Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
371/20.2T8PVZ.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MIGUEL BALDAIA DE MORAIS
Descritores: CONTRATO DE SEGURO DESPORTIVO
INVALIDEZ PERMANENTE
Nº do Documento: RP20240710371/20.2T8PVZ.P1
Data do Acordão: 07/10/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMAÇÃO
Indicações Eventuais: 5. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Por força do regime vertido no Decreto-Lei nº 10/2009, de 12.01, os agentes desportivos, os praticantes de atividades desportivas em infraestruturas desportivas abertas ao público e os participantes em provas ou manifestações desportivas devem, obrigatoriamente, beneficiar de um contrato de seguro desportivo que cubra os riscos de acidentes pessoais inerentes à respetiva atividade desportiva, nomeadamente os que decorrem dos treinos, das provas desportivas e respetivas deslocações, dentro e fora do território português.
II - Em função das coberturas mínimas fixadas nesse diploma (artigos 5º, nº 2 e 16º), esse seguro assume natureza híbrida, com uma vertente de seguro de capitais - porque determina o pagamento de um capital por morte ou invalidez, total ou parcial, em cuja fixação não se aplica o princípio indemnizatório, que limitaria a prestação do segurador ao valor do dano decorrente do sinistro - e uma vertente de seguro de danos - já que cobre as despesas de tratamento e de repatriamento, onde, por contrapartida, se aplica o princípio indemnizatório.
III - A essa luz a cobertura do montante mínimo devido por invalidez permanente, absoluta ou parcial, deve ser configurada como prestação de capital predeterminada em função exclusiva da natureza da lesão e do grau de incapacidade fixado no caso de invalidez permanente parcial, independentemente do valor do dano efetivo e das consequências não patrimoniais decorrentes do acidente desportivo.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 371/20.2T8PVZ.P1
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Póvoa de Varzim – Juízo Central Cível, Juiz 3

Relator: Miguel Baldaia Morais

1ª Adjunta Desª. Ana Paula Amorim

2º Adjunto Des. José Eusébio Almeida


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SUMÁRIO

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Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I. RELATÓRIO

AA intentou a presente ação declarativa sob a forma comum contra Grupo Desportivo e Cultural de ... e A..., S.A., pedindo a condenação solidária destes a pagar-lhe o montante de €115.234,77 e bem assim a quantia a liquidar em decisão ulterior respeitante a custos com tratamentos futuros às lesões resultantes do acidente em discussão nos autos.

Para substanciar tais pretensões alega que, no dia 13 de março de 2014, enquanto atleta amadora federada, se lesionou durante a prática de um treino desportivo da equipa de voleibol do primeiro réu, em consequência do que sofreu danos patrimoniais e não patrimoniais que elenca.

Acrescenta que o primeiro réu é filiado da Federação Portuguesa de Voleibol, tendo esta celebrado com a segunda ré contrato de seguro, do qual a autora é beneficiária, que abrange a reparação dos mencionados danos.

Contestou o primeiro réu sustentando não ser responsável pela reparação dos danos reclamados pela demandante.

Por seu turno, a ré seguradora contestou excecionando a falta de cobertura pelo contrato de seguro em relação a parte dos danos peticionados; no mais impugnou a factualidade alegada pela autora, concluindo pela improcedência da ação.

A requerimento do primeiro réu foi admitida a intervenção acessória da Federação Portuguesa de Voleibol.

Foi proferido despacho saneador, identificado o objeto do litígio e enunciados os temas de prova.

Realizou-se audiência final, vindo a ser proferida sentença na qual se decidiu «julgar a ação parcialmente procedente e em consequência:

 A) Condenar a ré A..., S.A. a pagar à autora €2.214,77 (dois mil duzentos e catorze euros e setenta e sete cêntimos), acrescidos de juros vencidos cifrados em quinhentos e vinte e dois euros e oitenta e um cêntimos (€522,81), e juros vincendos, desde a citação, à taxa legal para obrigações civis, até integral pagamento;

B) Absolver a ré A..., S.A. quanto ao restante pedido;

C) Absolver o réu Grupo Desportivo e Cultural de ... do pedido».

Não se conformando com o assim decidido, veio a autora interpor o presente recurso, que foi admitido como apelação, a subir nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

Com o requerimento de interposição do recurso apresentou alegações, formulando, a final, as seguintes

CONCLUSÕES:

1) Quem, como atleta filiado e devidamente registado nas instâncias desportivas respetivas e sofre um acidente grave - que é caracterizado como um acidente desportivo – tem de ser indemnizado pelos danos patrimoniais e morais de que ficou prejudicado e de que padeceu. Tal encontra-se, inclusive, consagrado nos mais básicos princípios constitucionais, nomeadamente nos artigos, 12º, 13º, 25º e 26º da Constituição da República Portuguesa.

2) O Tribunal a quo, não obstante reconhecer que a Recorrente sofreu o acidente desportivo descrito, com todas as sequelas que foram provadas, e, não obstante reconhecer que existe jurisprudência dos Tribunais superiores que decidem em contrário da tese por si sufragada decidiu, ainda assim, de forma incompreensível, reduzir a indemnização apenas aos danos patrimoniais tidos com as despesas de tratamento e aplicar à indemnização por incapacidade permanente uma fórmula de cálculo contrária à melhor interpretação da Lei.

3) A Sentença recorrida, salvo melhor opinião, faz uma incorreta apreciação da prova e, principalmente, uma incorreta aplicação do Direito.

4) Os argumentos de facto e de direito invocados pelo Tribunal a quo para julgar parcialmente improcedente a ação são infundados e, salvo melhor opinião, manifestamente incompreensíveis e contrários aos melhores e sábios entendimentos.

5) A decisão em recurso desconsiderou e não acompanha a jurisprudência mais contemporânea quanto às mesmas questões de direito similares às discutidas nos presentes autos, nomeadamente o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10/10/2023, proc. n.º 1015/20.8T8PVZ.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt, que confirmou, por sua vez, uma decisão deste Tribunal da Relação do Porto proferida em 27/02/2023.

