Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | CARLOS GIL | ||
Descritores: | COMPRA E VENDA OBRIGAÇÃO DE ENTREGA DA COISA DOCUMENTOS RELATIVOS À COISA VENDIDA CÓDIGO DE ACESSO A SOFTWARE | ||
Nº do Documento: | RP20240710532/21.7T8AND.P1 | ||
Data do Acordão: | 07/10/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | REVOGAÇÃO PARCIAL | ||
Indicações Eventuais: | 5. ª SECÇÃO | ||
Área Temática: | . | ||
Sumário: | I - A obrigação de entrega da coisa vendida abrange, salvo estipulação em contrário, além do mais, os documentos relativos à coisa ou direito. II - O código de acesso a um software instalado numa máquina industrial que permite o controlo informático da periodicidade e necessidade da substituição de óleo e filtros de que a máquina está provida, a deteção da origem de um problema na máquina e a eliminação do aviso da revisão da mesma após a realização dessa operação deve, por identidade de razão, considerar-se um documento relativo à coisa vendida, documento que permite o acesso a uma parte integrante da máquina industrial, no caso, o software instalado na mesma. | ||
Reclamações: | |||
Decisão Texto Integral: | Proc. n.º 532/21.7T8AND.P1 Sumário do acórdão proferido no processo nº 532/21.7T8AND.P1 elaborado pelo seu relator nos termos do disposto no artigo 663º, nº 7, do Código de Processo Civil: …………………………………………………………….. …………………………………………………………….. ……………………………………………………………..
*** * *** Acordam os juízes subscritores deste acórdão, da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto:
1. Relatório[1] Em 18 de novembro de 2021, com referência à Secção de Competência Genérica de Anadia, Comarca de Aveiro, A..., Unipessoal, Lda. intentou ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra B..., Lda. pedindo a condenação da ré a no prazo máximo de 30 dias entregar os códigos de manutenção das máquinas adquiridas, sob a cominação de sanção pecuniária compulsória no valor de € 50,00 diários até à entrega de todos os códigos de todas as máquinas que vendeu à autora. Para sustentar as suas pretensões a autora alegou, em síntese, que é uma sociedade unipessoal por quotas que se dedica, nuclearmente, a atividades de limpeza em vários tipos de edifícios e de meios de transporte, assim como à recolha e drenagem de águas residuais, desentupimento e esvaziamento de fossas séticas e similares, entre outras atividades. A ré é uma sociedade por quotas que se dedica à venda de máquinas e produtos na área da limpeza e manutenção de condutas e vias públicas. No exercício da sua atividade a autora comprou as seguintes máquinas à ré: a) uma máquina ROM Economic 200/60, em 31 de julho de 2017, pelo preço de € 38 130,00; b) duas máquinas ROM Economic 200/60, em 28 de dezembro de 2017, pelo preço de € 73 800,00; c) uma máquina ROM Economic 200/72, em 22 de maio de 2019, pelo preço de € 43 050,00. Desde 2018, a autora tem vindo a solicitar à ré o manual de instruções das máquinas adquiridas, de forma a obter os códigos para realizar manutenções; no entanto, durante dois anos, os manuais não foram fornecidos. Dada a necessidade de a A... fazer ela própria as revisões, até porque tem um mecânico interno, contactou o fabricante das máquinas na Holanda, explicando que não lhe forneciam essa documentação, sendo que o mesmo respondeu que o caso só poderia ser tratado com o importador/agente. Ao fim de dois anos de intensas conversações, a A... conseguiu que lhe fossem entregues os manuais, mas a B... negou-se a enviar os códigos de acesso ao software das máquinas e equipamentos que vendeu à autora. Com esta atitude a ré pretende “obrigar” a autora a realizar as manutenções e reparações das máquinas nas suas oficinas, obtendo assim o monopólio destas operações. A máquina ROM Economic é um equipamento destinado ao desentupimento e limpeza de tubagens domésticas e sistemas de esgotos principais até ao máximo de 600 mm. de diâmetro, construído para ser acoplado a veículos comerciais ligeiros de mercadorias, equipado com uma bobina giratória de alta pressão acionada hidraulicamente. Desta forma, ou a autora opta por se deslocar às instalações da ré para fazer a manutenção e reparação dos equipamentos ROM ou, caso opte por os fazer ela própria, arrisca na intuição do seu mecânico para realizar as manutenções e reparações pois não pode aceder ao software para saber, por exemplo, quantas horas faltam para realizar a substituição do óleo e filtros ou para detetar a origem de um problema, por lhe faltarem os códigos. Citada, a ré contestou pugnando pela total improcedência da ação, negando