Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2139/18.7T8OAZ.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ISABEL SILVA
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
CRÉDITOS TRIBUTÁRIOS E DA SEGURANÇA SOCIAL
Nº do Documento: RP202406202139/18.7T8OAZ.P1
Data do Acordão: 06/20/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: A exclusão dos créditos tributários e da segurança social da exoneração do passivo restante mostra-se justificada no plano do direito nacional para efeitos da compatibilidade do art.º 245º nº 2 al. d) do CIRE com o art.º 23º nº 4 da Diretiva (EU) 2019/1023 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20/06/2019.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação nº 2139/18.7T8OAZ.P1

ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

I – Resenha histórica do processo
1. Por sentença datada de 18 de junho de 2018, transitada em julgado, foi declarada a insolvência de AA, que se encontrava detido em estabelecimento prisional, em cumprimento de pena.
Tendo o Insolvente requerido a exoneração do passivo restante, por decisão de 23 de janeiro de 2019, igualmente transitada, foi decidido:
«declarar encerrado o processo, nos termos do art.º 230º nº 1 al. d) e 232º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE);
declarar fortuita a insolvência;
«- admitir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante formulado pelo insolvente, mais se determinando que durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido ao Sr. Administrador da Insolvência, o qual nomeio como fiduciário em acumulação de funções de Administrador de Insolvência nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 240º do CIRE (cfr. ainda o art.º 239º, do mesmo diploma).
- que integra o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer tipo ao insolvente, com exclusão do mencionado no n.º 3, do art. 239º do citado diploma.
- fixar em um salário mínimo nacional a quantia referida na alínea b) i) do citado n.º 3 do art.º 239º do CIRE.».
Em agosto de 2020 foi concedida liberdade condicional ao insolvente.
Em 29 de julho de 2022, o Sr. Fiduciário veio apresentar parecer final, nos seguintes termos:
«- Na sequência dos relatórios apresentados pelo Fiduciário, o insolvente não procedeu a quaisquer depósitos de quantias excedentes durante o período da cessão, uma vez que não apresentou rendimentos para o efeito.
- Pelo que, considerando a situação vivida pelo insolvente e tendo em conta que conseguiu agora um emprego, aparentando vontade de dar um novo rumo à sua vida, entende o Fiduciário que deverá ser concedida ao devedor, a exoneração do passivo restante.»
Em 03 de outubro de 2022 foi proferida a sentença, aqui recorrida, que decidiu:
«concede-se ao/à/s devedor/a/es AA a exoneração do passivo restante, declarando-se extintos todos os créditos sobre a insolvência que ainda subsistam, sem exceção dos que não tenham sido reclamados e verificados, sendo aplicável o disposto no artigo 217º, nº 4 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aplicável por força do disposto no artigo 245º, nº 1 do mesmo diploma legal, não abrangendo a exoneração os créditos previstos no art.º 245º n.º 2 do CIRE.»

