o senhor há bocadinho disse, falou que efetivamente as circunstâncias ambientais, o tempo que ali estava, a que esteve sujeito, se o calor em demasia desse verão era suscetível de tornar ainda mais perigoso, ou isto é irrelevante?
II
—Eu não tenho muito bem a noção quais seriam as temperaturas nessa altura, agora, a temperatura é muito relevante, porque posso-lhe dar um exemplo, um, por exemplo, se eu apanhar uma pólvora que esteja húmida eu muito provavelmente vou tentar destrui-la logo no local, não vou esperar que ela seque, porque pode criar uma reação que crie calor devido aos elementos que ela possui, porque muitas das vezes eles colocam alumínios e outros componentes que só eles sabem e isso pode, após o contacto com a água, criar uma reação, eu não sou químico, atenção.
Meritíssima Juiz
—Claro.
II
—E essa reação pode gerar calor, tanto que houve um incidente também em Viseu mesmo antes de eu integrar as equipas da GNR, um incidente em Viseu salvo erro com a PSP, em que eles armazenaram precisamente pólvora, deu-se a secagem da pólvora e a detonação deu-se instantaneamente e matou um elemento da PSP.
Meritíssima Juiz
—Sim senhor.
II
—Nós tivemos também uma situação em 2007, também com pólvoras, equipa do Algarve, morreu um elemento, um operador nosso, também numa situação com, com pólvoras, porque nós quando falamos de pirotecnia temos muitos componentes que, que provem da pólvora e depois misturas para fazer cores, metais, muita coisa.
(…)
Advogada 1
—Mas é possível. Pergunto-lhe eu, e agora confirme se o restante que eu disse é verdade, já assistiu ao longo da sua carreira à detonação espontânea sem qualquer ignição?
II
—Assisti a isso, nomeadamente na explosão da GJR em Penafiel, não sei recordar o ano, mas foram passadas três ou quatro horas.
(…)
Advogada 1
—Esteja à vontade.
Pronto, neste caso em concreto considerando as temperaturas, que até vamos também pedir para ser junto ao processo, daqueles dias de calor, que oscilavam entre os trinta e os quarenta graus, se este material, material esteve exposto cerca de uma semana a essas temperaturas, é ou não possível a detonação automática?
II
—Na minha, na minha experiência é, agora, claro que isso podia-se ter dado a qualquer momento, não é.
Advogada 1
—Exatamente, a qualquer momento.
II
—É, lá está, mais uma vez, tanto nós somos doutrinados a que após qualquer lançamento, o artigo não funciona corretamente, para nós está considerado como estando em perigo.
(…)
Advogada 1
—Olhe, mas o tiro, como, como disse, quando não é acionado, não é, consideram de perigo porque já esteve sujeito a alguma ignição ou não?
II
—Esteve sujeito a uma cadeia de fogo, ou seja, ele, ele foi lançado, uma iniciação da cadeia de fogo, dá-se a detonação no ar normalmente para fazer a abertura da balona e continuar a cadeia de fogo e ele por algum motivo não funciona, ele cai seja lá onde for e depois por ação dos elementos externos pode detonar por ele próprio, ou pode simplesmente, como é que eu hei de dizer, tanto que eles são feitos em cartão que é para depois ao longo do tempo se puderem deteriorar e praticamente desaparecer.
(…)
II
—Eu vou-lhe, eu vou-lhe dizer, houve uma explosão na GJR.
Advogado 3
—Sim, a GJR é o quê?
Meritíssima Juiz
—É uma empresa pirotécnica.
II
—A GJR é uma empresa de pirotecnia em Penafiel.
Advogado 3
—Pronto, sim senhor. E então, e então, sim, ó senhor agente e então ia a dizer, houve uma explosão?
II
—Nós fomos alertados, fomos alertados para essa situação da explosão e nós chegamos, já se tinham passado três ou quatro horas já depois de estarmos a proceder a trabalhos na zona e havia detonações espontâneas dos artigos iguais, iguais quer dizer, dentro do fabrico de cada um, mas semelhantes.
Advogado 3
—Sim, mas isso estava em fabrico, estava, isso foi nas próprias instalações da empresa,
onde há vários materiais pirotécnicos lá armazenados e tudo mais, não é? E aquilo que
vocês chamam de matéria ativa, de pólvoras, estava lá tudo, não é?
II
—Sim, mas isso não estava tudo em cima dos tiros que explodiam instantaneamente.
Advogado 3
—Sim, mas…
II
—Certo?
Advogado 3
—Certo, ó senhor agente…
II
—Eu estava, eu estava a caminhar, eu lembro-me de estar com a garra estendida para apanhar um tiro, estar a coloca-lo num recipiente adequado para ganhar distância e haver a cerca de três metros um outro que estava na mesma situação, simplesmente pousado e de repente desapareceu porque detonou.
(…)
II
—Sim, normalmente quando uma detonação num artigo destes se dá, é extremamente rápido, liberta muito calor e um grande volume de gás, isto é o que está escrito e é o que acontece com todos os explosivos, sejam eles baixos explosivos ou…
Meritíssima Juiz
—Pronto, não é propriamente, não, quando o senhor me diz isso não é chama? O senhor desculpe, é que eu não percebo nada disto.
II
—Não, existe, existe a chama…
Meritíssima Juiz
—Existe a chama.
II
—…A chama existe, mas é, mas é extremamente rápido
(…)
Advogado 3
—Pronto, mas ali pelo menos alguma, repare, é que a explosão é violenta ao ponto de decepar de imediato as mãos de uma pessoa, as duas mãos e também da sua experiência, senhor agente, não havendo manuseamento direto de um explosivo desta natureza, de um tiro, uma explosão é apta a decepar assim sem mais duas mãos? Ou seja, é evidente que muita coisa pode acontecer, já sei que me vai dizer isso, é evidente que sim, mas da experiência que tem não havendo qualquer manuseamento de um, de um tiro, vamos, vamos falar de um tiro, um tiro é capaz de provocar estes danos numa pessoa?
II
—Até é capaz de lhe provocar a morte, depende onde é que ele está posicionado.
No mesmo sentido, testemunhou JJ a 25-01-2023:
JJ
—Chefe da secção EOD, no Comando Territorial ..., da guarda nacional republicana.
(…)
JJ
—Não. A PSP não foi lá porque, a PSP tem unidades que nós temos, pronto, aquilo lá, como eu já lhe disse, chama-se, é uma secção de inativação de engenhos explosivos, a sigla internacional é EOD, explosive ordnance disposal.
(…)
Advogada 1
—Estando expostos, o material que o senhor aqui fez a descrição, a condições atmosféricas diferentes neste ano, que foi um ano, um verão muito quente, de seis, o fogo se fosse lançado a cinco de agosto e o acidente aconteceu a dezassete de agosto, neste período de tempo se tiverem expostos a condições de calor elevadas, pode alterar ou não o funcionamento de um, do material?
JJ
—Claro que pode, porque esse material é, nós consideramos esse material como um alto explosivo, (Imperceptível) um alto explosivo em, é seguro, nós podemos manuseálo, podemos fazer o que seja necessário fazer com ele, sem que haja muito perigo, mas esse, esse material não, com as características de um alto explosivo, só que é muito, pronto, à fricção por exemplo, é muito sensível à fricção, ao calor, à humidade, qualquer coisa mesmo pode (Imperceptível) manuseado mas só pelo facto de ter estado nessas condições, claro que é, aumenta exponencialmente o perigo de haver um acidente, seja ou não manuseado depois de estar nessas condições e por ser em agosto, as noites já são frias, já sofreu, já foi, já há muita humidade, depois durante o dia fica calor, sujeito a essas alterações de temperaturas, é claro que ninguém, mas ninguém pode prever o comportamento de um material desses depois se é sujeito a isso. Mesmo em condições ideais, se calhar não há condições ideais, mas que se possa dizer ideais, mesmo assim é difícil prever o comportamento deste, porque eu na minha, tanto tempo que estive, foi muita vez por exemplo a esta pirotecnia que existe aqui em, perto de Penafiel, chegamos ir lá por mais que uma vez a acidentes, exatamente por causa desse material, onde trabalhavam com esse material e que supostamente é um ambiente controlado e que são técnicos especializados que estão a lidar com aquilo e foram lá por mais que uma vez, que houve acidentes até mortais, por isso…
(…)
JJ
—Mas estes sete que estão, estão mencionados aqui, além de, se houve o acidente, aquele que, que provocou o acidente, ou aqueles, que não sei se foi um, ou se foi mais que um que provocaram o acidente, esses também estavam por detonar. Isto, pronto, se, se, quer que lhe explique mais ou menos como é que aquilo funciona, pronto, só, eles fazem estes, estas, estas, nós chamamos os tiros, exatamente, metem dentro daqueles envelopes e depois são todos colocados dentro de um invólucro maior, na base daquele invólucro tem uma, uma carga pirotécnica que é a massa, que é pólvora, pólvora negra, que é o que vai fazer com que o foguete, ou balona, que agora as balonas são, deixaram, passar a ser mais utilizadas porque durante o verão é proibido o lançamento de fogo de cana, que eram os chamados foguetes, mas o que está lá dentro é a mesma coisa, pronto e isso sobe, aquela carga que está no início faz com que o engenho suba, chega a uma determinada altura, as cargas que estão la dentro essas têm, estão todas viradas para baixo, não é na extremidade, tem um bocadinho de rastilho assim, do outro lado estão tapadas, algumas têm um rastilho maior, outras mais pequeno e depois essa carga vai iniciar essas bombas, que consoante, claro, umas têm o rastilho maior, outras têm o mais pequeno, elas não estouram todos ao mesmo tempo, por isso é que se ouve, e quando sobe, pronto, chega a uma altura, oitenta, cem metros, tem uma carga que faz com que aquele invólucro abra e já estão as, as, os tiros estão todos iniciados e depois de queimar aquele bocadinho de pólvora, vê-se o efeito que normalmente se vê nos, no fogo de artifício, às vezes é o só o barulho, outras é, são
aquelas cores e o que acontece é que de (Imperceptível) se calhar uma dessas, desses tiros que estavam lá dentro, não iniciou e claro, não detonou, cai no chão por detonar, com a massa de tiro, que é o que nós chamamos que está lá dentro, normalmente massa de tiro, que é um perclorato de cálcio, normalmente o que eles agora metem dentro da, dessas, dessas balonas, é, massa de tiro, que é perclorato de cálcio e alumínio, normalmente são, é a composição agora, há outras composições, depois se tiver cores, consoante as cores tem um produto diferente, pode ser magnésio, pode ser boro, pronto, consoante a cor, pronto e é, é por isso, pronto, lançado, houve uma falha na, na comunicação da, da, de uma parte para a outra e aquela, um daqueles tiros não, por qualquer motivo não detonou e é claro, cai ao chão, fica, está ali por detonar até, ou está (Imperceptível) e depois é obrigatório, eles agora são, é obrigados, os invólucros têm que ser em cartão, antigamente era tudo plástico, que é para com a humidade e assim, se desfazerem e se eles se desfizerem aquela massa que está lá dentro desaparece, agora é obrigatório serem assim, mas decorrido pouco tempo continua intactos e é claro, e depois se alguém os manusear ou não, pode acontecer os acidentes.
Advogada 1 [00:15:23]
—Podem estar ali só caídos e explodirem sozinhos?
JJ
—Podem.
Advogada 1
—Alguma vez assistiu a uma situação dessas?
JJ
—Não, mas já ouvi relatos de pessoas que às vezes, pronto, andavam a trabalhar os cantos e ouviam detonações.
(…)
JJ
—Se tivermos condições para fazer o seu transporte em segurança e depois levamolos para a unidade e (Imperceptível) nós lá no Porto tinha lá uma pedreira onde fazíamos a destruição ali, caso vejamos que não temos condições para fazer esse transporte, pronto e uma questão é, nesse caso como já tinha acontecido aquele acidente, é um, é um dos indícios de que facto não se deve manusear aquele, aquele material, nesse caso faz-se o que foi feito naquela altura, pronto, fizeram um pit, que é um buraco, foram recolhidos, sempre com proteção, para nunca pegar neles, uma garra, utilizar uma garra para pegar neles, coloca-los dentro daquele pit, que é um buraco que se faz no chão, depois fazer, uma ferramenta que nós chamamos, pronto, chamamos lhe tapete, é um tapete de explosivos que é colocado lá por cima, sem nunca tocar nos objetos, o menor possível e depois iniciamos aquela, aquele tapete à distância e aquele tapete faz uma explosão e provoca a destruição daqueles…
(…)
Advogada 1
—E outras tinham em média seis gramas, pronto. E agora a minha questão é esta, estas, focamo-nos nestas bombas de foguete com oito gramas, isto tudo dá uma projeção, é um foguete já perigoso.
JJ
—Atenção que nós estamos a falar nesse de seis e de oito, mas eu não lhe sei dizer se o que provocou o acidente podia ser maior.
Advogada 1 [00:25:02]
—Pronto.
JJ
—O que provocou o acidente podia ser maior.
Advogada 1
—Certo.
JJ
—Eu não sei dizer qual é o peso que tinha o que provocou o acidente.
Advogada 1
—O que provocou o acidente.
JJ
—Mas um desses, esses, pronto, mais uma vez…
Meritíssima Juiz
—(Imperceptível) ou menor.
JJ
—Exato.
Meritíssima Juiz
—(Imperceptível).
JJ
—Maior ou menor. Mas pronto, porque às vezes, já houve outras situações em que às vezes, pronto, demonstramos um bocadinho ao Tribunal o que é que podia acontecer, por exemplo, pegamos numa dessas de seis com uma, uma, introduzida dentro de uma batata, pronto, é a batata em princípio é, é dura e provocamos a detonação, a batata ficou totalmente desfeita, isso três, quatro, quatro gramas, pronto, é por isso que nós consideramos essa, essas misturas um alto explosivo, um alto explosivo, pronto, às vezes tem umas velocidades de detonação, pode começar nos 6000, 6900 metros por segundo, pode ir até 8000 metros por segundo, já viu o que é, por exemplo, daqui a ... são para aí vinte, doze, catorze quilómetros, é, seja 7000 metros por segundo, quanto tempo é que demora a chegar daqui a ..., a quantidade de energia que é libertada, nós temos explosivo que utilizamos, que é o cordão detonante, que é para, pronto, é exatamente, usamos para fazer aqueles tapetes que colocamos por cima disso para destruir isso, também tem, a quantidade que é, o explosivo que está lá dentro chama-se entrite, a quantidade de entrite que eles têm num metro são de seis gramas por metro, são seis gramas só e é um, é considerado um alto explosivo, com 6, 7000 metros de velocidade de detonação e isso é, também é…
Advogada 1
—As características destes…
JJ
—Nós, exatamente, nós, pronto, a nossa, a nossa instrução e a nossa, quando temos a formação, é tratarmos isso como um alto explosivo em termos de velocidade de detonação, mas depois com cuidados acrescidos devido à sua sensibilidade, como eu já lhe disse, pode ser sensibilidade ao calor, à chama, ao atrito, por isso é um alto explosivo muito, muito mais sensível.
Advogada 1
—Muito mais sensível.
JJ
—Exatamente.
Advogada 1
—Portanto, exposto a condições climatéricas…
JJ
—Potencia ainda muito mais essa sensibilidade.
Advogada 1
—Sensibilidade que pode então (Imperceptível).
JJ
—Sim, exatamente, sem qualquer tipo de ação.
Advogada 1
—Sem qualquer tipo de ação humana?
JJ
—Tipo de ação externa, exatamente.
(…)
JJ
—Se a detonação fosse, for muito junto às vides, é provável que pode não queimar, como aquilo é uma coisa tão, tão rápida, pode só partir os ramos e não queimar, atenção, porque aquilo é uma fração de milésimos de segundo, não é, nem, nem segundos, são milésimos de segundo, como é muito rápido pode nem chegar a queimar, pode partir só um ramo ou outro ou assim, provocar ali algumas coisas, danos na, na, neste caso nas videiras e não queimar nada.
(…)
JJ
—Claro, quando, ao ser, quando foi lançado iniciou-se essa cadeia de fogo, só que por qualquer motivo foi interrompida, pronto, uma coisa, nós não, nem eu, nem ninguém que lá foi pode dizer qual foi o motivo dessa interrupção e foi o que provocou a sua não detonação naquele.
Advogada 1
—Mas o início dessa cadeia de fogo a que esteve sujeito, pode ou não alterar também o tiro que não, que não…
JJ
—Sim, pode alterar, porque ele ao, quando esteve dentro lá, dentro da embalagem junto com os outros, pode simplesmente ter sido submetido, pronto, a uma amplitude térmica qualquer, lá dentro, se está, se está pólvora a queimar liberta calor.
(…)
Meritíssima Juiz
—E tudo isso, o que eu pergunto, o que eu vou perguntar é, e isso, quer a inicial de elevação, quer a carga de abertura, são susceptíveis de, de qualquer forma interferir com, com o tiro propriamente dito?
JJ
—Elas interferem com o tiro, interferem porque a primeira é porque os leva lá acima.
Meritíssima Juiz
—(Imperceptível) leva-a lá em cima, sim?
JJ
—E a outra…
Meritíssima Juiz
—E a outra tal da abertura, que os expele cá para fora?
JJ
—Sim, exatamente.
Meritíssima Juiz
—Mas estou a reportar-me diretamente sobre a sua potencialidade de explosão…
JJ
—Senhora Doutora, pode, enquanto…
Meritíssima Juiz
—(Imperceptível).
JJ
—…Pode fazer que, quando, enquanto elas estão dentro do invólucro, lá dentro a temperatura vai, vai-se elevar, por isso vai haver influência, quando um elemento destes, a bomba, é submetida a um aumento de temperatura, claro que tem influência sobre, sobre esse tiro, nesse, nesse aspecto.
JJ
—Eu, a minha, na minha convicção é que o que provocou aquela explosão, aquela detonação, foi a pirotecnia que ficou lá abandonada e que devia ter sido recolhida.
(…)
Advogada 1
—Na sua opinião sim. E pode ser, depois de já ter esse, ter esse contacto com o fogo, se estiver exposto durante dias a temperaturas elevadas…
JJ
—Vai potenciar um, pronto, a possibilidade de acontecer um acidente.
Advogada 1
—Uma detonação…
JJ
—Fortuita.
Advogada 1
—…Fortuita, sem intervenção humana.
JJ
—Pode acontecer sem intervenção humana.
Também a testemunha KK,
corroborou estes depoimentos, a 23-02-2023:
KK
—Sou militar da guarda nacional republicana, operador EOD, neste momento desempenho funções de chefe da sesção EOD do Comando Territorial ....
(…)
KK
—EOD, é o acrónimo Nato, explosive ordnance disposal.
(…)
KK
—Atualmente sou o chefe, sou o responsável máximo da secção de inativação de engenhos explosivos, ou neste caso a secação EOD do comando do Porto.
(…)
KK
—Nós, portanto, a elaboração desse auto de exame direto assentou essencialmente na nossa experiência, portanto, na observação, na análise daquilo que podemos observar pelos registos fotográficos e por aquilo que nos foi descrito pelos, pelos camaradas que estiveram presentes no local do acidente, penso que, não sei até que ponto isso também será relevante, na altura eu era adjunto do chefe da secção, o sargento-mor, atualmente sargento-mor JJ, que entretanto passou à reserva, ele também possuidor de enorme experiência neste, neste campo, nesta área e pronto, todas as situações anteriores que tivemos, que já tivemos bastantes e infelizmente inclusive algumas com perdas de vidas humanas, no que toca à lide com, com explosivos, pirotecnia e explosivos civis, portanto, é sempre, são sempre artefactos ou artifícios pirotécnicos que nos merecem o maior, o maior respeito e cuidado no seu tratamento.
(…)
KK
—Conheço sim, infelizmente, aconteceu, tanto com civis, como com militares, com civis,
portanto, houve aqui uma situação penso que em Marco de Canaveses, também uns senhores mas foi com uma balona, elas estavam, estavam a ser colocadas nos tubos e uma delas arrancou a cabeça a esse senhor e nós fomos chamados ao local e, portanto…
Advogada 1
—Nessa situação as balonas estavam a ser colocadas nos tubos?
KK
—Estavam a ser colocadas, no lançamento.
Advogada 1
—Mas não tinham sido (Imperceptível)?
KK
—Ainda não, ainda não tinha iniciado, ainda não se tinha dado início à cadeia de fogo,
ou à iniciação, digamos assim, do, do artigo.
(…)
KK
—Sim, foi em Faro, um sargento que infelizmente faleceu, outros militares também ficaram, que estavam, que estavam próximos, sofreram amputação de dedos, mão e ficaram…
Advogada 1
—Pode-me dizer em que circunstâncias é que isso ocorreu?
KK
—Estavam a fazer o transporte de, de explosivo, pólvora e outro, e outro, e outro explosivo também, pirotécnico, portanto, há ordem…
(…)
KK
—Sim, algo, algo diferente do que estamos, do que estamos aqui a falar, mas o que estamos aqui a falar, neste caso estas, estas bombetas, elas têm na sua composição massa de tiro, essa massa de tiro, os seus componentes são componentes que também fazem parte da composição da pólvora, portanto, posso falar por exemplo um deles o enxofre, não é.
(…)
Advogada 1
—…Este explosivos (Imperceptível) portanto, foram, foram (Imperceptível) de uma falsa detonação, digamos assim?
KK
—De uma interrupção da cadeia de fogo.
Advogada 1
—(Imperceptível) interrupção da cadeia de fogo, isso significa (Imperceptível) interrupção da cadeia de fogo que já esteve (Imperceptível) da cadeia de fogo?
KK
—Correto. Ou seja, que o propósito, eu penso, não sei se será isto que a senhora Doutora pretende, que o propósito inicial, não é, desde o início até ao fim do, até ao fim pretendido, portanto, ele terá sido interrompido e que poderá, poderá ter havido alguma, entre aspas, alguma deformação do, do, do artigo por assim dizer, é isso?
Advogada 1
—Certo. Caindo no solo este artigo, se estiver no solo (Imperceptível) condições climatéricas pode ou não alterar, pode ou não alterar o próprio, a própria, a próprio efeito,
digamos assim, deste, da bombeta ou da…
KK
—Duas questões, eu posso, posso subdividir aquilo que me perguntou? Há aqui duas, duas questões logo iniciais, que é, uma delas é, ora, a partir, a partir do momento em que, em que se lança esse, este artigo, ou que se inicia a cadeia de fogo deste artigo e ele, essa cadeia de fogo é interrompida, ora, o grosso, como esta, as balonas levam vários tiros, ou várias bombetas, não é, ao haver uma detonação estamos a falar de alto explosivo, um alto explosivo, portanto, ele, a velocidade, a sua velocidade de ação, neste caso, ou de desintegração, estamos a falar, pode ir até aos 7000, 7200 metros por segundo, portanto, uma bala é disparada a 600 metros por segundo, estamos a falar de 7000, portanto, entre a 6 a 7000, 7200, dependendo dos seus componentes, ora, eu penso que é, que é fácil, é relativamente fácil percebermos que a essa velocidade de detonação, qualquer artigo ou artefacto que esteja próximo ao levar com essa onda de choque, ele poderá sofrer alguma deformação, neste caso o seu contentor ou a matéria, matéria que possa lá estar, essa é logo a primeira, eu quando falo do seu contentor, isto tem a ver com, sabemos que as bombetas elas têm, elas normalmente, atualmente o seu corpo é de papel e neste caso é papel, cartão, minto, e com papel envolto, nas suas extremidades ele normalmente numa ponta tem uma massa de tiro negra e noutra tem uma cápsula de, ou uma tampa, de plástico, ora o que é que, alguma dessas coisas pode, obviamente com esta detonação pode-se, portanto, a sua, o seu contentor pode sofrer alguma alteração, não é e da forma como cai, se ele cair por exemplo num piso, numa superfície dura, a uma altura considerável, ele próprio detonar logo ali, pode também não detonar. O que acontece também com, com estas matérias é que, esta era a outra parte, é que estes, estas matérias, ou melhor, todas as moléculas, elas sofrem alterações, isto também penso que é relativamente fácil de percebermos, elas sofrem alterações, ou sofrem mutações, são reações que nós chamamos endotérmicas ou exotérmicas, ora também percebemos que quando há calor os corpos dilatam, quando, quando o tempo está, pronto, quando o tempo está frio eles retraem-se, sabemos que por exemplo um artefacto, um artifício deste, que é exposto à, ao tempo, ele estando no solo normalmente à noite cai sempre, orvalha um bocadinho mais, a temperatura desde e durante o dia aquece, portanto, estas moléculas elas retraem-se e expandem-se, e daqui poderão resultar, isto pela nossa experiência, e até por situações às quais já fomos solicitados e fomos chamados, poderão resultar efetivamente detonações fortuitas, mas isto é a nossa experiência e é aquilo que nos foi doutrinado e, portanto, e já não era a primeira vez que situações destas aconteciam.
(…)
KK
—Poderão, desculpe, poderão estar-se, poderão estar-se a dar reações dentro do, portanto, do contentor e nós achamos, aquela bombeta, aquilo está seguro, ou é seguro ou não vai acontecer nada, até poderemos manuseá-la com a mão, mas nós em situação alguma o faremos, aliás, tanto é que evitamos inclusive o seu transporte e procuramos destrui-las no local, nós não as trazemos para o aquartelamento, temos pinças com, com metros de distância, o operador veste um fato aligeirado, normalmente temos um fato EOD que pesa trinta e cinco quilos, mas para estas situações dependendo do tamanho ou daquilo que consideramos que possa ter, que possam ter os artefactos como matéria ativa ou NEC, tecnicamente nós adequamos a nossa, digamos, a nossa indumentária de segurança para operar mediante a quantidade e o tipo de material com que estamos a operar, mas nunca descoramos a segurança nestas situações, porque os acidentes acontecem.
(…)
KK
—A empresa pirotécnica, ou melhor, sempre, o que diz a lei, o que nos diz a lei, o decreto-lei 135 assim como a norma que nós nos regemos também, pela norma da PSP, penso que é 3 de 2018, é que o fogo de artifício sempre que é lançado cabe ao fogueteiro a responsabilidade de recolher ou de passar uma revista, digamos assim, ao local, uma busca ao local e recolher as peças ou artefactos pirotécnicos que não tenham detonado, eles têm, portanto, tê, conhecimentos para o fazer e penso que têm condições para o fazer, não o fazendo e esse, e esse material ficando no local, depois as pessoas, por vezes acaba por acontecer e penso que terá sido também o caso, portanto, ficam alojados ou colocados dispersos por propriedade contíguas ao local do lançamento, por vezes propriedades privadas e os donos deparando-se com isso comunicam à guarda, ou neste caso sendo zona de ação da guarda ou da PSP e então os técnicos procedem ao, ao levantamento e desmantelamento.
(…)
KK
—…Isso acontece com, pode acontecer connosco também, por isso é que é uma, é uma das regras, é um dos princípios basilares da inativação de engenhos explosivos, é darmos sempre primazia a segurança, eu, portanto, é o planeamento de cada operação, cada intervenção nossa, nós por vezes estamos a ir para os locais e já está todo um trabalho de campo feito, estamos na viatura, já falamos com A, com B, já sabemos o que é que vamos encontrar, já temos a identificação do que é que ali está, antes de sairmos até por vezes se falta alguma coisa já está colocada na viatura, portanto, temos todo um cuidado, já temos planeado a área circundante onde é que vamos fazer a destruição, quando chegamos ao local nós já sabemos para onde é que temos que transportar aquilo e de que forma, ainda há bem pouco tempo no serviço, há três ou quatro dias, em Matosinhos, num armazém, apareceu uma série de explosivo civil, estamos a falar de gelamonite, trinta e três explosivos (Imperceptível) com os cristais, que é extremamente perigoso, tivemos que dessensibilizar no local e fazer o transporte com cordas, com baldes, para o destruir ao lado num armazém numa zona industrial, portanto, não o podemos mesmo transportar para lado nenhum, portanto, há todo um cuidado a ter e que é, e que é absolutamente necessário para, para levarmos a missiva a bom porto.
Meritíssima Juiz
—Eu estou a perceber o que o senhor disse relativamente a esta, a estes específicos, que são lançados nas festas, material pirotécnico (Imperceptível) parece-me que é importante, das (Imperceptível) que aqui tivemos, que a partir do momento em que há aquela detonação, pronto, o tempo que lá fica, acaba por haver uma certa incógnita sobre aquilo que efetivamente…
KK
—Correto, pode, sim, pode…
Meritíssima Juiz
—…(Imperceptível) a forma como aquilo se vai comportar.
KK
—Exatamente senhora Doutora.
(…)
Meritíssima Juiz
—Olhe, da sua experiência, antes de passar aqui a palavra ao senhor Doutor (Imperceptível), e daquelas visitas que faz e de preparação que tem que ter para efetivamente fazer isso, estas, estas balonas e bombetas em concreto são compostas habitualmente de quê? Quais são os compostos químicos delas?
KK
— Perclorato.
Meritíssima Juiz
— Perclorato
KK
— Perclorato.
Meritíssima Juiz
—Aqui já nos foi dito, perclorato de potássio.
KK
—Sim, perclorato de potássio.
Meritíssima Juiz
—E alumínio.
KK
—Alumínio e enxofre e outros, podem colocar…
(…)
Digníssima Procuradora
—Mas ao deteriorar-se esse invólucro, a bombeta, o tiro, ficam instáveis?
KK
—Ajuda, aliás, vem potenciar a sua estabilidade, a sua instabilidade, porque, porque passam a ter uma maior área exposta, portanto, à variação da temperatura por exemplo.
Digníssima Procuradora [00:35:08]
—Portanto, passam a ficar instáveis, quer dizer que podem ser susceptíveis de deflagrar?
KK
—De detonar.
Digníssima Procuradora
—De detonar.
KK
—Digo detonar, senhora Doutora Procuradora, porque, portanto, estamos a falar de um alto explosivo, a sua velocidade é maior à da deflagração.
Digníssima Procuradora
—Até sozinho, se lhe tocarem ainda mais?
KK
—Sim, correto, se for manuseado, ao manusear, portanto, passa a haver uma, à partida aquilo estará, aquilo está, ou deverá estar compactado, essa massa, no interior da bombeta, portanto, compactado isto é, é lá colocado, quando digo compactado ela não é pressionada lá dentro, não é, portanto, porque há o perigo de ao fazê-lo de detonar, mas poderá haver ao mexer, ao, ao manusear-se essa bombeta, poderá haver, portanto, deslocação dessa massa de tiro e isso por si só pode, pode detonar.
(…)
a?
KK
—Espalhado?
Advogado 3
—Sim.
KK
—Depende, explodido, não se daria a detonação, digamos, se essa massa de tiro tivesse cá fora podia não se dar uma detonação, não é, mas podia deflagrar, não é, porque ela, havia mais espaço, a partir do momento em que há ar, em que há espaço, ela, estando compactado, compactado entre aspas, mas estando dentro de um invólucro, tem muito mais probabilidade de detonar, a sua instabilidade é muito maior, digamos assim, do que se ele estiver, porque, os pirotécnicos…
Advogado 3
—Ou seja, a (Imperceptível)…
KK
—…Quando têm…
Advogado 3
—Eu percebo.
KK
—…Os pirotécnicos quando, desculpe-me.
Advogado 3
—Sim, sim, sim.
KK
—Os pirotécnicos quando estão, quando estão a proceder ao fabrico destas, destas massas de tiro e destes compósitos, compostos, eles fazem experiências e muitas das vezes eles têm exposto ao ar, porque essa matéria por vezes sofre aquecimentos, eles depois têm potássio e, portanto, e que vão, vão digamos esperar que haja, que haja alguma estabilidade, ou alguma estabilização dessas matérias e desses componentes para depois os colocar na, nos invólucros, isto para minimizar, para minimizar o risco, mas isso são técnicas deles e conhecimentos deles, que os fazem dessa forma, agora, quando me, quando o senhor me pergunta…
(…)
KK
—Eu peço desculpa por não me ter feito entender. A questão é esta, a partir, portanto, se o material está todo numa balona e há uma detonação, há várias detonações, não é, porque são várias, há uma, portanto, um acionamento inicial e depois mediante o tamanho da sua mecha neste caso, há os retardos e elas vão, portanto, as bombetas vão detonando cada uma no seu, com o seu atraso, com o atraso pretendido pelo qual é feita, mas não nos podemos esquecer que essa, digamos que essa detonação, ou essa velocidade que obriga essa expansão de moléculas de ar e que, ela, ela pode acabar, ou acaba por fazer, fazer algumas deformações, ou pode originar algumas deformações nos invólucros ou nos contentores destes tiros, isso por si só, ela já não, portanto, esse tiro na sua deslocação no ar para determinado ponto que é pretendido, ele por si só já não vai bem conforme estava quando foi fabricado, ok e podem acontecer, é, porque nós, penso que ninguém pode aferir que aquilo vai perfeitinho e que se no caso de não detonar vai cair a um solo, ou onde cair e que vai cair em perfeitas condições, tais como aquelas que quando foi produzido.
Advogado 3 [00:45:51]
—Sim.
KK
—Ok? Quando falo nalguma deformação ou detonação, ou, ou, portanto, o seu estado não estar como o seu estado primário aquando do seu fabrico, é precisamente quando ocorre, é depois de ocorrer esta, esta ação.
Advogado 3
—Certo. E ó senhor agente, muito bem, mas agora, como é que se, o que é que permite explicar que uma bombeta que não tenha sido deflagrada, mas que tenha sido sujeita a esse, a esse…
KK
—A ação, digamos, sim?
Advogado 3
—…A essa ação, exploda?
KK
—Ó senhor Doutor…
Advogado 3
—Uma coisa é manusear…
KK
—…Aquilo que acabei…
Advogado 3
—…Uma coisa é manusear, eu isso percebo, uma coisa é manusear, outra coisa é aquilo sem mais explode.
KK
—Senhor Doutor, precisamente pelas, pela sua exposição à intempérie, neste caso à mudança de temperatura, estamos a falar de, de…
(…)
Advogado 3
—Quantos acidentes conhece em que vocês com as pinças pegam num, numa bombeta, num artefacto…
KK
—Já aconteceu senhor Doutor.
Advogado 3
—…Manusearam…
KK
—Já aconteceu.
Advogado 3
—Já aconteceu, pronto, manusearam, manusearam, está a perceber?
KK
—E já, e já aconteceu estarem colocadas no local e estarem-se a preparar as coisas para proceder à destruição e já aconteceu detonarem também.
Advogado 3
—Mas quer ver…
KK
—Uma ou outra detonarem, sem, sem, sem que estivéssemos a manusear ou a tocar.
(…)
KK
—Nós temos exercícios, até temos, nós temos uma formação, nós temos um plano anual de formação, temos formação periódica, mensal, onde somos também, cada, portanto, cada, eu estou a falar agora um bocadinho mais dentro da, da área e do nosso, da nossa preparação, nós temos, temos formação, somos, somos visitados e somos visitantes também, a outras secções congéneres em diversos pontos do país, onde nos são preparados exercícios, seja de engenhos explosivos convencionais, explosivo civil, explosivo pirotécnico, ameaças terrorista, seja, portanto, de todo o (Imperceptível) que diz respeito à, aos técnicos EOD e, portanto, somos testados e também recebemos, recebemos formação e somos testados, ou vice-versa, em cada um, são períodos de dias nesses locais e fazemos visitas a pirotecnias, recebemos também formação, conhecimento deles, trocamos, porque, porque nesta, porque nesta área nós devemos, devemos partir sempre do princípio, esta, esta é uma premissa minha e penso que também é transversal a todos os operadores, de que, de que nós não sabemos tudo e que, e que nós, e que nós estamos aqui para aprender e estamos sempre a aprender e há coisas que nós, que nós, que nós temos solidificado em termos de conhecimento e, e das quais nós não abdicamos, porque, porque são vidas e…
(…)
KK
—Devemos ter em consideração e devemos respeitar sim, obviamente que isto não, peço, não me interpretem mal, especialmente também nestas áreas, é assim, ninguém, nós não consideramos que somos superiores a A, B ou C, a questão aqui é que nós órgãos de polícia criminal, digamos que a nossa, a nossa, a nossa perspetiva, a nossa, a nossa forma de estar perante a lei e perante aquilo que é, que é, que é, perante aquilo que está no mercado, portanto, nós funcionamos, digamos assim, como, como, como, digamos, como o balizador…
Meritíssima Juiz
—O garante de segurança, não é, os garantes da segurança, pronto, ou pelo menos fiscalizadores da segurança, como é óbvio.
KK
—Não me, não quero com isto desconsiderar um pirotécnico ou seja o que for, temos, temos…
Advogado 3
—Claro, já ficou esclarecido.
KK
—…Temos é patamares diferentes e por isso é que não, quando há um acidente connosco, infelizmente não tem havido assim tantos e esperemos que assim continuemos, portanto, não venham um pirotécnico, digamos assim, tratar da nossa área, nem cuidar, nem dizer-nos, olhem, portanto, é o contrário, não é.
Assim, resulta dos depoimentos destas testemunhas, pessoas especializadas e com conhecimentos quer teóricos, quer práticos que, ao contrário do pretendido pelo recorrente (de que os artefactos pirotécnicos só explodiriam se fossem sujeitos a uma ignição superior a 200º; ou se fossem sujeitos a fricção, ou se fossem sujeitos a impacto) o artigo pirotécnico deflagrado fica instável, o que, conjugado com a exposição às condições atmosféricas, o torna passível de detonação espontânea.
Assim, é perfeitamente plausível a versão do ofendido, de que, quando se encontrava a recolher os canos secos dos kiwis, com as duas mãos, agarrou em algo estranho que lhe rebentou inopinadamente nas mãos.
III – DAS ALTERAÇÃO DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
Perante a prova produzida, a 07-07-2023, o coletivo decidiu:
Após deliberação, os juízes que compõem o tribunal coletivo, sustentados na prova por declarações, testemunhal, documental, pericial produzida em audiência e junta aos autos, decidiram que resultam indiciados, os seguintes factos (já resultantes da acusação, independentemente da sua concretização e ou/ diferente redação e ordem de exposição e que aqui e agora se consignam para melhor compreensão da presente comunicação) que em seu entender - ao contrário da acusação - integram a prática pelo arguido AA de um crime p. e p. pelo at. 272º, nº1, al. b) e 285º, todos do C. P. Penal, a saber:
1.A sociedade “A..., Lda.”, pessoa coletiva com o n.º ... e sede na Rua ..., em ..., Lousada, tem por objeto o comércio, fabrico, importação e exportação de artigos de pirotecnia, tendo o alvará para o exercício de tais atividades 23/2009;
2. A gerência da referida “A...…” esteve sempre a cargo de CC.
3. O arguido AA, ao tempo dos factos infra descritos, estava autorizado ao lançamento de fogo de artifício, pela sociedade “A...”, mediante credencial n.º ..., válida até 16.06.2019.
4. Entre os dias 29 de Julho e 5 e 6 de Agosto de 2017, na freguesia ..., concelho ... decorreram as “Festas ...” organizadas a pedido de LL, padre, pároco da paróquia ... e Presidente da Fábrica da Igreja ...;
5. A sociedade “A...…” foi contratada para o lançamento de fogode-artifício no âmbito das referidas festividades;
6. No contexto referido em 5), a sociedade “A...…” requereu o licenciamento para o lançamento de fogo de artifício para os dias 29 de Julho e 5 e 6 de Agosto de 2017, junto da Igreja ..., em Felgueiras, indicando como lançador OO, com a credencial n.º ....
7. Pela licença para lançamento ou queima de fogos de artifício n.º 21/17, emitida pela Guarda Nacional Republicana, o licenciamento solicitado foi concedido a 24 de Julho de 2017.