que o manual de instruções não foi disponibilizado à autora e sustentando que os códigos de acesso ao software das máquinas e equipamentos não têm que acompanhar os manuais aquando da venda, porquanto se trata de uma informação exclusiva facultada pelo fabricante, destinada aos representantes com formação especializada autorizados a efetuar intervenções nas máquinas, e não aos utilizadores das mesmas. A autora pode realizar as manutenções e reparações das máquinas onde bem entender não existindo qualquer vinculação contratual à ré para esse efeito, sendo que os tais códigos não são necessários para o normal funcionamento das máquinas, ou para a sua reparação e manutenção. A autora replicou reiterando a argumentação já constante da petição inicial. A ré requereu o desentranhamento da réplica oferecida pela autora. Em 14 de maio de 2022 foi proferido despacho a não admitir a réplica oferecida pela autora, fixou-se o valor da causa no montante de €5.000,01, proferiu-se despacho saneador tabelar, identificou-se o objeto do litígio, enunciaram-se os temas da prova, conheceu-se dos requerimentos probatórios das partes, programaram-se os atos a praticar na audiência final, designando-se dia para a sua realização. A audiência final realizou-se em duas sessões e em 27 de junho de 2023 foi proferida sentença[2] que julgou a ação totalmente improcedente, absolvendo a ré do pedido. Em 18 de setembro de 2023, inconformada com a sentença, A..., Unipessoal, Lda. interpôs recurso de apelação, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões: “I. No dia 18 de novembro de 2021, a Recorrente intentou ação declarativa comum contra a Recorrida, peticionando a condenação desta à entrega dos códigos de acesso (passwords) à programação e reprogramação dos intervalos das revisões e de apagar os sinais de alerta de determinada avaria, quanto às máquinas de jacto de alta pressão que lhes adquiriu sob a cominação de sanção pecuniária compulsória no valor de € 50 (cinquenta euros) diários até à data de entrega de todos os códigos de todas as máquinas vendidas pela Recorrida à Recorrente, tendo em conta que, desde 2018, a Recorrida se recusa a enviar os códigos das máquinas ROM. II. Tendo sido devidamente citada, veio a Recorrida contestar, afirmando, em suma, que os códigos de software não têm de acompanhar os manuais, pois trata-se de informação exclusiva do fabricante e dos concessionários e não são imprescindíveis nem necessários tais códigos para o correto funcionamento das máquinas, motivo pelo qual negava o seu acesso à Recorrente. III. Proferida sentença no dia 27 de junho de 2023, o Tribunal a quo decidiu pela improcedência da acção e, consequentemente, absolveu a Recorrida do pedido formulado nestes autos. IV. A Recorrente não se conforma com a decisão proferida, impetrando o presente recurso somente sobre a decisão proferida sobre a matéria de direito da douta sentença a quo. V. A sentença recorrida reconhece a existência de um contrato de compra e venda de bens móveis (vide artigos 874º a 939º, todos do Código Civil), socorrendo-se ainda do D.L. n.º 103/2008, de 24 de junho de forma de modo a definir o conceito de “máquina” bem como no Acórdão de 6 de abril de 2021 proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa no âmbito do processo n.º 55/19.4YHLSB.L1-PICRS que estipula a diferença de código-fonte e código-objeto e aplica as regras sobre autoria e titularidade vigentes para os direitos de autor (vide artigo 3º, n.º 1 do D.L. n.º 103/2008, de 24 de junho). VI. Os efeitos essenciais do contrato de compra e venda encontram-se regulados nos termos do artigo 839º do Código Civil e incluem a transmissão de propriedade, obrigação de entrega da coisa e obrigação de pagamento do preço, sendo que ter acesso aos códigos de software das máquinas foi condição essencial da Recorrente em adquirir as máquinas. VII. A entrega dos códigos constituiu um dever de prestação secundário pois, o seu fornecimento complementa a atuação principal da Recorrente com vista ao interesse desta, pelo que a sua ausência levanta diversos problemas no manuseamento das máquinas, tal como é comprovado pelo ponto 12 dos factos provados nos termos do qual “A única restrição decorrente de não ter acesso ao software consiste apenas e na circunstância de o sistema não lhe indicar, por exemplo, quantas horas faltam para realizar a substituição do óleo e filtros ou para detetar a origem de um problema, e não conseguir eliminar os alertas criados pelo software, como sendo, aviso de revisão, após a revisão da máquina”. [itálico, negrito e sublinhado nosso]. VIII. O facto de a Recorrida se recusar a fornecer os códigos das máquinas consubstancia um incumprimento contratual por violação dos deveres de prestação acessórios ou secundários. IX. Por um lado, os deveres primários operam no núcleo da relação obrigacional enquanto os deveres de prestação secundária são deveres que seguem o regime da prestação principal; por outro lado, os deveres acessórios são deveres de informação, lealdade ou de segurança decorrentes da boa-fé negocial. 