2. Inconformado com tal decisão, dela apelou o Insolvente, formulando as seguintes CONCLUSÕES:
«I- O despacho recorrido, ao não excluir da exoneração do passivo as dívidas tributárias e à segurança social [artigo 245.º, 2 d) do CIRE], efetua uma interpretação incorreta dos artigos 20.º, 1; 21.º, 2 e 23.º n.ºs 2 e 4 da diretiva (UE) 2019/1023 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de junho de 2019, sobre os regimes de reestruturação preventiva, o perdão de dívidas e as inibições, e sobre as medidas destinadas a aumentar a eficiência dos processos relativos à reestruturação, à insolvência e ao perdão de dívidas, publicada no Jornal Oficial da União Europeia, em 26 de junho de 2019.
II- Através da Lei n.º 9/2022, publicada em Diário da República n.º 7/2022, 1.ª série, o legislador procedeu à transposição da Diretiva 2019/1023, de 20 de junho de 2019, que veio estabelecer medidas de apoio e agilização dos processos de reestruturação das empresas e dos acordos de pagamento, no entanto, no diploma de transposição da diretiva, o legislador nacional é omisso sobre o perdão total da dívida, previsto na diretiva, que contempla a possibilidade de concessão ao devedor pessoa singular de uma exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo, ou nos trinta meses subsequentes ao seu encerramento.
III- Através da diretiva prevê-se que os Estados-membros asseguram que os empresários insolventes tenham acesso a, pelo menos, um processo suscetível de conduzir ao perdão total da dívida, sendo que os Estados-Membros podem excluir determinada categoria de dívida da exoneração do passivo restante, ou restringir o acesso ou fixar um prazo para o perdão mais prolongado, caso essas exclusões, restrições ou prolongamento de prazos sejam devidamente justificados.
IV- A diretiva é clara na ideia de perdão total, permitindo apenas restrições no caso de serem devidamente justificadas, que não comprometam a ideia basilar do instituto da exoneração do passivo restante, de fresh start.
V- O legislador português, na lei que transpôs a diretiva para o ordenamento jurídico nacional mantém uma regra distinta para os seus créditos, face ao tratamento que dá aos demais credores, mantendo em vigor a norma jurídica que estatui que as dívidas tributárias e da segurança social não estão abrangidos pela exoneração do passivo restante, sem apresentar qualquer justificação e, muito menos ainda, devidamente justificada, como decorre dos artigos 20.º, 1 e 23.º, 2 e 4 da diretiva 2019/1023.
VI- As normas jurídicas supra citadas devem ser interpretadas no sentido de, pretendendo o legislador nacional manter em vigor o artigo 245.º, 2 d) do CIRE, teria de na legislação que procedeu à transposição da diretiva (UE) 2019/1023 de justificar devidamente a sua opção, o que não sucedeu, de todo, pelo que o disposto no referido normativo do CIRE não está conforme com o direito europeu, pelo que V. Excelências devem desaplicar a norma do CIRE, por desconformidade com o direito da União Europeia.
VII- A subsistirem dúvidas sobre a interpretação do direito europeu, o recorrente sugere que V. Excelências devem, nos termos do artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia suspender a instância, e submeter ao Tribunal de Justiça da União Europeia as questões prejudiciais sugeridas nas motivações, com relevância para a solução jurídica da questão submetida a apreciação no recurso.
Termos em que, deve o presente recurso ser provido e, em consequência, declarar-se que o despacho final de exoneração do passivo abrange os créditos tributários e à segurança social, assim se fazendo Justiça!»

3. O Ministério Público (Mº Pº), que representava o requerente da insolvência, contra-alegou, sustentando a improcedência do recurso.

4. Por acórdão desta Relação datado de 14 de dezembro de 2022 foi decidido submeter à apreciação do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) as seguintes questões:
1) O nº 4 do art.º 23º da Diretiva deve ser interpretado no sentido que só é permitida a exclusão de outras dívidas (além das elencadas nas alíneas) quando estiverem “devidamente justificados”?
2) A possibilidade de os Estados-Membros excluírem determinadas categorias de dívidas do perdão da dívida (desde que tal exclusão seja devidamente justificada, tal como previsto no artigo 23º, n.º 4, da Diretiva 2019/1023) deve ser interpretada no sentido de permitir que os Estados-Membros excluam os créditos tributários (não indicados no respetivo artigo), criando uma situação privilegiada para si próprios?
3) Se porventura a resposta a estas questões for positiva, importa saber que critérios satisfariam tal exigência de justificação, na aceção do direito da União Europeia, por forma a respeitarem (tais justificações) os princípios gerais do direito da União e a proteção dos direitos fundamentais, aos quais o legislador europeu e nacional estão sujeitos ["não discriminação em razão da nacionalidade" (artigo 18.º do TFUE) e "liberdade de empresa" (artigo 16º da CDFUE), para além das liberdades económicas fundamentais do mercado interno].
4) Se porventura a resposta àquela questão for negativa, importa saber se a definição (na aceção do direito da União Europeia e para os efeitos de interpretação da diretiva em apreço) de "dívidas decorrentes de sanções penais ou com elas relacionadas", bem como de "dívidas decorrentes de “responsabilidade delitual", abrange também as dívidas tributárias, tal como prevê o ato legislativo interno de transposição da Diretiva 2019/1023 (Lei n.º 9/2022, de 11 de janeiro).

