Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
235/12.3TYVNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOÃO RAMOS LOPES
Descritores: PLANO DE INSOLVÊNCIA
SENTENÇA HOMOLOGATÓRIA
TÍTULO EXECUTIVO
SANÇÃO PECUNIÁRIA COMPULSÓRIA
Nº do Documento: RP20240910235/12.3TYVNG.P1
Data do Acordão: 09/10/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A sentença homologatória do plano de insolvência, constituindo título executivo para execução de pagamento de quantia certa, porque estipula e determina judicialmente pagamento de quantia monetária, é decisão que quadra no nº 4 do art. 829º-A do CPC.
II - Encerrado o processo, confrontado com o não cumprimento voluntário da obrigação pecuniária constante do plano, o credor pode exigir judicialmente do devedor o cumprimento (respeitando as restrições constantes do plano de insolvência) e, além da indemnização moratória a que haja lugar, será também devida, ex vi legis, a sanção pecuniária compulsória legal, pois que de aplicação geral.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação nº 235/12.3TYVNG.1.P1

Relator: João Ramos Lopes
Adjuntos: Márcia Portela
Lina Castro Baptista


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Acordam no Tribunal da Relação do Porto

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Apelante: A..., Ld.ª (executada).
Apelada Banco 1..., S.A. (exequente).

Juízo de comércio de Vila Nova de Gaia (lugar de provimento de Juiz 4) – Tribunal Judicial da Comarca do Porto


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A Banco 1... requereu execução contra A..., Ld.ª, pretendendo haver coercivamente a quantia de 1.112.132,95€ (um milhão cento e doze mil cento e trinta e dois euros e noventa e cinco cêntimos), dando à execução sentença homologatória de plano de insolvência, transitada em julgada, que incluía o pagamento que a si, exequente, era devido, tendo o processo sido declarado encerrado ao abrigo do disposto no art. 230º, nº 1, b) do CIRE por decisão de 13/10/2022, sustentando que a dívida remanescente ascende ao valor exigido, incidindo sore o capital em dívida os juros remuneratórios à taxa de 6,793€ e, ainda, os juros de mora à taxa legal aplicável.

Tramitados os autos, ante dúvida suscitada pela agente de execução quanto à exigibilidade de sanção pecuniária compulsória, o tribunal a quo proferiu o seguinte despacho:

(…) veio a senhora Agente de Execução suscitar dúvidas quanto à exigibilidade, no caso concreto, da liquidação de juros compulsórios, isto é, se face ao título executivo e valor recuperado é devido depósito de sanção pecuniária compulsória.

Pronunciou-se o Ministério Público nos termos que antecedem, no sentido de ser devida sanção pecuniária compulsória.


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Cumpre apreciar e decidir.

Dispõe o art. 829º-A, nº 4 do Código Civil que “Quando for estipulado ou judicialmente determinado qualquer pagamento em dinheiro corrente, são automaticamente devidos juros à taxa de 5% ao ano, desde a data em que a sentença de condenação transitar em julgado, os quais acrescerão aos juros de mora, se estes forem também devidos, ou à indemnização a que houver lugar”.

Nos termos desta norma, é devido o pagamento dos juros compulsórios, como bem explica o Ministério Público na douta promoção que antecede.

A questão que se coloca, cremos, é a de saber de quem é a responsabilidade de tal pagamento.

A presente execução tem como título executivo a sentença homologatória do plano de insolvência, proferida a 2/12/2013.

Desse plano de insolvência, conforme, de resto, reconhece a exequente no requerimento executivo, consta que a dívida à exequente passou a corresponder à op. n.º PT ...09 e a gerência da empresa manteve-se incumbida de proceder à venda das frações sobrantes de tal empreendimento, que constituem garantia hipotecária do financiamento, de modo a que ficasse pago.

Alegou a exequente que volvidos mais de dez anos, ainda restam por liquidar cinco imóveis.