8. Não obstante o referido em 6), a sociedade “A...…” encarregou o arguido AA para proceder ao lançamento do fogo de artifício nas aludidas “Festas ...”.
9. Por força do referido de 5) a 8), cabia à sociedade “A...…” e ao arguido AA realizar, em condições de segurança, todo o processo de lançamento do fogo de artifício, designadamente a montagem ou colocação dos dispositivos de lançamento e dos artigos pirotécnicos na zona de fogo, o lançamento do fogo de artifício e, após este, a desmontagem dos dispositivos de lançamento e a limpeza das zonas e terrenos adjacentes, especialmente a recolha dos artigos pirotécnicos não deflagrados, assim como o cumprimento de todas as normas de segurança;
10. Assim, num terreno sito nas proximidades da Igreja ..., nos dias 29 de Julho e 5 e 6 de Agosto, o arguido AA procedeu ao lançamento do fogo de artifício, nomeadamente ao lançamento para o ar de artigos pirotécnicos a partir de dispositivos de lançamento e de tubos de lançamento previamente colocados no solo;
11. Não obstante o descrito de 5) a 10), após o lançamento do fogo de artifício referido, nem o arguido nem qualquer outra pessoa a mando da sociedade “A...…” procederam à recolha das sobras resultantes do lançamento do fogo de artifício, assim como não recolheram os artigos pirotécnicos que, por qualquer razão e apesar de lançados, não deflagraram;
12. O descrito em 10) e 11) criou para as pessoas que encontrassem os artigos pirotécnicos lançados e não deflagrados ou que estivessem nas suas imediações o perigo de perder a vida ou de sofrer lesões na sua saúde e integridade física.
13. No dia 18 de Agosto de 2017, cerca das 14.20 horas, BB encontrava-se a trabalhar numa plantação de Kiwis numa quinta sita na Rua ..., ..., em Felgueiras, juntamente com DD, mais concretamente a verificar o sistema de rega e a retirar a lenha seca.
14. Então, a cerca de 46,70 m do local do seu lançamento e sem que ele dele (artigo pirotécnico) se apercebesse, rebentou junto de BB, explodindo, um artigo pirotécnico lançado nos termos referidos em 10);
15. Por força do descrito em 14), BB sofreu as seguintes lesões:
amputação dos membros superiores bilateralmente, traumatismo da face (pálpebras e olho esquerdo – queimadura da córnea);
16. E as seguintes sequelas permanentes que daquelas lesões advieram: -
amputação bilateral dos membros superiores trans-radial; acufenos, reação depressiva prolongada e resultantes de transplante de córnea (hipovisão marcada e fotofobia ligeira), das quais decorre uma incapacidade parcial permanente de 87,6092%, com IPATH (incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual -jornaleiro/tratorista; no abdómen: áreas cicatriciais acastanhadas dispersas pela região anterior do abdómen, a maior com 5 por 1 cm de dimensões; no membro inferior esquerdo: 3 cicatrizes acastanhadas dispersas pela face anterior da coxa, a maior com 2 por 1 cm de dimensões.
17. O arguido AA tinha conhecimento das regras de segurança relativas ao lançamento de fogo de artifício;
18. O arguido AA e a sociedade “A...…” tinham conhecimento do descrito em 9) e que o cumprimento de tal dever, assim como de todas as regras de segurança relativas ao lançamento de fogo de artifício, era necessário para evitar que para as pessoas que encontrassem os artigos pirotécnicos lançados e não deflagrados ou que estivessem nas suas imediações o perigo de perder a vida ou de sofrer lesões na sua saúde e integridade física.
19. Não obstante isso, o arguido AA atuou nos termos descritos em 10) e 11), o que representou, quis e conseguiu;
20. Além disso, o arguido AA representou como possível que, agindo nos moldes descritos em 10) e 11), ocorresse a explosão de artigos pirotécnicos lançados e não deflagrados imediatamente depois, resultado com o qual se conformou;
21. Sabia ainda o arguido AA que atuando nos moldes descritos que criava para as pessoas que encontrassem os artigos pirotécnicos lançados e não deflagrados ou que estivessem nas suas imediações o perigo de perder a vida ou de sofrer lesões na sua saúde e integridade física, resultado com o qual se conformou; 22. Além disso, o arguido AA não previu, mas podia e devia, que da sua conduta descrita em 10) e 11) e subsequente explosão poderia resultar, como resultou, lesões graves na integridade física das pessoas que encontrassem os referidos artigos pirotécnicos ou que estivessem nas suas imediações, designadamente as lesões descritas em 15 e 16, sofridas por BB;
23.O arguido AA atuou livre, voluntaria e conscientemente, ciente do caráter ilícito e censurável da sua conduta;
24. O arguido AA atuou em nome e no interesse da sociedade “A..., Lda.”.
A signatária, enquanto presidente do tribunal coletivo procede agora e pelo presente despacho à comunicação da enunciada alteração da qualificação jurídica – arts. 358º, nº1 e 3 do C. P. Penal - concedendo desde já ao arguido o prazo de três dias para, querendo, se pronunciar.
Ora, conforme decorre da factualidade enunciada não estamos perante qualquer alteração substancial dos factos, pois, efectivamente os factos já estavam contidos na Douta Acusação proferida, simplesmente procedeu-se, com base nessa mesma factualidade a uma alteração da qualificação jurídica.
Para que possa licitamente proceder-se à alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação, importa que pelo tribunal seja observado previamente o regime do artigo 358º, n.º 3, do Código de Processo Penal.
Artigo 358.º
Alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia
1 - Se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, com relevo para a decisão da causa, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa.
2 - Ressalva-se do disposto no número anterior o caso de a alteração ter derivado de factos alegados pela defesa.
3 - O disposto no n.º 1 é correspondentemente aplicável quando o tribunal alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia.
Veja-se AC RL de 26-10-2022: De acordo com o princípio do acusatório é a acusação (ou a pronúncia) que define o objecto do processo e que delimita a actividade cognitiva do tribunal (princípio da vinculação temática).
O regime da alteração dos factos descritos na acusação ou na pronúncia previsto nos artigos 358.º e 359.º do Código de Processo Penal, constitui, por um lado, garantia de defesa do arguido, visando obstar a que este possa ser julgado e condenado por factos distintos dos inicialmente imputados, sem oportunidade de se pronunciar sobre eles e, por outro, possibilita que nas decisões proferidas se verifique a maior adesão possível à realidade material.
Diferencia a lei as situações em que deve atender-se à factualidade distinta que resulte do julgamento, daquelas outras em que é vedado ao tribunal atender a novos factos, constituindo critério diferenciador a natureza da alteração das condutas imputadas.
*
Em face do exposto formulam-se as seguintes Conclusões:
1. Da prova produzida quer testemunhal, quer documental, dúvidas não restam quanto ao local do lançamento do fogo, e quanto à propriedade dos artefactos como sendo da A....
2. Resulta dos depoimentos destas testemunhas, pessoas especializadas e com conhecimentos quer teóricos, quer práticos que, ao contrário do pretendido pelo recorrente (de que os artefactos pirotécnicos só explodiriam se fossem sujeitos a uma ignição superior a 200º; ou se fossem sujeitos a fricção, ou se fossem sujeitos a impacto) o artigo pirotécnico deflagrado fica instável, o que, conjugado com a exposição às condições atmosféricas, o torna passível de detonação espontânea.
3. Assim, é perfeitamente plausível a versão do ofendido, de que, quando se encontrava a recolher os canos secos dos kiwis, com as duas mãos, agarrou em algo estranho que lhe rebentou inopinadamente nas mãos.
4. O despacho proferido, na sequência de deliberação do colectivo, constitui a comunicação de uma simples alteração da qualificação jurídica, pelo que cumprido o art. 358º do Código de Processo Penal, e nada tendo sido invocado, o Douto Acórdão espelhou essa mesma qualificação jurídica.
5. Assim, a pena aplicada é justa, adequada e proporcional.
Razões pelas quais entendemos dever ser negado provimento ao recurso, com o que V/ Exc.ªs farão a costumada JUSTIÇA__.
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A demandada B... Companhia de Seguros veio interpor recurso do acórdão, concluindo do seguinte modo:
1 -Ora, a recorrente discorda, em absoluto, da condenação que lhe foi imputada e consequentemente do valor que lhe veio a ser fixado, discussão e julgamento, bem como demais meios de prova carreada para os autos, designadamente prova documental (cláusulas contratuais da apólice), daí o presente recurso.
2 - A Sociedade “A..., Lda.” representada pela demandada CC celebrou com a também demandada/interveniente B... – Companhia de Seguros, S.A., seguro de responsabilidade civil geral titulado pela apólice ..., para atividade de queima e lançamento de fogo de artificio, foguetes e morteiros, nos termos do qual a seguradora garante o pagamento das indemnizações que sejam exigíveis ao segurado por danos patrimoniais e não patrimoniais acidentalmente causados a terceiros quando no exercício da sua atividade por ocasião das festividades populares, religiosas, desportivas ou outras celebrações levadas a efeito durante o período e no local especificados nas condições particulares.(negrito e sublinhado nossos)
3 -O aludido contrato nas suas condições especiais e para o que aqui interessa dispõe que além das exclusões mencionadas no nº 3 das condições especiais da apólice (…) não ficam, em caso algum, garantidos por esta condição especial, os danos: 1. Resultantes do não cumprimento de disposições legais ou regulamentos que estabeleçam as normas de funcionamento e execução da atividade do segurado (…). (negrito e sublinhado nossos)
4 - E nas disposições gerais, Capítulo II, artigo 3º que sem prejuízo das exclusões porventura consignadas nas Condições Particulares e Especiais, esta apólice não garante: 1) Em caso algum o pagamento de indemnizações decorrentes de a) Qualquer responsabilidade de natureza criminal; b) Atos ou omissões dolosos cometidos pelo segurado ou por pessoas cuja responsabilidade esteja garantida pela Apólice, ou por quem sejam civilmente responsáveis (…). (negrito e sublinhado nossos) 5 - Tal contrato de seguro estava à data do sinistro em vigor, sendo o valor do capital seguro de € 100.000,00 (cem mil euros) por sinistro e anuidade estipulando uma franquia contratual a cargo da segurada no montante de 10% dos prejuízos indemnizáveis. A seguradora B... – Companhia de Seguros, S.A. no âmbito do contrato de seguro referido em 80. procedeu ao pagamento a 14 de junho de 2018 a PP da quantia de € 39.500,00 em consequência de sinistro ocorrido a 30 de julho de 2017. O arguido foi proprietário e gerente da sociedade “A..., Lda.,” cuja dissolução e encerramento de liquidação apenas ocorreu depois de o arguido ter sido chamado ao processo, como resulta evidente da Ap. .... O presente sinistro não foi participado à B... pela segurada “A...…”, ficando, a B... privada de poder averiguar todas as circunstâncias em que o mesmo ocorreu, suas, bem como de avaliar o demandante cível nos seus serviços clínicos para que a demanda pudesse perceber qual o grau de incapacidade que lhe seria de atribuir por força desse mesmo sinistro, tomando a B... apenas conhecimento dos factos discutidos nos presentes autos através da citação para a ação, mais precisamente decorridos cerca de 5 anos após a ocorrência do sinistro aqui em apreço !!
6 - Todo o sinistro está estruturado na violação das mais elementares regras de segurança, impostas por lei para o lançamento do fogo de artifício e que não foram aqui de forma evidente cumpridas, como tal o sinistro mostra-se inevitavelmente excluído das coberturas da apólice, que se encontra junta aos autos, nomeadamente nos termos do disposto no nº 3 da Condição Especial 012 e artigo 3º das Condições Gerais (tudo conforme melhor resulta dos Docs. 1, 2 e 3, juntos com o articulado da chamada/interveniente B...).
7 - Entendimento, esse, que deveria ter sido acolhido na douta sentença recorrida ao ter dado, e bem, como provados os factos 80, 81 e 82 respetivamente!
8 - Este sinistro não tem qualquer enquadramento na apólice dos autos, desde logo porque não ocorreu por ocasião das festividades, tendo apenas ocorrido de 2 a 3 semanas após a realização das mesmas.
9 - Para além disso, também sempre estaria excluído das condições da apólice por força dos factos provados em 81. e 82. Da sentença em apreço, que de forma clara e transparente, bem evidenciam essas exclusões de cobertura.
10- A ser entendida aquela primeira hipótese em que o sinistro dos autos ocorreu no seguimento do lançamento do fogo de artifício nas festividades do ..., o lesado teria, que ter demandado a comissão de festas, representada pelo Pároco LL, enquanto Presidente da Fábrica da Igreja ..., por ser tal entidade responsável pela organização do evento, e nessa medida, também, responsável pela recolha do material sobrante, visto que, a empresa pirotécnica atua sob as ordens e no interesse daquela entidade organizadora (Vide Relatório da Polícia Judiciária de fls., 291, página 7).
11- Que as festividades ocorreram e que o lançamento do fogo de artifício se verificou, parece que não há dúvidas, mas daí até considerar que o material encontrado era dessas festividades em concreto e que o calibre do mesmo era o que constava do pedido de licenciamento vai uma grande “distância” (se nos é permitida tal expressão), pois tanto quanto nos recordamos também em relação a tal matéria, nenhuma prova foi feita nesse sentido!!
12- Não ficou demonstrado (como devia) qual o concreto material vendido e lançado, nem a quantidade, nem mesmo o próprio artifício. Para além disso, pessoa que constava da licença requerida para esse determinado lançamento, OO, não foi quem o realizou.
13- O fornecimento não foi feito pela segurada da B..., mas antes pela sociedade “A..., Lda.,” da qual à data dos factos o arguido era proprietário e sócio-gerente.
14- Não se encontravam no local nem bombeiros, nem entidade policial, nem cisterna com água, durante as operações de lançamento do fogo, as quais teriam que ter sido providenciadas pela comissão organizadora e responsável pelo evento!!
15- Tendo sido fornecido à comissão organizadora, o material deflagrado nessas festividades pela A..., Lda., (e não pela A... La., pelas evidências dos autos), forçoso será concluir que também ela, teria necessariamente, que ser responsabilizada quanto mais não fosse, por ser a organizadora e responsável pelo evento e concomitantemente a proprietária do material que havia sido fornecido (fosse ele por quem fosse).
16- À luz do disposto nos artigos 493.º, n.º 2 e 497º ambos do Código Civil, no nosso modesto entendimento, o Tribunal Recorrido teria que ter apurado a eventual responsabilidade dessa comissão organizadora, que contratou a “A...” para o fornecimento e lançamento do fogo-de-artifício, a quem inclusivamente pagou uma referente às licenças obtidas (ainda que não cumpridas) para o lançamento do mesmo.
17- Dentro da anuidade (30/11/2016 a 30/11/2017) deste sinistro, ocorreu um outro em 30/07/2017, no qual a B... indemnizou esse lesado, PP, em 25/06/2018, pelo valor de € 39.500,00.
18- No caso em apreço o lesado/demandante cível nunca ao longo de quase 5 anos reclamou em sede extrajudicial qualquer valor à seguradora, nem a segurada participou o sinistro àquela como seria natural considerando, as próprias lesões que aqui estavam em causa!
19- Certamente porque, por um lado, o sinistro não ocorreu no decurso das festividades e, por outro lado porque nem sequer foi a segurada que procedeu à venda do material à comissão organizadora.
20- A testemunha LL, Pároco da freguesia, e responsável pela organização das Festas ..., exibiu uma anotação manuscrita relativa ao material pirotécnico e valor pago por si pago à empresa “A..., Lda.,” que é de ..., onde estava, para além do mais, incluído, o valor de € 233,50, para a “rúbrica licenças”, relativa às festas a que se refere o libelo acusatório.
21 -Do requerimento de fls., com data de 23/01/2023 e com refª: 44486633, oportunamente apresentado nestes autos por essa mesma testemunha, Padre LL, resulta de forma clara e evidente que o lançamento dos foguetes foi efetuado pela empresa A..., Lda., e que a fatura referente ao valor pago, nunca lhe foi enviada!
22 - Corroborado que foi pela testemunha MM, o qual confirmou que tudo o que dizia respeito ao fogo era tratado por ordem do Sr. Padre, entre essa empresa A..., Lda. e o entretanto falecido, Sr. QQ “taxista”. Tendo, nesse ano de 2017, tudo se passado de igual modo e sem exceção!
23- Não resultou provado de forma cabal e inequívoca para que essa condenação se viesse a verificar in casu.
- De que forma verdadeiramente ocorreu o sinistro?
- Quantidades e material fornecido e lançado?
- Composição desse mesmo material (fornecido e lançado) em termos de carga explosiva?
- Gramagem do tiro?
- A quem pertencia o artefacto que rebentou bem como os demais encontrados?
- Desde quando se encontravam no local onde foram encontrados?
- Contributo do próprio lesado para a ocorrência do sinistro? 31
24- No caso do material pirotécnico, sobre o qual aqui nos debruçamos o mesmo só explodiria se fosse sujeito a fonte de ignição, através de calor (chegando-lhe fogo), forte impacto ou fricção.
25- O lesado/demandante era fumador, e costumava fumar durante as horas de trabalho, conforme relatado pela testemunha DD!!
26- No caso sub judice, importava como importa, apurar a origem e causas do sinistro, o cumprimento ou não de todos os procedimentos legais impostos, quer previamente na fase do licenciamento do lançamento do fogo de artifício, quer posteriormente, no cumprimento todas as regras de segurança impostas por lei, não só em relação ao arguido e empresa pirotécnica, mas também em relação aos demais obrigados (incluindo, neste caso, a comissão organizadora e responsável pela festa).
27- Todas as dúvidas que anteriormente invocamos deveriam ter sido esclarecidas e dissipadas no apuramento da verdade material, mas que aqui não foram, pois só assim, se conseguiria a realização da justiça, sendo esta, por certo, o fim último do processo penal. Daí a razão pela qual, com todo o respeito que nos é devido e merecido, não podemos concordar com a decisão proferida pelo Tribunal recorrido, que para nós, salvo o devido e demais elementos carreados para os autos, que sustentasse essa sentença condenatória.
28- Não tendo o Tribunal “a quo” usado aquele poder dever, de que falamos, violou sem margem para dúvidas, o disposto no supra, referido artigo 340º, nº 1 do Código de Processo penal.
29- Não respeitando nem cumprindo, desse modo, a decisão recorrida os princípios orientadores do nosso direito processual penal, não garantindo, por essa via, na nossa modesta opinião, um processo justo e equitativo como se espera num Estado de Direito, pois nem sequer tratou, em bom rigor, de aferir, quem foi a empresa que, na verdade procedeu ao fornecimento e lançamento do fogo de artifício (quando tinha elementos para isso), nem em que medida o lesado poderá ter contribuído para o resultado verificado, o que seria de veras importante para a descoberta da verdade e boa decisão da causa!
30- Não se encontrando, assim, em face de tudo quanto se disse neste recurso, qualquer fundamento para que a Recorrente tivesse sido condenada!!
31- Se atentarmos nos factos dados como provados que acima referimos, mormente os que se reportam às cláusulas contratuais (gerais, especiais e particulares da apólice) em vigor à data dos factos, podemos concluir com certeza que, só por aí, não é a ora recorrente responsável pelo ressarcimento de qualquer dano sofrido pelo demandante/lesado.
32- A decisão violou, entre outros, o disposto nos artigos 493º/2 e 497º/ 1 e 2, ambos do Cód. Civil, artigo 340°, do Cód. de Proc. Penal e cláusulas contratuais gerais, especiais e particulares da apólice.
Pelo que, deve a mesma ser alterada e, consequentemente a recorrente ser absolvida do pedido.
Termos em que deve dar-se provimento ao recurso, alterando-se a decisão recorrida, Assim se fazendo Justiça.
*
Acresce que a mesma demandada B... a 29/07/2022 havia interposto recurso interlocutório do despacho proferido a 12/07/2022 que indeferira a realização de duas perícias, recurso cujo conhecimento continua a pretender, conforme declarou no recurso agora interposto, ali concluindo da seguinte forma:
I - A Recorrente não se conforma com o douto despacho proferido a 12/07/2022, que indeferiu parcialmente as diligências de prova por si arroladas na sua contestação de fls., mais precisamente no que diz respeito às requeridas sob a alínea E) – exame completo de avaliação ao dano corporal – e sob a alínea F) – exame pericial a realizar pela Faculdade ....
II – Em relação ao exame de avaliação ao dano corporal a realizar no INML a decisão proferida não teve em consideração que o relatório pericial que se encontra junto aos presentes autos com data de 15/12/2020, não foi elaborado no âmbito do direito civil, como aqui se impõe, mas antes no âmbito do direito penal, o qual não dá resposta a muitas das questões que são essenciais para efeitos de fixação da indemnização a que o demandante civil possa vir a ter direito.
III - Baseando-se o pedido de indemnização formulado pelo Demandante Civil, numa suposta “IPP psíquica e física nunca inferior a 90%”, sem que se encontre devidamente documentado tal grau de incapacidade.
IV – O sinistro aqui em discussão nunca foi participado à Recorrente pela sua Segurada A..., ficando, assim, a Recorrente privada de poder averiguar as circunstâncias em que ocorreu o alegado sinistro, suas causa e consequências, bem como de avaliar o Sinistrado pelos seus serviços clínicos para que pudesse perceber qual o 13 grau de incapacidade que lhe seria de atribuir por força desse mesmo sinistro.
V – Em relação ao exame pericial a realizar pela Faculdade ..., através do qual se pretendiam ver esclarecidas algumas questões, atentas as suas especificidades, que nos parecem pertinentes considerando que todo o sinistro está estruturado na violação das mais elementares regras de segurança, impostas por lei e que não terão sido cumpridas na atividade em questão, estando neste caso o sinistro excluído das coberturas da apólice.
VI - O MMº Juiz ao ter indeferido o requerimento probatório nessa parte da qual aqui se recorre, sufragando um entendimento que, salvo todo o respeito, é deveras inaceitável, por o mesmo traduzir a violação de um dos princípios basilares do nosso ordenamento jurídico-penal como seja o da investigação ou da verdade material, consagrado, como sabemos, no artigo 340º, nº 1 do código de Processo Penal.
VII - De acordo com o princípio da investigação, o Tribunal, tem o poder dever de empenhar-se no apuramento da verdade material e nesse sentido, deverá atender a todos os meios de prova, que sejam relevantes, como acontece no caso sub judice.
VIII - O Tribunal pode e deve, a requerimento ou mesmo oficiosamente, ordenar a produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se repute de essencial necessário e imprescindível para a boa decisão da causa, não ficando, desse modo, confinado aos meios de prova requeridos pelos diversos sujeitos processuais. Só podendo o requerimento de prova ser indeferido no caso de ser legalmente inadmissível, inútil, insignificante, desnecessário ou manifestamente dilatório.
IX - Neste caso em concreto, importa apurar a origem e causas do sinistro, o cumprimento ou não de todos os procedimentos legais impostos, quer previamente na fase do licenciamento do lançamento do fogo de artifício, quer posteriormente, no cumprimento todas as regras de segurança impostas por lei, quer ao arguido quer aos demais obrigados para que o lançamento do fogo se concretize, e tarefas subsequentes ao mesmo, sejam eles ou não intervenientes neste processo dada a complexidade desta atividade.
X - Não tendo o Tribunal a quo usado esse poder dever, violou sem margem para dúvidas o disposto no supra, referido artigo 340º, nº 1 do Código de Processo Civil.
XI - O despacho recorrido não respeitou os princípios orientadores do nosso direito processual penal, não garantindo, desse modo, na nossa modesta opinião, um processo justo e equitativo como se espera num Estado de Direito.
XII – Verificada a omissão das diligências de prova requeridas pela Chamada/Recorrente, por se reputarem de essenciais, para a descoberta da verdade, conduzem, necessariamente, a uma nulidade relativa, e por isso, sanável, nos termos previstos no artigo 120º, nº 2, alínea d) do mesmo diploma legal (C.P.P.), de acordo, com entendimento da nossa Jurisprudência, o qual perfilhamos.
Termos em que, concedendo-se provimento ao presente recurso deverá ser revogado o douto despacho que indeferiu a realização do exame completo de avaliação ao dano a realizar no INML e o exame pericial a realizar pela Faculdade ..., determinando-se a sua substituição por outro que ordene a realização de tais meios de prova requeridos pela Recorrente
Assim se fazendo Justiça
*
O assistente BB veio responder ao recurso da seguinte forma:
1. Não assiste qualquer razão aos recorrentes.
2. Pelas razões de facto e de direito expostas no Douto Acórdão, entende o arguido que o recurso não deverá merecer provimento.
3. O Douto Acórdão posto em crise, não merece qualquer reparado, aliás, o Tribunal “a quo” na sua decisão, faz um raciocínio lógico, racional, criterioso e baseado nos preceitos legais a que está vinculado.
4. Encontrando-se a decisão devidamente fundamentada.
5. O dever de fundamentação da matéria de facto no código de processo penal não se basta com a indicação das provas em que o tribunal se baseou para formar a sua convicção, ela há-de conter, para além das provas em que o tribunal se baseou para formar a sua convicção, as razões pelas quais tais provas – analisadas criticamente, de acordo com as regras da experiência comum, da lógica e os critérios da normalidade da vida – o levaram a formar a sua convicção nesse sentido e não noutro, foi o que o Tribunal fez na sua motivação.
6. O douto acórdão contém os motivos de facto que fundamentam a decisão – em termos de permitir perceber (e convencer, seja os interessados, seja a comunidade em geral) a correção de raciocínio lógico-dedutivo seguido pelo tribunal para formar a sua convicção, contendo uma exposição completa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com a indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
7. Observando assim, o douto acórdão todos os requisitos previsto no art.º 374.º do C.P.P..
A delimitação do objeto do recurso é plasmada nas conclusões apresentadas.
8. Por sua vez, o arguido AA, no seu recurso não põe em causa os factos dados como provados, logo e dada a matéria de facto dada como provada não poderia levar a outra conclusão, senão a proferida no douto acórdão.
9. Ou se o arguido pretendia a alteração da matéria de facto não cumpriu com os requisitos legais previstos na lei para a impugnação da matéria de facto, pelo que a mesma é inabalável.
10. Ainda no seu recurso, o arguido AA, no que concerne ao motivo que determinou a explosão do artefacto pirotécnico, pretende valorar apenas o depoimento do Prof. Universitário GG e de dois pirotécnicos – EE e FF, em detrimento dos demais depoimentos prestados em audiência de discussão e julgamento por várias testemunhas com formação continua e especifica na área da pirotécnica e com muito conhecimento empírico.
11. Diga-se em relação às duas últimas testemunhas supra referenciadas RR e EE, basta ouvir o seu depoimento para perceber cabalmente que não lhe poderia se assacada qualquer credibilidade por contrariar todas as regras da experiência, não sendo sequer necessário invocar o princípio da imediação para o credibilizar ou descredibilizar, tal é a forma desconcertante, irrazoável e irracional como depuseram.
12. No que concerne à testemunha Pro. GG é claramente contraditada pelas regras da experiência e pelos depoimentos de todos os agentes que ali depuseram, que são portadores quer de conhecimento técnico bem como factual e que depuseram com rigor e total isenção.
13. No que concerne ao pedido de indemnização civil, também o mesmo deve manter-se tendo em consideração ao estado físico e emocional em que ficou o ofendido, com todas as limitações consequências que daí advieram e se vão repercutir no futuro, quer a nível pessoal, quer a nível profissional, aliadas à idade do ofendido.
14. No que concerne ao recurso apresentado pela demandada civil, carece de total fundamento.
15. Termos em que deve manter-se o Douto Acórdão posto em crise.
TERMOS EM QUE DEVE O RECURSO APRESENTADO PELA DEMANDADA CÍVEL E PELO ARGUIDO DEVE SER JULGADO IMPROCEDENTE MANTENDO-SE A DOUTA DECISÃO RECORRIDA. DECIDINDO DESSA FORMA, FARÃO V. EXC.ªS, UM ACTO DE SÃ JUSTIÇA! COMO SEMPRE
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Neste tribunal de recurso o Digno Procurador-Geral Adjunto no parecer que emitiu, pugnou pela improcedência do recurso.
O arguido AA vem recorrer do acórdão proferido nos autos, em 1 de Setembro de 2023, que o condenou pela prática de um crime de incêndios, explosões e outras condutas especialmente perigosas, agravado pelo resultado, previsto e punido pelas disposições conjugadas do artigo 272º, nº1, al. b) e 18º e 285º do Código Penal, na pena concreta de 5 (cinco) anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, sujeita ao pagamento, no mesmo lapso temporal, da quantia global fixada a título de indemnização ao assistente/demandante, a pagar mensalmente, em quantia não inferior a €200 (duzentos euros) mensais, com inicio no mês subsequente ao trânsito em julgado da presente decisão – artigos 50º, nº1, 3, 5 e 51º, nº1, l. a) ambos do Código Penal, absolvendo-o do crime de que vinha acusado.
No essencial, o arguido, que recorre quer quanto à parte criminal, quer quanto à parte civil, invoca que a prova produzida em audiência de julgamento não foi devidamente apreciada e valorada, tendo ocorrido erro notório na sua apreciação, e até insuficiência para a decisão da matéria de facto dada como provada, tendo em conta todos os meios de prova carreados para os autos, designadamente, prova documental, testemunhal e até pericial, erros que entende serem notórios e flagrantes.
Mais diz o recorrente que o Tribunal recorrido, no final das audiências de discussão e julgamento, efetuou uma alteração substancial dos factos relatados na acusação pública, relativamente aos quais não deu ao arguido e demandados civis a oportunidade de se pronunciarem devidamente e produzirem prova no sentido do esclarecimento dos factos então aduzidos, o que entende constituir uma alteração substancial dos factos prevista no artigo 359º do CPP e não mera alteração da qualificação jurídica.
A demandada civil, B... – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., também interpôs recurso, em 29/9/2023, na parte em que foi condenada, solidariamente com a também demandada “A..., LDA.”), ao pagamento do montante de € 54.450,00 acrescido de juros à taxa legal, desde a respetiva notificação até efetivo e integral pagamento (consubstanciado no capital seguro, deduzido da fatura contratada).
O recurso, interposto pelo arguido em 6-10-2023, foi admitido por despacho de 11-10-2023, a subir de imediato, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
O Ministério Público apresentou resposta, em 4-11-2023, pugnando pela negação de provimento ao recurso e consequente manutenção do acórdão recorrido, argumentando, conforme conclusões:
1. Da prova produzida, quer testemunhal, quer documental, dúvidas não restam quanto ao local do lançamento do fogo, e quanto à propriedade dos artefactos como sendo da A....
2. Resulta dos depoimentos destas testemunhas, pessoas especializadas e com conhecimentos, quer teóricos, quer práticos, que, ao contrário do pretendido pelo recorrente (de que os artefactos pirotécnicos só explodiriam se fossem sujeitos a uma ignição superior a 200º; ou se fossem sujeitos a fricção, ou se fossem sujeitos a impacto) o artigo pirotécnico deflagrado fica instável, o que, conjugado com a exposição às condições atmosféricas, o torna passível de detonação espontânea.
3. Assim, é perfeitamente plausível a versão do ofendido, de que, quando se encontrava a recolher os canos secos dos kiwis, com as duas mãos, agarrou em algo estranho que lhe rebentou inopinadamente nas mãos.
4. O despacho proferido, na sequência de deliberação do coletivo, constitui a comunicação de uma simples alteração da qualificação jurídica, pelo que cumprido o art.º 358º do Código de Processo Penal, e nada tendo sido invocado, o Douto Acórdão espelhou essa mesma qualificação jurídica.
5. Assim, a pena aplicada é justa, adequada e proporcional”.
O assistente BB também respondeu aos recursos, do arguido e da demandada civil, B... – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., em 15/11/2023, pugnando pela negação de provimento aos recursos.
O recurso do arguido abrange matéria de facto e de direito.
Não foi requerida a realização de audiência, nem é necessário proceder à renovação da prova.
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Afigura-se-me que nenhuma circunstância obsta ao conhecimento do recurso, em conferência, deve manter-se o efeito que lhe foi atribuído, inexistindo causas justificativas da sua rejeição e/ou extintivas do procedimento ou da responsabilidade criminal que ponha termo ao processo ou seja o único motivo do recurso.
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Em relação ao mérito do recurso do arguido (no que concerne à parte criminal), vistos os autos, nomeadamente, o acórdão recorrido e sua motivação - quer quanto à matéria de facto dada como provada, quer quanto à qualificação jurídica dos factos -, a motivação do recurso e a argumentação constante da resposta efetuada pelo Ministério Publico, com a qual concordo e aqui dou por reproduzida, SOU DE PARECER QUE O RECURSO INTERPOSTO PELO ARGUIDO NÃO DEVE OBTER PROVIMENTO e que o acórdão recorrido se deve manter, na íntegra, por não padecer de qualquer vicio ou violação de qualquer norma legal ou princípio, nomeadamente dos apontados pelo recorrente.
De facto, parece-me que da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento se impunha que a decisão sobre a matéria de facto fosse decidida tal como consta do acórdão recorrido, não se detetando que tenha tendo havido qualquer erro de julgamento, tal como bem demonstra o MP na resposta ao recurso, e contrapõe com o depoimento de testemunhas ali transcritos.
No que concerne à alteração da qualificação jurídica, também subscrevo a argumentação do MP na sua resposta ao recurso, no sentido de que não foi efetuada “qualquer alteração substancial dos factos, pois, efetivamente os factos já estavam contidos na Douta Acusação proferida, simplesmente procedeu-se, com base nessa mesma factualidade a uma alteração da qualificação jurídica”, tendo o tribunal a quo observado previamente o regime do artigo 358º, n.º 3, do Código de Processo Penal.
Ou seja, parece-me que, ao contrário do que defende o arguido, da referida alteração não resultou uma “nova versão da factualidade aduzida na acusação pública”, suscetível de determinar “total alteração do circunstancialismo fáctico em que o sinistro ocorreu,” nem uma versão dos factos diferente, e oposta, à versão dos factos apurada em sede de audiência de julgamento.
Assim, e concluindo, o acórdão recorrido não merece qualquer censura, pelo que se deverá negar provimento ao recurso do arguido e manter aquele acórdão, no que à parte criminal diz respeito, incluindo, quanto à medida concreta da pena aplicável, situada muito próxima do limite mínimo da moldura penal abstrata.
*
Cumprido o preceituado no artigo 417º número 2 do Código Processo Penal nada veio a ser acrescentado de relevante no processo.
Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais foram os autos submetidos a conferência.
Nada obsta ao conhecimento do mérito.
II.
Objeto do recurso e sua apreciação.
O objecto do recurso está limitado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (cfr. Acórdão do STJ, de 15/04/2010, in http://www.dgsi.pt: “Como decorre do artigo 412.º do CPP, é pelas conclusões extraídas pelo recorrente na motivação apresentada, em que resume as razões do pedido que se define o âmbito do recurso. É à luz das conclusões da motivação do recurso que este terá de apreciar-se, donde resulta que o essencial e o limite de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso, estão contidos nas conclusões (…)”, sem prejuízo da eventual necessidade de conhecer oficiosamente da ocorrência de qualquer dos vícios a que alude o artigo 410º, do Código de Processo Penal nas decisões finais (conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada no Acórdão nº 7/95, do STJ, in DR, I Série-A, de 28/12/95).
São as conclusões da motivação que delimitam o âmbito do recurso. Se ficam aquém a parte da motivação que não é resumida nas conclusões torna-se inútil porque o tribunal de recurso só pode considerar as conclusões e se vão além também não devem ser consideradas porque são um resumo da motivação e esta é inexistente (neste sentido, Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, Vol. 3, 2015, págs. 335 e 336).
*
Deste modo integram o objeto do recurso do arguido:
- Da nulidade da decisão preterição das formalidades do art. 359º, do CPP;
- A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
- Erro notório na apreciação da prova;
- erro na apreciação da matéria de facto.
- matéria de direito nos fundamentos e limites da pretensão cível
recurso interposto pela companhia de seguros do despacho proferido a 12/07/2022:
- pertinência na realização de duas perícias.
recurso interposto pela companhia de seguros do acórdão.
- matéria de direito sobre a exclusão da responsabilidade constante da apólice.
- impugna parte da decisão da matéria de facto.