5. Enviados os autos ao TJUE, por acórdão de 08/05/2024, foi decidido o reenvio nos seguintes termos:
1) O artigo 23º nº 4 da Diretiva (EU) 2019/1023 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de junho de 2019, sobre os regimes de reestruturação preventiva, o perdão de dívidas e as inibições, e sobre as medidas destinadas a aumentar a eficiência dos processos relativos à reestruturação, à insolvência e ao perdão de dívidas, e que altera a Diretiva (EU) 2017/1132 (Diretiva sobre a reestruturação e insolvência),
deve ser interpretado no sentido de que:
Só é possível a exclusão do perdão da dívida de uma determinada categoria de dívida diferente das inumeradas nessa disposição quando estiver devidamente justificada ao abrigo do direito nacional.

2) O artigo 23º nº 4 da Diretiva 2019/1023
deve ser interpretado no sentido de que:
Os Estados Membros têm a faculdade de excluir do perdão da dívida determinadas categorias de dívida, tais como os créditos tributários e da segurança social, atribuindo-lhes, assim, um estatuto privilegiado, desde que essa exclusão seja devidamente justificada ao abrigo do direito nacional.

6. As partes e o Mº Pº foram ouvidos sobre o teor do acórdão do TJUE.
O Insolvente considerou que não se deve julgar justificada a exclusão dos créditos tributários e da Segurança Social da exoneração do passivo restante.
Já o Mº Pº concluiu em sentido contrário, pela verificação da exclusão dos créditos tributários e da segurança social.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO
7. Apreciando o mérito do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas questões suscitadas nas conclusões dos recorrentes, e apenas destas, sem prejuízo de a lei impor ou permitir o conhecimento oficioso de outras: art.º 615º nº 1 al. d) e e), ex vi do art.º 666º, 635º nº 4 e 639º nº 1 e 2, todos do Código de Processo Civil (CPC).
Dilucidadas as questões intercalares no âmbito do reenvio prejudicial, cumpre agora decidir se a Lei nº 9/2022, de 11 de janeiro [1], ao manter os créditos tributários e da segurança social excluídos da exoneração do passivo restante [2] viola a Diretiva (UE) 2019/1023, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de junho de 2019 [3].