Analisado o plano – refª 538234 de 30/5/2012, com as correcções de 20/6/2023, refª 618342, não se verifica que do mesmo decorram quaisquer obrigações para os executados pessoas singulares, mas apenas para a insolvente A..., Lda.

Daí que não verificamos a existência de título executivo quanto aos executados pessoas singulares, as quais não chegaram a ser considerados partes ilegítimas, porque no processo não houve lugar a despacho liminar, pela sua natureza.

Assim, só a insolvente/executada A..., Lda é a responsável pelo pagamento dos juros compulsórios, que são devidos nos termos do art. 829-A, nº 4 do Código Civil, devendo incidir sobre a quantia de €677.191,22, valor exequendo em singelo, dado que a sua contabilização sobre os juros moratórios constituiria dupla tributação de juros, legalmente inadmissível e cuja imputação deverá preceder a de capital, nos termos art. 785º/1 e 2 do Código Civil.

Em conclusão, é devido o pagamento dos juros compulsórios, nos termos do art. 829º, nº 4 do Código Civil, a cargo da insolvente/executada A..., Lda.

Apela a executada, pretendendo a revogação da decisão e sua substituição por outra que conclua pela ‘inexigibilidade de juros compulsórios na execução de uma sentença homologatória de plano de insolvência’, terminando as suas alegações formulando as seguintes conclusões:

A) Circunscreve-se a presente apelação a dirimir a questão de se saber se tem aplicabilidade, quanto à a execução de uma sentença homologatória de plano de recuperação, a sanção pecuniária compulsória prevista no nº 4 artigo 829º A do Código Civil.

B) O Douto Despacho ora recorrido perfilha o entendimento de que este preceito legal é aplicável, ao que a Recorrente discorda frontalmente.

C) Discorda porque a sentença homologatória não preenche com os requisitos exigidos pelo predito artigo 829º A nº 4 do CC o qual dispõe que “Quando for estipulado ou judicialmente determinado qualquer pagamento em dinheiro corrente, são automaticamente devidos juros à taxa de 5% ao ano, desde a data em que a sentença de condenação transitar em julgado, os quais acrescerão aos juros de mora, se estes forem também devidos, ou à indemnização a que houver lugar.”. (sublinhado nosso)

D) Os efeitos da sentença homologatória de um plano de recuperação são os decorrentes do disposto no artigo 217º do CIRE os quais, convenhamos, não têm qualquer relação direta com a determinação de um qualquer pagamento em dinheiro corrente.

E) Por outro lado, a consequência do trânsito em julgado da sentença homologatória, segundo resulta do disposto no artigo 230º nº 1 al. b) do CIRE, é o encerramento do processo de insolvência pelo que não tem, nem pode ter, qualquer relacionamento interpretativo, ao abrigo do disposto no artigo 9º nº 1 do Código Civil, com aquele que resulta de uma sentença condenatória em que seja determinado um pagamento em dinheiro corrente.

F) Acresce que, a consequência do incumprimento da sentença homologatória está bem expressa e prevista na própria legislação especial aplicável, ou seja, o CIRE, no seu artigo 218º nº 1 al. a), o qual refere que “Salvo disposição expressa do plano de insolvência em sentido diverso, a moratória ou o perdão previstos no plano ficam sem efeito:

a) Quanto a crédito relativamente ao qual o devedor se constitua em mora, se a prestação, acrescida dos juros moratórios, não for cumprida no prazo de 15 dias após interpelação escrita pelo credor;”

G) A admitirmos a aplicabilidade, “in casu” do artigo 829º nº 4 do CC, estaríamos a aceitar a uma cumulação de sanções, através da permissão da “intrusão” de uma lei geral na regulação de uma legislação especial que prevê, de forma expressa, as suas próprias consequências do incumprimento da sentença em causa, o que seria intolerável, até por violação do princípio da proporcionalidade.