Do enquadramento dos factos.

A 12 de Julho de 2022 o Tribunal “A Quo” proferiu despacho que indeferiu a realização de duas perícias requeridas pela companhia de seguros, nos seguintes termos:
A mesma Interveniente vem requerer (…) Por outro lado, e quanto ao exame de avaliação de dano corporal na pessoa do demandante, também esta já se encontra realizada, já prejuízo de caso se apresente necessário serem solicitados esclarecimentos ao Sr. Perito Subscritor – cfr. fls. 556 e ss.
*
No que respeita ao pretendido exame pericial do sinistro no confronto com os quesitos apresentados e bem assim com o objecto dos autos impõe-se dizer que os pontos 1º, 2º e 3º não são susceptíveis de ser respondidos por peritos/engenheiros porquanto arredados deste especial juízo técnico. Quanto à determinação da composição das balonas em termos de carga explosiva; qual a composição da substância explosiva e gramagem do tiro, sem prejuízo do que através de outros meios de prova, possa ser apurado, e da sua efectiva pertinência (ou não) mostra-se desde logo inviável, já que foi necessária a destruição dos encontrados no local por haver perigo no seu manuseamento e transporte.
Termos em que se indeferem os pretendidos meios de prova nos termos expostos.”
*
A 7 de Julho de 2023 o Tribunal “A Quo” proferiu o despacho que determinou a alteração de factos e da qualificação jurídica nos seguintes termos:
Após deliberação, os juízes que compõem o tribunal coletivo, sustentados na prova por declarações, testemunhal, documental, pericial produzida em audiência e junta aos autos, decidiram que resultam indiciados, os seguintes factos (já resultantes da acusação, independentemente da sua concretização e ou/ diferente redação e ordem de exposição e que aqui e agora se consignam para melhor compreensão da presente comunicação) que em seu entender - ao contrário da acusação - integram a prática pelo arguido AA de um crime p. e p. pelo at. 272º, nº1, al. b) e 285º, todos do C. P. Penal, a saber:
1.A sociedade “A..., Lda.”, pessoa coletiva com o n.º ... e sede na Rua ..., em ..., Lousada, tem por objeto o comércio, fabrico, importação e exportação de artigos de pirotecnia, tendo o alvará para o exercício de tais atividades 23/2009;
2. A gerência da referida “A...…” esteve sempre a cargo de CC.
3. O arguido AA, ao tempo dos factos infra descritos, estava autorizado ao lançamento de fogo de artifício, pela sociedade “A...”, mediante credencial n.º ..., válida até 16.06.2019.
4. Entre os dias 29 de Julho e 5 e 6 de Agosto de 2017, na freguesia ..., concelho ... decorreram as “Festas ...” organizadas a pedido de LL, padre, pároco da paróquia ... e Presidente da Fábrica da Igreja ...;
5. A sociedade “A...…” foi contratada para o lançamento de fogo-de-artifício no âmbito das referidas festividades;
6. No contexto referido em 5), a sociedade “A...…” requereu o licenciamento para o lançamento de fogo de artifício para os dias 29 de Julho e 5 e 6 de Agosto de 2017, junto da Igreja ..., em Felgueiras, indicando como lançador OO, com a credencial n.º ....
7. Pela licença para lançamento ou queima de fogos de artifício n.º 21/17, emitida pela Guarda Nacional Republicana, o licenciamento solicitado foi concedido a 24 de Julho de 2017.
8. Não obstante o referido em 6), a sociedade “A...…” encarregou o arguido AA para proceder ao lançamento do fogo de artifício nas aludidas “Festas ...”.
9. Por força do referido de 5) a 8), cabia à sociedade “A...…” e ao arguido AA realizar, em condições de segurança, todo o processo de lançamento do fogo de artifício, designadamente a montagem ou colocação dos dispositivos de lançamento e dos artigos pirotécnicos na zona de fogo, o lançamento do fogo de artifício e, após este, a desmontagem dos dispositivos de lançamento e a limpeza das zonas e terrenos adjacentes, especialmente a recolha dos artigos pirotécnicos não deflagrados, assim como o cumprimento de todas as normas de segurança;
10. Assim, num terreno sito nas proximidades da Igreja ..., nos dias 29 de Julho e 5 e 6 de Agosto, o arguido AA procedeu ao lançamento do fogo de artifício, nomeadamente ao lançamento para o ar de artigos pirotécnicos a partir de dispositivos de lançamento e de tubos de lançamento previamente colocados no solo;
11. Não obstante o descrito de 5) a 10), após o lançamento do fogo de artifício referido, nem o arguido nem qualquer outra pessoa a mando da sociedade “A...…” procederam à recolha das sobras resultantes do lançamento do fogo de artifício, assim como não recolheram os artigos pirotécnicos que, por qualquer razão e apesar de lançados, não deflagraram;
12. O descrito em 10) e 11) criou para as pessoas que encontrassem os artigos pirotécnicos lançados e não deflagrados ou que estivessem nas suas imediações o perigo de perder a vida ou de sofrer lesões na sua saúde e integridade física.
13. No dia 18 de Agosto de 2017, cerca das 14.20 horas, BB encontrava-se a trabalhar numa plantação de Kiwis numa quinta sita na Rua ..., ..., em Felgueiras, juntamente com DD, mais concretamente a verificar o sistema de rega e a retirar a lenha seca.
14. Então, a cerca de 46,70 m do local do seu lançamento e sem que ele dele (artigo pirotécnico) se apercebesse, rebentou junto de BB, explodindo, um artigo pirotécnico lançado nos termos referidos em 10);
15. Por força do descrito em 14), BB sofreu as seguintes lesões: amputação dos membros superiores bilateralmente, traumatismo da face (pálpebras e olho esquerdo – queimadura da córnea);
16. E as seguintes sequelas permanentes que daquelas lesões advieram: - amputação bilateral dos membros superiores trans-radial; acufenos, reação depressiva prolongada e resultantes de transplante de córnea (hipovisão marcada e fotofobia ligeira), das quais decorre uma incapacidade parcial permanente de 87,6092%, com IPATH (incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual - jornaleiro/tratorista; no abdómen: áreas cicatriciais acastanhadas dispersas pela região anterior do abdómen, a maior com 5 por 1 cm de dimensões; no membro inferior esquerdo: 3 cicatrizes acastanhadas dispersas pela face anterior da coxa, a maior com 2 por 1 cm de dimensões.
17. O arguido AA tinha conhecimento das regras de segurança relativas ao lançamento de fogo de artifício;
18. O arguido AA e a sociedade “A...…” tinham conhecimento do descrito em 9) e que o cumprimento de tal dever, assim como de todas as regras de segurança relativas ao lançamento de fogo de artifício, era necessário para evitar que para as pessoas que encontrassem os artigos pirotécnicos lançados e não deflagrados ou que estivessem nas suas imediações o perigo de perder a vida ou de sofrer lesões na sua saúde e integridade física.
19. Não obstante isso, o arguido AA atuou nos termos descritos em 10) e 11), o que representou, quis e conseguiu;
20. Além disso, o arguido AA representou como possível que, agindo nos moldes descritos em 10) e 11), ocorresse a explosão de artigos pirotécnicos lançados e não deflagrados imediatamente depois, resultado com o qual se conformou;
21. Sabia ainda o arguido AA que atuando nos moldes descritos que criava para as pessoas que encontrassem os artigos pirotécnicos lançados e não deflagrados ou que estivessem nas suas imediações o perigo de perder a vida ou de sofrer lesões na sua saúde e integridade física, resultado com o qual se conformou; 22. Além disso, o arguido AA não previu, mas podia e devia, que da sua conduta descrita em 10) e 11) e subsequente explosão poderia resultar, como resultou, lesões graves na integridade física das pessoas que encontrassem os referidos artigos pirotécnicos ou que estivessem nas suas imediações, designadamente as lesões descritas em 15 e 16, sofridas por BB;
23.O arguido AA atuou livre, voluntaria e conscientemente, ciente do caráter ilícito e censurável da sua conduta;
24. O arguido AA atuou em nome e no interesse da sociedade “A..., Lda.”.

A signatária, enquanto presidente do tribunal coletivo procede agora e pelo presente despacho à comunicação da enunciada alteração da qualificação jurídica –arts. 358º, nº1 e 3 do C. P. Penal - concedendo desde já ao arguido o prazo de três dias para, querendo, se pronunciar.
Notifique. Dn.
*
O acórdão proferido pelo Tribunal de 1ª Instância tem o seguinte teor:
“Em processo comum e com a intervenção do tribunal coletivo, o Ministério Público deduziu acusação contra:
AA, filho de SS e TT, natural da freguesia ..., concelho de Lousada, nascido a ../../1962, divorciado, pirotécnico, residente na Rua ..., ..., Lousada;
Imputando-lhe a prática em autoria material e na forma consumada de um crime de ofensa à integridade física grave, p. e p. pelo artigo 144.º, n.º 1, alínea a), b) e d) do Código Penal ex vi artigo 39.º, n.º 1, 25.º e 26.º do Regulamento sobre Fiscalização e Produtos Explosivos, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 376/84 de 30 de Novembro) ex vi artigo 6.º, n.º 3 do Decreto-Lei n.º 135/2015 de 28 de Julho e Instruções Sobre a utilização de artigos Pirotécnico – N.º 15 e 20 – Atuações posteriores ao lançamento e artigo 6.º, 7.º e 9.º do e artigo 35.º, n.º 2, alínea d) do Decreto-Lei n.º 265/94 de 25 de Outubro ex vi artigo 3.º, 27.º, alínea i), j) e 34.º e 39.º, n.º 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 521/71 de 24 de Novembro (cfr. fls. 580 verso).
*
O ofendido constituiu-se assistente e deduziu pedido de indemnização civil contra o arguido e ainda contra a sociedade “A..., Ldª e CC enquanto gerente da sociedade demandada. Alegou para efeito que em consequência da atuação do arguido viu-se amputado das mãos, punhos, antebraços, sofreu escoriações múltiplas e diminuição da audição e visão, que importaram a sua incapacidade para o exercício da sua atividade profissional, dor, sofrimento e angustia e repercussões na sua vida pessoal, económica e pessoal que concretiza. Conclui pedindo a condenação solidária dos demandados ao pagamento da quantia global de €695.793,13, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos acrescida de juros à taxa legal até efetivo e integral pagamento. Arrola testemunhas e junta documentos - cfr. fls. 607 e ss.
O arguido/demandado AA apresentou contestação à acusação e ao pedido de indemnização civil. Invoca não ter violado qualquer norma legal e/ou regulamentar e no que respeita à indemnização insurge-se contra o montante peticionado, impugnando genericamente o a este nível alegado e invocando simultaneamente a sua prejudicialidade porquanto corre no Tribunal de Trabalho ação de acidente de trabalho assente no mesmo evento. Mais invoca estar a atividade de lançamento de artefactos pirotécnicos objecto dos presentes devidamente licenciada tendo a sociedade demandada celebrado contrato de seguro junto da seguradora “B...-Companhia de Seguros” por factos danosos daquela decorrentes.
Termina requerendo a intervenção principal provocada da identificada seguradora e pugnando pela sua absolvição. Arrola testemunhas. – cfr. fls. 744 e ss.
A sociedade “A..., Ldª e CC apresentaram também contestação impugnando de igual forma o pedido de indemnização formulado mais aduzindo genericamente ter o ocorrido sucedido por exclusiva responsabilidade do ofendido.
Pedem ainda se determine a verificação de causa prejudicial no confronto com a ação que corre termos no tribunal de trabalho com a consequente suspensão dos presentes autos ao abrigo do disposto no art. 271º, nº1 do C. P. Civil, e se conclua pela ilegitimidade processual das demandadas e simultaneamente pela intervenção principal provocada da identificada seguradora com idêntico fundamento.
A fls. 789 e ss. e uma vez junto o despacho saneador no âmbito da ação que corre termos no Tribunal de Trabalho o tribunal concluiu não constituir a definição do evento como acidente de trabalho necessária à definição da responsabilidade criminal do arguido e civil de todos os demandados não remetendo as partes para os meios comuns e simultaneamente determinou a intervenção da Seguradora “B..., Companhia de Seguros, S.A.”.
A indicada seguradora notificada apresentou contestação – cfr. fls. 807 e ss. admitindo ter celebrado com a demandada sociedade contrato de seguro do ramo responsabilidade civil-exploração, nunca esta lhe tendo feito chegar qualquer participação a que estava obrigada, impedindo-a de averiguar do sinistro, causas e consequências. Alega ainda que desconhecendo se a segurada demandada no âmbito do lançamento em questão estava licenciada, e estando o sinistro estruturado na violação de regras técnicas e de segurança está o mesmo excluído da cobertura da respetiva apólice como resulta das condições especiais e gerais.
Mais defende a não cumulação entre a indemnização aqui solicitada e a eventualmente concedida em sede de decisão proferida no Tribunal de Trabalho defendendo também a existência de causa prejudicial, e conclui que sempre o limite máximo segurado por sinistro e anuidade é de €100.000 estando a cargo da segurada uma franquia contratual no montante de 10% dos danos indemnizáveis. Junta documentos e requer diligências de prova. A fls. 826 foi mais uma vez indeferida a suspensão dos autos em razão da invocada prejudicialidade e indeferidos os exames periciais na pessoa do sinistrado e ao sinistro, requeridos pela seguradora interveniente, do que esta interpôs recurso, oportunamente admitido – cfr. fls. 831 e ss. e 839.
No início da audiência o assistente/demandante solicitou nova perícia na sua pessoa porquanto a incapacidade fixada em sede laboral para o exercício da atividade profissional não determinou o dano estético e o quantum doloris – cfr. fls. 894.
E uma vez exercido o necessário contraditório foi a perícia determinada, realizada e o perito subscritor ouvido em audiência a fim de prestar os esclarecimentos solicitados por demandante e demandados – cfr. fls. 1012 e ss.
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Após a audiência de discussão e julgamento o tribunal levou a efeito uma alteração da qualificação jurídica dos factos oportunamente comunicada – cfr. fls. 1153 e ss..
Mantem-se a validade e regularidade da instância já oportunamente apreciada.
***
II - Fundamentação:
1. Factos Provados:
Discutida a causa resultou provada a seguinte matéria de facto:
1. A sociedade “A..., Lda.”, pessoa coletiva com o n.º ... e sede na Rua ..., em ..., Lousada, tem por objeto o comércio, fabrico, importação e exportação de artigos de pirotecnia, tendo o alvará para o exercício de tais atividades 23/2009;
2. A gerência da referida “A...…” esteve sempre a cargo de CC.
3. O arguido AA, ao tempo dos factos infra descritos, estava autorizado ao lançamento de fogo de artifício, pela sociedade “A...”, mediante credencial n.º ..., válida até 16.06.2019.
4. Entre os dias 29 de Julho e 5 e 6 de Agosto de 2017, na freguesia ..., concelho ... decorreram as “Festas ...” organizadas a pedido de LL, padre, pároco da paróquia ... e Presidente da Fábrica da Igreja ...;
5. A sociedade “A...…” foi contratada para o lançamento de fogo-de-artifício no âmbito das referidas festividades;
6. No contexto referido no ponto 5., a sociedade “A...…” requereu o licenciamento para o lançamento de fogo de artifício para os dias 29 de Julho e 5 e 6 de Agosto de 2017, junto da Igreja ..., em Felgueiras, indicando como lançador OO, com a credencial n.º ....
7. Pela licença para lançamento ou queima de fogos de artifício n.º 21/17, emitida pela Guarda Nacional Republicana, o licenciamento solicitado foi concedido a 24 de Julho de 2017.
8. Não obstante o referido em 6., a sociedade “A...…” encarregou o arguido AA para proceder ao lançamento do fogo de artifício nas aludidas “Festas ...”.
9. Por força do referido de 5. a 8., cabia à sociedade “A...…” e ao arguido AA realizar, em condições de segurança, todo o processo de lançamento do fogo de artifício, designadamente a montagem ou colocação dos dispositivos de lançamento e dos artigos pirotécnicos na zona de fogo, o lançamento do fogo de artifício e, após este, a desmontagem dos dispositivos de lançamento e a limpeza das zonas e terrenos adjacentes, especialmente a recolha dos artigos pirotécnicos não deflagrados, assim como o cumprimento de todas as normas de segurança;
10. Assim, num terreno sito nas proximidades da Igreja ..., nos dias 29 de Julho e 5 e 6 de Agosto, o arguido AA procedeu ao lançamento do fogo de artifício, nomeadamente ao lançamento para o ar de artigos pirotécnicos a partir de dispositivos de lançamento e de tubos de lançamento previamente colocados no solo;
11. Não obstante o descrito de 5. a 10., após o lançamento do fogo de artifício referido, nem o arguido nem qualquer outra pessoa a mando da sociedade “A...…” procederam à recolha das sobras resultantes do lançamento do fogo de artifício, assim como não recolheram os artigos pirotécnicos que, por qualquer razão e apesar de lançados, não deflagraram;
12. O descrito em 10. e 11. criou para as pessoas que encontrassem os artigos pirotécnicos lançados e não deflagrados ou que estivessem nas suas imediações o perigo de perder a vida ou de sofrer lesões na sua saúde e integridade física.
13. No dia 18 de Agosto de 2017, cerca das 14.20 horas, BB encontrava-se a trabalhar numa plantação de Kiwis numa quinta sita na Rua ..., ..., em Felgueiras, juntamente com DD, mais concretamente a verificar o sistema de rega e a retirar a lenha seca.
14. Então, a cerca de 46,70 m do local do seu lançamento e sem que ele dele (artigo pirotécnico) se apercebesse, rebentou junto de BB, explodindo, um artigo pirotécnico lançado nos termos referidos em 10.;
15. Por força do descrito em 14., BB sofreu as seguintes lesões: amputação dos membros superiores bilateralmente, traumatismo da face (pálpebras e olho esquerdo – queimadura da córnea);
16. E as seguintes sequelas permanentes que daquelas lesões advieram: - amputação bilateral dos membros superiores trans-radial; acufenos, reação depressiva prolongada e resultantes de transplante de córnea (hipovisão marcada e fotofobia ligeira), das quais decorre uma incapacidade parcial permanente de 87,6092%, com IPATH (incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual - jornaleiro/tratorista; no abdómen: áreas cicatriciais acastanhadas dispersas pela região anterior do abdómen, a maior com 5 por 1 cm de dimensões; no membro inferior esquerdo: 3 cicatrizes acastanhadas dispersas pela face anterior da coxa, a maior com 2 por 1 cm de dimensões.
17. O arguido AA tinha conhecimento das regras de segurança relativas ao lançamento de fogo de artifício;
18. O arguido AA e a sociedade “A...…” tinham conhecimento do descrito em 9. e que o cumprimento de tal dever, assim como de todas as regras de segurança relativas ao lançamento de fogo de artifício, era necessário para evitar que para as pessoas que encontrassem os artigos pirotécnicos lançados e não deflagrados ou que estivessem nas suas imediações o perigo de perder a vida ou de sofrer lesões na sua saúde e integridade física.
19. Não obstante isso, o arguido AA atuou nos termos descritos em 10. e 11., o que representou, quis e conseguiu;
20. Além disso, o arguido AA representou como possível que, agindo nos moldes descritos em 10. e 11., ocorresse a explosão de artigos pirotécnicos lançados e não deflagrados imediatamente depois, resultado com o qual se conformou;
21. Sabia ainda o arguido AA que atuando nos moldes descritos criava para as pessoas que encontrassem os artigos pirotécnicos lançados e não deflagrados ou que estivessem nas suas imediações o perigo de perder a vida ou de sofrer lesões na sua saúde e integridade física, resultado com o qual se conformou;
22. Além disso, o arguido AA não previu, mas podia e devia, que da sua conduta descrita em 10. e 11. e subsequente explosão poderia resultar, como resultou, lesões graves na integridade física das pessoas que encontrassem os referidos artigos pirotécnicos ou que estivessem nas suas imediações, designadamente as lesões descritas em 15 e 16, sofridas por BB;
23. O arguido AA atuou livre, voluntaria e conscientemente, ciente do caráter ilícito e censurável da sua conduta;
24. O arguido AA atuou em nome e no interesse da sociedade “A..., Lda.”.
***
25. O assistente nasceu a ../../1988; 26. À data do evento descrito em 14. o assistente/demandante auferia um vencimento mensal de € 745,00 (setecentos e quarenta e cinco euros), como jornaleiro na empresa C..., Lda, com sede no Lugar ... – ... – ... Felgueiras, exercendo as funções de trabalhador agrícola acrescido de subsídio de alimentação no valor diário de € 4,10 (quatro euros e dez);
27. Em resultado direta, imediata e necessária da atuação do arguido AA (que o fazia no interesse e sob as ordens da Sociedade “A..., Lda”, gerida por CC), e das lesões em consequência sofridas o demandante deu entrada na urgência do Hospital ... e foi submetido a cirurgia ortopédica logo a 18.08.2017;
28. No âmbito da descrita cirurgia foi realizada amputação transradial bilateral dos membros superiores;
29. O demandante BB esteve internado na indicada Unidade Hospitalar desde 18.08.2017 até 25.08.2017 data em que teve alta hospitalar orientado para serviços clínicos da companhia de seguros (de acidentes de trabalho) com indicação de cuidados de penso, analgesia em SOS e medicação prescrita por oftalmologia;
30. Teve consulta nos serviços médicos da seguradora de acidentes de trabalho a 28.08.2017 e a 1.09.2017 data esta em que a referida seguradora declinou o sinistro alegando inexistência de nexo causal;
31. O demandante BB regressou ao Serviço Nacional de Saúde para acompanhamento junto da USF ... e do Hospital ...;
32. Teve consulta e avaliação por otorrinolaringologia a 11.09.2017 onde foi identificada perda auditiva bilateral com perfuração timpânica bilateral decorrentes do trauma descrito em 14;
33. Fez tratamento medicamentoso com melhora parcial, mantendo zumbido bilateral, pior à esquerda e indicação de tratamento cirúrgico de timpanoplastia esquerda para exploração e encerramento da perfuração timpânica identificada;
34. Realizou consulta de otorrinolaringologia a 18.01.2018 apresentando timpanograma normal bilateral mantendo zumbido residual no ouvido esquerdo e midríase traumática;
35. A 6 de Outubro de 2017 observado por oftalmologia apresentava acuidade visual de 10/10 sem correção ótica no olho direito e 1/10 no olho esquerdo devido a leucoma extenso.
36. Realizou consultas de oftalmologia no Hospital ... de 19 de Fevereiro de 2018 até 21 de Setembro de 2020 durante as quais foi efetuado acompanhamento do quadro lesional do olho esquerdo e realização de cirurgia de transplante de córnea, com registo de reepitelização a 24 de Setembro de 2018;
37. Na consulta de acuidade visual realizada a 14 de Setembro de 2020 apresentava 1,0/0,5 sem correção com queixas de prurido intenso esporadicamente e fotofobia;
38. Realizou consultas de Medicina Física e Reabilitação no Hospital ... de 03 de Abril de 2018 até 27 de Novembro de 2018;
39. Durante as quais as consultas aludidas em 38. foi efetuada a prescrição de 2 próteses mioelétricas com encaixe de contato total, interface em silicone com pino e luva cosmética bem como terapia ocupacional, reeducação e aprendizagem de gestos com próteses;
40. Tendo sido inicialmente prescrita na mesma consulta prótese biónica com sistema de contato total a nível de antebraço, prescrição não aceite pela administração hospitalar do Hospital ..., foi adquirida a título particular com ajuda de terceiros;
41. A prótese biónica sofreu um acidente, não tendo o demandante meios económicos para proceder à sua reparação;
42. Solicitado apoio ao Hospital ... para a referida reparação no valor de €7000 foi esta aprovada e realizada;
43. Em virtude do longo período de falta de uso e à complexidade da utilização da prótese biónica em termos funcionais irá iniciar novo programa em terapia ocupacional para readaptação de uso da prótese;
44. O demandante BB é ainda acompanhado na consulta de psicologia da Dor do Hospital ... em virtude do evento em questão nos presentes, desde 23 de Janeiro de 2018 por apresentar sintomatologia ansioso-depressiva reativa ao quadro orgânico, no contexto de uma perturbação de ajustamento à sua condição;
45. O demandante mantem os zumbidos no ouvido que lhes dificultam o sono;
46. Após a factualidade descrita em 14. o Demandante passou a padecer de dores persistentes nos cotos e ouvidos.
47. O que levou a que faça frequentemente tratamento com anti-inflamatórios, corticoides tópicos e opiáceos;
48. O demandante BB sente limitação de movimentos nos membros superiores, que provocam dores persistentes em certas posições, com limitação do movimento dos braços, especialmente a sua elevação;
49. Face às sequelas de que ficou portador o demandante, resultantes do evento descrito em 14. ficou dependente da ajuda de terceira pessoa para a realização das tarefas mais elementares do dia-a-dia e essenciais para a sua sobrevivência, tais como alimentar-se, vestir-se, calçar-se, tomar banho, efetuar a sua higiene básica, confecionar as suas refeições, proceder à limpeza da casa, o que o faz sentir diminuído;
50. Ademais, o Demandante, antes do evento referido em 14. E para além da sua profissão habitual, cultivava um quintal de onde recolhia batatas, legumes e vinho e criava animais domésticos, tais como, galinhas, coelhos e porcos, que destinava à sua alimentação e do seu agregado familiar;
51. Em virtude das sequelas decorrentes do evento aludido em 14 não pode o demandante cultivar o quintal ou criação animais domésticos, o que para além de se refletir economicamente no seu agregado familiar, o deixou destroçado emocionalmente;
52. O demandante deixou ainda de conduzir, ficando impossibilitado de se deslocar para as zonas de lazer que costumava frequentar;
53. E passou a permanecer em casa por longos períodos, nomeadamente aos fins de semana.
54. Dependente de terceiros também para se deslocar, nomeadamente a consultas e tratamentos.
55. O demandante não dispõe de transporte público junto da sua residência;
56. E para lhes aceder tinha, como tem de se deslocar à cidade de Felgueiras;
57. A ex-esposa não tinha carta de condução, tendo tido de recorrer ao serviço de táxi ou ajuda de vizinhos para se fazer transportar.
58. À data do evento em apreço o Demandante era casado e tinha um filho de 9 meses de idade;
59. Deixou de poder cuidar do seu filho, de lhe pegar ao colo, ou auxiliar a mulher nessa tarefa ou mesmo brincar com ele, o que o entristeceu e fez sentir-se diminuído;
60. Teve dores, desconforto e sentiu angústia associada às intervenções cirúrgicas e tratamentos que teve de realizar.
61. Na altura do evento o Demandante sentiu pânico, temendo uma forte incapacidade permanente, que veio a acontecer.
62. O demandante temeu não poder acompanhar o crescimento do seu filho;
63. E chegou a antever a sua morte pensando nunca mais ver a mulher e o filho, que tanto amava.
64. Antes do evento em apreço o demandante era uma pessoa bem-disposta, sociável que gostava de estar e conviver com os amigos, tendo passado um longo período emocionalmente abalado.
65. Era uma pessoa saudável, alegre, com grande dinamismo e alegria de viver;
66. Ainda hoje, o demandante acorda sobressaltado, tendo vários períodos de descompensação, necessitando ainda no presente de medicação e acompanhamento psicológico para enfrentar as sequelas do evento.
67. No presente momento o Demandante ainda não consegue efetuar grande parte das tarefas que fazia, ainda não trabalha, não consegue cozinhar, limpar a casa, tratar das roupas, entre outras, essenciais à sua sobrevivência, dependendo sempre de terceira pessoa para o efeito.
68. Viu-se privado de confraternizar com os seus amigos e realizar certas viagens, como fazia habitualmente e usufruir de certos convívios, como antes fazia, para além de que durante vários meses passou a fechar-se em casa, vivendo numa clausura total, não queria ver ninguém, não saindo a não ser para consultas e tratamentos.
69. A que acresce o facto, de o cônjuge não ter conseguido lidar com a situação em que o demandante ficou em consequência do que acabaram por se divorciar.
***
70. A data da consolidação médico-legal das lesões ocorreu em 21 de Setembro de 2020.
71. O demandante padeceu de défice Funcional Temporário total - anteriormente designado por Incapacidade Temporária Geral Total e correspondendo com os períodos de internamento e/ou de repouso absoluto, entre 18/08/2017 e 25/08/2017, sendo assim fixável num período de 8 dias (por internamento no Hospital ...);
72. E de Défice Temporário Parcial (anteriormente designado por Incapacidade Temporária Geral Parcial), correspondente ao período que se iniciou logo que a evolução das lesões passou a consentir algum grau de autonomia na realização desses atos, ainda que com limitações), entre 26/08/2017 e 21/09/2020, assim fixável num período 1123 dias;
73. As lesões sofridas pelo demandante e decorrentes do evento descrito em 14. tiveram uma repercussão Temporária na Atividade Profissional total - anteriormente designada por Incapacidade Temporária Profissional Total (correspondendo aos períodos de internamento e/ou de repouso absoluto, entre outros), entre 18/08/2017 e 21/09/2020, fixável num período total de 1131 dias;
74. O Quantum doloris sofrido pelo demandante BB é fixável no grau 6 numa escala de sete graus de gravidade crescente;
75. E o mesmo ficou ainda a padecer de Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica - tradicionalmente designada por Incapacidade Permanente Geral e/ou como dano biológico), com repercussões na sua independência e autonomia, tornando-o dependente de ajudas técnicas e de terceira pessoa fixável em 81 pontos (numa escala de 100);
76. As sequelas das lesões sofridas aqui em apreço importaram ainda repercussão Permanente na Atividade Profissional - sequelas são impeditivas do exercício da atividade profissional habitual fixável em 87,6092%, numa escala de 100 sendo, no entanto nos termos atrás expostos, compatíveis com outras profissões da área da sua preparação técnico profissional;
77. Ficou a padecer de dano Estético Permanente - fixável no grau 6, numa escala de sete graus;
78. E as mesmas sequelas repercutem-se de forma Permanente nas Atividades Desportivas e de Lazer fixável no grau 4, numa escala de sete graus de gravidade crescente.
79. Passou ainda a estar permanentemente dependente das seguintes ajudas:
▪ Tratamentos médicos regulares (correspondem à necessidade de recurso regular a tratamentos médicos para evitar um retrocesso ou agravamento das sequelas - ex.: fisioterapia) - neste caso, necessidade de tratamentos de Terapia Ocupacional em Medicina Física e Reabilitação para manutenção do uso e adaptação às próteses das mãos; consulta da Dor com prescrição deste âmbito a definir nesta consulta consoante necessidade clínica;
▪ Ajudas técnicas (referem-se à necessidade permanente de recurso a tecnologia para prevenir, compensar, atenuar ou neutralizar o dano pessoal - do ponto de vista anatómico, funcional e situacional -, com vista à obtenção da maior autonomia e independência possíveis nas atividades da vida diária; podem tratar-se de ajudas técnicas lesionais, funcionais ou situacionais). Neste caso as já definidas em âmbito de avaliação de Direito do Trabalho, nomeadamente, "prótese dos membros superiores com finalidade funcional e prótese com mão biónica e cosmética prótese em silicone de alta definição";
▪ Ajuda de terceira pessoa para todas as atividades de vida diária incluindo higiene pessoal e lida da casa de cerca de 4 horas por dia.
Mais se provou:
80. A Sociedade “A..., Lda” representada pela demandada CC celebrou com a também demandada/interveniente B...- Companhia de Seguros, S.A. seguro de responsabilidade civil geral titulado pela apólice ..., para a atividade de queima e lançamento de fogo de artifício, foguetes e morteiros com o seguinte objeto e âmbito (…) a seguradora garante o pagamento das indemnizações que sejam exigíveis ao segurado por danos patrimoniais e não patrimoniais acidentalmente causados a terceiros quando no exercício da sua atividade por ocasião das festividades populares, religiosas, desportivas ou outras celebrações levadas a efeito durante o período e no local especificados nas condições particulares.
81. O contrato referido em 80. nas respetivas condições especiais e para o que aqui interessa dispõe que além das exclusões mencionadas no nº3 das condições especiais da apólice (…) não ficam, em caso algum, garantidos por esta condição especial, os danos: 1. Resultantes do não cumprimento de disposições legais ou regulamentos que estabeleçam as nomas de funcionamento e execução da atividade do segurado (…);
82. E nas disposições gerais, Capitulo II, art. 3º que sem prejuízo das exclusões porventura consignadas nas Condições Particulares e Especiais, esta apólice não garante: 1. Em caso algum o pagamento de indemnizações decorrentes de a) Qualquer responsabilidade de natureza criminal; b) Atos u omissões dolosos cometidos pelo segurado ou por pessoas cuja responsabilidade esteja garantida pela Apólice, ou por quem sejam civilmente responsáveis. (…).
83. O contrato de seguro aludido em 80. estava à data do evento em vigor sendo o valor do capital seguro de €100 000 (cem mil euros) por sinistro e anuidade estipulando uma franquia contratual a cargo da segurada no montante de 10% dos prejuízos indemnizáveis.
84. A seguradora B..., Companhia de Seguros, S.A. no âmbito do contrato de seguro referido em 80. procedeu ao pagamento a 14 de Junho de 2018 a PP da quantia de €39 500 em consequência de sinistro ocorrido a 30 de Julho de 2017.
85. O arguido demandado AA à data do evento descrito em 14. estava habilitado ao lançamento de fogo de artificio através da A... com a licença nº... válida até 16.06.2019.
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86. O arguido foi casado com CC gerente da sociedade demandada A... de quem está divorciado e com quem teve quatro filhos dois falecidos e outros dois autonomizados;
87. Tem como habilitações literárias o 4º ano de escolaridade;
88. Foi proprietário e gerente da sociedade “A...,Ldª”
89. Após o encerramento da sociedade referida em 88. passou a trabalhar na sociedade A..., Ldª aqui demandada auferindo até pelo menos Setembro de 2017 a remuneração mensal de €2200 (dois mil e duzentos euros);
90. E continua a prestar serviços de pirotecnia para a sociedade demandada;
91. Reside na mesma morada que era casa de morada de família do agregado que constituiu com a ex-cônjuge.
92. No meio sociocomunitário AA é associado à atividade de pirotecnia que foi desenvolvendo ao longo dos anos, sendo avaliado como uma pessoa com comportamentos ajustados.
93. Nada consta no certificado de registo criminal do arguido.