6) Não se compreende, nem se aceita que o Tribunal a quo não acompanhe o sentido e a orientação, sobre as questões suscitadas, tomadas umas semanas antes pelo Supremo Tribunal de Justiça, que, ainda por cima, validou e sufragou igual entendimento do Tribunal da Relação do Porto, a que este Tribunal da Póvoa está adstrito.

7) A causa de pedir nos presentes autos foi a ocorrência de um acidente desportivo e o pedido a condenação dos RR., solidariamente, a pagar à Autora a quantia de €15.000 (dez mil euros) a título de danos não patrimoniais e a quantia de €100.234,77 (cem mil duzentos e trinta e quatro euros e setenta e sete cêntimos) a título de danos patrimoniais.

8) É extensa a matéria de facto alegada que foi dada como provada pelo tribunal a quo e que aqui se reproduz.

9) O tribunal quo julgou a ação parcialmente procedente e, em consequência: Condenou a ré A..., S.A. a pagar à autora €2.214,77, acrescidos de juros de €522,81 e juros vincendos, desde a citação, à taxa legal para obrigações civis, até integral pagamento; absolveu a ré A..., S.A. quanto ao restante pedido; absolver o réu Grupo Desportivo e Cultural de ... do pedido.

10) Não pode a Apelante conformar-se com a absolvição da Apelada seguradora quanto aos pedidos formulados porque o Mmº Juiz a quo não fez, atendendo ao que consta nos autos e à extensa matéria dada como provada, uma correta aplicação do Direito ao absolver a Ré seguradora dos pedidos formulados.

11) Aos factos dados como provados, que validaram e consubstanciaram a causa de pedir e os pedidos no presente caso aplica-se:

- A Lei 28/98 de 26 de junho, que estabelece o regime jurídico do contrato de trabalho do praticante desportivo e do contrato de formação desportiva (em vigor à data do acidente - revogada pela Lei 54/2017);

 - O Decreto Lei 10/2009 de 12 de janeiro, que estabelece o regime jurídico do seguro desportivo obrigatório.

12) A factualidade alegada pela Autora na PI no que concerne à ligação que tinha para com o 1º réu GDC resultou provada. Dúvidas não restam que entre Autora e o 1º réu GCD foi celebrado um contrato de formação desportiva.

13) Não existe divergência quanto à qualificação do sinistro como um acidente desportivo, pois resulta dos factos provados que 1º réu GCD inscreveu a Autora como sua jogadora na Ré Federação Portuguesa de Voleibol (facto aceite por esta- ver art. 9 da respetiva contestação), assumindo, com essa sua conduta, a existência de um vínculo (não laboral, já o sabemos) para com o jogador, tendo a Federação aceite tal inscrição reconhecida e aceite pela FP de Voleibol, facto relevante, uma vez que evidencia que a inscrição do jogador se enquadrou nos requisitos (pelos mesmos por todos foi assim considerado) referido no art. 31º da citada Lei n.º 28/98.

14) Como entidade formadora, nos termos supra definidos e estando em causa uma atividade desportiva, incumbia ao 1º réu GDC a celebração obrigatória de um contrato de seguro desportivo, nos termos regulados pelo DL n.º 146/93, de 26 de abril – artigo 2º -, nomeadamente o seguro de provas desportivas, o que foi feito, conforme resulta da matéria de facto provada.

15) Nos termos estatuídos pelo artigo 1º do citado diploma: “2. O seguro desportivo cobre os riscos de acidentes pessoais inerentes à atividade desportiva, incluindo as decorrentes de transportes e viagens em qualquer parte do mundo. 3.º Os praticantes não profissionais de alta competição ficarão ainda cobertos por um seguro de doença, por um seguro de invalidez para a prática do desporto e por um seguro de vida.” Como riscos mínimos (como tal, obrigatórios) - artigo 4º - as coberturas abrangidas são as seguintes: a) Pagamento de um capital por morte ou invalidez permanente, total ou parcial, por acidente decorrente da atividade desportiva; b) Pagamento de despesas de tratamentos, incluindo internamento hospitalar e de repatriamento.

16) Os capitais mínimos obrigatórios previstos pelo artigo 4º, nas suas várias modalidades, são objeto de Portaria conjunta dos Ministros das Finanças e da Educação (artigo 12º do citado diploma). A Portaria em causa é a n.º 757/93, de 26 de agosto, que prevê que os valores dos capitais mínimos são atualizados no início de cada época desportiva, prevendo ainda a possibilidade de as partes fixarem livremente uma franquia (entendendo-se as partes como o tomador e a seguradora e não os beneficiários).

17) O contrato de seguro celebrado entre os réus respeitou em termos de capitais mínimos as coberturas legalmente exigíveis, quer em termos de “plafond” para pagamento de tratamentos, quer para morte, invalidez permanente, total ou parcial.

18) A Ré Seguradora Unida veio alegar que apenas pode ser responsabilizada até aos montantes garantidos e, no que à indemnização pela IPP concerne, o direito/valor deve ser calculado de acordo com o artigo 8º, n.º 3 das Condições Gerais da Apólice, sendo que de acordo com a cláusula em causa a seguradora apenas é obrigada a indemnizar a IPP se a mesma for igual ou superior a 10%, excluindo o direito de indemnização reclamado pelo autor, por ser inferior.

19) A sentença em recurso, aderiu, mal, a esta fundamentação.

20) A Ré Seguradora A... foi demandada na qualidade de tomadora de um contrato de seguro desportivo de que a Autora, enquanto atleta amador federada, era beneficiária, na época desportiva 2013/2014. Nessa altura, vigorava o Decreto-Lei n° 146/93 de 26 de Abril, que, além do mais, dispunha, para o que aqui nos interessa, que "o seguro desportivo cobre os riscos de acidentes pessoais inerentes à atividade desportiva, incluindo os decorrentes de transportes e viagens em qualquer parte do mundo" (artigo 1.°, n.° 2)”

21) Trata-se de um seguro "obrigatório para todos os agentes desportivos inscritos em federações dotadas de utilidade pública desportiva", entre os quais se incluem, naturalmente, os praticantes desportivos, como era o caso da Autora.