§ 1º - Os preceitos relevantes da Diretiva (EU) 2019/1023 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de junho de 2019:
Segundo os artigos 20º a 22º:
● Os Estados-Membros devem assegurar que os empresários insolventes tenham acesso a, pelo menos, um processo suscetível de conduzir ao perdão total da dívida;
● No caso dos Estados-Membros que condicionem o perdão total da dívida ao reembolso parcial da dívida, devem assegurar que essa obrigação de reembolso tenha em conta a situação individual do empresário, sendo proporcional aos seus rendimentos e ativos disponíveis, bem como o interesse equitativo dos credores;
● O período após o qual os empresários insolventes podem beneficiar do perdão total das dívidas não pode ser superior a três anos.
Depois, em derrogação destes princípios, estipula o art.º 23º nº 4 da Diretiva:
Os Estados-Membros podem excluir determinadas categorias de dívida do perdão da dívida, ou restringir o acesso ao perdão da dívida ou fixar um prazo para o perdão mais prolongado, caso essas exclusões, restrições ou prolongamentos de prazos sejam devidamente justificados, nomeadamente no caso:
a) Das dívidas garantidas;
b) Das dívidas decorrentes de sanções penais ou com elas relacionadas;
c) Das dívidas decorrentes de responsabilidade delitual;
d) Das dívidas respeitantes a obrigações de alimentos decorrentes de uma relação familiar, parentesco, casamento ou afinidade;
e) Das dívidas contraídas após a apresentação do pedido de abertura de um processo conducente a um perdão da dívida ou após a abertura de tal processo; e
f) Das dívidas decorrentes da obrigação de pagar as custas do processo conducente a um perdão da dívida.
O “processo suscetível de conduzir ao perdão total da dívida” foi implementado em Portugal de forma inovatória e muito antes da Diretiva, através do Decreto-Lei nº 53/2004, de 18 de março, que aprovou o atual Código da Insolvência e Recuperação de Empresas (CIRE).
Tal processo constitui um incidente do processo de insolvência, denominado exoneração do passivo restante e regulado pelos artigos 235º a 248º do CIRE.
Foi sendo sujeito a algumas alterações, a última das quais, no que aqui releva, pela Lei nº 9/2022, de 11 de janeiro, que atualizou o período de exoneração de 5 para 3 anos, em conformidade com a Diretiva.
E já na sua versão original estipulava o art.º 245º do CIRE:
1 - A exoneração do devedor importa a extinção de todos os créditos sobre a insolvência que ainda subsistam à data em que é concedida, sem excepção dos que não tenham sido reclamados e verificados, sendo aplicável o disposto no n.º 4 do artigo 217.º
2 - A exoneração não abrange, porém:
a) Os créditos por alimentos;
b) As indemnizações devidas por factos ilícitos dolosos praticados pelo devedor, que hajam sido reclamadas nessa qualidade;
c) Os créditos por multas, coimas e outras sanções pecuniárias por crimes ou contra-ordenações;
d) Os créditos tributários.
A redação deste art.º 245º sofreu apenas uma alteração, introduzida pelo Decreto-Lei nº 84/2019, de 28 de junho, que alterou a al. d) do nº 2, passando a excluir agora da exoneração:
d) Os créditos tributários e da segurança social.