2. Factos Não Provados:
a. Em consequência do evento descrito em 14. Dos factos provados o demandante está impedido de fazer a atividade física que estava acostumado a efetuar.

3. Convicção do Tribunal.
Formou-se esta com base na apreciação crítica do conjunto da prova produzida em audiência de julgamento e da sua análise conjugada, designadamente:
Da prova por declarações.
-Declarações do arguido (apenas prestadas no final da audiência e sobre dois concretos pontos factuais que oportunamente se explicitarão);
-Declarações do assistente demandante;
-Declarações de CC, gerente e representante legal da sociedade demandante “A...”;
Da prova testemunhal.
-Depoimento das testemunhas: DD, colega de trabalho do assistente e que com o mesmo se encontrava no momento do evento em apreço; NN, patrão do assistente; MM, presidente da Junta de Freguesia à data dos factos e que participou na organização das festividades ... em que foram lançados artefactos pirotécnicos; OO, que foi quem foi indicado pela sociedade A... para proceder ao lançamento do fogo, mas que tendo ficado impedido foi substituído pela sociedade demandada pelo arguido; HH, militar da GNR à data como agora a exercer funções no Posto Territorial ... e que foi quem logo se deslocou ao local após a explosão tendo sido quem elaborou o auto de notícia e recolheu os primeiros elementos objetivos que exarou em croquis que anexou àquele; LL, pároco que esteve à frente da organização das festividades religiosas dos indicados dias e que incumbiu pessoa próxima da de contratar fogo de artifício; II, militar da GNR, que então desempenhava funções na Secção SEOD (Explosive Ordenance Disposal) do Comando Territorial ... e agora desempenha idênticas funções para o Parlamento Europeu integrado no exército da Bélgica que se deslocou ao local, o examinou e recolheu todo o material pirotécnico que ainda aí se encontrava; da testemunha JJ, Sargento-Mor da GNR atualmente na reserva mas à data a chefiar a equipa de EOD do Comando Territorial ... e que subscreveu o documento de fls. 147 e ss.; da testemunha KK, também operador EOD no Comando Territorial ... e que participou na elaboração de tal documento; do depoimento das testemunhas EE, empresário pirotécnico e FF pirotécnico reformado; da testemunha GG, professor do Departamento ...;
E ainda das testemunhas UU, vizinha e amiga do assistente e família; VV, mãe do assistente; WW e XX, os dois últimos irmãos da vítima.
Da prova documental, junta:
– Auto de notícia – fls. 3;
– Folha de suporte – fls. 8;
– Licença para lançamento ou queima de fogos de artifício da sociedade A... de fls. 9 e ss;
– Pedido autorização para utilização de fogo de artificio – fls. 15 e ss;
- Declaração junta com o pedido de licenciamento de onde decorre a indicação do lançador inicialmente previsto, assim como o tipo de fogo, quantidade e calibre previsto de fls. 16;
- Plano de Montagem elaborado pela Sociedade A... de fls.17;
- Plano de Segurança de fls. 18;
– Certidão comercial – fls. 19 e ss., 351 e ss. e 1131 de onde se extrai a gerência da sociedade A...;
– Credenciação para lançamento de foguetes e fogos de artifício da sociedade A... de fls. 23;
– Declaração da companhia de seguros, apólice e coberturas – fls. 25 a 28; 812 a 818;
– Alvará – fls. 29-31;
– Carta de estanqueiro – fls. 32;
– Alvará de fls. 33-34 de onde consta integrarem a gerente CC, assim como o arguido a Estrutura Técnica Responsável da sociedade A...;
– Relatório de fls. 37-39 e fotografias juntas de onde decorre ter sido encontrados logo após o evento vários vestígios e artefactos pirotécnicos com a identificação da Sociedade A... e onde é descrita a forma como foram destruídos;
– Fotografias de fls. 63-66 do assistente ofendido realizadas a 21 de Março de 2018, assim como obtidas aquando do seu internamento no Hospital ...;
– Elementos decorrentes do Processo n.º 2573/17.0T8PNF respeitante ao processo de acidente de trabalho relativo a mesmo evento – fls. 67-87;
– Relatório de ocorrência dos Bombeiros – fls. 95-96 que retrata as circunstâncias em que acorreram ao local, como encontraram o ofendido, os procedimentos realizados e posterior encaminhamento e transporte para o Hospital ...;
– Informação da PSP – núcleo de armas e explosivos – fls. 109-116 e 916 e ss. , composta por reportagem fotográfica do local realizada logo em 18 de Agosto de 2017;
– Auto de exame de fls. 146 a 151 realizado com base nos dados objetivos testemunhais e fotográficos pela testemunha Sargento Mor JJ, coadjuvado pela testemunha 1º Sargento KK e fotos de fls. 925 e 926;
- Ficha de Observação Médica do INEM também ela relativa à assistência prestada no local ao assistente BB;
– Informação de fls. 256 prestada pela sociedade “A...” e subscrita pela sua gerente CC indicando o arguido AA como tendo sido o lançador do fogo das festas ... nas provadas circunstâncias de tempo e lugar, o que confirmou em audiência e o arguido a final reiterou;
– Registos clínicos e relatórios médicos – de fls. 74-87, 154-159, 162-210, 242, 320-329, 340, 369-372 e 525 a 528, de fls. 626 a 680;
– Informação da PSP – NAE – fls. 275 e 282 de onde decorre que o arguido à data dos factos estava habilitado ao lançamento de fogo de artifício através da A... através da credencial ..., válida até 16 de Junho de 2019;
– Cópia do Processo n.º 2573/17.0T8PNF – fls. 412 a 460 – processo de acidente trabalho a correr termos nesta comarca e relativo ao mesmo evento;
- Certificado de registo criminal do arguido AA – fls. 1130 verso;
– Certidão do Processo n.º 420/06.7GAPVZ – fls. 479 e ss. e auto de notícia de fls. 1144 – respeita a evento idêntico ao dos autos em que a entidade lançadora do fogo foi a sociedade gerida então gerida pelo aqui arguido AA, acidente que ocorreu por terem sido deixados no local artefactos pirotécnicos, processo em que este foi testemunha como resulta da sentença aí proferida, designadamente, da motivação (cfr. fls. 485) aí explicitando como deviam ser recolhidas as sobras e engenhos por deflagrar num perímetro de pelo menos 50 metros e que essas são as instruções dadas;
– Cópia do auto de notícia do inquérito n.º 288/17.8GAPRT - fls. 513 e ss. relativo a ocorrência do dia 10 de Maio de 2017, em ..., Paredes, em que o aí denunciante comunica à GNR ter encontrado no seu terreno vários artefactos pirotécnicos por explodir que as fotografias anexas e juntas a fls. 517 permitem identificar como sendo da sociedade aqui demandada “A...”;
- Recibo de vencimento de fls. 681 – revelador da remuneração auferida pelo demandante como jornaleiro;
- Certidão do despacho saneador proferido no processo de acidente de trabalho de fls. 773 e ss.;
- Relatório social respeitante à situação social, económica e profissional do arguido junto a fls. 772 e ss;
- Manuscrito junto pela testemunha Pároco ... à data do evento, LL e que descreve o fogo solicitado e valores pagos e data em que tal sucedeu também aí se identificando o fornecedor como sendo “A..., Ldª” de fls .901; e fatura junta pela sociedade demandada apresentada como segunda via e que apresenta valores e material quantitativamente diverso;
- Certidão relativa ao despacho da fixação da IPP ao aqui assistente, em sede laboral, de fls. 908 e 909.
- Extrato de remunerações emitido pela Segurança Social junto a fls. 943 de onde decorre que à data do evento o arguido constava como funcionário da sociedade demandada auferindo uma remuneração base de €2044/mensais e que em Setembro de 2017 era de €2 200;
- Documento emitido pelo IPMA e junto a fls. 948 e ss. de onde se extraem as condições climatéricas ocorridas entre a data do lançamento do fogo de artificio objeto dos autos e o evento em apreço;
- Certidão Comercial da sociedade “A..., Ldª” de que foi gerente o aqui arguido, administrativamente dissolvida pela insc.6, ap.... de 17 de Agosto de 2018;
-Declaração recibos e correspondência de fls.1034 verso a 1037 relativamente ao montante pago pela demandada seguradora no âmbito de sinistro coberto pelo mesmo contrato e seguro objeto da referida apólice, data e identificação do sinistrado.
Da prova pericial – consubstanciada no exame médico-legal de fls. 68-73, 236-241, 305-308, 336-339, 537 e 538 verso, de 553 a 567; auto de exame por junta médica em sede do identificado processo de acidentes de trabalho de fls. 922 a 923 concluindo pela IPATH de 87, 6092% e pela data da fixação das lesões; relatório médico legal de fls. 1012 e ss. relativo a exame médico legal na pessoa do ofendido/assistente/demandante e já realizado no durante o julgamento - a 23 de Março de 2023 - complementado e contraditado pelas declarações do perito YY, médico legista no Gabinete Médico-Legal ... prestadas em audiência.
Da identificada e concretizada prova, designadamente, das declarações da gerente sociedade “A...” CC, dos enunciados documentos apresentados por aquela e por esta subscritos, tudo com vista à obtenção da licença para lançar o fogo de artifício nas enunciadas circunstâncias de tempo e lugar e dos vestígios pirotécnicos encontrados pela GNR da equipa EOD e também pelo identificado militar em funções no Posto da GNR ... e que elaborou o auto de notícia e bem assim das diligências da aludida Equipa EOD e que procedeu à destruição dos artefactos sobrantes (e conforme resulta do próprio suporte fotográfico supra descrito) dúvidas inexistem de que a dita sociedade foi quem foi contratada para proceder ao aludido lançamento e quem efetivamente o realizou.
Por outro lado, quer através da enunciada informação escrita que CC, enquanto gerente da A... juntou aos autos com vista a identificar o lançador de tal fogo, quer das declarações que esta prestou em audiência, altura em que simultaneamente justificou a razão pela qual não o levou a efeito o técnico inicialmente indicado no procedimento de licenciamento (a testemunha OO que também afirma não ter sido ele) resulta ter sido o arguido AA quem foi o lançador nas festas e datas enunciadas – o que o próprio no final da audiência confirma simultaneamente revelando sem mais que o local de lançamento não foi o que decorre do croquis que se encontra junto aos autos e oportunamente elaborado pela testemunha militar da GNR subscritor do Auto de Notícia.
E em nada resulta tal factualidade beliscada pelo manuscrito junto em audiência pela testemunha Pároco (LL) onde é feita a menção à sociedade “A..., Ldª” porquanto não só este não contratou pessoalmente com a sociedade fornecedora (tendo sido pessoa ligada à organização da festa já falecida e que identificou) como todos os elementos objetivos atrás enunciados são reveladores de que foi a “A...”, tanto mais, que como sustentadamente revela a gerente desta, aquela já não laborava (o que a sua dissolução administrativa oficiosa – ainda que em 2018, corrobora – já que é do conhecimento geral a morosidade de tais procedimentos, assim como o sustenta a circunstância de o arguido ser já em 2017 funcionário da A...) – e isto sem prejuízo do nulo valor probatório da fatura junta por esta sociedade a fls. 981 relativa ao material fornecido (que tratando-se de alegada 2ª via refere valor muito inferior ao que o pároco diz ter pago e de tal manuscrito decorre, como é simultaneamente inferior a quantidade de artigos pirotécnicos, quer aos aludidos no mesmo manuscrito, quer aos mencionados no âmbito do pedido de licenciamento supra identificado).
Acresce que tendo sido a sociedade A... e o arguido AA quem fez o lançamento nas festas ... realizadas entre 29 de Julho e 6 de Agosto de 2017, não tendo ocorrido segundo as testemunhas Pároco LL e Presidente da Junta daquela freguesia, MM, ali ou nas proximidades, qualquer outra festa em que tivesse sido lançado fogo de artificio; não tendo a sociedade “A...” sido objeto de qualquer furto de material pirotécnico (como confirmou CC para o efeito instada) e estando parte do material encontrado no local onde se deu a explosão identificado com os dizeres e identificação de tal sociedade (cfr. já citado documento de fls. 8), impõe-se concluir que o artigo pirotécnico que rebentou no dia 18 de Agosto de 2017, quando o ofendido BB se encontrava a trabalhar no sistema de rega e limpeza da plantação de kiwis na descrita Quinta, era um dos artefactos pirotécnicos pelo arguido lançados no interesse da sociedade “A...”, que não explodiu no momento próprio e não foi por estes oportunamente recolhido.
E a falta de recolha das sobras do dito lançamento, assim como dos artefactos não deflagrados é tão ou mais evidente, que no dia do rebentamento que provocou as identificadas sequelas a BB, ou seja, em 18 de Agosto de 2017, foram encontrados já após o rebentamento e tiveram de ser destruídos no local, seis tiros de foguetes (bombetas) e uma balona contendo um tiro de foguete colado no seu interior – procedimento de falta de recolha por parte da mesma sociedade já indiciado em momento anterior mas só em inquérito conhecido como revela o auto de notícia de fls. 513 supra indicado e relativo a outras festividades e local.
No que respeita às exigências legais de recolha no âmbito de perímetro de segurança - por referência ao local do lançamento, que no caso nunca seria inferior a 50 metros (basta atentar ao calibre do material que consta desde logo do pedido de licenciamento, como do encontrado por deflagrar – deste decorrendo a referida área, como ressalta dos regulamentos e instruções da arte e a testemunha EE, empresário pirotécnico esclareceu e evidenciou), sendo certo que o rebentamento em apreço - no confronto com o local de lançamento devidamente identificado e descrito pelo militar que elaborou o auto de notícia e o identificou graficamente – foi dentro de tal perímetro – tais exigências básicas são do conhecimento de qualquer pirotécnico credenciado, como o era o arguido que segundo a gerente da A..., era responsável técnico desta sociedade, como também o era a própria gerente, como ressalta desde logo do aludido Alvará junto a fls. 33 e 34 dos autos.
E sendo o arguido pirotécnico há vários anos – como a testemunha EE evidenciou, já de 2ª ou 3ª geração – não só assim teve a perceção que nem todo o fogo que lançou deflagrou, como era e é conhecedor da finalidade da imposição legal de recolha – evitar, para o que aqui interessa, que quaisquer sobras ou artefactos não deflagrados fiquem à mercê de qualquer pessoa que advertida, inadvertida ou acidentalmente, com tais materiais se depare e que estes possam como foi o caso rebentar, o que o arguido AA representou possível, com tal se conformando. Desde logo, por que qualquer pessoa de mediano conhecimento é conhecedora da perigosidade de tal material e das nefastas consequências que podem resultar do incumprimento das mais elementares regras de segurança a este respeitantes. E o arguido em particular porquanto – e pelo menos – no âmbito do processo a que se reporta a certidão de fls. 479 (relativa a sentença com trânsito em julgado) e o auto de notícia de fls. 1144 – e respeitante a evento, em que o aí ofendido (outro) se deparou com um artigo pirotécnico não deflagrado, precisamente aí deixado e não recolhido por funcionário da empresa de que o aqui arguido era então gerente, artigo esse que rebentou e que importou para além do mais a amputação da mão daquele – processo esse em que o aqui arguido AA foi testemunha, tendo prestado o depoimento que a motivação da respetiva sentença evidencia.
No que respeita às circunstâncias do rebentamento propriamente dito e provadas o tribunal assentou a respetiva convicção nas declarações coerentes e firmes do assistente, no essencial corroboradas pela testemunha DD, as únicas pessoas que estavam no local e indiretamente corroboradas, pelos demais elementos probatórios como se concretizará.
O assistente, BB, como afirma e o colega e testemunha DD e testemunha NN seu patrão à data, atestam, tinha há pouco iniciado o trabalho de que havia sido incumbido - verificar o sistema de rega e retirar a lenha seca da plantação de Kiwis - utilizando no momento as mãos quando ocorreu a explosão do que se veio a verificar posteriormente ser um artefacto pirotécnico, logo correndo a gritar de dor em direção ao colega solicitando ajuda, de imediato se apercebendo da perda dos membros e do sangramento abundante, sem que nunca tivesse perdido os sentidos (como aliás a aludida ficha do INEM e que lhe prestou a primeira assistência médica sustenta). Aliás, do depoimento da testemunha DD e da forma como decorreu se percebe que ainda hoje a visão do colega/ofendido no momento do ocorrido o perturba.
E que foi um artefacto pirotécnico que explodiu (designadamente um artefacto lançado pelo arguido nos já enunciados moldes) decorre à saciedade dos depoimentos experientes das testemunhas II e KK à data a exercer funções na equipa de explosivos (EOD) do comando distrital da GNR ... que foram quem esteve no local, e que procederam às buscas no perímetro de segurança que criaram e vieram a encontrar restos de carne humana e outros artefactos pirotécnicos por deflagrar que identificaram e documentaram – cfr. fls. 37 a 39 - mas que tiveram de ser detonados no local, com especiais cuidados de manuseamento à distância, por não oferecerem condições de segurança para daí serem retirados. O que a testemunha militar da GNR a exercer então funções no Posto ... e a primeira entidade policial a ocorrer ao local corrobora e sustenta, justificando e atestando o auto de notícia e suporte descritivo que elaborou de acordo com o que se deparou.
De igual forma e a este nível relevantes se mostrou o depoimento objetivo e conhecedor das testemunhas JJ, então Sargento-Mor também da Equipa EOD e que não tendo estado no local elaborou de acordo com as informações e vestígios recolhidos no local pelos demais elementos, II e KK o auto de fls. 147.
Os depoimentos conhecedores e experimentados das identificadas testemunhas que no exercício das suas funções por inúmeras e bastas vezes se depararam com situações como as dos autos, que concretizaram em moldes não sé empíricos como técnicos, inclusivamente tendo por vitimas colegas altamente habilitados no manuseamento de tais artefactos foram amplamente elucidativos a propósito da instabilidade de tais materiais, designadamente, como foi o caso dos autos, depois de terem sido expostos a uma primeira ignição (e fonte de calor) que os lançou sem que tivessem deflagrado ficando à mercê das condições climatéricas, humidade ou calor (condições que se apresentaram neste período temporal bem adversas como a informação do IPMA supra indicada). Aliás todos estiveram ou tiveram conhecimento de situações em que explosões se deram sem qualquer ignição ou manuseamento em armazém, no seu transporte ou ao ar livre.
E tais depoimentos são no essencial os únicos que se conformam com as exigências legais da atividade e da sua classificação como perigosa que as testemunhas EE, empresário de pirotecnia e FF pirotécnico reformado, da arte, em particular o segundo tentaram em vão desvirtuar. E se o primeiro revelou compreender e corroborar, ainda que parcialmente, a sua necessidade e pertinência, já o segundo quase os ridicularizou, assim e simultaneamente não revelando qualquer credibilidade ou objetividade. No que concerne ao depoimento prestado pela testemunha Professor Universitário GG, sem prejuízo dos conhecimentos científicos de física e química que demonstrou, aliás compatíveis com as suas habilitações académicas, e com o respeito que lhe é devido, não lograram abalar a convicção do tribunal no que respeita à forma como o evento sucedeu e redundou provado. É o próprio que após explicitar que só a ignição por temperatura superior a 200 graus poderia provocar o rebentamento de tais materiais e que a exposição climatérica ao invés de potenciar a sua perigosidade a reduz (pelo menos após alguns meses, o que sempre não seria o caso porquanto só haviam passados alguns dias) conclui, após ser instado a esclarecer se se poderia dar o caso de o objeto em apreço ter atingido uma temperatura mais elevada do que a climatérica (como ocorre com um metal exposto à luz solar ou até à areia da praia) que nunca se debruçou laboratorialmente sobre tal matéria.
Por fim, importa ainda salientar que não resultou da prova produzida qualquer indicio de um qualquer contributo do ofendido para o rebentamento do artefacto, designadamente, por ignição fosse de que forma fosse.
No que concerne à factualidade atinente às lesões e sequelas sofridas pelo assistente BB estão estas profusamente sustentadas na vasta e minuciosa documentação descrita e bem assim nos relatórios médico-legais e foram à saciedade explicitados pelo perito médico ouvido em audiência.
As consequências sofridas no seu dia-à-dia pelo assistente/demandante e resultantes do evento em apreço foram ainda elucidativamente relatados pelo próprio e pelas identificadas testemunhas, UU, vizinha e amiga do assistente e família; VV, mãe do assistente; WW e XX, os dois últimos irmãos da vítima os quais colhem amplo sustento na enunciada documentação médica, pericial e documentação de suporte.
O contrato de seguro celebrado entre a sociedade A... e a B... Seguros, S.A., capital seguro, montante da franquia e condições resulta da apólice e condições gerais e especiais juntas.
E o montante pago, data, sinistro e sinistrado relativos à mesma apólice assentou no documento de fls. 1034 e ss.
A situação económica do arguido apurada resultou da conjugação do relatório social, extrato de remunerações da segurança social relativo ao ano de 2017, com as declarações de CC (sua ex-mulher e atual gerente da A..., e o depoimento da testemunha EE. O certificado de Registo Criminal junto afere a ausência de antecedentes criminais do arguido.
A factualidade não provada assim redundou porquanto do relatório médico legal apresentado em último lugar e dos esclarecimentos prestados pelo perito médico subscritor em audiência resulta não estar o assistente demandante totalmente incapacitado para qualquer atividade física, ainda que esta esteja naturalmente dificultada nos termos que quantificou.
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4. Aspecto Jurídico da Causa.
a. Enquadramento Jurídico-Penal.
É em face desta materialidade que cumpre apreciar e decidir, importando antes de mais proceder à subsunção jurídico-penal da conduta do arguido.
O arguido foi acusado da prática de um crime de ofensa à integridade física grave, p. e p. pelo artigo 144.º, n.º 1, alínea a), b) e d) do Código Penal ex vi artigo 39.º, n.º 1, 25.º e 26.º do Regulamento sobre Fiscalização e Produtos Explosivos, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 376/84 de 30 de Novembro) ex vi artigo 6.º, n.º 3 do Decreto-Lei n.º 135/2015 de 28 de Julho e Instruções Sobre a utilização de artigos Pirotécnico – N.º 15 e 20 – Atuações posteriores ao lançamento e artigo 6.º, 7.º e 9.º do e artigo 35.º, n.º 2, alínea d) do Decreto-Lei n.º 265/94 de 25 de Outubro ex vi artigo 3.º, 27.º, alínea i), j) e 34.º e 39.º, n.º 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 521/71 de 24 de Novembro.
Cumpre dizer que só preenche o tipo legal de crime de ofensas à integridade física quem ofender o corpo ou a saúde de outrem.
O preenchimento deste elemento objetivo do ilícito é condição para que se possa apreciar o preenchimento dos elementos do tipo de ilícito de ofensa à integridade física grave. Por ofensa no corpo poder-se-á entender todo o mau trato através do qual o agente é prejudicado no seu bem-estar físico de uma forma não insignificante (o objecto da acção é o corpo humano).
Dispõe o artigo 144º do Código Penal que pratica o crime de ofensa à integridade física grave “Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa de forma a: a) Privá-lo de importante órgão ou membro, ou a desfigurá-lo grave e permanentemente; b) Tirar-lhe ou afetar-lhe, de maneira grave, a capacidade de trabalho, as capacidades intelectuais ou de procriação, ou a possibilidade de utilizar o corpo, os sentidos ou a linguagem; c)Provocar-lhe doença particularmente dolorosa ou permanente, ou anomalia psíquica grave ou incurável; ou d)Provocar-lhe perigo para a vida; é punido com pena de prisão de 2 a 10 anos.”
No que respeita ao tipo objetivo, o crime de ofensa à integridade física grave é um crime de resultado, é um delito qualificado pelo resultado, que apresente, precisamente pelo resultado a que conduz, uma ilicitude mais grave do que a correspondente ao tipo de ilícito fundamental, de ofensa à integridade física simples.
Pressupõe assim que o agente cause uma ofensa no corpo ou na saúde do ofendido com a gravidade tipificada em qualquer das alíneas a) a d) constantes deste tipo legal de crime.
Da factualidade provada resulta que o arguido por conta e no interesse da sociedade “A...”, nas indicadas circunstâncias de tempo e lugar procedeu ao lançamento de fogo e artificio que consistiu no rebentamento para o ar de artefactos pirotécnicos a partir de tubos previamente instalados e colocados no solo e após tal tarefa o arguido, não recolheu como legalmente (oportunamente nos debruçaremos sobre as normas efetivamente violadas) se lhe impunha aqueles que não haviam deflagrado, nem as sobras do restante lançamento, e em consequência cerca de vinte dias mais tarde, parte do material aí assim abandonado explodiu causando ao ofendido as lesões descritas na fundamentação de facto.
Não existindo dúvidas quanto à gravidade das lesões e da sua integração como graves nos termos e para os efeitos da alínea a) e b) do citado artigo 144º do Código Penal – ficou privado de ambas as mãos e dos antebraços, tendo sofrido uma incapacidade permanente para a prática do seu trabalho habitual computada em mais de 87% é manifesto que integram a gravidade a que se reportam as als. a) e b) do dispositivo legal em apreço, sem necessidade de quaisquer outras considerações.
Todavia, para que o arguido seja punido pelo crime em apreço e que lhe vinha imputado é indispensável que se demostre, da sua parte, uma atuação/omissão dolosa um propósito dirigido à ofensa. O elemento subjetivo é constituído pelo dolo em qualquer uma das suas modalidades. O dolo no crime de ofensa à integridade física grave tem de abranger não só o tipo fundamental (art.143.º, n.º1 do Código Penal ), como as consequências que o qualificam. Dito de outro modo, o dolo no crime de ofensa à integridade física grave tem de abranger o resultado grave, pelo menos a título de dolo eventual. – cfr. os Professores Augusto Silva Dias, in “Crimes contra a vida e a integridade física”, edição da AAFDL, ano 2007, páginas 101 a 107 e Paula Ribeiro de Faria, in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Tomo I, Coimbra Editora, pág.223 a 234.
E é aqui que a factualidade provada e já elencada no libelo acusatório não o permite configurar.
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Por outro lado, já após o decurso da audiência de julgamento, o tribunal procedeu a uma alteração da qualificação jurídica dos factos oportunamente comunicada tendo decidido enquadrarem os factos praticados pelo arguido — e também descritos na acusação e pedido de indemnização civil—, afinal, um (1) crime de incêndios, explosões e outras condutas especialmente perigosas, agravado pelo resultado morte, previsto e punido pelo artigo 272.º, n.º 1, al. b) e artigo 285.º do Código Penal.
Dispõe, o artigo 272.º do Código Penal, no que ao caso interessa, o seguinte: “1 – Quem: (…) b) Provocar explosão por qualquer forma, nomeadamente mediante utilização de explosivos; (…) e criar deste modo perigo para a vida ou para a integridade física de outrem, ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado, é punido com pena de prisão de 3 a 10 anos.
O crime de incêndios, explosões e outras condutas especialmente perigosas é qualificado no Código Penal como sendo um “crime de perigo comum”.
O perigo será “um estado invulgar, irregular (avaliado segundo as circunstâncias concretas) de acordo com o qual a verificação do dano se torna provável sendo essa probabilidade avaliada segundo uma prognose posterior objetiva” (Paula Ribeiro de Faria, Comentário Conimbricense do Código Penal – Tomo II, Coimbra Editora, 1999, pág. 912).
Perante a dificuldade de definir o que sejam “crimes de perigo comum” tem-se apelado à associado de tal definição com a “indeterminação do titular dos bens jurídicos ameaçados, designado uniformemente por «outrem», querendo referir o(s) ofendido(s) com a prática destes crimes e exprimindo a ideia de que, ao desencadear-se, o perigo é suscetível de afetar uma pluralidade de pessoas e não uma certa pessoa”, de tal modo que se possa afirmar que «outrem» “significa uma vítima que não se distingue das demais, alguém que pertence a um conjunto de pessoas que se encontra num determinado círculo de perigo causado pela ação praticada através de meios incontroláveis” (M. Miguez Garcia e J.M. Castela Rio, Código Penal – Parte Geral e Especial, Livraria Almedina, 2014, pág. 1049). Diferentemente, pode dizer-se ainda que o “perigo comum” diz respeito “não apenas a certas pessoas mas uma comunidade, servindo-se o agente de meios aptos à criação de um perigo coletivo”, de tal modo que “o perigo comum atinge (para não dizer «escolhe») vítimas inteiramente «inocentes» ou de «puro acaso», podendo afirmar-se que o “objeto do perigo será, não um indivíduo concreto preciso, mas uma qualquer pessoa (mais exatamente, a vida ou a integridade física dessa pessoa), bastando que uma só pessoa se encontre no círculo de perigo e aí fique exposta à situação crítica que tende para o dano” (M. Miguez Garcia e J.M. Castela Rio, Código cit., págs. 1049 e 1050). Assim, “mais o que na pluralidade, a essência do perigo comum, reside na indeterminabilidade dos objetos de perigo” (M. Miguez Garcia e J.M. Castela Rio, Código cit., pág. 1050).
Pode, ainda, dizer-se que os crimes de perigo comum “são crimes de perigo em que o perigo se expande relativamente a um número indiferenciado e indiferenciável de objetos de ação sustentados ou iluminados por um ou vários bens jurídicos” (José de Faria Costa, Comentário Conimbricense do Código Penal – Tomo II, Coimbra Editora, 1999, pág. 867). Por fim, podemos ainda olhar para os crimes de perigo comum como aqueles em que, existindo o risco de se ofender um número indiferenciado e indiferenciável de vítimas portadoras de bens jurídicos a si ligados, há a suscetibilidade de o agente não dominar a expansão do perigo que a sua conduta acarreta. Há, pois, que atender, para o caráter da incontrolabilidade do perigo, isto é, à suscetibilidade de o agente ter a capacidade de dominar as consequências da sua ação criadora ou potenciadora de perigos.
Os crimes de perigo, e os de perigo comum em particular, tanto podem ser crimes de perigo concreto, como de perigo abstrato. Na verdade, a figura dos crimes de perigo comum “absorve não só os crimes de perigo concreto mas também, indesmentivelmente, os crimes de perigo abstrato”, pelo que “poderá haver crimes de perigo abstrato que podem ser considerados crimes de perigo comum — o que em muitos casos acontece, pela estrutura supra-individual do bem jurídico protegido por este tipo de crime, mas não só — e o mesmo pode verificar-se relativamente aos crimes de perigo concreto, sendo certo, quanto a estes, que a sua «normal» natureza é muito mais «individualizável» do que «comum»” (José de Faria Costa, Comentário cit. – II, pág. 867).
Diz-se que estamos perante um crime de perigo concreto nas situações em que “o perigo faz parte do tipo, isto é, o tipo só é preenchido quando o bem jurídico tenha efetivamente sido posto em perigo”, tal como sucede no crime de condução perigosa de veículo rodoviário (previsto no artigo 291.º), diferentemente dos crimes de perigo abstrato, tal como, por exemplo, o crime de condução em estado de embriaguez, previsto n artigo 292.º, onde “o perigo não é elemento do tipo, mas simplesmente motivo da proibição”, tipificando a lei “certos comportamentos em nome da sua perigosidade típica para um bem jurídico, mas sem que ele necessite de ser comprovada no caso concreto” (Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal: Parte Geral – Tomo I, Gestlegal, 3.ª ed., 2019, pág. 360).
O crime de incêndios, explosões e outras condutas especialmente perigosas, à semelhança de outros — v.g., o crime de incêndio florestal previsto no artigo 274.º, n.º 1 e n.º 2, al. a), o crime de infração às regras de construção, dano em instalações e perturbação de serviços previsto no artigo 277.º, o crime de poluição com perigo comum previsto no artigo 280.º, o crime de perigo relativo a animais ou vegetais previsto no artigo 281.º, o crime de corrupção de substâncias alimentares ou medicinais previsto no artigo 282.º e o crime de propagação de doença, alteração de análises ou de receituário previsto no artigo 283.º — está construído em torno de dois pólos: a descrição do comportamento proibido e a delimitação do perigo relativamente a certos e a determinados bens jurídicos.
A norma começa por fazer a descrição do comportamento proibido (“provocar incêndio de relevo” ou “provocar explosão”) que, em si mesmo e de acordo com as regras da experiência, é suscetível de criar ou aumentar o risco de ofensa ou lesão de certos bens jurídicos. Além disso, a norma delimita ainda o âmbito dos bens jurídicos que, através da conduta proibida, ficam em perigo: a vida, a integridade física e bens patrimoniais de valor elevado. Este é, como melhor se verá, um crime de perigo concreto, pelo que a conduta proibida não determinou uma ofensa/lesão para a vida ou integridade física de outrem ou para bens de valor elevado, mas teve a aptidão de gerar potencial para isso.
Este crime é um crime de resultado numa dupla dimensão: a conduta do agente produz um resultado no “provocar o incêndio” e, ainda, no “criar do perigo”.
O crime de incêndios, explosões e outras condutas especialmente perigosas, apesar de se apresentar como um crime de perigo comum, apresenta-se, como como vimos, como um crime de perigo concreto e, por isso, o preenchimento do tipo exige que seja criado perigo para a vida, a integridade física e bens patrimoniais alheios de valor elevado. A lei pune a conduta de, e tendo já por referência o caso dos autos, “provocar explosão”. “Explosão é a expansão ou desintegração violenta da matéria com deslocação brutal de massa de ar motivada pela libertação de gases” (José de Faria Costa, Comentário cit. – II, pág. 872). “É um processo caraterizado por um súbito aumento de volume e grande libertação de energia, geralmente acompanhada de altas temperaturas e produção de gases, suscetíveis de produzir efeitos destrutivos” e tanto pode ter origem em “processos físicos ou em reações químicas” (M. Miguez Garcia e J.M. Castela Rio, Código Penal cit., pág. 1053). Para que o crime se verifique — e convém não esquecer que estamos perante um crime de perigo comum concreto, cuja perfeição ou consumação exige que o bem jurídico tenha efetivamente sido colocado em perigo — é necessário que a conduta do agente (na provocação da explosão) crie “deste modo perigo para a vida ou para a integridade física de outrem, ou bens patrimoniais e valor elevado”. É que só o colocar estes bens jurídicos (vida, integridade física ou bens patrimoniais de valor elevado) em perigo é que permite a verificação da incriminação.
Aqui chegados, crê-se que os factos provados não admitem qualquer dúvida sobre o preenchimento do tipo objetivo: Nos dias 29 de Julho e 5 e 6 de Agosto, nas apontadas circunstâncias de lugar o arguido AA procedeu ao lançamento do fogo de artifício, nomeadamente ao lançamento para o ar de artigos pirotécnicos a partir de dispositivos de lançamento e de tubos de lançamento previamente colocados no solo e já após o lançamento do fogo de artifício referido, nem o arguido nem qualquer outra pessoa a mando da sociedade “A...…” procederam à recolha das sobras resultantes do lançamento do fogo de artifício, assim como não recolheram os artigos pirotécnicos que, por qualquer razão e apesar de lançados, não deflagraram o que se lhe impunha.