22) Esse contrato de seguro, tinha como coberturas mínimas as seguintes: a) O pagamento de um capital por morte ou invalidez permanente, total ou parcial, por acidente decorrente da atividade desportiva; b) E, o pagamento de despesas de tratamento, incluindo internamento hospitalar.

23) Os capitais mínimos obrigatórios, nas suas várias modalidades, por sua vez. decorriam de Portaria conjunta dos Ministros das Finanças e da Educação (artigo 12°), a qual estipulava os valores dos referidos capitais mínimos, atualizados no início de cada época desportiva'. ' Cfr. para o caso. a Portaria n.° 757/93. de 26 de agosto.

24) Por estas características se vê que a regra da liberdade contratual, consagrada no artigo 405. °, n.º 1 do Código Civil, sofre acentuados desvios no domínio do seguro desportivo.

25) A celebração desse contrato é obrigatória, designadamente para as federações desportivas a quem seja reconhecida utilidade pública; e, por outro lado, o conteúdo do próprio contrato é moldado legalmente nalguns dos seus aspetos nucleares de forma relativamente imperativa; ou seja, de forma a só consentir o reforço das garantias mínimas legalmente previstas, em benefício do lesado.

26) A proteção dos lesados, com efeito, como acentua Ana Serra Calmeiro, é, reconhecidamente, a principal função dos seguros obrigatórios. Por um lado, atendendo ao círculo de danos possíveis, justifica-se uma proteção social por meio de medidas legais preventivas e sucessivas ao sinistro, de forma que, prosseguindo o interesse público, seja assegurada a prontidão de pagamento por uma entidade solvente perante terceiros lesados. Por outro, a existência de regras especiais de proteção de terceiros também se justifica pelo reconhecimento por parte do Estado de que ela quase nunca surgirá como a principal prioridade do tomador aquando da celebração do seguro.

27) Daí que, neste tipo de seguros, se devam considerar abusivas as cláusulas que limitem ou excluam o risco de forma a conferir uma cobertura inferior àquela que resulta da obrigação de indemnizar legalmente estipulada. Sempre que assim suceda, estando nós, como vimos, perante normas imperativas, a solução prevista na lei é a nulidade (artigo 294º do Código Civil).

28) Mas, nulidade de tais cláusulas, e não de todo o contrato, uma vez que só aquela solução assegura uma adequada proteção do lesado, se acompanhada da necessária integração da lacuna por esse efeito criada, com normas legais aplicáveis. Ou seja, o contrato mantém-se, mas, tal como previsto na Lei das Cláusulas Contratuais Gerais (artigos 9º, nº.1 e 13.º, пº 2) funcionando, em lugar das cláusulas violadoras, as regras legais aplicáveis.

29) As cláusulas do contrato de seguro de que é beneficiário a Autora, relativas à indemnização por incapacidade permanente, só a partir de 10% de Incapacidade Permanente e ao método de cálculo da indemnização, tais cláusulas não podem deixar de ser consideradas nulas por, no fundo, limitarem, contra lei imperativa, o direito indemnizatório da Autora.

30) A lei, através do DL 146/93 impõe limites mínimos de garantia que não são suscetíveis de serem afastadas por vontades das partes. Por conseguinte e por aplicação do disposto nos artigos 286º, 292º e 294º do C. Civil, deve determinar-se a nulidade da cláusula enunciada, considerando-se que é devida uma indemnização pela IPP, independentemente do grau (o negócio não é nulo, mas objeto de redução, excluindo-se a parte viciada).

31) Ou seja, o regime legal deste seguro abrange, obrigatoriamente, enquanto cobertura mínima, além da indemnização por morte, a indemnização por invalidez, total ou parcial, sem qualquer limitação percentual (artºs 4º do DL 146/93 e 5º do DL 10/2009), significando isto que, qualquer percentagem de desvalorização funcional permanente estará, obrigatoriamente, coberta pelo seguro.

32) Pelo que, uma cláusula inserta num contrato de seguro desportivo que cubra a obrigação de segurar estabelecida na lei (e que, por isso, se traduz num “seguro obrigatório”) não pode excluir a indemnização de desvalorizações funcionais permanentes inferiores a 10%.

33) A nulidade desta cláusula (artº 294º CC) resolve-se com a projeção direta no contrato da norma imperativa (no caso o artº 4º do DL 146/93) que manda indemnizar todas as incapacidades permanentes gerais, a qual passa a “integrar” o contrato, em substituição do trecho violador dessa disposição legal, aproveitando-se o restante da cláusula e do contrato.

34) Corresponde esta substituição à primazia da ideia de conservação do negócio contendo cláusulas nulas, através da chamada “eficácia mediata das normas imperativas”, funcionando esta como “outra solução”, alternativa à nulidade (à supressão do negócio ou da cláusula nula), resultante da lei (trecho final do artº 294º CC).

35) Estamos, perante um seguro desportivo de grupo em que a Autora surge como beneficiária, na qualidade de atleta federada e praticante amadora da tomadora de seguro, a Federação Portuguesa de Voleibol, que estava em vigor no ano em que a Autora se lesionou na prática da atividade desportiva em causa.

36) A propósito da questão da determinação do montante devido pela seguradora ao agente desportivo, verifica-se a existência de duas correntes na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça:

- de um lado: aquela que, considerando que no seguro desportivo obrigatório não está em causa a atribuição de indemnização fundada na responsabilidade civil por facto ilícito, entende que se trata de um seguro de prestações convencionadas, com conteúdo e montante previamente definidos, i.e., independentes da extensão do dano concretamente sofrido pelo lesado;

- de outro lado: aquela que reputa tratar-se de um seguro de prestações indemnizatórias, na medida em que não prescinde da ponderação dos danos efetivamente resultantes do sinistro, solução que a lei não afasta, antes acolhe à luz daquela que é a ratio subjacente à consagração dos seguros obrigatórios.