H) Face ao exposto, é firme entendimento da Recorrente de que o Douto Despacho ora recorrido tem de ser revogado por expressa violação do disposto nos artigos 829º nº 4 do CC e próprio artigo 217º do CIRE.

Contra-alegou o Ministério Público pela improcedência da apelação.


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Colhidos os vistos, cumpre decidir.

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Da delimitação do objecto do recurso.

Considerando, conjugadamente, a decisão recorrida (que constitui o ponto de partida do recurso) e as conclusões das alegações (por estas se delimita o objecto dos recursos, sem prejuízo do que for de conhecimento oficioso - artigos 608º, nº 2, 5º, nº 3, 635º, nºs 4 e 5 e 639, nº 1, do CPC), identifica-se como questão a decidir apurar se na presente execução é ou não devida a sanção prescrita no nº 4 do art. 829-A do CC.


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FUNDAMENTAÇÃO

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Fundamentação de facto.

A factualidade relevante mostra-se exposta no relatório que precede.

Fundamentação de direito

A medida consagrada no nº 4 do art. 829-A do CC constitui uma sanção pecuniária compulsória legal, automaticamente devida, pois que fixada por lei (ao contrário da sanção pecuniária compulsória tout court, estabelecida e fixada pelo tribunal, que por isso se apelida de sanção judicial), de aplicação geral sempre que for estipulado ou judicialmente determinado qualquer pagamento em dinheiro corrente – não apenas quando for decretado pelo tribunal, mas também quando for estipulado tal pagamento[1].

Pretendeu o legislador, fundamentalmente, ao estabelecer a sanção, compelir ao cumprimento (incentivar o cumprimento voluntário) evitando o recurso à cobrança coactiva e salvaguardar a desvalorização da moeda, em épocas de inflação[2].

Trata-se de sanção que se consubstancia no adicional de 5% de juros, a acrescer aos juros de mora devidos ou à indemnização a que haja lugar, que, caso instaurada execução, o agente de execução deve calcular (art. 716º, nº 3 do CPC)[3].

Não está em questão na presente apelação, considerando o seu objecto, apurar se tal sanção pecuniária depende de pedido na acção executiva[4], importando tão só decidir se a mesma é devida considerando que à execução serve de título executivo sentença homologatória de plano de insolvência.

A resposta é afirmativa, ponderando que a sentença homologatória de plano de insolvência (talvez por isso a lei a reconheça como título executivo - alínea c) do nº 1 do art. 233º do CIRE) traduz o reconhecimento da existência de obrigação pecuniária de que é titular passivo o devedor e titular activo o credor, estipulando o seu cumprimento – o plano de insolvência consubstancia o reconhecimento de obrigações pecuniárias (créditos), introduzindo-lhe alterações (art. 217º do CIRE) e prevê formas e modos para o respectivo cumprimento, pelo que a sentença que o homologa, acolhe-o e, por isso, quanto às obrigações pecuniárias nele tratadas, estipula e determina pagamentos em dinheiro.

Consubstancia, pois, a sentença homologatória de plano de insolvência decisão que quadra no nº 4 do art. 829º-A do CPC – constitui título executivo para execução de pagamento de quantia certa porque, precisamente, nela se estipula e determina judicialmente pagamento de quantia monetária.

A sentença homologatória do plano de insolvência tem outros efeitos para além dos gerais elencados no art. 217º do CIRE, designadamente servindo de título executivo para que, encerrado o processo, os credores da insolvência possam exercer os seus direitos contra o devedor sem outras restrições que não as resultantes do plano aprovado (art. 233º, nº 1, c) do CIRE) – e por tal título (sentença homologatória de plano de insolvência) se aferem o fim e os limites da acção executiva, designadamente, nos casos de execução para pagamento de quantia certa, o valor da quantia exequenda a título de capital e outros acréscimos (como juros e sanção pecuniária) que lhe estejam ligados, mormente por efeito ex vi legis.