A exploração pirotécnica como atividade consabidamente perigosa que é está sujeita a requisitos essenciais de segurança rigorosos, emanando muita da nossa legislação de diretivas comunitárias (Diretiva n.º 2013/29/EU do Parlamento Europeu e do Conselho de 12/06 de 2013 e a Diretiva de Execução n.º 2014/58/EU da Comissão de 16/04 de 2014). Atente-se no conceito definido pela Lei n.º 5/2006, de 23/02, na redação introduzida pela Lei n.º 50/2013, de 24/07, quanto a artigo de pirotecnia: “qualquer artigo que contenha substâncias explosivas ou uma mistura explosiva de substâncias, concebido para produzir um efeito calorífico, luminoso, sonoro, gasoso ou fumígeno ou uma combinação destes efeitos, devido a reações químicas exotérmicas autossustentadas”- art. 2º, nº 5, al. af). Ressaltando o caráter perigoso, o DL 303/90 de 27/09, aplicável «ao fabrico, armazenagem, comércio e emprego de artifícios pirotécnicos luminosos, fumígenos ou sonoros, destinados a sinalização», estabelece no seu art. 2º, nº 1, que «o fabrico de artifícios de sinalização só poderá realizar-se em estabelecimentos identificados que, dispondo de instalações adequadas, tenham sido devidamente legalizados pela Inspeção dos Explosivos», cominando com a prática de contraordenação as infrações ao nele disposto. O DL 376/84 de 30/11 institui o regulamento sobre o licenciamento dos estabelecimentos de fabrico e de armazenagem de produtos explosivos, em que se abrangem as fábricas de pirotecnia do qual se destacam o artigo 39.º (Destruição de produtos explosivos) prescrevendo no nº1 que - Os produtos explosivos que ao fim de algum tempo de armazenagem se encontrem deteriorados, não oferecendo garantia de estabilidade ou de boas condições de conservação, e que sejam considerados incapazes para utilização ou para serem economicamente recuperados, bem como os resíduos diários resultantes do seu fabrico ou do seu emprego, deverão ser destruídos, com urgência, sob a orientação de técnico competente.(…).; o Artigo 37.º (Sobras no fim do dia de trabalho) - No fim de cada dia de trabalho, os paióis móveis e os paiolins móveis utilizados no transporte de produtos explosivos até ao local de emprego regressarão, com as sobras que existirem, ao local de estacionamento, ficando aquelas sobras armazenadas no paiol fixo abastecedor e no paiolim fixo abastecedor, no próprio paiol móvel ou em depósitos de 1.ª espécie ou de 2.ª espécie, conforme estiver autorizado; o Artigo 38.º (Lançamento ou queima de fogos de artifício)1 que dispõe- O lançamento de foguetes ou a queima de quaisquer outros fogos-de-artifício só poderá ser feito por pessoas tecnicamente habilitadas, indicadas pelos técnicos responsáveis das fábricas de pirotecnia ou das oficinas pirotécnicas, mediante licença concedida pela autoridade policial de cada município à entidade ou pessoa interessada, na qual serão indicados os locais onde o fogo deve ser guardado e onde deve ser feito o seu lançamento ou a sua queima, sem perigo ou prejuízo para terceiros.(…) regulamento que acabou por dar origem às instruções sobre a utilização de artigos pirotécnicos elaboradas pela PSP, que estabelecem as regras a que devem obedecer a utilização de artigos pirotécnicos e a realização de espetáculos com estes artigos, designadamente, e para que agora interessa as instruções aprovadas a 20 de Julho de 2007, ao abrigo da Lei Orgânica de tal Força policial e do citado regulamento (previsto no D.L. 376/84), precisamente estabelecidas (tal como os citados diplomas legais) na necessidade de minimizar os perigos advenientes do seu exercício de que se destaca para o que aqui interessa a número 15 que prescreve sob epígrafe “Atuações posteriores ao lançamento” compete à empresa pirotécnica, a recolha de todo o material pirotécnico, na área de segurança. A recolha de todo o material faz-se da seguinte forma: a) Nas zonas de fogo e de lançamento, no fim do espetáculo, após uma espera de segurança de, pelo menos, 30 minutos; b) Na área de segurança, a recolha faz-se imediatamente após o espetáculo, se houver iluminação suficiente; caso contrário, far-se-á com a primeira luz natural, mantendo-se a vigilância da área, até à limpeza completa da mesma.
Tal como decorre claramente dos cuidados legalmente exigíveis ao exercício desta atividade, em causa está o perigo que lhe é intrínseco, resultando o mesmo da mera inobservância de tais cuidados, sem necessidade de verificação de qualquer resultado. Com a classificação da perigosidade, e exigências conexas, visa-se antecipar a proteção de outros bens jurídicos, mais relevantes, tais como a vida e a integridade física que a mesma é suscetível de violar.
O arguido AA tinha conhecimento das enunciadas regras de segurança relativas ao lançamento e posterior recolha de fogo de artifício e ao não as cumprir, como decorre da factualidade provada criou para as pessoas que encontrassem os artigos pirotécnicos lançados e não deflagrados ou que estivessem nas suas imediações o perigo de perder a vida ou de sofrer lesões na sua saúde e integridade física o que representou, quis e conseguiu. Além disso, o arguido AA representou como possível que, agindo nos moldes descritos poderia ocorrer a explosão de artigos pirotécnicos lançados e não deflagrados imediatamente depois, resultado com o qual se conformou.
In casu, entende-se que a explosão provocada - mediante a utilização de explosivos -os artefactos pirotécnicos descritos – no âmbito das aludidas festividades, não tendo posteriormente recolhido o material não deflagrado/ou estoirado Deixando-o à mercê das condições climatéricas e ou outras, quando já previamente sujeito à ignição d seu lançamento (basta pensar tendo sido encontrados no local vários artefactos e sendo o lugar um terreno agrícola, poderiam ter sido calcados e/ou friccionados pela simples passagem de um trator, pela ação de uma enxada ou um qualquer ouro objeto utilizado na agricultura por uma pessoa ou até manuseados por crianças que inadvertida e curiosamente neles pegassem — considerando justamente as condições que o arguido criou e permitiu — efetivamente criou para as pessoas que posteriormente e por qualquer forma, nomeadamente para quem aí viesse a trabalhar (como aconteceu com BB), com estes se deparassem ,e desde logo, o perigo de sofrer lesões na sua integridade física, ou para a vida, por força de ocorrer alguma circunstância que levasse à explosão e incêndio das substâncias químicas e demais materiais reconhecidamente inflamáveis.
Temos, portanto, assente que os elementos do tipo objetivo — provocação e explosão e criação de perigo para a vida ou a integridade física de outra pessoa — do crime de explosões e outras condutas especialmente perigosas se mostram preenchidos. Todavia, para que o arguido seja punido no quadro do n.º 1 do artigo 272.º, é indispensável que se demostre, da sua parte, uma atuação dolosa, quer no provocar da explosão, quer na criação de perigo para a vida ou integridade física de outrem ou para bens patrimoniais de valor elevado. Ora, desde já se adianta que inequivocamente sucedeu.
O dolo é a forma mais grave de imputação subjetiva de um crime ao agente porque este, fazendo sobrepor conscientemente a sua vontade e os seus interesses aos valores propostos (e impostos) pela ordem jurídica, coloca a realização do crime como objetivo da sua conduta, revelando, deste modo, uma atitude pessoal — documentada no facto — contrária ou indiferente ao dever-ser jurídico-penal. Para que uma atuação seja dolosa, é forçoso que nela se revelem os seus momentos ou elementos intelectual, volitivo e emocional. O elemento intelectual ou cognitivo, como o próprio nome indica, exige “antes de tudo o conhecimento (a previsão ou a representação) da totalidade dos elementos constitutivos do respetivo tipo de ilícito objetivo, da factualidade típica” (Jorge de Figueiredo Dias, Textos de Direito Penal: Doutrina Geral do Crime (Lições ao 3.º ano da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra), com a colaboração de Nuno Brandão, edição policopiada, 2001, pág. 91). É necessário que, desde logo — e aqui se manifesta o elemento intelectual — que o “o agente conheça, saiba, represente corretamente ou tenha consciência (consciência “psicológica” ou consciência “intencional”, note-se bem) das circunstâncias do facto (e não de facto, atente-se, porque tanto podem ser «de facto» como «de direito») que preenche um tipo de ilícito objetivo” (Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal: Parte Geral – Tomo I, Gestlegal, 3.ª ed., 2019, págs. 409 e 410). E bem se compreende que assim seja: “só quando todos os elementos do facto estão presentes na consciência psicológica do agente se poderá vir a afirmar que ele se decidiu pela prática do ilícito e deve responder por uma atitude contrária ou indiferente ao bem jurídico lesado pela conduta”, justamente porque é importante que, “ao atuar, o agente conheça tudo quanto é necessário a uma correta orientação da sua consciência ética para o desvalor jurídico que concretamente se liga à ação intentada, para o seu caráter ilícito” (Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal cit., pág. 410).
Por seu turno, com o elemento volitivo quer-se significar que o dolo não se basta com o conhecimento dos elementos da factualidade típica. Exige-se ainda “uma vontade dirigida à sua realização” (Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal cit., pág. 427 e Textos de Direito Penal…, pág. 114).
É a este nível que o dolo pode assumir diferentes matizes, daí o falar-se em dolo direto (a realização do tipo constitui o verdadeiro fim da conduta: artigo 14.º, n.º 1), dolo necessário (a realização do tipo constitui, não o fim último da conduta do agente, mas uma consequência necessária ou inevitável dela: artigo 14.º, n.º 2) e o dolo eventual (a realização do tipo constitui, apenas, uma consequência possível da conduta intentada pelo agente que, ainda assim, aceita ou se conforma com tal realização).
Por fim, a acrescer a estes, a atuação dolosa exige ainda que o agente revele no facto uma “posição ou uma atitude de contrariedade ou indiferença perante o dever-ser jurídico-penal” (Figueiredo Dias, Textos de Direito Penal…, pág. 88), isto porque “o agente sobrepôs conscientemente os seus interesses ao desvalor do direito”, o que só pode suceder se conhecer, tiver consciência do carácter ilícito (e criminalmente punível) da sua conduta (Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal cit., pág. 623). É o elemento emocional do dolo.
Em síntese, só existirá dolo “sempre que o ilícito típico seja fundamentado por uma censurável posição da consciência ética do agente perante o desvalor do facto, pressuposto que aquela se encontra correta e suficientemente orientada para esta” (Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal…, pág. 204).
O artigo 14.º do Código Penal revela o modo como estes elementos se ligam entre si, nomeadamente os elementos intelectual e volitivo.
Assim, age com dolo direto quem “representando um facto que preenche um tipo de crime, atuar com intenção de o realizar” (n.º 1); será dolo necessário se “representar a realização de um facto que preenche um tipo de crime como consequência necessária da sua conduta” (n.º 2); e estaremos perante uma situação de dolo eventual “quando a realização de um facto que preenche um tipo de crime for representada como consequência possível da conduta” e “o agente atuar conformando-se com aquela realização” (n.º 3).
Aplicando estas considerações e ponderada a factualidade provada e tal como desta resulta pode afirma-se que o arguido representou como possível que a sua conduta era suscetível de causar os enunciados perigos, e não obstante isso e conformando-se com tal resultado, decidiu prosseguir com a sua conduta.
Ora em face do agora exposto é manifesto que se mostram preenchidos os elementos objetivos e subjetivos do tipo previsto no art. 272º, nº1, al. b) o arguido atuou dolosamente ao não recolher o material pirotécnico não deflagrado representando como possível que tal material poderia explodir e criar os enunciados perigos, resultado com o qual se conformou – verificando-se assim a respetiva ação dolosa e a criação também dolosa do perigo.
Acresce que dúvidas inexistem quanto à ocorrência de um perigo concreto, sem necessidade de outras considerações porquanto o material em questão veio de facto a explodir causando as consequências que oportunamente se analisarão.
A agravação pelo resultado (ofensa à integridade física grave).
Para além da explosão e a criação do perigo nos termos que acima já assinalados — um outro evento ocorreu e que, como se verá, teve a sua origem na conduta do arguido a lesões à integridade física graves – nos termos atrás enunciados – para o ofendido BB. Resulta do artigo 285.º, perspetivando o caso em apreço, que “se do crime previsto no artigo 272.º resultar (…) a ofensa à integridade física grave de outra pessoa …, o agente é punido com a pena que ao caso caberia, agravada de um terço nos seus limites mínimo e máximo”. Esta norma remete-nos então, para a figura dos crimes agravados pelo resultado, cuja conformação geral se encontra no artigo 18.º, cujo teor é o seguinte: “quando a pena aplicável a um facto for agravada em função da produção de um resultado, a agravação é sempre condicionada pela possibilidade de imputação desse resultado ao agente pelo menos a título de negligência.”
Os crimes qualificados (ou agravados) pelo resultado são, pois, aqueles cujas penas aplicáveis são agravadas em função de um resultado que da realização do tipo fundamental derivou.
Contudo, esta agravação não surge como mera e direta consequência da prática de um qualquer crime em termos de se afirmar que “quem pratica um ilícito responde pelas consequências, mesmo casuais, que dele promanam” porque tal significaria postergar o princípio da culpa.
É justamente porque o Direito Penal não pode prescindir da culpa como fundamento da pena, que o artigo 18.º refere o seguinte: “quando a pena aplicável a um facto for agravada em função da produção de um resultado, a agravação é sempre condicionada pela possibilidade de imputação desse resultado ao agente pelo menos a título de negligência”.
Esta norma — que vai além do pensamento, ao tempo original, do Prof. Ferrer Correia (Dolo e Preterintencionalidade, 1935, publicado posteriormente em Estudos Jurídicos II: Direito Civil e Comercial. Direito Criminal, Atlântida Editora, 1969, págs. 277 e ss.) de que a agravação extraordinária encontrava o seu fundamento na circunstância de o resultado agravante se ficar a dever a uma negligência do agente, tornada física e psiquicamente possível pelo dolo do crime fundamental — exprime a ideia de que a razão da agravação da pena “reside na especificidade do nexo entre o crime fundamental e o resultado agravante” que se consubstancia “no perigo normal, típico, quase se diria necessário, que, para certos bens jurídicos, está ligado à realização do crime fundamental” e, “consequentemente, pelo menos na negligência grosseira em que incorre o agente que, violando o cuidado imposto, não previu ou não previu corretamente a possibilidade de da sua conduta fundamental resultar o resultado agravante” (Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal: Parte Geral – Tomo I, Gestlegal, 3.ª ed., 2019, págs. 371 e 372). Por isso, “não basta à imputação do resultado agravante que entre este e o crime fundamental se verifique um nexo de causalidade adequada, mas é sempre e ainda necessário, relativamente à produção do resultado agravante, que se comprove pelo menos a violação pelo agente da diligência devida e, ademais disso, que o agente tivesse capacidade para a observar”, com o que se compatibilizará a agravação da pena com o princípio da culpa (Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal cit., pág. 372).
Anote-se, ainda, que “quando requeremos que o perigo seja típico, isso não significa apenas a sua «normalidade», mas a sua referência à espécie do delito fundamental” em termos, então, que “ele possa dizer-se quase consequência necessária daquela espécie de delito e não também de outras espécies relativamente às quais a agravação pelo resultado não se encontra legalmente prevista” (Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal cit., pág. 372). Assim, o perigo típico “tem que estar diretamente relacionado com o crime fundamental doloso (que apresenta uma determinada natureza e que por isso anda associado a efeitos de determinado tipo), não se podendo responsabilizar o agente por consequências imprevisíveis ou anormais que em nada se relacionam com o mesmo crime” (Paula Ribeiro de Faria, Comentário cit. – I., pág. 388). Em tais situações — em que o evento ou resultado agravante se apresenta uma consequência imprevisível ou anormal do comportamento do agente (seja por força da atuação da vítima, seja pela atuação de terceiro ou circunstância de força maior) — verifica-se a quebra do nexo de causalidade. Aliás, importa aqui esclarecer que esta quebra da causalidade poderá justificar a não imputação do evento agravante ao agente ou, naquelas situações em que o resultado se verifica, não como consequência típica do crime fundamental, mas de uma outra fonte de perigos, “o princípio será o de afirmar um concurso entre este crime e o crime negligente produzido” (exatamente assim, ainda que se referindo ao crime de exposição ou abandono previsto no artigo 138.º, nomeadamente a agravação prevista no n.º 3 daquela norma, José Manuel Damião da Cunha, Comentário Conimbricense do Código Penal: Parte Especial – Tomo I, Coimbra Editora, 2.ª ed., 2012, pág. 199; no mesmo sentido parece apontar Paula Ribeiro de Faria, Comentário cit. – I, págs. 388 e 389).
Nota importante: “mesmo que o resultado agravante (morte ou ofensa à integridade física grave) ocorra de imediato, tem lugar a aplicação deste tipo legal” (Paula Ribeiro de Faria, Comentário cit. – I, pág. 390, em anotação ao artigo 147.º).
No caso dos autos, trata-se de saber, pois, se as ofensas na pessoa o ofendido BB — resultado não desejado e nem sequer previsto pelo arguido — pode ser imputada “ao menos a título de negligência” à sua conduta. Trata-se, portando, de apurar se as lesões graves sofridas (nas concretas circunstâncias em que ocorreram) se insere no “perigo normal, típico, quase se diria necessário” — expressão que se foi buscar, tal como acima se referiu ao Prof. Jorge Figueiredo Dias (Direito Penal cit., pág. 372) — que resulta da violação do dever de cuidado revelada pelo arguido AA. Designadamente, cabe então saber se, em face do circunstancialismo concreto em que exerceu a respetiva atividade— utilizando artefactos pirotécnicos em si mesmo perigosos e compostos por substâncias e materiais combustíveis e químicos perigosos por serem altamente inflamáveis/explosivos — deve ser censurado ao arguido, além do mais, pela criação e manutenção das condições de segurança e dos procedimentos subsequentes ao lançamento do fogo de artifício, não ter observado as normas legais, regulamentares e técnicas de segurança que não só evitariam o risco de explosão, como também aquelas que visariam limitar os seus efeitos (circunscrevendo-os ao mínimo possível). Ou seja, importa determinar se as lesões sofridas por BB constituem expressão de um perigo específico contido na violação (do dever objetivo de cuidado plasmado na observância) das normas legais, regulamentares e técnicas de segurança.
Assim, estamos, necessariamente, remetidos para os pressupostos da negligência, sendo necessário apurar a imputação do resultado agravante à conduta do agente (isto é, é necessário que entre o evento agravante e a conduta do agente se verifique um nexo de causalidade adequada), assim como comprovar-se a violação, por parte do agente, do dever objetivo de cuidado que sobre ele impendia e, ainda, a capacidade (e possibilidade) de o observar.
Uma primeira nota, para referir que as condutas negligentes só são penalmente punidas “nos casos especialmente previsto na lei” (artigo 13.º, 2.ª parte).
Deste modo, consagra-se em termos legais o denominado princípio da excecionalidade da punição das condutas negligentes sendo esta mais uma forma de se expressar a fragmentariedade do direito penal. Aliás, pelo seu carácter excecional, as condutas negligentes só são objeto de incriminação quando há a possibilidade de lesão de bens jurídicos importantes, revelando, essencialmente, uma maior proteção a bens jurídicos (individuais ou coletivos) com especial valor e, além disso, uma específica carência de pena naquelas situações em que se lida com fontes de perigo graves para a existência das pessoas em comunidade (principalmente se os resultados lesivos decorrem de falta de cuidado do agir social). Porém, apesar desta limitação à punição de comportamentos negligentes, isso não significa que os crimes negligentes sejam menos importantes ou de prática menos frequente que os crimes dolosos. Bem pelo contrário.
Atualmente, há uma tendência cada vez maior para o alargamento da punição de condutas meramente negligentes. É que, hoje, são cada vez mais as atividades da vida suscetíveis de gerar resultados típicos não consentidos pela lei, atividades que, no entanto, sendo geradores de altos níveis de conforto e de bem-estar, não são proibidas, antes são consentidas pois sem elas a vida social, tal como a concebemos, estaria condenada. Sendo atividades suscetíveis de gerar, simultaneamente, níveis elevados de bem-estar e resultados socialmente danosos, há a preocupação de as regulamentar de molde a diminuir os riscos da ocorrência de tais resultados. Impõe-se, por esta via, um dever de diligência, uma obrigação de respeito por certos “deveres gerais de cuidado”. As considerações expendidas são natural e amplamente válidas no âmbito da atividade pirotécnica, designadamente, no lançamento de artefactos pirotécnicos onde há o uso de materiais contendo produtos químicos perigosos e altamente inflamáveis, assim denotando que esta é uma atividade que encerra grandes perigos para bens jurídico-penais, maxime (como o caso dos autos infelizmente documenta) para a vida e para a integridade física.
O artigo 15.º, contrapondo-o ao conceito de dolo formulado no artigo 14.º, considera que “age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz”. A negligência pode ser consciente se o agente “representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime, mas atuar sem se conformar com essa realização” (alínea a) do artigo 15.º) ou inconsciente se o agente “não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto” (alínea b) do artigo 15.º). É, portanto, ao nível do conhecimento que se distingue a negligência consciente da inconsciente: no primeiro caso, o agente ainda admite como possível a verificação do resultado típico no sentido de tomar a sério a possibilidade de ofensa ou violação de bens jurídicos (assim, Jorge de Figueiredo Dias, Pressupostos da Punição, in Jornadas de Direito Criminal, C.E.J., pág. 71), embora atue confiando que o mesmo não ocorrerá, enquanto no segundo o agente nem sequer admite a possibilidade de ocorrer o evento típico (no mesmo sentido, Américo Taipa de Carvalho, Direito Penal – Parte Geral: vol. II [Teoria Geral do Crime], Publicações Universidade Católica, 2004, pág. 390). Em todo o caso, a distinção “visa tão-só estabelecer os requisitos puramente psicológicos — positivos ou negativos — que pode assumir a negligência no seu conjunto: representação do resultado típico na negligência consciente, ausência dessa representação na inconsciente”, para além de “reafirmar o critério, já constante do artigo 14.º, nomeadamente do seu n.º 3, de distinção entre dolo (eventual) e negligência (consciente) (Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal: Parte Geral – Tomo I, Gestlegal, 3.ª ed., 2019, pág. 1004).
No caso dos autos o arguido AA não previu a possibilidade de as suas condutas — que se traduziram na não observância de normas de segurança relativa à recolha das sobras e explosivos não deflagrados após o lançamento — serem suscetíveis ou aptas a provocar uma explosão e consequentemente as ofensas provocadas na pessoa de BB. É o que ressalta da factualidade provada descrita.
Não estamos, portanto, perante uma situação de negligência consciente o que não se traduz numa negligência consciente — não significa sem mais que ocorra uma diminuição da culpa do arguido. É que “em matéria de gravidade do ilícito não vemos que a representação da violação como possível indicie sempre um maior peso da negligência consciente face à inconsciente: relativamente à morte de um peão, o ilícito imputável ao automobilista que conduz em animada conversa e brincadeira com os passageiros amigos e em consequência não representa sequer a possibilidade de atropelamento, não tem de ser menos grave do que o daquele que em virtude de uma desatenção momentânea representa, se bem que já tarde, aquela possibilidade” (Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal cit., pág. 1004).
Mas, “o essencial da definição [da negligência] reside, porém, no proémio unitário, sendo aí que se contém o tipo de ilícito (a violação do cuidado a que, segundo as circunstâncias, o agente está obrigado, isto é, a violação do cuidado objetivamente devido) e o tipo de culpa (a violação do cuidado que o agente é capaz de prestar, segundo os seus conhecimentos e capacidades pessoais, está em condições de prestar)” (Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal cit., pág. 1003; e Temas Básicos da Doutrina Penal, Coimbra Editora, 2001, pág. 352).
Importa, por isso, centrar a nossa atenção na análise dos elementos da negligência, quer quanto ao tipo de ilícito, quer quanto ao tipo de culpa, perspetivando tal análise em função da factualidade apurada.
Em termos genéricos, pode dizer-se que há negligência se há a produção de um resultado típico (ou, se quisermos em termos mais simples, criminoso) resultante da violação de um dever objetivo de cuidado que o agente, segundo os seus conhecimentos e capacidades, estava em condições de cumprir.
Por isso, pode dizer-se que o tipo de ilícito se integra pela produção de um resultado ou evento típico (i), pela violação do dever objetivo de cuidado (ii) e pela imputação objetiva desse resultado típico à violação do dever objetivo de cuidado (iii).
Quanto ao tipo de culpa, este prende-se com as capacidades pessoais do arguido para cumprir o dever objetivo de cuidado a que está adstrito.
Naturalmente que só depois de se verificar o preenchimento do tipo de ilícito pela conduta é que faz “sentido indagar ainda se o mandato geral de cuidado e previsão podia também ser cumprido pelo agente concreto, de acordo com as suas capacidades individuais, a inteligência e a sua formação, a sua experiência de vida e sua posição social” (Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal cit., pág. 1007, e Temas... cit., pág. 354).
Analisemos, então, o tipo de ilícito do facto negligente.
Este “considera-se preenchido por um comportamento sempre que este discrepa daquele que era objetivamente devido em uma situação de perigo para bens jurídico-penalmente relevantes, para deste modo se evitar uma violação juridicamente indesejada”, exigindo-se, por isso, para além da produção do resultado ilícito típico, “que tenha ocorrido a violação, por parte do agente, de um dever objetivo de cuidado que sobre ele impende e que conduziu à produção do resultado típico; e, consequentemente, que o resultado fosse previsível e evitável para o homem prudente, dotado das capacidades que detém o “homem médio” pertencente à categoria intelectual e social e ao círculo de vida do agente” (Jorge de Figueiredo Dias, Temas… cit., págs. 353 e 354; Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal cit., págs. 1006 e 1007). A negligência, ao nível do tipo de ilícito, resulta da “ação violadora do dever objetivo de cuidado («desvalor de ação»)” e da “ocorrência do resultado típico («desvalor de resultado»), devendo existir “uma relação de adequação” “entre a ação e o resultado” de tal modo que se afirme que o resultado é “objetivamente imputado à ação descuidadamente praticada” (Américo Taipa de Carvalho, Direito cit., pág. 379).
Em face do que vai dito, fica patente que nos crimes negligentes se pune quer o desvalor da ação (a omissão do dever objetivo de cuidado) quer o desvalor do resultado (pois dessa omissão resulta um evento não desejado pela lei) (José de Faria Costa, O Uno, o Múltiplo e os Crimes Negligentes: Anotação ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13.07 2011, in Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 141.º, set.-out. de 2011, n.º 1370, pág. 61). Como patente ficam os elementos de que depende a verificação do tipo de ilícito negligente: a violação do dever objetivo de cuidado, a produção de um resultado ou evento ilícito típico e a imputação objetiva desse resultado à violação do dever objetivo de cuidado.
Sabendo-se que há a violação do dever objetivo de cuidado quando há “a violação de exigências de comportamento em geral obrigatórias cujo cumprimento o direito requer, na situação concreta respetiva, para evitar realizações não dolosas de um tipo objetivo de ilícito” (Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal cit., pág. 1007; e Temas… cit., pág. 359) e ponderando ainda que a violação do dever objetivo de cuidado é avaliada segundo critérios objetivos, concretizados com apelo às capacidades da sua observância pelo “homem médio” (diligente e prudente) — sem esquecer, no entanto, que a extensão e a intensidade do dever de cuidado se deve aferir pelo concreto círculo de responsabilidades em que o agente se move sempre que este possua capacidades superiores à média (neste sentido, Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal cit., págs. 1014 a 1019; Jorge de Figueiredo Dias, Temas… cit., págs. 368 a 371; no mesmo sentido, Jorge de Figueiredo Dias e Nuno Brandão, Comentário Conimbricense do Código Penal – Parte Especial: Tomo I, 2012, Coimbra Editora, págs. 177 e 178) — pode afirmar-se com segurança que o arguido comprometeu este seu dever de cuidado, não adotando o comportamento exigível com o cumprimento do dever de cuidado que sobre ele, especificamente, impendia enquanto técnico encartado e licenciado.
Neste contexto não pode deixar de se assinalar que uma pessoa consciente, prudente, sensata, colocada naquela concreta situação teria tido o cuidado de proceder à necessária e imposta recolha, inexistindo qualquer circunstância factual excecional que elimine a violação do dever de cuidado inerente à conduta ilícita do arguido.
Exige-se, ainda, a imputação objetiva do resultado à omissão do dever objetivo de cuidado. Dito de outro modo, é necessário comprovar que o resultado típico se ficou a dever àquela concreta violação do dever de cuidado. Para que se possa dizer que determinado evento típico (no caso, as ofensas causadas na pessoa de BB) é devido (isto é, se pode imputar) à violação do dever objetivo de cuidado é necessário ainda ter em conta o disposto no artigo 10.º e num triplo sentido: por um lado, é necessário que se possa dizer, com razoável probabilidade, que o resultado ter-se-ia evitado se o agente atuasse com o cuidado a que estava obrigado; por outro, impõe-se a necessidade de comprovar que o dever objetivo de cuidado omitido visava impedir a produção do resultado concretamente produzido; por fim, que se possa dizer que o concreto resultado típico produzido se deveu ao específico dever objetivo de cuidado violado pelo agente, de tal modo que se possa assegurar que a omissão da diligência devida seja, em concreto, causa adequada dos resultados produzidos (no mesmo sentido, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5.11.1997, Coletânea de Jurisprudência, III, pág. 227, Acórdão da Relação de Évora de 25.02.1992, Coletânea de Jurisprudência, I, pág. 293).
O ponto de partida será o artigo 10.º, n.º 1, onde se diz que “quando um tipo legal de crime compreender certo resultado, o facto abrange não só a ação adequada a produzi-lo como a omissão da ação adequada a evitá-lo, salvo se outra for a intenção da lei”. Estando, aqui, em causa um crime negligente de resultado por ação, importa então analisar o artigo 10.º, n.º 1 na parte em que diz que “quando um tipo legal de crime compreender um certo resultado, o facto abrange não só a ação adequada a produzi-lo como a omissão da ação adequada a evitá-lo, …”.
No caso dos autos, bem se pode dizer que a conduta do arguido é causa dos resultados danosos verificados.
O artigo 15.º consagra a negligência nos casos em que o agente atua sem o cuidado “de que é capaz”. O tipo de culpa negligente é “a expressão, documentada no (facto) ilícito-típico, de uma atitude descuidada ou leviana em face das exigências do dever-ser jurídico-penal”, traduzindo-se, por isso, no juízo de imputação ao agente de uma atitude pessoal, documentada no facto, de descuido ou leviandade face às exigências do dever-ser jurídico-penal. Pressupõe, assim, a previsibilidade subjetiva e a possibilidade de cumprimento do dever objetivo de cuidado omitido. É que “o elemento material do tipo de culpa negligente traduz-se justamente em que o agente, para que seja punível por negligência, tem não apenas de violar o cuidado objetivamente imposto, mas ainda de não afastar o perigo ou evitar o resultado apesar de aquele se apresentar como pessoalmente cognoscível e este como pessoalmente evitável: só nesta medida se pode afirmar que ele documentou no facto qualidades pessoais de descuido (Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal cit., pág. 1045; e Temas… cit., pág. 377). Importa, todavia, ter-se em atenção que esta previsibilidade subjetiva (a possibilidade de o agente ter previsto as consequências que a sua conduta acarretava) e a possibilidade de cumprimento do dever objetivo de cuidado (a evitabilidade do resultado típico) deve ser aferida de acordo com as capacidades individuais e circunstâncias concretas do agente (tendo, portanto, como modelo, não o “homem médio”, mas “o tipo de homem da espécie e com as qualidades e capacidades do agente” (Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal cit., pág. 1046). Na verdade, a negligência supõe que o agente seja capaz de cumprir o dever de cuidado e de prever o resultado típico, devendo comprovar-se se ele, de acordo com as suas qualidades e capacidades individuais, estava em condições de satisfazer as correspondentes exigências objetivas (no mesmo sentido, entre tantos outros, Acórdão da Relação de Coimbra de 23.04.1997, Coletânea de Jurisprudência, II, pág. 60).
Deve, no entanto, advertir-se que esta consideração (ancorada na expressão legal “de que é capaz”) não quer significar um puro subjetivismo na análise da negligência.
Efetivamente, deve destacar-se que o ponto de partida para a valoração dos elementos individuais reside no “dever objetivo de cuidado” determinado em função do que a ordem jurídica exige ao comum dos mortais, ao homem minimamente sensato e prudente. É este o patamar mínimo a partir do qual faz sentido atender às concretas qualidades e capacidades do agente. Até porque a negligência pode exprimir uma censura a ele dirigida por ser tão descuidado e leviano ao ponto de ser incapaz de cumprir as exigências mínimas pela lei impostas, designadamente por aceitar a realização de tarefas para as quais sabia não estar habilitado ou capacitado, caso em que a negligência se manifestará pelo perigo criado na aceitação de uma tarefa para a qual, de acordo com as suas capacidades pessoais e concretas, sabia ou devia saber, não estar preparado (física e/ou psiquicamente ou por qualquer outra razão).
No caso dos autos, é por demais incontroverso que o arguido AA se encontrava em condições de prever a verificação do resultado típico, só não o tendo feito por leviandade e descuido. É o que resulta inequivocamente do teor da factualidade provada.
Conclui-se, assim, que o arguido AA praticou o crime de incêndios, explosões e outras condutas especialmente perigosas, agravado pelo resultado ofensas à integridade física grave p. e p.p. pelo art. 272º, nº1, al. b), 18º e 285º, todos do C. Penal.