37) A sentença recorrida, mal, optou por enveredar no sentido da primeira tese, ou seja, decidiu pela determinação do quantum da atribuição patrimonial devida à Autora estritamente em função ou na proporção do grau de invalidez de que ficou a padecer em consequência do sinistro, desconsiderando e ignorando a extensão do dano concreto e os danos não patrimoniais.

38) Em sentido divergente da opção do tribunal a quo, tem de ser levado em consideração a jurisprudência mais avisada do STJ, nomeadamente: - de 4 de outubro de 2018 (PAULO SÁ), proc. n.º 4575/15.1T8BRG.G1.S118; - de 9 de maio de 2019 (NUNO PINTO DE OLIVEIRA), proc. n.º 1751/14.8TBVCD.P1.S119:; - de 10/10/2023 Processo n.º 1015/20.8T8PVZ.P1.S1: MARIA JOÃO VAZ TOMÉ):

39) Entende-se que a referência feita no art. 16.º, al. d), da LSD, ao concreto grau de incapacidade do lesado impõe, justamente, que se atenda à situação em que o mesmo efetivamente se encontra, o que não sucede se não se levar em devida linha de conta a extensão do dano concretamente por si sofrido, assim como aos danos não patrimoniais.

40) Por sua vez, este Tribunal da Relação do Porto proferiu em 27/02/2023 o acórdão em que foi decidido: “…..III - Assim, ao abrigo do disposto no art. 16.º d) daquele diploma, na fixação do capital a atribuir ao lesado, deverá efetuar-se referência à incapacidade concreta deste, não para efetuar um cálculo proporcional – 100% corresponderia à invalidez total e, a partir daí, aplicar-se-ia a percentagem de incapacidade ao capital garantido – mas para se apurar qual exatamente o dano real que sofreu, tendo em conta aquela incapacidade, atribuindo-se, ao abrigo do seguro, o capital respetivo, até ao limite de € 25.000,00 (ou do que for contratado, se superior a este valor). IV - O mesmo vale para os danos não patrimoniais que são, também, uma decorrência da invalidez ou incapacidade, não distinguindo aquele regime entre um (patrimonial) e outro (não patrimonial) dos danos.”

41) O acórdão atrás citado deste Tribunal da Relação foi validado e aderido, sem qualquer reserva, por este último acórdão do STJ de 10/10/2023 atrás referido, que sufragou o entendimento deste Tribunal da Relação.

42) Pelo exposto, deveria o Tribunal a quo, no cálculo da indemnização por invalidez permanente da Autora, ter antes optando por fazer o cálculo partindo da fórmula de cálculo do montante da indemnização devida nos termos gerais, ou seja, atendendo à dimensão do dano efetivamente sofrido, limitando-se, depois, porém, o montante concretamente obtido ao valor de €25.000, previsto no art. 16.º, al. d), ou ao capital seguro de 30.0000€, pois este é superior àquele.

43) Sendo que, atendendo aos danos e sequelas irreversíveis verificados pela Autora, bem descritos no relatório do IML e assentes nas alíneas l) e m) dos factos dados como provados, à idade da Autora, e à sua capacidade de ganho, deve ser revogada a decisão que apenas concedeu à Autora o valor de 1.200€ a este título, antes se devendo optar, por considerar justo e razoável o valor pedido pela Autora, e fixar, a este título, uma indemnização a favor da Autora no limite do capital garantido, ou seja, no valor de 30.000€ a pagar pela Ré seguradora.

44) O Tribunal a quo, também falhou e errou, ao não considerar atendíveis os danos não patrimoniais sofridos pela Autora, aderindo, mal, à primeira das teses jurisprudenciais acima referidas.

45) Na verdade, os danos não patrimoniais alegados resultaram provados e foram efetivamente sofridos pela Autora/recorrente (danos cuja indemnização legal está prevista no artigo 496º do C. Civil), como resulta das alíneas l), m), o), p), q), r), e s) dos factos dados como provados pela douta sentença aqui recorrida.

46) Por sua vez, o relatório do IML refere um quantum doloris de grau 3 em 7 - alínea m). Resultou, efetivamente provado, que a Autora sofreu dores, quer com o acidente, quer com os tratamentos. Provou-se igualmente que a Autora sofreu dores e danos psicológicos como desgosto e frustração.

47) Ora, também quanto aos danos não patrimoniais o STJ no seu já citado acórdão de 10/10/2023, secundou o acórdão deste Tribunal da Relação do Porto de 27/02/2023, que decidiu, a este propósito: “não distinguindo a lei entre o dano patrimonial e o dano não patrimonial, também não deve o intérprete distinguir, sob pena de subversão do espírito do legislador, sendo, por isso, nele contemplado o ressarcimento dos danos em qualquer das vertentes”

48) De resto, e continuando a citar o atrás referido acórdão do STJ de 10/10/2023: “segundo o art. 9.º, n.º 3, do CC, o intérprete deve presumir que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados, não podendo eleger um sentido que não encontra ressonância no texto da lei. Reitere-se que o seguro desportivo se consubstancia num seguro de acidentes pessoais e que não sendo passíveis de avaliação pecuniária direta, os danos corporais são considerados como danos não patrimoniais. In casu, uma vez que abrange expressamente a cobertura de “danos corporais” (cf. cláusula 5), o contrato de seguro não permite considerar excluídos os danos não patrimoniais. Acresce que, no caso de o contrato de seguro ser omisso sobre o tipo de danos a ressarcir, deve prevalecer o sentido mais favorável ao aderente (in dubio contra proferentem ou contra stipulatorem)”.

49) São invocados argumentos vários, nas decisões dos tribunais portugueses no sentido favorável à referida cobertura dos danos não patrimoniais conforme acima melhor referido e que o visado acórdão do STJ de 10/10/2023 exemplarmente descrimina e que aqui se reproduz.