Independentemente de outros efeitos ligados ao incumprimento do plano de insolvência (como ficar sem efeito moratória ou perdão que o plano preveja relativamente a determinado crédito quando o devedor se constitui em mora, nos termos previstos na alínea a) do nº 1 do art. 218º do CIRE), interessa enfatizar que, como referido, encerrado o processo, os credores podem exercer os seus direitos contra o devedor, respeitando as restrições constantes do plano de insolvência (art. 233º, nº 1, c) do CIRE) – direitos dos credores que são aferidos e apurados pelas normas substantivas aplicáveis (mormente as normas do Código Civil), não se vislumbrando que do CIRE emerja qualquer normatividade que exclua o que da lei geral resulta a propósito do não cumprimento voluntário (não se constata que o CIRE regule esgotantemente, prevendo regime especial, as consequências substantivas do retardamento da prestação, nem se observa que, para lá do que resulta dos arts. 217º, 218º e 233º do CIRE, exclua a aplicação do regime geral substantivo do incumprimento das obrigações).

Tendo o credor o direito de exigir do devedor determinada quantia pecuniária, conforme ao plano de insolvência homologado (pois que este prevê tal obrigação), tem inteira aplicação o disposto no nº 4 do art. 829º-A do CC – encerrado o processo, confrontado com o não cumprimento voluntário da obrigação pecuniária constante do plano, o credor pode exigir judicialmente do devedor o cumprimento e, além da indemnização moratória a que haja lugar, será então também devida, ex vi legis, a sanção pecuniária compulsória legal, pois que de aplicação geral quando se mostre estipulado ou judicialmente determinado qualquer pagamento em dinheiro.

O não cumprimento voluntário da obrigação constante do plano pelo devedor justifica esta sanção compulsória legal (nº 4 do art. 829º-A do CC), pois que nenhuma especialidade ou proteção acrescida (relativamente a qualquer outra obrigação pecuniária) tem o lado passivo de tal relação jurídica – porque também quanto às obrigações pecuniárias constantes de plano de insolvência estão presentes as preocupações que determinaram o legislador à sua consagração (evitar o recurso à cobrança coerciva, compelindo ao cumprimento, e salvaguardar a desvalorização da moeda), aplica-se-lhes também a sanção compulsória legal.

Do exposto resulta a improcedência da apelação, com a consequente manutenção da decisão apelada, podendo sintetizar-se a argumentação decisória (nº 7 do art. 663º do CPC) nas seguintes proposições:

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DECISÃO

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Pelo exposto, acordam os Juízes desta secção cível em julgar improcedente a apelação e, em consequência, em manter a decisão apelada.

Custas pela apelante.


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Porto, 10/09/2024


(por opção exclusiva do relator, o presente texto não obedece às regras do novo acordo ortográfico, salvo quanto às transcrições/citações, que mantêm a ortografia de origem)

João Ramos Lopes
Márcia Portela
Lina Castro Baptista

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[1] António Pinto Monteiro, Cláusula Penal e Indemnização, 1999, 1ª Reimpressão, pp. 126 e 127.
[2] António Pinto Monteiro, Cláusula Penal e Indemnização (…), pp. 127 e 128 e Vânia Filipe Magalhães, O papel do juiz no cumprimento das obrigações: a sanção pecuniária compulsória, Julgar Online, Dezembro de 2022, p. 21 (consulta em Julho de 2024).
[3] António Pinto Monteiro, Cláusula Penal e Indemnização (…), p. 129 e Vânia Filipe Magalhães, O papel do juiz no cumprimento das obrigações (…), p. 21.
[4] Cfr., sustentando que a sanção opera oficiosamente, v. g., os acórdãos desta Relação de 24/11/2022 (Judite Pires) e de 21/10/2021 (Paulo Dias da Silva), no sítio www.dgsi.pt; manifestando entendimento contrário (o de que não opera oficiosamente), v. g., o acórdão desta Relação de 15/09/2022 (Deolinda Varão), no mesmo sítio.