b. Da determinação e medida Concreta da Pena.
Uma vez feita a qualificação jurídica dos factos, é chegado o momento de determinar a medida concreta da pena aplicável ao arguido.
Nos termos do art. 40º do C.Penal, a aplicação da pena visa a protecção de bens jurídicos (prevenção geral) e a reintegração do agente na sociedade (prevenção especial), não podendo a pena em caso algum ultrapassar a medida da culpa. Estas finalidades são complementares no sentido de que não se excluem materialmente, havendo sempre que encontrar um justo equilíbrio na sua ponderação.
Com a determinação que sejam tomadas em consideração as exigências de prevenção geral procura dar-se satisfação à necessidade comunitária de punição do caso concreto, tendo-se em conta, de igual modo, a premência da tutela dos respetivos bens jurídicos.
E com o recurso à vertente da prevenção especial procura-se satisfazer as exigências da socialização do agente, com vista à sua reintegração na comunidade.
A defesa da ordem jurídico-penal, tal como é interiorizada pela consciência coletiva (prevenção geral positiva ou de integração), é a finalidade primeira, que se prossegue, no quadro da moldura penal abstrata, entre o mínimo em concreto imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada e o máximo que a culpa do agente consente: entre esses limites, satisfazem-se, quanto possível, as necessidades da prevenção especial positiva ou de socialização.
A determinação da medida concreta da pena faz-se, nos termos do art. 71º do C. Penal, em função da culpa do agente, tendo ainda em conta as exigências de prevenção de futuros crimes e atendendo a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime deponham a favor do agente ou contra ele.
Sem violar o princípio da proibição da dupla valoração pode ainda atender-se à intensidade ou aos efeitos do preenchimento de um elemento típico e à sua concretização segundo as especiais circunstâncias do caso, já que o que está aqui em causa são as diferentes modalidades de realização do tipo (neste sentido, Figueiredo Dias, As consequências jurídicas do crime, pág. 234).
O crime de explosões, previsto nos art. 272º, nº 1, al. b) e art. 18º e 285º do Código Penal prevê uma pena abstrata de quatro a 13 (treze) anos e 4 (quatro) meses de prisão (resultante da agravação de um terço no limite mínimo e máximo previstos no tipo fundamental que é três a dez anos de prisão).
Neste tipo de crimes pesam, e de modo muito sensível, as exigências de prevenção geral, já que são frequentes os casos de eventos como o dos autos em que numa atividade consabidamente perigosa – a pirotecnia – é comum a inobservância das regras de segurança com as consequências públicas e notórias de todos conhecidas o que impõe, desde logo, uma punição severa, que não se fique por uma pena simbólica, de molde a dar um sério aviso aos infratores. É que só assim se poderá reforçar na comunidade o sentimento de que este tipo de crimes (ainda para mais com consequências tão trágicas) não passa impune e que, afinal, em especial a vida e a integridade física continuam a ser valores inalienáveis.
Isto posto, importa ponderar;
No que diz respeito à culpa (na forma de dolo eventual – quanto à ação e criação de perigo e negligente no que respeita ao resultado), importa ter presente que há uma violação dos deveres objetivos de cuidado básicos e que não se pode assim ter por diminuta.
A ilicitude do crime, considerando a natureza do dever violado, apresenta-se médio/elevada, ademais sabendo-se que o arguido ligado à atividade há vários anos, tendo sido ele quem lançou o fogo era sabedor de que alguns dos artefactos lançados não deflagraram como se pretendia e que teriam de ser necessariamente recolhidos e dos problemas de segurança que tal implicava;
Ainda contra o arguido terão de pesar as consequências que resultaram da sua conduta: dentre os resultados graves que tal conduta é suscetível de acarretar um dos mais gravosos, só suplantado pelo dano morte.
Ao nível das exigências da prevenção especial, não podem considerar-se diminutas. É um facto que o arguido não tem antecedentes criminais e está integrado socialmente. Todavia não colaborou para a descoberta da verdade nem revelou qualquer arrependimento. Pelo contrário. Em sede de contestação escrita pretendeu imputar ao ofendido (ainda sem o concretizar) a responsabilidade pelo sucedido, não tendo esboçado a mínima sensibilidade ao sofrimento alheio, não revelando simultaneamente ter interiorizado o desvalor da sua conduta.
Tudo sopesado, julga justo e adequado aplicar ao arguido AA a pena de 5 (cinco) anos de prisão.
Da suspensão da pena aplicada.
O art. 50º do C. Penal atribui ao Tribunal o poder dever de suspender a execução de pena não superior a cinco anos, sempre que a personalidade do agente, as suas condições de vida, a sua conduta anterior e posterior ao facto punível, e às circunstâncias deste, permitam concluir que a simples censura do facto e a ameaça de prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades de punição.
Na decisão sobre a aplicação do instituto em apreço o julgador tem de orientar-se em função de considerações de natureza exclusivamente preventiva (prevenção geral e especial) o que não significa que na decisão a tomar se tenha de excluir, de todo em todo, qualquer ideia de retribuição, designadamente, quando entendida como reafirmação de uma exigência ética de pena, no sentido de que a eficácia da pena não depende apenas da ameaça e da intimidação a exercer sobre o condenado e a comunidade, mas também da compreensão e da aceitação da punição pelo condenado e pela comunidade (prevenção positiva) únicos meios suscetíveis de conduzirem aquele ao arrependimento e à emenda, isto é, à reabilitação e à reinserção, e de criarem na generalidade dos cidadãos as condições psicológicas para que não caiam no crime (cfr: Acórdão do STJ de 31 de Maio de 2006, Relator – Conselheiro Oliveira Mendes, www.stj.pt).
Apesar das exigências de prevenção geral estas admitem no caso a suspensão da execução da pena de prisão em que foi o arguido condenado.
É certo, não se ignora, que os crimes de incêndios, explosões e outras condutas especialmente perigosas, ademais nos casos que tiveram consequências graves, causam grande alarme social, a exigir uma punição severa que, muitas vezes, se não coaduna com a simples suspensão da execução da pena de prisão aplicada, tanto mais que, frequentemente, que a esta estão associados sentimentos comunitários de pura impunidade. O arguido apesar da falta de colaboração para a descoberta da verdade, ponderada a ausência de antecedentes criminais, sendo certo que decorreram entretanto seis anos sobre os factos em apreço e a circunstância de estar inserido familiar e socialmente conclui o tribunal que a ameaça da pena, como medida de reflexos sobre o seu comportamento futuro evitará a repetição de comportamentos delituosos (prevenção especial) e não coloca irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e a estabilização contrafática das expectativas comunitárias, ou seja o sentimento de reprovação social do crime ou sentimento jurídico da comunidade (prevenção geral) pelo que se decide suspender também a pena de prisão aplicada por igual período de cinco anos – nº5 do citado preceito legal.
Estatui-se no artigo 50.º, n.º 2, que “o tribunal, se o julgar conveniente e adequado à realização das finalidades da punição, subordina a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos dos artigos seguintes, ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, ou…” No caso dos autos, entende-se que o Tribunal deve lançar mão desta possibilidade. Em primeiro lugar, deve assinalar-se que as exigências da prevenção geral, neste tipo de criminalidade e perante um resultado tão dramático, por norma, justificam e só são satisfeitas com a aplicação de uma pena efetiva de prisão. Sob pena de se pensar que, afinal, o desrespeito pelas normas de segurança de atividades perigosas — principalmente quando se lida, como era o caso, com materiais facilmente combustíveis e produtos químicos altamente inflamáveis — compensa e, por essa via, quebrar a confiança da comunidade na validade e vigência das normas. Acresce que importa também pela via da pena sinalizar comunitariamente, mas também junto do arguido, a necessidade de respeitar as normas de segurança no exercício e desenvolvimento da específica atividade exercida a fim de mitigar o perigo de voltar a desleixar-se no que toca ao cumprimento das regras de segurança.
Por fim, e muito relevante, é necessário que a comunidade perceba que os factos que constituem o objeto dos presentes autos — e que tiveram um desfecho dramático para o ofendido — não constituíram um simples “acidente”. Assim sendo, entende-se que é necessário impor como condição da suspensão da execução da pena de prisão a sujeição do arguido ao pagamento da indemnização fixada e que ao mesmo couber em sede de responsabilidade civil, iniciando o pagamento mínimo da quantia mensal de €200 (duzentos euros) ao ofendido lesado, durante todo o período da suspensão (cinco anos) – quantia que se apresenta razoável face à condição socioeconómica daquele e que resultou provada – art. 50º, nº3 e 51º, nº1, al. a) do C. Penal – que deverá iniciar-se no mês seguinte ao trânsito em julgado da presente decisão.