36. Tal como estipulado no douto Acórdão de 13 de outubro de 2016 proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça no âmbito do processo n.º 967/14.1TBACB.C1.S1 “V. No âmbito de um contrato de compra e venda de um centro de maquinação, o fornecimento dos respectivos “códigos de desbloqueio” constitui um dever de prestação secundária a que a vendedora deve dar cumprimento ao longo da vida útil daquele equipamento”. [negrito, itálico e sublinhado nossos] X. Sendo o objetivo dos deveres de prestação secundária o de complementarem a prestação principal, sem os quais esta deixa de fazer sentido, a ausência dos códigos leva a que as máquinas não possam atingir, na plenitude, o objetivo pelo qual foram adquiridas pela Recorrente. XI. Deste modo, a Recorrente entende que os códigos consubstanciam um dever de prestação secundária, pois fazem parte do manual de instruções e, ao não serem cedidos com a entrega da máquina, sempre deveriam ter sido fornecidos com os manuais de instrução, o que não se verificou tendo em conta o ponto 7 dos factos provados na sentença a quo. XII. Por outro lado, a Mm.ª Juiz a quo proferiu sentença nos presentes autos seguindo de perto a fundamentação expendida num Acórdão factualmente distinto, resumindo apenas a distinção entre código-fonte e código-objeto e remetendo o presente caso para aplicação dos direitos de autor, não sendo esse o correcto entendimento do dever do Tribunal, mas ao invés, a apreciação objetiva do mérito da questão e a correspondente aplicação do direito. 37. Consequentemente, está-se perante um erro de julgamento do Tribunal a quo no sentido em que “Quando, embora mal, o juiz entende que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação ou dela decorre, encontramo-nos perante o erro de julgamento e não perante oposição geradora de nulidade” – vide José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2.º, 3.ª Edição, páginas 736 e 737. XIII. Erro esse que afetou o conteúdo da decisão, impondo-se ao Tribunal a quo decidir pelo incumprimento contratual da Recorrida por violação dos seus deveres de prestação secundária por não ter entregue os códigos de acesso ao software de manutenção e reparação, nem aquando da entrega das máquinas, nem posteriormente.” B..., Lda. contra-alegou pugnando pela rejeição do recurso em virtude de a recorrente não ter indicado nas conclusões as normas jurídicas violadas e não se entendendo assim, sustenta a total improcedência do recurso interposto pela autora. O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo. Em 16 de janeiro de 2024, A..., Unipessoal, Lda. veio requerer a junção aos autos de um documento, mais precisamente um acórdão de 05 de outubro de 2023, da oitava secção do Tribunal de Justiça, proferido no processo nº C-296/22, requerimento que foi indeferido com o fundamento de que as alegações de recurso são o termo final para o oferecimento de prova documental em segunda instância. No despacho liminar o relator sustentou não se verificar a inobservância do ónus previsto na alínea a) do nº 2 do artigo 639º do Código de Processo Civil, improcedendo por isso a objeção da recorrida ao conhecimento do recurso. Atenta a natureza estritamente jurídica do objeto do recurso, as funcionalidades do citius que permitem o acesso em qualquer momento ao processo por parte de qualquer membro do coletivo e com o acordo dos restantes membros do coletivo dispensaram-se os vistos, cumprindo apreciar e decidir de seguida. 2. Questões a decidir tendo em conta o objeto do recurso delimitado pela recorrente nas conclusões das suas alegações (artigos 635º, nºs 3 e 4 e 639º, nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil), por ordem lógica e sem prejuízo da apreciação de questões de conhecimento oficioso, observado que seja, quando necessário, o disposto no artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil A ré está obrigada a entregar à autora os códigos de acesso ao software de manutenção e reparação das máquinas que a autora adquiriu? 