50) Sendo que, sem qualquer hesitação, considerando os danos não patrimoniais sofridos pela Autora - bem descritos no relatório do IML e assentes nas alíneas l), m), o), p), q), r), e s) dos factos dados como provados pela douta sentença aqui recorrida - deve ser revogada a decisão que absolveu a Ré seguradora de pagar qualquer quantia à Autora a este título, antes se devendo optar, por considerar justo, razoável e consentâneo o valor pedido pela Autora a este título de indemnização por danos não patrimoniais no valor de 15.000€, e fixar, desta forma que Ré seja condenada a pagar uma indemnização a favor da Autora a título de pagamento de todos os danos não patrimoniais sofridos no citado valor de 15.000€.

51) A douta sentença recorrida, ao não ter decidido no sentido das precedentes conclusões, errou na subsunção dos factos ao direito, nomeadamente o art.º 9.º, 286.º, 294.º, 405.º e 496.º do Código Civil, art.º 16.º da LSD, art.º 2.º e 4.º do DL 146/93, art.º 5.º DL 10/2009, violando os princípios da liberdade contratual e da segurança jurídica.

52) Estando a sentença recorrida inquinada de erro de julgamento, pela errada subsunção dos factos ao direito e pela errada aplicação do direito, devendo por tal ser revogada.

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         A ré apresentou contra-alegações pugnando pela improcedência do recurso.


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            Após os vistos legais, cumpre decidir.


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II. DEFINIÇÃO DO OBJETO DO RECURSO

         O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. arts. 635º, nº 4, 637º, nº 2, 1ª parte e 639º, nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil[1].

Porque assim, atendendo às conclusões das alegações apresentadas pela apelante, são as seguintes as questões solvendas:

- da (in)adequação da forma de determinação do quantitativo atribuído à autora pela invalidez permanente parcial de que ficou portadora em consequência do ajuizado acidente desportivo;         

- da (in)existência de fundamento para atribuição de um montante para compensação de danos não patrimoniais sofridos pela autora.


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III. FUNDAMENTOS DE FACTO

III.1. Factualidade considerada provada na sentença

O tribunal de 1ª instância considerou provados os seguintes factos:

a) A autora nasceu em ../../1997;

b) O réu Grupo Desportivo e Cultural de ... era, e é, filiado e membro efetivo da Associação de Voleibol ... que, por sua vez, é filiada da Federação Portuguesa de Voleibol;

c) A autora praticava voleibol em instalações do Grupo Desportivo e Cultural de ... desde os oito anos de idade, realizando aí treinos periódicos, e participando em competições desportivas em representação deste Grupo;

d) A ré A..., S.A. fez emitir os documentos n.º 1 e 2, juntos com a sua contestação nos presentes autos (fls. 66 e ss), cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, que numerou como apólice n.º ...68, pelo qual declarou nomeadamente garantir o pagamento de indemnização por acidentes pessoais com âmbito de cobertura voleibol, por morte ou invalidez permanente >10%, até ao montante máximo de €30.000,00 por pessoa segura, e despesas de tratamento e repatriamento, até ao montante máximo de €5.000,00 por pessoa segura, consignando que “a invalidez permanente igual ou inferior a 10% não é indemnizável” mediante o pagamento pela Federação Portuguesa de Voleibol de uma contraprestação anual convencionada, no período desde 1/09/2013 e 31/08/2014, reportando-se às condições contratuais incluídas nos mesmos documentos, e devendo a Federação Portuguesa de Voleibol designar os beneficiários segurados, entre os quais se encontrava a autora;

e) Nessas condições contratuais consta nomeadamente: “ARTIGO 3.º DEFINIÇÃO E ÂMBITO DAS COBERTURAS (…) 2. INVALIDEZ PERMANENTE 2.1. Entende-se por Invalidez Permanente a perda anatómica ou impotência funcional de membros ou órgãos que, em consequência de lesões corporais resultantes de acidente coberto pela apólice, se encontre especificada na Tabela de Desvalorizações anexa a estas Condições Gerais e que faz parte integrante da apólice. (…) 2.3. Verificados os pressupostos enunciados em 2.1. e 2.2., o SEGURADOR pagará a parte do correspondente capital determinado pela Tabela de Desvalorizações anexa a estas Condições Gerais. (…) 6. DESPESAS DE TRATAMENTO E REPATRIAMENTO 6.1. Por Despesas de Tratamento entendem-se as relativas a honorários médicos e internamento hospitalar, incluindo assistência medicamentosa e de enfermagem, bem como de exames auxiliares de diagnóstico e de fisioterapia que forem necessárias em consequência do acidente. (…) 6.4. No caso de ser necessário tratamento clínico regular, e durante todo o período do mesmo, consideram-se também incluídas as despesas de deslocação ao médico ou Unidade Hospitalar, quando indicados e/ou convencionados pelo SEGURADOR e desde que o meio de transporte utilizado seja adequado à gravidade da lesão e devida e clinicamente fundamentado pelo médico assistente do Segurado/Pessoa Segura e consequente parecer prévio dos Serviços Técnicos e Clínicos do SEGURADOR.”;

f) Foi remetido à ré, que o recebeu em 18/03/2014, o escrito junto como documento n.º 4 com a petição (fls. 15), intitulado “participação de acidente”, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;

g) No dia 13 de março de 2014, pelas 21.00h, no Pavilhão Municipal ..., sito na freguesia ..., concelho ..., durante a prática de um treino desportivo habitual de preparação para a competição desportiva da equipa de voleibol do clube e Grupo Desportivo e Cultural de ..., da qual a autora fazia parte integrante, esta ao saltar na rede e no movimento descendente pousou o seu pé direito em cima de um pé de uma outra atleta, que originou uma fratura osteocondral no tornozelo com rotura de ligamentos e com fragmentos osteocondrais intra-articulares;

 h) Em consequência foi assistida no Hospital ..., onde foi examinada e submetida a radiografia, apresentando edema e derrame, e regressou ao domicílio com imobilização;

i) Foi de novo examinada no dia 17/03/2014 no mesmo hospital, onde foi submetida a TC e RMN que confirmou a entorse do tornozelo, com fratura, e lhe foi colocada tala gessada com indicação operatória;

j) Foi submetida a cirurgia no dia 28/03/2014, tendo ficado internada um dia no referido Hospital ..., e teve alta para o domicílio com tala engessada no pé;