§ 2º - Dos normativos citados podemos então concluir que Portugal já antes da Diretiva tinha instituído um procedimento suscetível de conduzir ao perdão total das dívidas dos insolventes, pessoas individuais.
No que toca à possibilidade de excluir do perdão determinadas categorias de dívida, designadamente os créditos tributários e da segurança social, o acórdão do TJUE de 08/05/2024 concluiu aquilo que já se sabia e resulta dos textos legais.
Na verdade, resulta claro do art.º 23º nº 4 da Diretiva que existe a possibilidade de os Estados-Membros poderem excluir determinadas categorias de dívida do perdão da dívida.
A relevância do acórdão do TJUE reside na clarificação de que qualquer exclusão do perdão diferente das referidas nas alíneas do nº 4 do art.º 23º da Diretiva, só é está conforme com o Direito da EU se estiver devidamente justificada ao abrigo do direito nacional.
Só é possível a exclusão do perdão da dívida de uma determinada categoria de dívida diferente das inumeradas nessa disposição quando estiver devidamente justificada ao abrigo do direito nacional.
Restará então apurar agora qual o critério que satisfaz tal exigência de justificação. Ou, por outras palavras, a justificação da exclusão terá de constar do CIRE? Ou da Lei que implementa as exclusões? Ou poderá constar dos princípios gerais de outros diplomas, designadamente da Constituição da República Portuguesa (CRP) ou da Lei Geral Tributária (LGT)?
Estas interrogações mostram-se escalpelizadas nos pontos 37 e 38 do acórdão que apreciou o reenvio nestes autos, em termos de o TJUE concluir que a justificação da exclusão poderá constar dos princípios gerais do direito nacional ou de outros diplomas. Assim, aí se escreveu:
«37 Com efeito, como salientado no nº 34 do presente acórdão, resulta da referida diretiva que a justificação que deve ser facultada por um Estado-Membro em apoio de uma exclusão como a que está em causa no processo principal deve resultar do processo que lhe deu origem ou do direito nacional. Assim, no que respeita à primeira hipótese, quando, ao abrigo do direito nacional, os trabalhos preparatórios, os preâmbulos e as exposições de motivos dos atos legislativos ou regulamentares fazem parte integrante destes ou são pertinentes para a sua interpretação e contêm uma justificação para a exclusão de uma determinada categoria de dívida do perdão da dívida, há que considerar que esta justificação está em conformidade com as exigências do artigo 23º, nº 4, da mesma diretiva (…). Por outro lado, no que respeita à segunda hipótese, a referida justificação pode também figurar noutras disposições do direito nacional além da que contém essa exclusão, como uma disposição constitucional, legislativa ou regulamentar nacional.
38 No caso vertente, resulta dos autos de que dispõe o Tribunal de Justiça, por um lado, que o artigo 103º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa prevê que o sistema fiscal visa a satisfação das necessidades financeiras do Estado e outras entidades públicas e uma repartição justa dos rendimentos e da riqueza, e, por outro, que os artigos 5º e 30º da LGT enunciam objetivos e os princípios que justificam a exclusão dos créditos tributários e da segurança social do perdão da dívida, tais como a satisfação das necessidades financeiras do Estado, a promoção da justiça social e da igualdade de oportunidades e as necessárias correções das desigualdades na distribuição da riqueza e do rendimento com respeito pelos princípios da generalidade, da igualdade, da legalidade, da justiça material e da indisponibilidade do crédito tributário. Afigura-se, portanto, a priori, que existe, no direito português, uma justificação para esta exclusão. Todavia, cabe ao órgão jurisdicional de reenvio, que tem competência exclusiva para interpretar e aplicar o direito nacional, apreciar se a referida exclusão está devidamente justificada ao abrigo do direito nacional.» (sublinhados nossos)
Quer o CIRE, quer a Lei mº 9/2022, quer o Decreto-Lei nº 84/2019, são absolutamente omissos de qualquer justificação, designadamente nos respetivos preâmbulos.
Vejamos então como articular os demais preceitos e diplomas legais que regulam sobre a matéria.
O direito à segurança social é um direito fundamental dos cidadãos, visando a sua proteção na doença, velhice, invalidez, viuvez e orfandade, bem como no desemprego e em todas as outras situações de falta ou diminuição de meios de subsistência ou de capacidade para o trabalho, e incumbindo ao Estado a respetiva organização, coordenação e subsidiação: art.º 63º da CRP.
No que toca aos impostos, determina o art.º 103º da CRP visam eles a satisfação das necessidades financeiras do Estado e outras entidades públicas e uma repartição justa dos rendimentos e da riqueza.
Daí se extrai também o princípio da legalidade, na medida em que são criados por lei, que determina a incidência, a taxa, os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes.
Em conformidade, prescrevem os art.º 5º e 8º da LGT que a tributação visa a satisfação das necessidades financeiras do Estado com vista a promover a justiça social, a igualdade de oportunidades e as necessárias correções das desigualdades na distribuição da riqueza e do rendimento, respeitando os princípios da generalidade, da igualdade, da legalidade e da justiça material.
O princípio da indisponibilidade do crédito tributário, constitui um corolário dos princípios da igualdade e legalidade previstos na CRP e mostra-se assim definido no art.º 30º da LGT:
2 - O crédito tributário é indisponível, só podendo fixar-se condições para a sua redução ou extinção com respeito pelo princípio da igualdade e da legalidade tributária.
3 - O disposto no número anterior prevalece sobre qualquer legislação especial.
«Com efeito, afirma-se de modo indubitável em Direito Tributário a existência de um princípio da indisponibilidade das situações jurídicas, no sentido em que estas (i)são exercidas oficiosamente, (ii) são intransmissíveis inter-vivos e (iii) são irrenunciáveis.» [4]
Ainda que reportada a um caso de processo especial de revitalização, vale aqui a conclusão jurisprudencial:
«I - Os n.ºs 2 e 3 do art. 36.º da LGT são peremptórios ao estabelecer que os elementos essenciais da relação jurídica tributária não podem ser alterados por vontade das partes e que a AT não pode conceder moratórias no pagamento das obrigações tributárias (cfr. também o n.º 3 do art. 85.º do CPPT), salvo nos casos expressamente previstos na lei.
II - A indisponibilidade dos créditos tributários, consagrada no n.º 2 do art. 30.º da LGT («O crédito tributário é indisponível, só podendo fixar-se condições para a sua redução ou extinção com respeito pelo princípio da igualdade e da legalidade tributária»), foi reafirmada pelo n.º 3 aditado àquele artigo pela Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro (Lei do Orçamento do Estado para 2011), que estipula: «O disposto no número anterior prevalece sobre qualquer legislação especial».
III - O processo especial de revitalização instituído pelos arts. 17.º-A a 17.º-I, aditados ao CIRE pela Lei n.º 16/2012, de 20 de Abril, não autoriza a AT a conceder qualquer moratória na cobrança das dívidas tributárias para além das já previstas na lei.» [5]
Quanto ao argumento do Recorrente de haver que ter em conta “a inobservância de diversas recomendações internacionais”, designadamente o Memorando de Entendimento da «Troika» de 2011 (Banco Central Europeu, Comissão Europeia e Fundo Monetário Internacional), pode responder-se que as recomendações não têm força vinculativa de lei e que, pese embora as promessas, o legislador português entendeu não alterar o art.º 245º do CIRE.
Sendo também de registar a grande diferença entre medidas ou planos de reestruturação da dívida e a extinção dos créditos operada em sede de exoneração do passivo restante.
Concorda-se que, em muitos casos, a não extinção dos créditos tributários e da segurança social, pode privar a eficácia o instituto da exoneração do passivo restante, designadamente num caso como o presente em que existe apenas um credor comum (um trabalhador, com um crédito de € 3.503,40) e um total de créditos tributários e da segurança social na ordem dos € 53.396,22.
No entanto, não cabe aos Tribunais imiscuir-se nas opções legislativas, antes havendo que concluir ter sido clara a opção legislativa no sentido da blindagem do legislador neste tipo de créditos, designadamente quando aditou o nº 3 ao art.º 30º, pela Lei nº 55-A/2010, de 31.12, como forma de reação à posição que os Tribunais vinham tomando quanto aos planos de insolvência. [6]
E, pese embora a jurisprudência maioritária continue a aceitar que o plano da insolvência pode ser aprovado e homologado ainda que contemple redução do crédito tributário e/ou moratórias, existe uma grande diferença entre esse regime e o da exoneração, na medida em que no plano de insolvência, ele é homologado, mas com a declaração de ineficácia em relação à Fazenda nacional; na exoneração do passivo restante estamos a falar de extinção dos créditos.
Concluindo, a exclusão dos créditos tributários e da segurança social da exoneração do passivo restante mostra-se justificada no plano do direito nacional para efeitos da compatibilidade do art.º 245º nº 2 al. d) do CIRE com o art.º 23º nº 4 da Diretiva (EU) 2019/1023 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20/06/2019.