c. Da responsabilidade civil.
O ofendido BB deduziu pedido de indemnização civil contra o arguido e ainda contra a sociedade “A..., Ldª e CC enquanto gerente da sociedade demandada pedindo a condenação solidária dos demandados ao pagamento da quantia global de €695.793,13, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos acrescida de juros à taxa legal até efetivo e integral pagamento.
A sociedade demandada suscitou a intervenção da seguradora “B..., Companhia de Seguros, S.A.” invocando estarem os danos resultantes da sua atividade cobertos por seguro com esta celebrado.
Nos termos do artigo 129.º do Código Penal, em conjugação com o regime processual estabelecido nos artigos 71.º e seguintes do Código de Processo Penal, a indemnização atribuída no âmbito do processo penal tem a natureza de indemnização civil por perdas e danos, sendo, por isso, baseada na responsabilidade civil extracontratual (artigo 483.º, n.º 1 do Código Civil). Dispõe por outro lado o artigo 483°, sob a epigrafe princípio geral que: 1. Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação. 2. Só existe obrigação de indemnizar independentemente de culpa nos casos especificados na lei.
São, pois, pressupostos da responsabilidade civil: 1- a prática de um facto voluntário; 2 – ilicitude de tal facto (que é a infração de um dever jurídico, por violação direta de um direito de outrem e violação da lei que protege interesses alheios ou violação de obrigação contratualmente assumida); 3 – a verificação de um nexo de imputação do facto ao agente (culpa - dolo ou mera culpa -, implicando uma ideia de censura ou reprovação da conduta do agente); 4 - dano (perda que o lesado sofreu, em consequência de certo facto, nos interesses materiais, espirituais ou morais, que o direito violado ou a norma infringida visam tutelar); 5 - nexo de causalidade entre o facto e o dano (tendo o facto de constituir a causa do dano).
Na responsabilidade extracontratual incumbe ao lesado o ónus de provar todos os referidos pressupostos consagrados no nº1 do art. 483º, do Código Civil, entre eles, como vimos, a culpa do autor da lesão, nos termos dos artigos 487º, nº 1 e 342º, nº 1, ambos daquele Código, salvo existindo presunção especial de culpa, já que a obrigação de indemnizar, independentemente de culpa, só existe nos casos especificados na lei - v. nº 2 do artigo 483º do Código Civil, contando-se, entre tais casos, o consagrado no artigo nº2, do art. 493º, do Código Civil.
O pedido de indemnização civil no caso deduzido funda-se nas lesões à respetiva integridade física sofridas pelo demandante e consequências destas advenientes a qual tem naturalmente proteção até constitucional guarida constitucional (artigo 25.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa).
Essencial é que os pressupostos da responsabilidade civil (facto, ilicitude, nexo de imputação pessoal do facto ao agente ou culpa, dano e nexo de causalidade entre o dano e o facto) estejam preenchidos, originando, desse modo, a obrigação de indemnizar os danos causados por parte do agente.
Em face da factualidade provada — e em parte tal matéria até resulta dos termos da própria condenação — não há dúvida que estão preenchidos, na sua totalidade, os pressupostos da responsabilidade civil relativamente ao demandado AA.
No que concerne à sociedade demandada “A..., Ldª” importa salientar que resultou provado que o arguido demandado atuou em seu nome e no seu interesse, tendo sido tal sociedade quem foi contratada e o incumbiu para levar a efeito o lançamento do fogo de artificio em questão, designadamente, aquele que veio a explodir e a provocar os peticionados danos ao lesado demandante.
Com relevo para a questão em análise importa ainda salientar que pressupondo a responsabilidade civil em regra, a culpa do agente por dolo ou mera negligência, incidindo sobre o lesado o ónus de provar a culpa (artigos 483º e 487º do Código Civil), ciente de que em muitos casos essa prova pode ser difícil, o legislador estabeleceu situações de inversão do ónus da prova, em que a responsabilidade continua a depender da culpa do agente, mas essa culpa presume-se. Um desses casos é precisamente o exercício de atividade tida por perigosa pela sua própria natureza ou pela natureza dos meios utilizados (artigo 493º, n.º 2, do Código Civil). O nº2 do artº 493º dispensa a prova do facto presumido, ou seja, da culpa. Porém, só se passa à culpa (que se presume) depois de verificada a ilicitude do facto. Vejamos, pois, se se mostram preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual e, consequentemente, da obrigação de indemnizar da sociedade “A...”, que não a Seguradora B... (pois que a responsabilidade desta apenas existirá em função e nos termos do contrato a que se vinculou e nesses precisos termos e limites, o que se apreciará a final).
Da prova produzida, resulta, sem margem para dúvidas, o facto – o assistente/lesado foi atingido, no seu corpo, por fogo-de-artifício (fornecido pela sociedade demandada e deixado pelo arguido que o lançou e não procedeu à recolha dos não deflagrados). Não basta, porém, que alguém pratique um facto prejudicial aos interesses de outrem para que seja obrigado a compensar o lesado. É necessário que o facto seja ilícito. Ora, o facto, praticado pelo arguido demandado AA foi, indubitavelmente, ilícito numa dupla vertente: - violou diretamente a lei, desde logo, por deixar o fogo não deflagrado nas imediações do local de lançamento, terreno agrícola acessível, a pessoas, desde logo, a quem aí trabalhava e violou um direito subjetivo do lesado (a sua integridade física).
Sem se querer repetir os diplomas e preceitos legais e regulamentares já referidos a propósito da atividade pirotécnica (em sede da análise da parte crimina) e que pretendem eliminar ou minimizar a perigosidade desta, para os mesmos se remete, assinalando-se o dever de limpeza das imediações do local de lançamento quer das sobras, quer do fogo não que por qualquer razão não estoirou e de onde decorre não poder o material pirotécnico (fogo) não queimado ser deixado à mercê de qualquer pessoa. Deste modo, ocorre, desde logo, quer a “violação de uma disposição legal destinada a proteger interesses alheios” (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 4ª Edição, 1987, Coimbra Editora, pág. 472) quer a violação de um direito subjetivo, de um direito absoluto - a personalidade física do demandante (cfr. artigo 70º, nº1, do CC).
Mas, para que se gere responsabilidade é necessário que o lesante tenha agido com culpa. Age com culpa aquele que, tendo capacidade, face às circunstâncias concretas, podia e devia ter agido de outro modo.
Como vimos, dos factos provados resulta que a demandada Sociedade A... foi a entidade contratada para o lançamento do fogo e o arguido foi o lançador do fogo. Na verdade, o arguido foi o lançador de fogo credenciado indicado por aquela que o forneceu.
E provou-se que as circunstâncias de tempo e lugar do lançamento do fogo-de-artifício, que algum do fogo de artifício não deflagrou sem que tenha sido recolhido como imposto legalmente. Cabia ao arguido/demandado AA zelar pela segurança das pessoas fossem elas quais fossem, assim como à sociedade “A...” que de tal o incumbiu. Atuaram estes assim com culpa, criando perigo, designadamente, o de alguém com este se deparar advertida ou inadvertida ou acidentalmente e que até veio a concretizar-se.
Assim, para além da ilicitude, objetiva, encontra-se provada a culpa efetiva, quer relativamente ao arguido demandado, quer quanto à sociedade demandada. Todavia e no que respeita concretamente à Sociedade “A...”, a culpa sempre se presumiria. Como já enunciado nos termos do disposto no nº2, do artigo 493º, do CC, “quem causar danos a outrem no exercício de uma atividade, perigosa pela sua própria natureza ou pela natureza dos meios utilizados, é obrigado a repará-los, exceto se mostrar que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de os prevenir”. Este preceito constitui uma das exceções ao princípio geral enunciado no n.º 1 do artigo 487.º, do Código Civil, prevendo a inversão do ónus da prova, ou seja, a presunção de culpa por parte de quem exerce uma atividade perigosa, em consequência da qual ocorre o dano. A lei presume a culpa, impondo ao agente que demonstre ter empregado todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de prevenir os danos, ou seja, por outras palavras, ter atuado com a devida diligência. Consagra-se aqui uma presunção de culpa quanto aos danos decorrentes de atividades perigosas seja pela sua natureza, seja pela natureza dos meios utilizados. Pires de Lima e Antunes Varela, com a colaboração de M. Henrique Mesquita, Código Civil Anotado, Vol. I, Coimbra, Coimbra Editora, 1987, p. 495, opinam que “este preceito (…) é dos que mais claramente revelam o caráter excecional da responsabilidade pelo risco, na medida em que, mesmo quanto às actividades dessa natureza, onde a teoria do risco mais tende a afirmar-se, a lei admite a prova da falta de culpa como causa de exclusão da responsabilidade do agente”. A lei não fornece “um elenco de actividades que devam ser qualificadas como perigosas para efeitos dessa norma e também não fornece um critério em função do qual se deva afirmar a perigosidade da actividade, esclarecendo apenas que, para o efeito, tanto releva a natureza da própria actividade como a natureza dos meios utilizados. A perigosidade é apurada caso a caso, em função das características casuísticas da actividade que gerou os danos, da forma e do contexto em que ela é exercida. Trata-se afinal de um conceito indeterminado e amplo a preencher pelo intérprete e aplicador da norma na solução do caso concreto, o que deve ser feito tendo por base a «directriz genérica» indicada pelo legislador. Deve ser considerada perigosa a actividade que possui uma especial aptidão produtora de danos, um perigo especial, uma maior susceptibilidade ou aptidão para provocar lesões de gravidade e mais frequentes”. E se é certo que o n.º 2 do artigo 493.º do Código Civil não indica o que deve entender-se por “atividade perigosa”, admitindo apenas, ainda que de forma genérica, que a perigosidade deriva da própria natureza da atividade, ou da natureza dos meios utilizados, revela-se pacífico na jurisprudência o entendimento de que a atividade de pirotecnia, o lançamento de foguetes ou fogo de artifício é inquestionavelmente uma atividade perigosa pela sua própria natureza, sendo a atividade aqui em causa perigosa para efeitos deste preceito. “Quem, no âmbito da organização de evento festivo, se utiliza do exercício da atividade de pirotecnia está, por efeito da sua vontade, a criar uma situação de especial perigo. (…) O DL n.º 376/84 tem, como destinatários, as entidades dedicadas às atividades, designadamente, de emprego de produtos explosivos e de quem se requer uma adequada capacidade técnica e, por isso, um especial dever de cuidado com a utilização desses produtos”.
Não definindo a lei o que deve entender-se por atividade perigosa, apenas conexiona, genericamente, essa perigosidade com a própria natureza da atividade ou dos meios utilizados pelo agente, como acontece com o lançamento e queima do fogo-de-artifício, legalmente, sujeito à observância de determinados preceitos legais, a que é aplicável o disposto no artigo 493.°, n.° 2, do CC, ou seja, o da responsabilidade assente na culpa, embora presumida, não se regendo pelos princípios da responsabilidade objetiva ou independentemente de culpa, em que o agente suportaria as consequências do facto ilícito sem que se demonstrasse a culpa. A inversão do ónus da prova, ou seja, a presunção de culpa por parte de quem exerce uma atividade perigosa, consagrada pelo art. 493.°, n.° 2, do CC, não altera o princípio matricial de que a responsabilidade depende da culpa, salvo nos casos especificados na lei, portanto se trata de responsabilidade delitual e não de responsabilidade pelo risco ou objetiva, agravando o dever normal de diligência, não bastando, para afastar a responsabilidade, a prova de ter agido sem culpa, sendo necessário demonstrar que se adotaram todas as providências destinadas a evitar o dano.
As providências a adotar pelo agente, idóneas a evitar os danos são ditadas pelas particulares normas técnicas ou legislativas inerentes às especiais atividades, ou as regras da experiência comum. Estando-se perante o exercício de uma atividade perigosa, o lesante só poderá exonerar-se da responsabilidade pelos danos causados a outrem no contexto desta atividade, provando que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias para os evitar. Importa ainda salientar que a perigosidade da atividade não se resume ao ato de lançamento do fogo, mas, de igual forma, ao seu fabrico e emprego. Daí que os requisitos essenciais de segurança que toda a atividade conexa com artigos de pirotecnia deve satisfazer sejam rigorosos, emanando muita da nossa legislação de diretivas comunitárias (Diretiva n.º 2013/29/EU do Parlamento Europeu e do Conselho de 12/06 de 2013 e a Diretiva de Execução n.º 2014/58/EU da Comissão de 16/04 de 2014). Atente-se no conceito definido pela Lei n.º 5/2006, de 23/02, na redação introduzida pela Lei n.º 50/2013, de 24/07, quanto a artigo de pirotecnia: “qualquer artigo que contenha substâncias explosivas ou uma mistura explosiva de substâncias, concebido para produzir um efeito calorífico, luminoso, sonoro, gasoso ou fumígeno ou uma combinação destes efeitos, devido a reações químicas exotérmicas autossustentadas”- art. 2º, nº 5, al. af). Ressaltando o caráter perigoso, o DL 303/90 de 27/09, aplicável «ao fabrico, armazenagem, comércio e emprego de artifícios pirotécnicos luminosos, fumígenos ou sonoros, destinados a sinalização», estabelece no seu art. 2º, nº 1, que «o fabrico de artifícios de sinalização só poderá realizar-se em estabelecimentos identificados que, dispondo de instalações adequadas, tenham sido devidamente legalizados pela Inspeção dos Explosivos», cominando com a prática de contraordenação as infrações ao nele disposto. O DL 376/84 de 30/11 institui o regulamento sobre o licenciamento dos estabelecimentos de fabrico e de armazenagem de produtos explosivos, em que se abrangem as fábricas de pirotecnia e que acabou por dar origem às instruções sobre a utilização de artigos pirotécnicos elaboradas pela PSP, como a já atrás enunciada que estabelecem as regras a que devem obedecer a utilização de artigos pirotécnicos e a realização de espetáculos com estes artigos. Tal como decorre claramente dos cuidados legalmente exigíveis ao exercício desta atividade, em causa está o perigo que lhe é intrínseco, resultando o mesmo da mera inobservância de tais cuidados, sem necessidade de verificação de qualquer resultado. Com a classificação da perigosidade, e exigências conexas, visa-se antecipar a proteção de outros bens jurídicos, mais relevantes, tais como a vida e a integridade física que a mesma é suscetível de violar. Efetivamente, a legislação relacionada com a atividade pirotécnica, disciplina o comércio, o armazenamento e a utilização dos artigos de pirotecnia, com a finalidade de velar pela segurança de todos. Consciente da perigosidade de tal atividade, o Estado condiciona a utilização de artefactos pirotécnicos apenas àqueles a quem reconhece capacidade para uma boa utilização, intensificando os processos de controlo, fiscalização e responsabilização por comportamentos ilícitos – cfr. Acórdão da Relação de Guimarães de 20 de Setembro de 2018, in dgsi contendo ampla doutrina e jurisprudência que se segue e transcreve
Tendo presente estas considerações, torna-se necessário concluir, como ressalta dos factos provados pela responsabilidade do arguido AA e da Sociedade A..., que assenta juridicamente na previsão dos art. 483º e 493º, do Código Civil.
E do facto ilícito e, efetivamente, culposo praticado pelo arguido AA decorreram danos para o ofendido/demandante BB que, atingido pelo material pirotécnico, se viu afetado na sua integridade física de forma irreversível.
Tais danos e respetivas consequências, advieram, como causa adequada, da conduta ilícita e culposa já referida, sendo evidente a relação de causalidade entre o facto e os danos.
Entre a empresa pirotécnica e o operador há responsabilidade solidária nos termos conjugados dos art.s 493º, nº2 e 497º, nº1 e 500º do Código Civil.
Já relativamente à demandada CC não lhe podendo ser imputada qualquer responsabilidade pessoal (por inexistência de factos invocados para o efeito) sendo a gerente da sociedade demandada, nenhuma responsabilidade lhe pode ser a este nível imputada.
Por outro lado, sendo o evento imputável também à demandada “A...” é a Ré seguradora responsável pela obrigação de indemnizar, em determinados termos, em virtude do contrato de seguro que com esta celebrou, por força do qual para si foi transferida a responsabilidade civil por danos causados a terceiros, pois demonstrada a responsabilidade da segurada deriva para esta a obrigação de pagamento do montante indemnizatório, até ao limite do capital seguro e nas condições aí estipuladas.
Da exclusão contratual dos danos causados alegada pela demandada Seguradora nos termos do art. 3º das condições gerais e especiais do contratado.
Ora analisando as concretas condições constantes da factualidade provada não se vislumbra que as exclusões aludidas pela demandada/seguradora sejam ao caso aplicáveis que respeita ao lançamento e não à atividade de exploração, sendo esta a cobertura que está em causa no âmbito da responsabilidade da demandada sociedade em que a seguradora garante o pagamento das indemnizações emergentes de responsabilidade civil extracontratual que, ao abrigo da lei, sejam exigíveis ao segurado por danos patrimoniais e/ou não patrimoniais causados a terceiros no exercício da sua atividade incluindo a responsabilidade, pelos danos patrimoniais e não patrimoniais causados, dentro dos limites do capital seguro e deduzida da quantia estipulada a título de franquia e daquela já suportada e respeitante à mesma anuidade, o que assim não se entendendo sempre o contratado resultaria em absoluto desvirtuado.
Do montante da indemnização.
A responsabilidade dos identificados demandados traduz-se numa obrigação de reparar o dano causado, designada por obrigação de indemnizar, cujo princípio geral se encontra consagrado no artigo 562.º, do Código Civil, sendo deste diploma todos os preceitos citados sem outra referência.
No quadro da responsabilidade civil, a nossa lei não contempla uma definição de dano, mas refere-o como sendo um dos pressupostos da obrigação de indemnizar, quer da responsabilidade civil extracontratual quer da responsabilidade civil contratual (v. artigos 483.º, n.º 1, e 798.º), e fornece os parâmetros que permitem chegar a uma definição. Desde logo, o referido artigo 562.º, ao proclamar o princípio geral da obrigação de indemnizar, consigna que: Quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação e o artigo 563.º, sob a epigrafe Nexo de causalidade, prescreve que: A obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão.
Neste particular podemos encontrar os seguintes aspetos: Danos emergentes, os quais incluem os prejuízos diretos e as despesas diretas, imediatas ou necessárias; Ganhos cessantes; Lucros cessantes; Custos de reconstituição ou reparação; Danos futuros; Prejuízos de ordem não patrimonial – Cfr. Joaquim José de Sousa Dinis “Avaliação e Reparação do Dano Patrimonial e Não Patrimonial”, Revista Julgar, nº9, 2009.
Os prejuízos diretos traduzem-se na perda, destruição ou danificação de um bem, que tanto pode ser um objeto, como um animal ou uma parte do corpo do lesado ou o próprio direito à vida destes, assim como a perda e capacidade de trabalho; as despesas necessárias ou imediatas correspondem ao custo de prestação dos serviços alheios necessários quer para prestar o auxílio ou assistência quer para eliminar aspetos colaterais decorrentes do ato ilícito, aspetos estes que abrangem realidades tão diversificadas como a limpeza do local, reboques de viaturas ou enterro de quem tenha falecido.
Os ganhos cessantes correspondem à perda da possibilidade de ganhos concretos do lesado, incluindo-se na categoria de lucros cessantes
Os danos futuros compreendem os prejuízos que, em termos de causalidade adequada, resultarem para o lesado (ou resultarão de acordo com os dados previsíveis da experiência comum) em consequência do ato ilícito que foi obrigado a sofrer,… e ainda os que poderiam resultar da hipotética manutenção de uma situação produtora de ganhos durante um tempo mais ou menos prolongado, (e que poderá corresponder, nalguns casos ao tempo de vida laboral útil do lesado), e compreendem ainda determinadas despesas certas, mas que só se concretizarão em tempo incerto (ex. substituição de uma prótese ou futuras operações cirúrgicas).
Segundo certa classificação dos danos eles podem ser patrimoniais e não patrimoniais. Os primeiros incidem sobre interesses de natureza material ou económica, refletindo-se no património do lesado. Os segundos reportam-se a valores de ordem espiritual, ideal ou moral. Os danos morais ou prejuízos de ordem não patrimonial são prejuízos insuscetíveis de avaliação pecuniária porque atingem bens que não integram o património do lesado (a vida, a saúde, a liberdade, a beleza)” - cfr. Joaquim Dinis, artigo cit. p. 29.
O “dano” ou “prejuízo” consagrado, desde logo, no referido art. 564º, surge sob vários aspetos. Na verdade, o dano compreende o prejuízo causado (dano emergente) e os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão (lucro cessante) – nº1 – e os danos futuros – nº2.
A responsabilidade civil no nosso direito tem como primordial a função compensatória, ou seja, a reparação do dano, condição essencial e limite da obrigação de indemnizar, ainda que dentro de tais limites se contenham finalidades acessórias preventivas e mesmo sancionatórias. Nessa linha é pertinente considerar que a obrigação de indemnizar tem como balizas, por um lado, o princípio da reparação integral do dano e, por outro, a proibição do enriquecimento sem causa do lesado à custa da indemnização.
O montante indemnizatório deve equivaler ao dano efetivo, à avaliação concreta do prejuízo sofrido (e não à abstrata), sendo certo que decore do nº1, do artigo 564º, que o dever de indemnizar compreende não só o prejuízo causado, como os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão. Assim, o dever de indemnizar abrange os prejuízos sofridos, a diminuição dos bens já existentes na esfera patrimonial do lesado - danos emergentes -, e os ganhos que se frustraram, os prejuízos que advieram ao lesado por não ter aumentado, em consequência da lesão, o seu património - lucros cessantes. A lei, para além da ressarcibilidade dos danos patrimoniais, contempla a “compensação” pelos danos não patrimoniais, ou seja, aqueles que só indiretamente podem ser compensados – art. 494º, nº2, integrando uns e outros a obrigação de indemnizar.
Porém, quando estão em causa a lesão de interesses imateriais, a reconstituição natural da situação anterior ao sinistro é impossível e também o é a fixação de um montante pecuniário equivalente ao «mal» sofrido, apenas se podendo atenuar, minorar ou, de algum modo, compensar os danos sofridos pelo lesado. E se a indemnização por danos não patrimoniais não elimina o dano sofrido, pelo menos, permite atribuir ao lesado determinadas utilidades que lhe permitirão alguma compensação pela lesão sofrida.
Nos termos do nº4, do 496º, o montante da indemnização a atribuir será fixado equitativamente pelo Tribunal tendo em conta a extensão e gravidade dos danos causados, o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso que se justifique ponderar. Este tipo de indemnização será fixado segundo o bom senso e o prudente arbítrio do julgador, temperado com os critérios objetivos a que se alude no art. 494º.
E a indemnização por danos não patrimoniais tem em vista compensar de alguma forma o lesado pelos sofrimentos e inibições que sofrera em consequência do evento danoso, compensação que só será alcançada se a indemnização for adequada e significativa do ponto de vista financeiro e não meramente simbólica. Tal compensação deve “ser proporcionada à gravidade do dano, tomando-se em conta, na sua fixação, todas as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida” –cfr. P. Lima e A. Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, Coimbra, p. 501.
Ora, de harmonia com o princípio geral expresso no art. 562º, do C Civil, a obrigação de indemnizar implica a reconstituição da situação que existiria se não se tivesse verificado a lesão, repondo-se as coisas no lugar em que estariam se não se tivesse produzido o dano. Visa-se a eliminação deste, devendo a indemnização equivaler ao montante do dano imputado ( nº2 do art. 566º). O art. 566º, consagra o princípio da reconstituição natural do dano, mandando o art. 562º reconstituir a situação hipotética que existiria se não fosse o facto gerador da responsabilidade e não sendo possível a reconstituição natural, não reparando a mesma integralmente os danos ou sendo excessivamente onerosa para o devedor, deve a indemnização ser fixada em dinheiro – nº1. do art. 566º. Consagra a lei, em sede de indemnização em dinheiro, a teoria da diferença tomando como referencial “a data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal e a que nessa data teria se não existissem danos” – art. 566º, nº2. Quer dizer que a diferença se estabelece entre a situação real atual e a situação hipotética correspondente ao mesmo momento – Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. I, 9ª Edição Almedina, p. 937.
Importa ainda considerar, reitera-se, os danos futuros (nº2, do art. 564º), desde que previsíveis e o nº3, do art. 566º confere ao tribunal a faculdade de recorrer à equidade quando não seja possível, designadamente face à imprecisão dos elementos de cálculo, fixar o valor exato dos danos.
Na responsabilidade civil extracontratual, designadamente a emergente de eventos como o dos autos e no âmbito dos danos patrimoniais, previstos nos artigos 483.º, n.º 1, e 562.º a 564.º, encontram-se os danos resultantes das sequelas sofridas que impliquem perda de capacidade de ganho. E neste particular importa distinguir a incapacidade fisiológica ou funcional (geral) e a incapacidade para o trabalho.
Na incapacidade fisiológica ou funcional, a repercussão negativa da respetiva incapacidade permanente centra-se na diminuição da condição física, da resistência e da capacidade de esforços do lesado, o que se traduzirá numa deficiente ou imperfeita capacidade de utilização do corpo no desenvolvimento das atividades pessoais em geral e numa consequente, previsível, maior penosidade, dispêndio e desgaste físico na execução das atividades diárias, incluindo, eventualmente, as suas tarefas profissionais. É esse agravamento da penosidade (de carácter fisiológico ou físico-psíquico) e consequente maior esforço, maior sacrifício/penosidade no desempenho das atividades profissionais e, ainda, uma menor qualidade/conforto de vida em geral, decorrente da afetação da saúde, que deve radicar-se o arbitramento da indemnização (autónoma) pelo dano biológico. Este é o entendimento, que vem sendo perfilhado pela jurisprudência, designadamente do Supremo Tribunal de Justiça e que assente na ideia de que a existência de uma incapacidade física, em consequência de lesões provocadas no corpo e na saúde do lesado, afeta, necessariamente, a sua capacidade funcional, pois que este verá afetadas as condições normais de saúde necessárias ao desenvolvimento adequado e normal daquela, sempre lhe exigindo um esforço ou transtorno acrescido, independentemente da sua repercussão negativa a nível salarial –cfr. elucidativamente Acórdãos do STJ de 21.01.2016, 26.01.2017, 25.05.2017, entre outros, todos in www.dgsi.pt.
Quanto à compensação pelos danos não patrimoniais estabelece o art. 496º, do Código Civil, sendo deste diploma todos os preceitos citados sem outra referência, que na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito. E o nº 4, do referido artigo, que O montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494º; no caso de morte, podem ser atendidos não só os danos não patrimoniais sofridos pela vítima, como os sofridos pelas pessoas com direito a indemnização nos termos número anterior.
Resulta, assim, do referido nº1 a admissibilidade genérica do ressarcimento dos danos não patrimoniais. Como dele decorre, os danos não patrimoniais são indemnizáveis, quando, pela sua gravidade, sejam merecedores da tutela do direito.
Antunes Varela define danos não patrimoniais como sendo “os prejuízos (como dores físicas, desgostos morais, vexames, perda de prestígio ou de reputação, complexos de ordem estética) que, sendo insuscetíveis de avaliação pecuniária, porque atingem bens (como a saúde, o bem estar, a liberdade, a beleza, a honra, o bom nome) que não integram o património do lesado, apenas podem ser compensados com a obrigação pecuniária imposta ao agente, sendo esta mais uma satisfação do que uma indemnização”- Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, p. 541. Tais danos só são indemnizáveis quando, pela sua gravidade, merecerem a tutela do direito, sendo a aludida gravidade um conceito relativamente indeterminado, a apurar, objetivamente, caso a caso, de acordo com a realidade fáctica apurada. A gravidade mede-se por um critério objetivo, de normalidade e bom senso prático. A gravidade deve “medir-se por um padrão objetivo e não de acordo com fatores subjetivos, ligados a uma sensibilidade particularmente aguçada ou especialmente fria ou embotada do lesado, sendo tais danos compensados com a obrigação pecuniária imposta ao agente, e tratando-se mais de uma satisfação do que de uma indemnização, a ser calculada segundo critérios de equidade, atendendo-se ao grau de responsabilidade do lesante, à sua situação económica e à do lesado, às flutuações do valor da moeda, etc”, ob cit p. 600.
A transformação pessoal e social da realidade tem-se repercutido na jurisprudência que hoje já considera naturalmente merecedores de tutela a perceção que o lesado, mesmo em estado de não (pelo menos completa) consciência, possa ter da situação em que se encontra, do grau de irreversibilidade das lesões, a destruição de um projeto de vida de casal, a impotência sexual de que fique a padecer o lesado bem como o consequente dano de seu cônjuge ou companheiro, o dano biológico, isto é a perda de qualidade de vida do sujeito – cfr. Acórdão da Relação da Relação de Guimarães de 21.09.2018 que se segue de perto.
Do dano consubstanciado na incapacidade permanente para o trabalho habitual.
Desde logo cumpre referir que em consequência da atuação objeto dos autos provocada pelo arguido/demandado AA o demandante BB ficou a padecer de uma incapacidade permanente para exercer a profissão habitual que exercia aquando do evento, concretamente a de jornaleiro/tratorista - trabalhador agrícola. A resposta à questão da medida da indemnização em dinheiro é dada pelos números 2 e 3 artigo 566.º do Código Civil. Segundo o n.º 2, “sem prejuízo do preceituado noutras disposições, a indemnização em dinheiro tem como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos”. O n.º 3 estabelece que “se não puder ser averiguado o valor exato dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados”
Ora pese embora resulte da factualidade provada que esta incapacidade já se mostra fixada em 87,6092%, em sede laboral, e estando aqui em apreço a responsabilidade civil, a verdade é que não se mostra possível definir matematicamente aqui e agora o valor exato deste prejuízo. Pois havendo ainda a possibilidade do exercício de outras profissões, desconhecendo-se em concreto quais (apenas aventando o exame médico legal possibilidades abstratas) e ainda com muita relevância, quais os esforços acrescidos que terá de levar a efeito para as realizar, não sendo assim possível determinar a diferença entre o ganho profissional antes do evento em apreço e os ganhos previsíveis após a consolidação das lesões não é possível determinar com exatidão estes últimos ganhos. E mesmo que se soubesse que o demandante começou a trabalhar e começou a ganhar depois da consolidação das lesões, ou que tal tinha sucedido, continuava a não ser possível determinar exatamente a evolução no futuro dos seus ganhos, pois não é possível prever quantos anos é que o autor ainda trabalhará e que remunerações é que auferirá em concreto até ao final da sua vida ativa. Há, pois, uma variedade de circunstâncias que impedem a averiguação do valor exato dos danos. Logo, justifica-se que o tribunal também recorra aqui à equidade ao abrigo do n.º 3 do artigo 566.º do Código Civil.
Com relevância a propósito o que caracteriza o julgamento segundo a equidade é, para usarmos as palavras de Pires de Lima e Antunes Varela, a não subordinação aos critérios normativos fixados na lei (Código Civil Anotado Volume I, 4.ª Edição Revista e atualizada, Coimbra Editora, página 55). Assim se a lei manda que a questão se solucione de acordo com a equidade, respeitando embora os limites que se considerem provados, resulta claro que o tribunal não está vinculado, fora aquela determinação, a confinar-se ao resultado do uso que se faça de qualquer fórmula, nomeadamente daquelas que se utilizam em tabelas financeiras.
E consigna a unanimemente a jurisprudência que a fixação da equidade deve ter em conta as regras da boa prudência, de bom senso prático, da justa medida das coisas e de criteriosa ponderação das realidades da vida.
Isto posto, tendo presente a idade do demandante – 29 anos - circunstância relevante para a determinação do prejuízo, visto que é previsível que os efeitos patrimoniais da incapacidade irão ser experimentados pelo autor até ao fim da sua idade ativa, que esta, ponderada a crescente idade da reforma (mas que não tem de ser com esta coincidente) se pode firmar pelo menos 75 anos; a data da indicada incapacidade para o exercício da profissão habitual, esta e o valor auferido aquando do evento (€745 – setecentos e quarenta e cinco euros mensais) – julga-se justa e adequada atribuir a indemnização a fixar ao demandante a este nível em €320 000 (trezentos vinte mil euros).
Para além do enunciado dano importa ainda atentar que o demandante BB padeceu de défice Funcional Temporário total (correspondente ao período durante o qual o ofendido, em virtude do processo evolutivo das lesões no sentido da cura ou da consolidação, viu condicionada a sua autonomia na realização dos atos correntes da vida diária, familiar e social, excluindo-se aqui a repercussão na atividade profissional) - anteriormente designado por Incapacidade Temporária Geral Total e correspondendo com os períodos de internamento e/ou de repouso absoluto), entre 18/08/2017 e 25/08/2017, sendo assim fixável num período de 8 dias (por internamento no Hospital ...); e de Défice Temporário Parcial (anteriormente designado por Incapacidade Temporária Geral Parcial), correspondente ao período que se iniciou logo que a evolução das lesões passou a consentir algum grau de autonomia na realização desses atos, ainda que com limitações), entre 26/08/2017 e 21/09/2020, assim fixável num período 1123 dias;
As lesões sofridas pelo demandante e decorrentes do evento descrito e em apreço tiveram uma repercussão temporária na atividade profissional total – correspondendo ao período durante o qual em virtude do processo evolutivo das lesões no sentido da cura ou da consolidação, viu condicionada a sua autonomia na realização dos atos inerentes à sua atividade profissional habitual - anteriormente designada por Incapacidade Temporária Profissional Total (correspondendo aos períodos de internamento e/ou de repouso absoluto, entre outros), entre 18/08/2017 e 21/09/2020, fixável num período total de 1131 dias;
O demandante teve ainda sofrimento físico e psíquico à data da ocorrência e entre esta e a cura sendo o quantum doloris fixável no grau 6 numa escala de sete graus de gravidade crescente;
Apresenta um dano estético permanente (corresponde à repercussão das sequelas, numa perspetiva estática e dinâmica, envolvendo uma avaliação personalizada da afetação da imagem da vítima quer em relação a si próprio, quer perante os outros fixável no grau 6, numa escala de sete graus.
E as sequelas sofridas tem repercussão permanente nas atividades desportivas e de Lazer fixável no grau 4, numa escala de sete graus de gravidade crescente.
BB ficou ainda a padecer de um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica (o atrás aludido dano biológico absolutamente distinto da já enunciada e antes conhecida IPTH) e que se traduz na perda de autonomia e independência na sua vida diária, tornando-o dependente de ajudas técnicas e de terceira pessoa a qual foi medicamente fixada em 81 pontos (numa escala de 100), e que se encontram amplamente concretizadas na factualidade provada.
A tudo acresce as implicações que as lesões e sequelas tiveram e continuam a ter na sua vida pessoal e familiar não com o anterior dano coincidentes, designadamente as que se repercutiram e repercutem nas vivências com o filho, que influenciaram o fim do seu casamento, não se apresentando despicienda a necessidade (humilhante para a dignidade pessoal de qualquer pessoa) de quase mendigar apoio e ajuda perante a auto desresponsabilização da seguradora da entidade laboral, apenas lhe tendo valido para minimizar o apoio da Instituição Hospital Pública (Hospital ...) onde continua a ser seguido e de terceiros.
Não pode também descurar-se o prejuízo de afirmação pessoal, do mesmo modo que não se pode olvidar o prejuízo da saúde geral e da longevidade, considerando as consequências das lesões. No geral, importa atender ao facto de ao autor ter sido imposta, para toda a sua vida, uma diminuição, considerável, da sua qualidade de vida (não só menor desfrute dos prazeres da vida, como maiores sacrifícios físicos e psíquicos no normal acontecer dos dias).
A situação espelhada na matéria de facto provada demonstra que as componentes do dano não patrimonial alcançaram níveis deveras relevantes.
Atendendo a todos estes considerandos e olhando para os padrões jurisprudenciais relativos aos montantes indemnizatórios atinentes a danos não patrimoniais semelhantes - tomando por referência casos que envolvem situações mais ou menos idênticas e cuja gravidade se apresenta similar ao caso dos autos (sem prejuízo das variantes a introduzir próprias do caso), a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, tem oscilado, em tais hipóteses, entre montantes indemnizatórios de 115 mil euros ( Ac. do STJ de 24.04.2012); de 180 mil euros (Ac. do STJ de 23.10.2008), de 150 mil euros (Ac. do STJ de 7.10.2010), de 120 mil euros [AC STJ de 16.03.2011) ou, ainda, de 250 mil euros (Ac. STJ de 25.11.2009) todos disponíveis no já indicado sítio da dgsi.
Ora tendo presente que se apresenta ultrapassado o “apego” aos valores da indemnização pela perda do direito à vida como valor máximo a fixar pelos danos não patrimoniais, já que os danos aqui verificados são bem diversos nesta matéria cfr. as elucidativas e clarividentes já a este este propósito proferidas designadamente acórdãos do STJ de 24.04.2012 e AC STJ de 12.03.2009 e que expressivamente realça que não vigora no nosso ordenamento jurídico nenhuma norma positiva ou princípio jurídico que, no âmbito dos danos não patrimoniais, impeça a atribuição duma compensação ao lesado sobrevivente superior ao máximo daquela que habitualmente tem sido atribuída pelo Supremo Tribunal de Justiça para indemnizar o dano da morte. Isso pode suceder quando, tendo em conta o art.496.º, n.º 1, do CC, a perda da qualidade de vida do lesado atinja um patamar excecionalmente elevado, expresso nas dores, sofrimentos físicos e morais e limitações de vária natureza a que tiver ficado sujeito para o resto da vida em consequência do ato lesivo - constituindo aliás danos que não existiriam se o demandado tivesse falecido. Não podemos estar mais de acordo.
O que vale pois por dizer que, no caso dos autos, ponderando todas as suas circunstâncias do caso, a idade do lesado (29 anos à data do evento), a elevadíssima gravidade dos danos em apreço, que tudo se ficou à conduta ilícita e culposa dos responsáveis civis, considerando que os valores aplicados em casos similares pela jurisprudência e indicados se reportam a 2008-2012 (há alguns anos atrás, portanto), numa perspetiva atualizadora, aos valores que o Supremo Tribunal de Justiça tem arbitrado em casos similares ao dos presentes autos, avaliando as regras do bom senso prático, da prudência e da criteriosa ponderação das realidades da vida (reitera-se), tendo presente que a fixação de um tal benefício material/pecuniário importa ser fixado com vista a proporcionar as utilidades, prazeres ou distrações - porventura, de ordem espiritual -, uma compensação ou um lenitivo adequado e proporcional pelos bens imateriais da pessoa humana (o lesado) que foram atingidos de forma drástica, irreversível e gravíssima, pelo evento em causa. Feitas estas considerações e não perdendo de vista os anunciados critérios jurisprudenciais e sem prejuízo da especial dificuldade que sempre representa a avaliação em termos materiais/pecuniários daquilo que é imaterial ou espiritual – realidades como a dor, o desgosto, o sofrimento em particular quando atingem, como é o caso, de forma tão grave a vida do demandante e o seu próprio futuro – apresenta-se justa e adequada a fixação da indemnização a titulo de danos não patrimoniais em €290.000,00.
Da não cumulação de indemnizações invocada pela demandada Seguradora.
Como se escreve no acórdão do STJ de 06.03.2007, consultável no sitio da dgsi e que é totalmente claro e por isso se transcreve, “Não podem ser cumuladas a indemnização que for atribuída ao lesado com base no acidente considerado como acidente de viação (sendo o nosso caso perfeitamente equiparável porquanto estamos também aqui em sede de responsabilidade civil), e a que lhe foi atribuída em sede de processo de trabalho pela respectiva incapacidade, pois tal implicaria duplicação de indemnizações pelo mesmo dano: as duas indemnizações apenas se poderão complementar até ressarcimento integral do dano causado, podendo o lesado optar pela que lhe for mais favorável, mas deduzida dos montantes que eventualmente já tenha recebido da outra entidade obrigada ao pagamento.
É posição pacífica e sucessivamente reiterada de que as indemnizações consequentes ao acidente de viação (e também aplicável ao caso dos autos) e ao sinistro laboral – assentes cada uma em critérios distintos e com a sua funcionalidade própria – não são cumuláveis, mas antes complementares até ao ressarcimento integral do dano/prejuízo causado, pelo que não deverá tal concurso de responsabilidades conduzir a que o lesado/sinistrado possa acumular no seu património um duplo ressarcimento pelo mesmo dano concreto.
Por outro lado, ainda, é indiscutido que a responsabilidade primacial e definitiva é a que incide sobre o responsável civil, quer com fundamento na culpa, quer com base no risco, assumindo, assim, a responsabilidade da entidade patronal ou da respetiva seguradora, caracter subsidiário ou transitório. Como assim, a entidade patronal ou a seguradora podem repercutir sobre o responsável civil ou a respetiva seguradora aquilo que, a título de responsável objetivo e subsidiário, tenham pago ao sinistrado.
A partir deste figurino de concurso ou concorrência de responsabilidades (que de per si não envolve um concurso ou uma acumulação real de indemnizações pelos mesmos danos concretos) é usual a doutrina e a jurisprudência referirem que o mesmo preenche, no essencial, a figura da solidariedade imprópria ou imperfeita, pois que: - no plano das relações externas, o lesado pode exigir, em alternativa, a indemnização ou ressarcimento dos danos de quaisquer dos responsáveis, civil ou laboral, optando por aquele de quem pretende em primeira linha obter a indemnização, mas sem que lhe seja lícito somar, em termos de acumulação real, ambas as indemnizações; - no plano das relações internas, a circunstância de haver um escalonamento de responsabilidades, sendo um dos responsáveis o responsável primacial ou definitivo pelos danos causados (o responsável civil ou a sua seguradora), conduz a que tenha que se outorgar ao responsável provisório (a entidade patronal ou a respetiva seguradora) o direito ao reembolso das quantias que tiver pago, fazendo-as repercutir definitivamente, direta ou indiretamente, no património do responsável ou responsáveis civis pelo acidente. – cr. A propósito o esclarecedor e sustentado por profícua doutrina e jurisprudência Acórdão da Relação do Porto de 18 de Abril de 2017, também consultável in dgsi e que se segue de perto.
Uma ultima palavra para a ilegitimidade invocada pela sociedade A... assente na existência de contrato de seguro. Carece esta de qualquer fundamento porquanto o contrato aqui celebrado com a seguradora não se trata de um contrato obrigatório, mas facultativo a existência do seguro não a libera ainda que o eventual pagamento por parte da seguradora extinga na medida do pagamento que for efetuado a obrigação da tomadora do seguro – cfr. Acórdão da Relação de Guimarães in dgsi.
Isto posto são os demandados AA, a sociedade “A..., Ldª” e a seguradora B... Companhia de Seguros, S.A. (esta na medida do capital seguro, deduzido do montante já pago no âmbito da anuidade garantida e ainda da indicada franquia (ou seja, €54 450, cinquenta e quatro mil quatrocentos e cinquenta euros) solidariamente responsáveis pelo pagamento da quantia global de €610 000 (seiscentos e dez mil) euros.
Dos juros.
À quantia fixada global fixada acrescerão juros, como peticionado, à taxa legal desde a notificação do pedido de indemnização civil até efetivo e integral pagamento - Em conformidade com o art. 806º, nº2 do Código Civil, os juros devidos são os legais.
Atento o disposto no art. 559º, nº1 do C. Civil, os juros legais e os estipulados sem determinação de taxa são os fixados em portaria.
Da Responsabilidade Tributária.
De acordo com o disposto nos artigos 513.º e 514.º do Código de Processo Penal, o arguido é condenado nas custas do processo se for condenado em 1.ª instância, sendo a condenação individual e o respetivo, quantitativo fixado de acordo com o Regulamento das Custas Processuais. No caso, concreto, é o arguido AA o responsável pelas custas criminais porquanto vai condenado.
Considerando o disposto no artigo 8.º, n.º 5 do Regulamento das Custas Processuais e o teor da Tabela III anexa àquele Regulamento, as custas devem fixar-se entre 2 a 6 UC considerando a complexidade da causa.
Tudo ponderado, é de condenar o arguido em três unidades de conta, acrescendo o montante dos encargos a que a sua atividade deu lugar.
No que diz respeito às custas cíveis, cabe apenas salientar que é de aplicar as regras do Código de Processo Civil (artigo 523.º do Código de Processo Penal).
Nos termos do artigo 527.º do Código de Processo Civil, as custas pelo pedido cível devem ser suportadas por Demandantes e Demandada na proporção do respetivo decaimento, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário de que gozem.
* DECISÃO: (…).
*
Cumpre apreciar.
No naipe que questões suscitadas sobre impugnação da matéria de facto pelo arguido AA, cumpre desde logo, apreciar a demarcação dos conceitos de erro de interpretação da prova, insuficiência para a decisão da matéria de facto na apreciação da prova, e erro notório, cabe traçar os limites de cada uma destas categorias, para que a sua análise não se confunda e sobreponha.
Os Tribunais superiores de forma pacífica e mantida vêm estabelecendo a destrinça entre a arguição da categoria de vícios que incidam sobre a decisão e dos vícios que inquinem o julgamento. A este propósito o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 29/03/2011 proferido no processo nº288/09.1GBMTJ.L1-5 sustentou que “a matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: no âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no artigo 410º, nº2, do C.P.P., no que se convencionou chamar de «revista alargada»; ou através da impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412º, nºs3, 4 e 6, do mesmo diploma; No primeiro caso, estamos perante a arguição dos vícios decisórios previstos nas diversas alíneas do nº2 do referido artigo 410º, cuja indagação, como resulta do preceito, tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para a fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento. Ora, os vícios previsto no nº2 do citado art.410 ( concretamente na alínea a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; na alínea b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; e na alínea c) Erro notório na apreciação da prova) são vícios da decisão sobre a matéria de facto “vícios da decisão e não de julgamento, não confundíveis nem com o erro na aplicação do direito aos factos, nem com a errada apreciação e valoração das provas ou a insuficiência destas para a decisão de facto proferida -, de conhecimento oficioso, que hão-de derivar do texto da decisão recorrida por si só considerado ou em conjugação com as regras da experiência comum.”
No elenco dos vícios da decisão, o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), ocorre quando a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito e quando o tribunal, podendo fazê-lo, não investigou toda a matéria de facto relevante, acarretando a normal consequência de uma decisão de direito viciada por falta de suficiente base factual, ou seja, os factos dados como provados não permitem, por insuficiência, a aplicação do direito ao caso que foi submetido à apreciação do julgador. Dito de outra forma, este vício ocorre quando a matéria de facto provada não basta para fundamentar a solução de direito e quando não foi investigada toda a matéria de facto contida no objecto do processo e com relevo para a decisão, cujo apuramento conduziria à solução legal;
Por sua vez, o vício do erro notório na apreciação da prova, a que se reporta a alínea c) do artigo 410.º, verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se apercebe de que o tribunal, na análise da prova, violou as regras da experiência ou de que efectuou uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios, verificando-se, igualmente, este vício quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das leges artis. O requisito da notoriedade afere-se, como se referiu, pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum, ao homem médio.
Diversamente, a impugnação da matéria de facto prevista no art.412º nº3 do CPP, consiste na apreciação, tal como sustentou o acórdão que temos vindo a citar”,que não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos nºs3 e 4 do art. 412º do C.P. Penal. A ausência de imediação determina que o tribunal de 2ª instância, no recurso da matéria de facto, só possa alterar o decidido pela 1ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida e não apenas se a permitirem [al. b) do n.º3 do citado artigo 412.º]”.
Portanto, traçados os contornos do quadro dogmático dos diversos vícios que poderão compor o objecto de recurso, cabe primeiramente apreciar os vícios reportados no art.410º nº2 do CPP.
Quanto ao alegado vício de insuficiência da decisão da matéria de facto previsto no art.410º nº2 respeita à alínea a) do CPP, diversamente do que sustenta o recorrente, não se vislumbra qual o parâmetro de insuficiência decisório, dado que não indica na peça de recurso qual o facto ou factos em causa cuja omissão alegadamente ocorre, e não se apontando um qualquer facto em falta, cuja pronúncia seria necessária à decisão da causa. Depois, a alegação deste vício é feita com recurso a elementos externos à própria fundamentação, o que como se viu, coloca o vício arguido noutra sede do objeto de recurso. De essencial, o recorrente quando sustenta a insuficiência da matéria provada para a decisão tomada, sobre os artefactos explosivos encontrados e não deflagrados, e sobretudo, sobre a questão do explosivo em causa pertencerem, ou não, à “A...”, reclama sobretudo da insuficiência dos meios de prova para a conclusão desse juízo probatório, mas estes fundamentos pertencem a impugnação sobre a decisão da matéria de facto com sede no art.412º do CPP, pelo que, não se verifica a invocada nulidade.
No invocado vício de erro notório a impugnação do recorrente, designadamente quanto aos pontos referentes à correspondência da carga pirotécnica que lesou o ofendido como proveniente do lançamento feito dias antes pelo arguido; assim como, as condições de detonação da carga com ignição pelo próprio lesado, são asserções que na sua maior parte não se baseiam apenas nos limites do texto do acórdão, antes, são “contaminadas” pela análise que deriva dos meios de prova, os quais como elementos externos à decisão em si, não podem ser aferidos no âmbito do invocado vício, sobretudo quando convoca o confronto entre os depoimentos de várias testemunhas, e outros elementos clínicos, assim como autos de exame ao local. Também, quanto à ontologia do ponto 14 dos factos provados, embora subsistam incorreções no uso das regras da lógica e da experiência comum, especialmente no contexto da explosão da carga pirotécnica e na disseminação dos estilhaços do cartão sobre o tronco da vítima, com ambas as mãos decepadas, e que resultam do próprio texto da fundamentação, onde a configuração das concretas lesões físicas impunham, necessariamente, outra conclusão probatória, diversa da que foi tomada pelo Tribunal “A Quo”, no entanto, porque essa apreciação depende também da análise de outros elementos externos ao próprio texto, igualmente, não se deferirá a subsunção ao erro notório, embora se devam retirar as devidas conclusões em sede de erro de julgamento nos termos do art.412º do CPP.
O recorrente pretende, afinal, suscitar a reapreciação ampla da prova, cuidando, inclusivamente, de cumprir os já supra referidos ónus de especificação previstos no artigo 412.º, n.º3 e 4, do C.P.P.
Portanto, não padecendo o acórdão de quaisquer dos vícios previstos no art.410º do CPP, nesta parte deve improceder o recurso.
*
Seguidamente cabe apreciar a nulidade da sentença arguida pelo recorrente nos termos do artigo 379.º, n.º 1, alínea c) do Código de Processo Penal, sustentando a violação do disposto no artigo 358.º, n.º 2 do mesmo diploma legal, referindo que a alteração de factos sendo substancial, haveria de se cumprir o formalismo do art.359º do CPP o que não sucedeu.
Considerou o Tribunal “A Quo” que alteração de factos inscreve-se nos factos que já constavam da acusação, tendo procedido a uma alteração das qualificação jurídica.
Como se referiu vem o recorrente sustentar a nulidade da alteração de factos, por, no seu entender, configurar uma alteração substancial e a preterição das respetivas formalidades, também sustentando ser exíguo o prazo que lhe fora concedido.
Apreciando, os factos que já constavam da acusação, e feito o cotejo entre os factos desta peça com o despacho que determinou a alteração, o figurino desta alteração empreendida é, como foi afirmado pelo Tribunal “A Quo”, apenas uma reorganização da ordem dos factos, que acabam por ter a mesma correspondência ontológica, sem que as alterações ultrapassem a forma de redação, ou seja, apenas ocorre alteração de redação e não de factos, exceto no ponto do contexto de proximidade da vítima com a carga no momento da explosão que, na versão que resulta do despacho de alteração, o ofendido apenas se aproxima sem pegar na mesma com as mãos, o que traduz uma alteração de factos, mas não substancial, porque em ambas as versões sustenta-se a iniciação espontânea da carga, sem ignição pela vítima, ou seja, a imagem sócio-normativa do delito em nada é modificada com o novo facto aditado.
Basta ver na correspondência entre as duas peças (acusação e despacho de 7/07/2023): nos factos mais críticos do despacho de alteração: o seu ponto 1º (corresponde ao 3ºda acusação), o ponto 10º (corresponde aos 9º e 10º da acusação); o 11º (corresponde ao 12º da acusação); o 12º (corresponde à reformulação do 30º da acusação); o 13º (corresponde ao 13º da acusação); o 14º (corresponde aos factos 27º e 15 da acusação, embora aqui haja sido alterada o contexto de proximidade com a carga explosiva); ao 17º (corresponde o 34º da acusação); ao 18º (corresponde o 35 e 38º da acusação); ao 20º e 21º (corresponde o 37º da acusação); o 22º (corresponde ao 37º da acusação com a redação reformulada).
A par da alteração do facto da acusação constante do ponto 15 (que, como se referiu, é não substancial), do despacho em causa não resulta qualquer outra alteração de factos, sendo que, quer para o ponto 14, quer para a alteração da qualificação jurídica foram cumpridas as pertinentes formalidades previstas no art.358º do CPP. Sobre a economia do prazo concedido, deve ponderar-se que a dimensão da alteração é circunscrita. Naturalmente que a dimensão do prazo poderia ser ofensivo do direito de defesa, se estivéssemos perante uma acusação com um objeto extenso factual, ou perante alterações de qualificações jurídicas intrincadas e complexas, o que não é o caso, motivo, porque a este respeito soçobram as conclusões de recurso.
*
Cumprindo agora apreciar a impugnação nos termos do art.412º nº3 do CPP, a qual constitui o ponto central do objeto do recurso de AA e de parte do recurso da Companhia de Seguros, estabelecendo os pressupostos dos poderes de cognição do Tribunal Superior
Como realçou o STJ, no acórdão de 12-06-2008, Proc. nº 07P4375 (in www.dgsi.pt) a sindicância da matéria de facto, na impugnação ampla, ainda que debruçando-se sobre a prova produzida em audiência de julgamento, sofre quatro tipos de limitações:
- a que decorre da necessidade de observância pelo recorrente do mencionado ónus de especificação, pelo que a reapreciação é restrita aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorrectamente julgados e ás concretas razões de discordância, sendo necessário que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam;
- a que decorre da natural falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o «contacto» com as provas ao que consta das gravações;
- a que resulta da circunstância de a reponderação de facto pela Relação não constituir um segundo/novo julgamento, cingindo-se a uma intervenção cirúrgica, restrita á indagação ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo á sua correcção se for caso disso;
- a que tem a ver com o facto de ao tribunal de 2ª instância, no recurso da matéria de facto, só ser possível alterar o decidido pela 1ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida (al. b), do nº 3, do citado artº 412º).
Com efeito, no Acórdão da Relação de Évora, de 1 de Abril do corrente ano (processo n.º 360/08-1.ª, www.dgsi.pt) sustentou-se «Impor decisão diversa da recorrida não significa admitir uma decisão diversa da recorrida. Tem um alcance muito mais exigente, muito mais impositivo, no sentido de que não basta contrapor à convicção do julgador uma outra convicção diferente, ainda que também possível, para provocar uma modificação na decisão de facto. É necessário que o recorrente desenvolva um quadro argumentativo que demonstre, através da análise das provas por si especificadas, que a convicção formada pelo julgador, relativamente aos pontos de facto impugnados, é impossível ou desprovida de razoabilidade. É inequivocamente este o sentido da referida expressão, que consubstancia um ónus imposto ao recorrente