k) Após iniciou recuperação funcional com tratamentos de fisiatria que manteve até setembro de 2014;

l) Como sequelas das lesões após tratamento a autora apresenta duas cicatrizes nacaradas dificilmente discerníveis na face posterior do tornozelo com hipossensibilidade local e dor à palpação, e em consequência de tais sequelas a autora apresenta diminuição da flexibilidade do pé direito, dor após prolongamento de marcha ou posição ortostática, dificuldade em subir rampas, e desconforto ao correr e saltar e na condução prolongada de automóvel;

m) Em consequência das lesões sofridas, a autora sofreu défice funcional temporário de 174 dias, com repercussão temporária total da atividade formativa de 2 dias e parcial de 172 dias, quantum doloris de grau 3 em 7, e défice funcional permanente na integridade físico-psíquica fixado em 4 pontos, dano estético de grau 1 em 7, e repercussão permanente nas atividades desportivas e de lazer de grau 1 em 7;

 n) À data do acidente a autora era estudante;

o) Em consequência das lesões sofridas e tratamentos subsequentes a autora não participou na época desportiva daquele ano, tendo regressado no ano seguintes durante um ano, fez uma pausa de um ano que relacionou com opções académicas, retomou a prática mais dois anos e abandonou a modalidade;

p) No regresso à prática do voleibol, a autora diminuiu o rendimento desportivo, necessitava de usar ortótese no tornozelo, e sofria de frequentes torções e fenómenos dolorosos, com necessidade de colocar gelo;

q) Embora não tivesse em mente uma carreira desportiva, a autora tinha o desejo de continuar a praticar a modalidade o maior tempo possível, e tinha sido já chamada à seleção nacional, e sentiu frustração com as limitações de que passou a sofrer, desanimando da prática da modalidade de que muito gostava, o que lhe causou desgosto;

r) Em consequência do acidente e das lesões sofridas, bem como ao longo do período de recuperação, a autora sentiu dores, que ainda hoje mantém, e sente desgosto e frustração pelas limitações físicas de que padece;

s) Em consultas médicas, meios auxiliares de diagnóstico, ortóteses, medicamentos e sessões de fisioterapia para tratamento das lesões consequentes ao acidente a autora despendeu €1.014,77;

t) Para tratamento das lesões sofridas a autora deslocou-se por cinco vezes ao Hospital ..., duas vezes ao Hospital 2... no ..., e trinta e seis vezes a B...;

u) Na sequência de requerimento nesse sentido formulado pela autora em 3 de março de 2017 junto do Juízo Local Cível de Lisboa, foi entregue à ré A..., S.A. pela Sr.ª agente de execução, em 8/03/2017, cópia do escrito junto 23 de Agosto de 2023 (fls. 266), cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, do qual consta nomeadamente que em referência ao acidente em discussão nos presentes, por cujos danos a requerida seria responsável, pretende interromper o prazo de prescrição da correspondente indemnização.

*

III.2. Factualidade considerada não provada na sentença

O Tribunal de 1ª instância considerou não provado que em consequência das lesões sofridas no acidente a autora tenha de se sujeitar no futuro a novos tratamentos médicos e medicamentosos.

***

IV. FUNDAMENTOS DE DIREITO

No terminus da peça processual com que deu início à presente ação declaratória a autora peticionou a condenação da parte contrária no pagamento da quantia global de €115.234,77 (sendo €15.000,00 a título de compensação por danos não patrimoniais, €99.120,00 para indemnização dos danos patrimoniais futuros e €1.114,77 referente às despesas de tratamento que suportou), filiando essa pretensão de tutela jurisdicional no facto de ter sofrido acidente desportivo que se mostra abrangido pelo âmbito de cobertura do contrato de seguro de que é beneficiária/pessoa segura.

Na decisão recorrida o juiz a quo condenou a “Companhia de Seguros C..., S.A.” no pagamento à autora da quantia de €2.214,77, correspondente ao somatório do valor das despesas de tratamento que esta liquidou (no montante de €1.014,77) e do capital atribuído pela incapacidade permanente parcial de que ficou portadora calculado de acordo com os valores estipulados no contrato de seguro (no montante de €1.200,00), julgando improcedente o pedido respeitante à compensação dos danos não patrimoniais.

A autora e ora apelante rebela-se contra esse segmento decisório sustentando que, ao abrigo do ajuizado contrato de seguro, tem direito a ser ressarcida pelos danos não patrimoniais decorrentes do acidente que sofreu enquanto “praticante de atividade desportiva”, bem como à reparação integral dos danos patrimoniais que esse evento súbito lhe ocasionou.
Que dizer?

Como emerge do tecido fáctico apurado, a autora, no dia 13 de março de 2014, enquanto atleta amadora federada do Grupo Desportivo e Cultural de ..., durante a realização de um treino de voleibol, sofreu uma lesão no tornozelo direito de que resultou um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica fixável em 4 pontos. Nessa data encontrava-se em vigor (por imposição legal) um contrato de seguro desportivo, titulado pela apólice n.º ...68, celebrado entre a Federação Portuguesa de Voleibol e a ré A..., S.A., o qual cobria os riscos de acidentes pessoais sofridos durante a prática desportiva pelos atletas inscritos naquela Federação, entre os quais a autora.

Problema que desde logo se equaciona prende-se com a natureza desse contrato de seguro cuja regulação normativa consta hoje do DL nº 10/2009, de 12.01 (que estabelece o regime jurídico do seguro desportivo obrigatório - doravante, LSD), dando, assim, concretização à determinação vertida no art. 42º da Lei de Bases da Atividade Física e do Desporto (Lei nº 5/2007, de 16.01), no qual se impôs «[a] institucionalização de um sistema de seguro obrigatório dos agentes desportivos inscritos nas federações desportivas destinado a cobrir os particulares riscos a que estão sujeitos».