8. Sumariando (art.º 663º nº 7 do CPC)
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III. DECISÃO
9. Em face do exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente a apelação, mantendo-se a decisão recorrida.
Custas a cargo do Recorrente, face ao decaimento.

Porto, 20 de junho de 2024
Isabel Silva
João Venade
Paulo Duarte Teixeira
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[1] Que estabeleceu medidas de apoio e agilização dos processos de reestruturação das empresas e dos acordos de pagamento, transpondo a Diretiva (UE) 2019/1023, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de junho de 2019, alterando alguns diplomas, designadamente o Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
[2] Em conformidade com a alínea d) do nº 2 do art.º 245º do código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE).
[3] De futuro, aludida apenas como a Diretiva.
[4] Joaquim Freitas da Rocha, “A blindagem dos créditos tributários, o processo de insolvência e a conveniência de um Direito tributário flexível”, in I Colóquio de Direito da Insolvência de Santo Tirso, 2015, Almedina, pág. 182.
[5] Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 25/03/2015, processo 0278/15, disponível em www.dgsi.pt/, sítio a atender nos demais arestos que vierem a ser citados sem outra menção de origem.
[6] Sobre este tema, ver, por todos, o acórdão do STJ, de 17/04/2018, processo 5781/16.7T8VIS-D.C1.S1, bem como a demais jurisprudência e doutrina aí citadas.