Não basta ao recorrente formular discordância quanto ao julgamento da matéria de facto para que o tribunal de recurso tenha de fazer «um segundo julgamento», com base na gravação da prova.
O poder de cognição do Tribunal da Relação, em matéria de facto, não assume uma amplitude tal que implique um novo julgamento e faça tábua rasa da livre apreciação da prova, da oralidade e da imediação. O recurso com esses fundamentos apenas constitui remédio para os vícios do julgamento em 1ª instância [cfr. Germano Marques da Silva, in Forum Iustitiae, Ano I, Maio de 1999].
Com efeito, «o recurso de facto para a Relação não é um novo julgamento em que a 2ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1ª instância, como se o julgamento ali realizado não existisse; antes se deve afirmar que os recursos, mesmo em matéria de facto, são remédios jurídicos destinados a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros» [cfr, neste sentido, Ac. do STJ de 15-12-2005, Proc. nº 05P2951 e Ac. do STJ de 9-03-2006, Proc. nº 06P461, acessíveis em www.dgsi.pt]
O Tribunal de recurso apreciando os fundamentos da impugnação da matéria de facto e os meios de prova indicados nos termos do art.412º nº3 do CPP (quando conste do objecto de recurso), deve aferir se o Tribunal “a quo” apreciou e interpretou os meios de prova conforme os padrões e as regras da experiência comum (a regra da experiência expressa aquilo que normalmente acontece, é uma regra extraída de casos similares), não extraindo conclusões estranhas ou fora dos depoimentos, subsistindo sempre um plano de convencimento do Tribunal a quo, segundo a livre convicção do julgador que não cabe a este Tribunal de recurso reformular.
Em sede de apreciação da prova rege o princípio da livre apreciação, expressamente consagrado no artigo 127.º do C.P.P.
Este princípio impõe que a apreciação da prova se faça segundo as regras da experiência comum e em obediência à lógica. E se a convicção do Tribunal “a quo” se estribou nestes pressupostos, como já se enfatizou, o Tribunal “ad quem” não pode sindicar ou sobrepor outra convicção.
Com as limitações que decorrem da falta de mediação e da impugnação parcelar dos factos, o Tribunal de recurso somente poderá alterar a decisão de facto quando se “imponha” (usando a expressão legal), ou seja, quando o processo decisório de reconstituição do acontecer histórico da 1ª Instância se fundou fora da razoabilidade em juízos destituídos de lógica, ou distintos dos padrões da experiência comum.
Quanto às alegadas incongruências e concretas divergências enfatizadas pelo recorrente AA, centradas no distanciamento do julgamento da matéria de facto proferido pelo Tribunal “A Quo” ao concreto conteúdo dos depoimentos das testemunhas prof.GG, assim como das testemunhas da GNR e técnicos de pirotecnia, pelo conteúdo dos elementos clínicos, este Tribunal de recurso tendo ouvido esses depoimentos, considera que o silogismo probatório carece de reanálise cuidada.
No entanto, na discutida correspondência entre o explosivo deflagrado lesante, com as cargas que foram lançadas dias antes, o juízo probatório do Tribunal “A Quo” não merece censura, porquanto, a soma de cargas por denotar e outros vestígios como balonas, que foram encontradas pela equipa da GNR no local do sinistro, a algumas dezenas de metros onde ocorrera o lançamento, constitui uma soma de elementos que torna irrefutável a proveniência da carga explosiva, sendo que uma balona tinha uma legenda com referências à empresa A.... A única incerteza que poderia diminuir as muito elevadas probabilidades de correspondência da carga em causa com o lançamento pirotécnico realizado pelo arguido, seria o caso (que não sucedeu) de ter ocorrido um outro lançamento concorrente, igualmente de cargas pirotécnicas nas imediações, também, naqueles dias ou proximamente. Portanto, a convicção do Tribunal “A Quo” neste ponto é inatacável, aqui improcedendo as conclusões do recurso de AA e igualmente do recurso da Companhia de Seguros nesta parte também impugnou os factos.

Quanto à matéria mais crítica, primeiramente deve referir-se que o modo como ocorre a explosão do artefacto pirotécnico sobre o corpo do ofendido, muito embora a denotação de uma carga pirotécnica seja perigosa, a sua potencia energética não tem comparação com uma granada militar. Depois, atendendo ao depoimento de testemunha FF, experimentado técnico de pirotecnia, ciente que está da concreta libertação de energia deste tipo de cargas pirotécnicas, foi relevante a análise que o mesmo procedeu quando, em audiência de julgamento, demoradamente observou as fotos da vítima existentes nos autos e interpretou as lesões visíveis à luz da dinâmica da referida explosão (a par do exame clínico que consta dos autos, que nada infirmou a esse respeito), análise que, face à aludida prova documental, é muito plausível na dinâmica dessa explosão. Assim, parece manifesto que, dada a proximidade da deflagração, decepando ambas as mãos e parte dos membros superiores, com estilhaços de cartão sobre o corpo da vítima, que o marcaram no tronco, o ofendido estaria com a carga nas mãos, pegando-a, no momento da detonação. Somente nessa posição, as mãos estariam reunidas e próximas do corpo, e por isso à mercê do potencial mais lesivo da carga pirotécnica, que, em situação diferente, ou seja, com a mera aproximação da vítima à carga, o potencial lesivo teria outro tipo de impacto. Já numa granada militar, a libertação de energia é de tal magnitude, que em hipóteses de aproximação, as vítimas sofrem numerosas amputações.
Portanto, aqui procedendo as conclusões de recurso sobre a redação do ponto 14 dos factos provado, deverá ser alterada a sua redação, na forma que se analisou.

Depois, ainda sobre o núcleo de factos mais críticos, referente à natureza instável, ou não, da carga pirotécnica, este Tribunal de recurso tendo ouvido o depoimento da testemunha com mais qualificação técnica o professor GG, constata que o mesmo mostrou equilíbrio e objetividade, evidenciando o seu conhecimento técnico científico perante a profusão de hipóteses e cenários que lhe foram colocados nas instâncias a que foi sujeito, sem que se notasse qualquer tentativa de exagero ou tendência para agravar a posição de algumas das intervenientes, formulando os seus juízos técnicos perante o material explosivo em causa com isenção e espontaneidade.
Com efeito, sendo inquestionável que o material pirotécnico explosivo, encontra-se cercado de uma malha apertada de regras de segurança (norma técnica de nº3/2018 publicado pelo comando da PSP sobre a utilização dos artigos de Pirotécnia; assim como o Dec.Lei nº135/2015, de 28 de julho), o que evidencia o seu perigo abstrato, no entanto, in caso, importava indagar sobre o grau de instabilidade do material explosivo, a ponto do mesmo poder deflagrar autonomamente por qualquer fator externo que o degradasse (v.g. temperaturas elevadas), ou pelo simples manusear do projétil, ou, inversamente, se seria necessária a sua ignição (por fricção, impacto ou fogo) para deflagrar, para, a partir daí, se aferir do seu concreto grau de perigosidade.
Na ausência de conhecimento sobre o concreto motivo de ignição da peça ou artefacto pirotécnico, como se referiu, assume especial importância o depoimento do Prof.GG, que exaustivamente inquirido, veio referir que este tipo de explosivo só deflagra por fricção, impacto ou ignição pelo calor, sendo que somente uma exposição a 200ºC é que permitem a sua detonação. Mesmo nas hipóteses de aquecimento solar, a testemunha continuou a referir que face ao material em causa não é suscetível que acontecer uma iniciação espontânea, embora, admita que se possam fazer experiência a esse respeito, e se essa foi a questão com que veio a terminar o seu depoimento, contudo, esse tema foi repetido por diversas vezes em várias questões colocadas, e, invariavelmente, sempre respondeu a testemunha da mesma forma. O Tribunal “A Quo” entendeu essa parte final do seu depoimento como descredibilizante, quando, ilação contrária, será a que se deve retirar. Com efeito, a admissão de realização de experiências, integram o espírito científico da testemunha, mas cujo depoimento não sofreu a inflexão que o Tribunal “A Quo” pareceu ver. A este respeito, sobre as degradações que os materiais com carga energética podem ter, a testemunha ainda referiu que nas pilhas de carvão com mais de dois metros de altura, com o decurso do tempo, podem libertar energia, e por isso calor, logo, recomenda-se que sejam regadas com água com intervalos de tempo, fenómeno que não sucede no espaço confinado de pequenas cargas pirotécnicas, como era o projétil em causa.
Interessando indagar o grau de instabilidade do material explosivo, no depoimento da testemunha GG excluíram-se os acidentes que ocorrem nas instalações pirotécnicas em ambientes fechados, onde as poeiras da atmosfera desses espaços fechados e o pó de pólvora acumulado, são extremamente instáveis (não já o material que está acondicionado no cartucho); também exclui do material pirotécnico a perigosidade dos explosivos militares, onde aqueles não são comparáveis com o elevado grau de instabilidade, próprio dos explosivos de dinamite, TNT ou militares, cujo manuseamento é sempre problemático.
Os depoimentos dos agentes da GNR pertencendo ao EOD (inativadores de explosivos) não obstante haverem classificado o artigo de pirotécnica de material instável, a sua razão de ciência e conhecimentos técnicos estão claramente aquém das habilitações académicas, e sobretudo do grau de conhecimentos científicos evidenciados no depoimento do professor GG, o qual como se referiu, depôs com isenção e objetividade, esclarecendo as múltiplas questões que lhe foram colocadas, sempre respondendo com argumentos científicos, contrariamente ao que fora referido pelos referidos agentes que procuraram conotar a instabilidade do material pirotécnico com acontecimentos imprecisos (nos quais mostraram razão de ciência não atendível) e sobretudo com os frequentes acidentes que acontecem nas instalações de pirotécnica, mas que a referida testemunha GG desmentiu, referindo que o perigo que decorre dessas instalações tem que ver com os pós acumulados, e as poeiras em suspensão na atmosfera no interior dessas instalações que, sendo material muito instável (esse sim), podem ser muito perigosas, podendo uma simples faísca ou fricção funcionar como ignição dessas poeiras (o mesmo acontecendo com as poeiras de açúcar ou de carvão).
Também se constata que as balonas e estes petardos, ou bombetas, no campo de lançamento, são manuseados pelos funcionários autorizados sem que, na sua retirada das caixas e nos movimentos de preparação para o lançamento sejam usados instrumentos de pega, sem o emprego de qualquer pinça ou garra. E, no momento de lançamento são acionadas dezenas de ignições de balonas que transportam várias cargas (os chamados tiros) a alturas de 50 metros (ou superior), aí ocorrendo as ignições dessas cargas (com rastilho muito curto, como presumivelmente era o rastilho da carga com que o ofendido tomou contacto), explodindo umas junto a outras, e, apesar desse ambiente hostil, de deslocação de ar, com rebentamento próximo, existem cargas que não são detonadas, e mesmo quando se precipitam no solo dessa altitude não se detonam. No entanto, os depoimentos dos agentes da GNR, em particular do KK insistiu na degradação dos compostos explosivos da carga, pela exposição aos elementos, onde os conteúdos da carga pela oscilação de temperaturas e humidade, associada a fenómenos de contração e dilatação, no seu entender, alteram a estabilidade dessas cargas, contribuindo para iniciações espontâneas, no que foi refutado pela testemunha GG.
Contudo, não obstante as qualidades e importância do depoimento da referida testemunha GG, crê-se que o conjunto da prova testemunhal, não obstante o empirismo de depoimentos de várias testemunhas, faz subsistir um plano de dúvidas sobre a concreta ignição do material explosivo usado nas “bombetas”, associada à questão de uma eventual degradação da matéria explosiva pela exposição, por vários dias, às diferenças de temperaturas e humidade, e se essa eventual degradação poderá tornar o material instável, a ponto do mesmo ficar sujeito a iniciações espontâneas, importará indagar esse facto de forma mais concludente, ou seja, em sede pericial (apesar dos depoimentos das testemunhas técnicos de pirotecnia EE e FF sustentarem o contrário, ou seja, que as cargas perderiam capacidade explosiva até ficarem material inertes). Ora, o desconhecimento sobre os termos concretos em que se deu a ignição do projeto e o plano de dúvidas suscitado nas questões conexas, não podem funcionar a desfavor do arguido, dado que competia à acusação a prova dos elementos constitutivos do crime.
Perante a soma de questões técnicas que se discutiram sobre o eventual grau de degradação das cargas, associada a iniciações espontâneas, torna-se mais ajustado em sede de convicção probatória que o esclarecimento dessas matérias ocorra em sede de prova pericial, e não apenas pelo mero confronto da prova testemunhal (mesmo que com prevalência do depoimento da testemunha GG).

No crime de explosão previsto no art.272º nº1 alínea b) d CP os índices de concretização típica do perigo para a vida ou integridade física, não obstante a perigosidade abstrata das cargas explosivas de pirotecnia, a existência de cargas explosivas não detonadas em determinados locais, a par do seu perigo abstrato inerente ser incontestável, pode transmutar-se em perigo concreto, pelas possibilidades de concretização do mesmo, seja quando essas cargas se situem em plena via de trânsito (atentas as possibilidades de fricção e impacto, em especial numa travagem), seja próximo de aglomerados populacionais, perante crianças, se forem esses os fatores de ignição.
Não sendo esse o caso, como não foi, caberá deslindar a eventual instabilidade do material explosivo perante a exposição aos elementos, com vista a indagar o perigo concreto que resulta de ignições espontâneas.
Nesta necessidade de maior indagação, que até oficiosamente incumbia ao Tribunal “A Quo”, situa-se a questão a apurar sobre o eventual grau de degradação do explosivo, e quanto ao potencial de iniciações espontâneas.
Neste ponto, a pretensão da companhia de seguros B... que outrora formulou, antes do julgamento, quando requereu a realização de perícias, e cuja apreciação está pendente, ganha agora oportunidade.
Com efeito, essa perícia e uma outra foram requeridas pela companhia de seguros demandada, vindo essas pretensões ser indeferidas pelo despacho proferido a 12/07/2022 que no essencial sustentou:
Por outro lado, e quanto ao exame de avaliação de dano corporal na pessoa do demandante, também esta já se encontra realizada, já prejuízo de caso se apresente necessário serem solicitados esclarecimentos ao Sr. Perito Subscritor – cfr. fls. 556 e ss.
*
No que respeita ao pretendido exame pericial do sinistro no confronto com os quesitos apresentados e bem assim com o objecto dos autos impõe-se dizer que os pontos 1º, 2º e 3º não são susceptíveis de ser respondidos por peritos/engenheiros porquanto arredados deste especial juízo técnico. Quanto à determinação da composição das balonas em termos de carga explosiva; qual a composição da substância explosiva e gramagem do tiro, sem prejuízo do que através de outros meios de prova, possa ser apurado, e da sua efectiva pertinência (ou não) mostra-se desde logo inviável, já que foi necessária a destruição dos encontrados no local por haver perigo no seu manuseamento e transporte.
Termos em que se indeferem os pretendidos meios de prova nos termos expostos.
Notifique.”. Ora, desta decisão a demandada veio interpor recurso (cujo interesse agora renovou), insistindo pela realização desses exames.
Apreciando essa pretensão recursiva, se os fundamentos de rejeição do exame de avaliação de dano corporal parecem ajustados, até pelo que consta da matéria dada como provada a esse respeito; já quando ao 2º exame pericial, em parte deverá ser deferido, embora com um objeto mais restrito do que o proposto pela recorrente, e com uma incidência atual (nos termos atrás referidos e com a formulação que adiante se enunciará), fruto da discussão em audiência (até porque grande parte do objeto proposto já se mostra ultrapassado), merecendo, por isso, esse recurso da demandada provimento parcial.

Deste modo, embora se devam manter os pontos 1 a 11, 13, 15, 16, 17, 19, 24 do elenco dos factos provados do acórdão, nesta parte, improcedendo as conclusões do recurso do arguido, contudo, com elementos que constam dos autos é, desde já, possível proceder à alteração da matéria de facto no ponto 14 do elenco dos factos provados, nessa parte procedendo o recurso interposto pelo arguido, facto que passará a ter a seguinte redação:
“14 - Então, a cerca de 46,70 m do local do seu lançamento o ofendido BB segurava com as mãos o artigo pirotécnico (que havia sido lançado nos termos referidos em 10), quando o mesmo explode.”.
*
Como se deixou referido, para indagação da matéria constante dos pontos dos factos provados do acórdão, este Tribunal de recurso determina a anular o acórdão, também se anulando o julgamento, mas apenas para indagação dos seguintes pontos (e que tem ver com o grau de instabilidade da carga pirotécnica, associada às questões do perigo, e do elemento subjetivo):
- do ponto 12;
- do ponto 14.1 com a seguinte redação (e que deriva do que constava em parte do ponto 14 do elenco dos factos provados do acórdão) “A explosão carga aludida na circunstância do ponto 14 ocorreu com iniciação espontânea.”;
- dos pontos 18, 20 a 23 dos factos provados;

Procedendo parcialmente o recurso interposto pela Companhia de Seguros B... do despacho de julho de 2022, concomitantemente, haverá o Tribunal “A Quo” de ordenar uma perícia científica com nomeação de perito do meio académico (departamento de física da faculdade de engenharia mecânica, da área de explosivos), com vista a responder ao seguinte objeto da perícia:
“- indagar se as bombetas ou cargas explosivas de pirotecnia congéneres, após o seu lançamento e uma vez não deflagradas, deixadas nas imediações do local de lançamento no mês de Agosto de 2017, na região em causa nos autos, com as condições atmosféricas que se fizeram sentir nessa época do ano, com as diferenças de temperatura e exposição a humidade, se passados 11 dias, eram essas cargas pirotécnicas suscetíveis de se tornarem instáveis, a ponto de se iniciarem espontaneamente.”.

Em consequência, por ora, fica prejudicado a apreciação da restante parte do recurso do arguido quanto à condenação do pedido cível; assim como fica prejudicada a apreciação da restante parte do recurso da demandada companhia de seguros interposto do acórdão.

DISPOSITIVO.

Pelo exposto, acordam os Juízes Desembargadores na 1ª secção criminal do Tribunal da Relação do Porto em julgar o recurso do arguido AA parcialmente procedente quanto ao julgamento da decisão da matéria de facto, determinando que, embora se devam manter os pontos 1 a 11, 13, 15, 16, 17, 19, 24 e subsequentes pontos do elenco dos factos provados do acórdão, nesta parte improcedendo as conclusões do recurso do arguido AA, assim como as conclusões referentes à nulidade por preterição das formalidades do art.359º do CPP, assim como as conclusões a este respeito do recurso interposto pela companhia de seguros do acórdão, contudo determina-se a alteração da matéria de facto no ponto 14 dos factos provados, o qual passará a ter a redação supra mencionada.
Em consequência, determina-se anular o acórdão, também se anulando o julgamento apenas para indagação dos seguintes pontos da matéria de facto:
- do ponto 12;
- do ponto 14.1 com a seguinte redação (e que deriva do que constava em parte do ponto 14 do elenco dos factos provados do acórdão) “A explosão carga aludida na circunstância do ponto 14 ocorreu com iniciação espontânea.”;
- dos pontos 18, 20 a 23.

Concede-se parcial provimento ao recurso interposto pela Companhia de Seguros B... a 29/07/2022 do despacho proferido a 12/07/2022, devendo o Tribunal “A Quo” determinar a realização de perícia científica com nomeação de perito do meio académico (departamento de física de uma faculdade de engenharia mecânica, da área de explosivos), com vista a responder ao seguinte objeto da perícia.
“- indagar se as bombetas ou cargas explosivas de pirotecnia congéneres, após o seu lançamento e uma vez não deflagradas, deixadas nas imediações do local de lançamento no mês de Agosto de 2017, na região em causa nos autos, com as condições atmosféricas que se fizeram sentir nessa época do ano, com as diferenças de temperatura e exposição a humidade, se passados 11 dias, eram essas cargas pirotécnicas suscetíveis de se tornarem instáveis, a ponto de se iniciarem espontaneamente.”

Em consequência, por ora, fica prejudicada a apreciação da restante parte do recurso do arguido quanto à condenação do pedido cível; assim como fica prejudicada a apreciação da restante parte do recurso da demandada companhia de seguros interposto do acórdão.

Sem custas.

Notifique.

Porto, 19 de Junho 2024.
(Elaborado e revisto pelo 1º signatário)
Nuno Pires Salpico
José Quaresma
Pedro Afonso Lucas