Esse desiderato é expressamente assinalado no preâmbulo do primeiro diploma citado onde se refere que presentemente “cobrir os riscos, através da instituição do seguro obrigatório, é uma necessidade absoluta para a segurança dos praticantes”, acrescentando, mais adiante, que “com os seguros obrigatórios atende-se a uma necessidade social fundamental, a de assegurar que o beneficiário chegue, efetivamente, a usufruir da cobertura. É certo que um sistema de seguros não evita o risco, mas previne o perigo de as vítimas não obterem o ressarcimento”.

Desta forma, a LSD prevê (art. 2º, nº 1) que os agentes desportivos, os praticantes de atividades desportivas em infraestruturas desportivas abertas ao público e os participantes em provas ou manifestações desportivas devem, obrigatoriamente, beneficiar de um contrato de seguro desportivo; já o nº 2 desse mesmo normativo estabelece que a responsabilidade pela celebração desse contrato cabe às federações desportivas, às entidades que explorem infraestruturas desportivas abertas ao público e às entidades que organizem provas ou manifestações desportivas.

Por seu turno, o seu art. 5º veio estabelecer que esse seguro «[c]obre os riscos de acidentes pessoais inerentes à respetiva atividade desportiva, nomeadamente os que decorrem dos treinos, das provas desportivas e respetivas deslocações, dentro e fora do território português» (nº 1), fixando como coberturas mínimas abrangidas (cfr. arts. 5º, nº 2 e 16º): i) “pagamento de um capital por morte – €25.000,00”, ii) “despesas de funeral - €2.000,00”, iii) “invalidez permanente absoluta - €25.000,00”; iv) “invalidez permanente parcial - €25.000,00, ponderado pelo grau de incapacidade fixado”; v) “despesas de tratamento, incluindo internamento hospitalar, e de repatriamento - €4.000,00”.

Em face do descrito regime normativo[2], na medida em que o seguro desportivo obrigatório cobre os riscos de acidentes inerentes à atividade desportiva, assume o mesmo natureza de seguro de acidentes pessoais (regulado, em termos gerais, nos arts. 210º a 212º do DL nº 72/2008, de 16.04, que aprovou o regime jurídico do contrato de seguro - LCS), sendo que, em função das coberturas mínimas fixadas, na esteira de MARGARIDA LIMA REGO[3], entendemos ser de qualificar esse seguro como uma figura híbrida, com uma vertente de seguro de capitais – porque determina o pagamento de um capital por morte ou invalidez, total ou parcial, em cuja fixação não se aplica o princípio indemnizatório, que limitaria a prestação do segurador ao valor do dano decorrente do sinistro; e uma vertente de seguro de danos – já que cobre as despesas de tratamento e de repatriamento, onde, por contrapartida, se aplica o princípio indemnizatório.

Neste particular não será, aliás, despiciendo registar que integrando-se tal contrato na categoria mais vasta do seguro de pessoas, a respetiva normação (art. 175º, nº 2 da LCS) expressamente prevê a possibilidade de nele se garantirem prestações de valor predeterminado não dependente do efetivo montante do dano ao lado de prestações indemnizatórias[4].

Descendo ao caso dos autos, verifica-se que o ajuizado contrato de seguro (que assume igualmente natureza de seguro de grupo) comunga, em grande medida, das enunciadas características, tendo as partes contratantes convencionado, nas respetivas Condições Particulares, como coberturas: i) pagamento de despesas de tratamento e repatriamento até €5.000,00, com uma franquia de €75,00 por pessoa; ii) pagamento de um capital de €30.000,00 por morte ou invalidez permanente superior a 10%; iii) pagamento de despesas de funeral até €3.000,00.

Na sentença recorrida considerou-se que essas condições particulares enfermam de vício de nulidade (por afrontar norma cogente constante do art. 16º da LSD) na parte onde se estabelece que o dano de invalidez permanente somente estaria coberto se a mesma fosse superior a 10%. Esse segmento decisório não foi alvo de impugnação recursiva razão pela qual, por aplicação do regime plasmado nos arts. 292º e 294º do Cód. Civil, todas as incapacidades permanentes gerais (independentemente, pois, do seu grau) serão passíveis de serem ressarcidas ao abrigo do ajuizado contrato de seguro em conformidade com o que se estabelece na al. d) do citado art. 16º.

Isto posto, importa agora dilucidar se, ao abrigo desse contrato, a autora apelante terá direito à atribuição dos montantes que reclama, seja em relação ao capital devido em resultado da incapacidade permanente parcial de que ficou portadora, seja a título de reparação dos danos não patrimoniais.

Relativamente ao primeiro dos referidos montantes o decisor de 1ª instância na fixação desse quantum recorreu a uma “regra de três simples”, tendo reduzido proporcionalmente o limite de capital de €30.000,00 – definido contratualmente para o grau máximo da incapacidade permanente parcial – em função do grau de incapacidade permanente parcial de 4% atribuído à autora, arbitrando a esse título a quantia de €1.200,00. Já no concernente aos danos não patrimoniais entendeu que a reparação dos mesmos não se mostra abrangida pelo âmbito de cobertura do contrato de seguro em causa.

Na sua peça recursiva a apelante argumenta que a determinação da indemnização pela incapacidade permanente parcial de que ficou afetada não deve ser feita por apelo a um simples cálculo aritmético (de multiplicação entre o capital contratado e a percentagem da incapacidade fixada), devendo antes ser fixada, tal como a compensação por danos não patrimoniais, nos termos gerais de direito (arts. 496º e 566º do Cód. Civil).

Esta problemática tem sido objeto de apreciação nos nossos tribunais, não se registando, contudo, uma resposta unívoca a respeito da forma de cálculo da indemnização devida por incapacidade permanente do beneficiário e da ressarcibilidade de danos não patrimoniais ao abrigo do contrato de seguro desportivo[5].

Na nossa perspetiva, a resolução das equacionadas questões entronca, fundamentalmente, na natureza desse contrato como seguro de pessoas, cujo objeto, como se deu nota, pode contemplar, simultaneamente, prestações convencionadas (ou de valor predeterminado) e prestações indemnizatórias.