3. Fundamentos de facto exarados na sentença recorrida que não foram impugnados e por isso se têm como assentes, não se divisando razão legal para a sua alteração oficiosa 3.1 Factos provados 3.1.1 A autora é uma sociedade unipessoal por quotas que se dedica, nuclearmente, a atividades de limpeza em vários tipos de edifícios e de meios de transporte, assim como à recolha e drenagem de águas residuais, desentupimento e esvaziamento de fossas séticas e similares, entre outras atividades. 3.1.2 A ré é uma sociedade por quotas que se dedica à venda de máquinas e produtos na área da limpeza e manutenção de condutas e vias públicas. 3.1.3 No exercício de funções da sua atividade a autora comprou algumas máquinas à ré, nomeadamente: a) Uma Máquina ROM Economic 200/60, a 31 de julho de 2017, pelo valor de € 38 130,00; b) Duas Máquinas ROM Economic 200/60, a 28 de dezembro de 2017, pelo valor de € 73 800,00[3]; c) Uma Máquina ROM Economic 200/72, a 22 de maio de 2019, pelo valor de € 43 050,00[4]. 3.1.4 A segunda e terceira máquinas foram faturadas em abril de 2018 à C.... 3.1.5 A fatura referente às máquinas aludidas em b) [3.1.3, b)] foi anulada a pedido da autora, com a emissão de uma nota de crédito, para a ré B... posteriormente emitir a fatura à “C..., S.A.”, tudo isto a pedido da autora A.... 3.1.6 A quarta máquina foi encomendada em setembro de 2018 e foi feita a entrega em julho de 2020 e a fatura foi emitida à “C..., S.A.”, na mesma data. 3.1.7 A autora solicitou à ré os códigos de software das máquinas adquiridas, o que esta não disponibilizou sustentando que códigos de acesso ao software das máquinas e equipamentos não têm que acompanhar os manuais aquando da venda, porquanto se trata de uma informação exclusiva facultada pelo fabricante, destinada aos representantes autorizados a efetuar intervenções naquelas com formação especializada, e não aos utilizadores das máquinas. 3.1.8 Dada a necessidade de a autora fazer ela própria as revisões, até porque tem um mecânico interno, contactou o fabricante na Holanda, explicando que não lhe era fornecida essa documentação, sendo que o mesmo respondeu que o caso só poderia ser tratado com o importador/agente. 3.1.9 A autora, além de oficina, tem mecânico próprio, que está apto a realizar a manutenção de qualquer equipamento industrial, mormente os equipados com motores de combustão, como é o caso dos veículos de transporte de resíduos mas, também, as máquinas ROM que a ré vende. 3.1.10 A máquina ROM Economic é um equipamento destinado ao desentupimento e limpeza de tubagens domésticas e sistemas de esgotos principais até ao máximo de 600 mm. de diâmetro, construído para ser acoplado a veículos comerciais ligeiros de mercadorias, equipado com uma bobina giratória de alta pressão acionada hidraulicamente. 3.1.11 A autora consegue fazer uso normal das máquinas em questão nos autos e bem assim proceder à sua manutenção e reparação, não necessitando, para tanto, dos códigos do respetivo software. 3.1.12 A única restrição decorrente de não ter acesso ao software consiste apenas e na circunstância de o sistema não lhe indicar, por exemplo, quantas horas faltam para realizar a substituição do óleo e filtros ou para detetar a origem de um problema, e não conseguir eliminar os alertas criados pelo software, como sendo, aviso de revisão, após a revisão da máquina. 3.2 Factos não provados 3.2.1 A autora, desde 2018 tem vindo a solicitar à ré o manual de instruções das máquinas adquiridas, no entanto, durante dois anos, os manuais não foram fornecidos e o correio eletrónico enviado nesse sentido foi completamente ignorado. 3.2.2 Ao negar os códigos de acesso ao software das máquinas, pretende a ré “obrigar” a autora a realizar as manutenções e reparações das máquinas nas suas oficinas, obtendo assim o monopólio destas operações. 4. Fundamentos de direito A recorrente pugna pela revogação da sentença recorrida imputando à ré um incumprimento contratual por violação de um dever de prestação secundária. Para tanto, em síntese, alega que ao não ter entregue os códigos de acesso ao software de manutenção e reparação, nem aquando da entrega das máquinas, nem posteriormente leva a que as máquinas não possam atingir, na plenitude, o objetivo pelo qual foram adquiridas pela recorrente, pelo que a ré incumpriu um dever secundário de prestação. Na decisão recorrida, seguindo-se de perto o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 06 de abril de 2021, proferido no processo nº 55/19.4YHLSB.L1-PICRS, acessível na base de dados da DGSI, entendeu-se que a pretensão da recorrente não podia proceder na medida em que o software que pretendia lhe fosse entregue pela ré constituía um programa de computador que beneficia do regime de proteção dos direitos de autor e não se acha abrangido pelo contrato de compra e venda de máquinas ou equipamentos em que aquele se ache inserido. Cumpre apreciar e decidir. Nenhum dissídio existe entre as partes quanto à qualificação jurídica do negócio que celebraram uma com a outra como contrato de compra e venda, apenas havendo divergência na determinação precisa dos objetos desses negócios, ou seja, saber se se restringem àquilo que a ré entregou à autora, às máquinas entregues ou, além disso, se envolvem também os códigos de acesso ao software de manutenção e reparação das máquinas vendidas. Em termos normativos, o decreto-lei nº 103/2008 de 24 de junho transpôs a Diretiva 2006/42/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de maio de 2006, estabelecendo as regras a que deve obedecer a colocação no mercado e a entrada em serviço das máquinas bem como a colocação no mercado das quase-máquinas, prevendo, nomeadamente, no nº 1 do seu artigo 4º que: “As máquinas sujeitas à aplicação das disposições do presente decreto-lei só podem ser colocadas no mercado e ou entrar em serviço se cumprirem as disposições pertinentes nele estipuladas e não comprometerem a saúde e a segurança das pessoas e, se for o caso, dos animais domésticos ou dos bens, quando convenientemente instaladas e mantidas, e utilizadas de acordo com o fim a que se destinam ou em condições razoavelmente previsíveis.” No anexo I, ponto 1.1.2, do decreto-lei antes citado, epigrafado “Princípios de integração da segurança”, prescreve-se na sua alínea a) que: “a) As máquinas devem ser concebidas e construídas por forma a cumprirem a função a que se destinam e a poderem ser postas em funcionamento, reguladas e objecto de manutenção sem expor as pessoas a riscos quando tais operações sejam efectuadas nas condições previstas, mas tendo também em conta a sua má utilização razoavelmente previsível. As medidas tomadas devem ter por objectivo eliminar os riscos durante o tempo previsível de vida da máquina, incluindo as fases de transporte, montagem, desmontagem, desmantelamento e posta de parte”. Por seu turno, a alínea e) do citado ponto do anexo I dispõe que: “e) A máquina deve ser fornecida com todos os equipamentos e acessórios especiais imprescindíveis para poder ser regulada, sujeita a manutenção e utilizada com segurança.” No ponto 1.3.2 do anexo que temos vindo a citar, epigrafado “Risco de rutura em serviço”, prevê o seguinte no seu terceiro período: “O manual de instruções deve indicar os tipos e a frequência das inspecções e das operações de manutenção necessárias por razões de segurança. Deve indicar ainda, se for caso disso, as peças sujeitas a desgaste, bem como os critérios de substituição.” Finalmente, no ponto 1.6.1 do anexo I do decreto-lei que temos vindo a citar, epigrafado “Manutenção da máquina”, prevê no seu penúltimo período o seguinte: “No caso das máquinas automáticas e, eventualmente, no caso de outras máquinas, deverá prever-se um dispositivo de ligação que permita montar um equipamento de diagnóstico de busca de avarias.” Além dos dados normativos que precedem, uma adequada delimitação do “âmbito mínimo de entrega” das máquinas vendidas deve ter em conta a sua natureza de bens duradouros, com utilização prolongada no tempo e por isso sujeitas a operações de manutenção e conservação regulares, devendo por isso ser fornecida “com todos os equipamentos e acessórios especiais imprescindíveis para poder ser regulada, sujeita a manutenção e utilizada com segurança.” Esta exigência é ainda mais acrescida se se tiver em atenção que estão em causa máquinas destinadas a uso profissional necessariamente com um desgaste superior às que se destinam a uso não profissional. Embora isso não conste dos fundamentos de facto, a conjugação da abundante prova documental com que ambas as partes instruíram os seus articulados e o acordo das partes permite-nos concluir, com toda a segurança, que pelo menos alguns dos negócios em causa tiveram por base propostas de venda escritas, não se detetando em nenhuma das aludidas propostas qualquer referência no sentido da inclusão ou exclusão dos referidos códigos de acesso. Provou-se que a autora consegue fazer uso “normal” das máquinas em questão nos autos e bem assim proceder à sua manutenção e reparação, não necessitando, para tanto, dos códigos do respetivo software (ponto 3.1.11 dos factos provados com aspas da nossa autoria). Porém, também se provou que a “única” restrição decorrente de não ter acesso ao software consiste “apenas” na circunstância de o sistema não lhe indicar, por exemplo, quantas horas faltam para realizar a substituição do óleo e filtros ou para detetar a origem de um problema, e de não conseguir eliminar os alertas criados pelo software, como sendo, aviso de revisão, após a revisão da máquina (ponto 3.1.12 dos factos provados com aspas da nossa autoria). Face a esta última factualidade provada as questões que importa colocar são as seguintes: - o dono de uma máquina industrial provida de um sistema informático que sinaliza a necessidade de substituição de óleo e filtros e que deteta a origem de um problema na máquina está no pleno gozo da máquina comprada se não lhe é facultada essa funcionalidade informática? - o dono de uma máquina industrial que não consegue eliminar os alertas criados pelo software nela instalado, nomeadamente, o aviso de revisão após a revisão da máquina, está no pleno gozo da máquina que lhe foi vendida? Respondendo à primeira interrogação, afigura-se-nos que um dono de uma máquina industrial nas referidas circunstâncias tem um gozo diminuído dessa coisa, não acedendo a todas as funcionalidades de que a mesma dispõe, funcionalidades que se destinam a assegurar com fiabilidade a manutenção da máquina em boas condições de funcionamento e, além disso, a permitir a sua utilização segura, permitindo ao dono precaver-se e tomar as medidas adequadas contra eventuais problemas que o sistema informático diagnostique. A possibilidade de o dono da máquina poder controlar “manualmente” a necessidade de substituição de óleo e filtros, computando o número de horas de utilização do equipamento é um sucedâneo menos fiável do que o sistema de controlo informático da periodicidade e necessidade da substituição de óleo e filtros de que a máquina está provida e exposto a maior risco de erros e consequentes perigos para a segurança das pessoas e conservação dos equipamentos. Além disso, o dono da máquina não tem acesso à funcionalidade informática que deteta a origem de um problema na mesma. Vejamos agora a segunda interrogação. Em nosso entender, a impossibilidade de eliminação do aviso de revisão de uma máquina industrial após a realização dessa operação, é passível de gerar dúvidas e receios sobre as reais condições em que se acha esse equipamento. Um dos efeitos essenciais da compra e venda é a obrigação de entregar a coisa (alínea b) do artigo 879º do Código Civil), sendo que a obrigação de entrega da coisa abrange, salvo estipulação em contrário, além do mais, os documentos relativos à coisa ou direito (artigo 882º, nº 2, do Código Civil). O código de acesso a um software instalado numa máquina industrial que permite o controlo informático da periodicidade e necessidade da substituição de óleo e filtros de que a máquina está provida, a deteção da origem de um problema na máquina e a eliminação do aviso da revisão da mesma após a realização dessa operação deve, por identidade de razão, considerar-se um documento relativo à coisa vendida, documento que permite o acesso a uma parte integrante da máquina industrial, no caso, o software instalado na mesma. A análise que precede permite-nos concluir que a recusa por parte da ré de entrega à autora dos códigos de acesso ao software instalado nas máquinas industriais que lhe vendeu constitui a violação da obrigação de entrega da coisa na vertente da entrega de documentos relativos à coisa, no caso, os códigos de acesso ao aludido software (vejam-se os já citados artigo 879º, alínea b) e 882º, nº 2, ambos do Código Civil). Neste enquadramento normativo, a ação procede, devendo a ré ser condenada a proceder à entrega dos referidos códigos à autora, no prazo de trinta dias, como pedido pela autora. Não obstante os códigos cuja entrega a ré deve fazer à autora terem natureza sigilosa, cremos que está em causa a entrega de coisa determinada e, nessa medida, não se trata de uma prestação de facto positivo infungível a que seja aplicável o disposto no artigo 829º-A, nºs 1 a 3, do Código Civil. Deste modo, neste segmento, a pretensão da recorrente de que a ré seja condenada ao pagamento de uma sanção pecuniária compulsória de cinquenta euros diários, não tem base legal, pelo que improcede. As custas da ação e do recurso, na impossibilidade de determinação matemática da sucumbência de cada uma das partes, fixam-se na proporção de metade para cada uma das partes (artigo 527º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).
5. Dispositivo Pelo exposto, os juízes subscritores deste acórdão, da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto acordam em julgar parcialmente procedente o recurso de apelação interposto por A..., Unipessoal, Lda. e, em consequência, revoga-se a sentença recorrida proferida em 27 de junho de 2023 e julga-se a ação parcialmente procedente condenando-se B..., Lda. a proceder à entrega dos códigos de acesso ao software das três máquinas ROM Economic 200/60 e da máquina ROM Economic 200/72, no prazo de trinta dias, absolvendo-se a ré do pedido de condenação ao pagamento de sanção pecuniária compulsória de cinquenta euros diários até efetiva entrega dos referidos códigos e decorrido que seja o referido prazo de trinta dias. Custas da ação e do recurso na proporção de metade para cada uma das partes, sendo aplicável a secção B, da tabela I, anexa ao Regulamento das Custas Processuais, à taxa de justiça do recurso. *** O presente acórdão compõe-se de treze páginas e foi elaborado em processador de texto pelo primeiro signatário. Porto, 10 de julho de 2024 Carlos Gil Manuel Domingos Fernandes José Eusébio Almeida ______________________ [1] Segue-se, com alterações, o relatório da decisão recorrida. [2] Notificada às partes mediante expediente eletrónico elaborado em 28 de junho de 2023. [3] Está junta aos autos cópia desta fatura oferecida pela autora, sem impugnação da ré, mencionando-se na mesma o seguinte: “Fornecimento e condições conforme nossa proposta ...2/2017, sem retoma de qualquer equipamento”. A proposta de fornecimento nº ...2/2017 datada de 17 de julho de 2017, endereçada à autora, oferecida pela ré com a sua contestação e não impugnada pela autora tem o seguinte conteúdo: “Equipamento para limpeza de tubagens modelo ROM ECONOMIC 200/60 composto por: - Motor a Gasóleo Kubota de 32 Cv, TURBO - Depósito de combustível de 300lts. - Bomba Speck 75lts a 150bar. Enrolador de alta pressão hidráulico com 80mts de mangueira de ½”. - Depósito de água de 600lts com tampa superior e lateral - 2 ponteiras: Perfurante, Limpeza. – Dimensões aproximadas, larg*alt*prof 1250*1250*1450 – Proteção da bomba a seco com bypass – Comando à distância profissional com 8 botões – Arranque no painel de comando, injector para anti-gelo, Kit de instalação, Luz de trabalho em Led, ligação strorz para abastecimento. – Peso aprox. 550kg (SEM OPCIONAIS E SEM ÁGUA), cheio com água terá um peso aproximado de 1.150kg. – Instalação do equipamento na viatura Ter em atenção as capacidades de carga do veículo onde será instalada o equipamento PREÇO EXCLUSIVO PARA 2 UNIDADES SEM RETOMAS €60.000,00 PREÇO EXCLUSIVO PARA 2 UNIDADES COM RETOMA DAS DUAS MULTICOMBI DE 2017 (DESDE QUE ESTEJAM EM PERFEITO FUNCIONAMENTO) € 54.000,00 Estes valores são finais e incluem as melhores condições possíveis e não são passíveis de negociação pois já incluem apoio especial do fabricante. Garantia: 1 ano, para peças com comprovado defeito de fabrico. Exclui peças de desgaste como mangueiras, ponteiras, etc. Validade da proposta: até ás 16 horas do dia 21/12/2017 Aos valores acima indicados acresce IVA à taxa legal em vigor Condições de pagamento: Por Leasing com a seguinte condição, na adjudicação cheque de 20% com data de29/01/2018 que é a data limite para tratar do Leasing. Com o pagamento por Leasing as máquinas serão entregues e devolvido o cheque de 20% de sinal. Se a 29/07/2017 o leasing não estiver aprovado o cheque será depositado e serão debitados juros de mora á taxa comercial até ao pagamento na íntegra das duas máquinas.” [4] Está junta aos autos cópia desta fatura pró-forma oferecida pela autora, mencionando-se na mesma o seguinte: “Fornecimento e condições conforme nossa proposta ...2/2017, sem retoma de qualquer equipamento”. |