Na verdade, como emerge do citado art. 16º da LSD, enquanto as coberturas previstas para as despesas de funeral (al. b)) e para as despesas de tratamento e repatriamento (al. e)) apontam para o montante dessas despesas dentro dos limites aí fixados, já as coberturas por morte (al. a)) ou por invalidez permanente absoluta ou parcial (als. c) e d)) encontram-se configuradas como prestações de capital predeterminadas em função exclusiva da natureza dessas lesões, devendo ainda a invalidez permanente parcial ser ponderada pelo grau de incapacidade que for fixado (al. d)).

Significa isto que estas últimas coberturas (por morte ou por invalidez permanente) se traduzem em obrigação de prestação convencionada independente do valor do dano efetivo e não em prestação indemnizatória propriamente dita, como no caso das referidas coberturas pelas despesas de funeral e de tratamento.

Esta linha de entendimento tem sido seguida em diversos arestos do STJ, designadamente em acórdão de 08.09. 2016[6], ao considerar-se que, na hipótese de invalidez permanente parcial, “a determinação do quantitativo da atribuição patrimonial devida à pessoa segura em função do sinistro se acha estritamente correlacionada com o grau de invalidez de que aquela ficou a padecer em consequência desse evento” sendo este “o único fator a atender”. Nessa mesma linha (relativamente à reparabilidade dos ditos danos morais) se decidiu no acórdão do STJ de 06.04.2017[7], ao concluir que não se vê “como pode ter-se por compreendida no capital por invalidez permanente, para além da estrita indemnização correspondente à percentagem da perda de capacidade aquisitiva, a indemnização por danos não patrimoniais.”

A esse propósito, no último aresto citado, é feita a seguinte observação crítica: «(…) a entender em contrário, teríamos de aceitar a incongruente solução de que a apólice apenas contemplaria a reparação de danos não patrimoniais em casos de menor gravidade, em que a invalidez permanente fosse de um valor percentual mais baixo, pois o valor do capital disponível para tal indemnização iria diminuindo à medida que fosse subindo o grau de desvalorização funcional permanente. E chegar-se-ia ao absurdo de, no caso de uma incapacidade permanente absoluta para todo e qualquer trabalho, correspondente a uma IPP de 100%, ou mesmo no caso de um IPP de 66% - potencialmente determinativas de maiores danos em bens de ordem espiritual, atenta a maior gravidade do dano corporal e as maiores limitações físicas que coenvolvem -, a apólice não contemplar a indemnização por danos não patrimoniais por não haver já capital disponível para o efeito».

Não se ignora, no entanto, a jurisprudência que admite a reparação dos danos não patrimoniais, em caso de invalidez permanente, no âmbito do contrato de seguro desportivo obrigatório, tal como foi entendido, nomeadamente no acórdão do STJ de 10.10.2023[8] (que, aliás, a apelante cita abundantemente nas suas alegações recursivas), a considerar que a alínea d) do art. 16.º da LSD, deve ser interpretada no sentido de determinar tão-só o montante máximo de capital devido pela seguradora, devendo, dentro deste limite, ser atendidos tanto os danos patrimoniais como os danos não patrimoniais, considerando nulas as cláusulas que excluam tal atendimento por aplicação conjugada do art. 6.º da LSD e do art. 294.º do Cód. Civil.

Porém, salvo o devido respeito, uma tal solução não se afigura compatível com a já assinalada natureza do contrato de seguro desportivo obrigatório por acidentes pessoais tal como se encontra parametrizado em sede de coberturas mínimas no art. 16.º da LSD, ao prever uma prestação de capital pré-determinada, mormente para a invalidez permanente, total ou parcial, sem qualquer consideração pelo valor do dano efetivo.

De salientar que o art. 5.º, n.º 2, al. a), da LSD estabelece a cobertura mínima abrangida pelo seguro desportivo para o pagamento de um capital por morte ou invalidez permanente, total ou parcial, por acidente decorrente da atividade desportiva, o que se afigura não equivaler, juridicamente, a pagamento de indemnização propriamente dita em função do dano efetivo ainda que limitada àquele capital.

Poderá discutir-se, de jure condendo, se não seria mais adequado ou justo atender ao dano efetivo como fator complementar na fixação da prestação devida, mas o certo é que - como se evidencia no acórdão do STJ de 7.11.2019[9] - este fator não foi erigido como critério legal, nem era imperioso que o fosse, tanto mais que, em conformidade com o disposto no art. 175º, nº 2 da LCS, o contrato de seguro de pessoas pode garantir prestações de valor predeterminado não dependente do efetivo montante do dano.

De resto, uma solução que se pautasse, sem mais, pelo atendimento do dano efetivo poderia levar até a que a “indemnização” por invalidez permanente ficasse aquém do valor do capital garantido, caso o montante daquele dano fosse porventura inferior a este capital.

Acresce que - como bem se sublinha no último aresto citado e que aqui seguimos de perto - atender ao valor do dano efetivo, incluindo dos danos não patrimoniais, poderá eclipsar a diferenciação da atribuição patrimonial devida por invalidez permanente absoluta e a devida por invalidez permanente parcial e, no âmbito desta, a que for devida em função dos graus de incapacidade fixados, diferenciação essa, de cariz objetivo, que se encontra bem patente no art. 16.º, als. c) e d) da LSD.

Não parece, por isso, que as exclusões previstas no art. 6.º desse diploma devam ter um alcance tal que conduzam à obliteração dessa diferenciação legal.

Em suma, a garantia do capital mínimo pela cobertura do contrato de seguro desportivo obrigatório para os casos de invalidez permanente do sinistrado, absoluta ou parcial, estabelecida nas als. c) e d) do art. 16.º da LSD, de forma taxativa, com a ponderação ainda do grau de incapacidade fixado, no caso de invalidez parcial, insere-se perfeitamente no quadro do contrato de seguro de acidentes pessoais na modalidade de prestações de valor predeterminado não dependente do montante efetivo do dano, de modo a proporcionar um ressarcimento do sinistrado a forfait, seja este dano superior ou inferior àquele valor.

Por outro lado, visando-se cobrir o risco de lesões corporais determinativas de invalidez permanente inerentes a acidente em atividades desportivas, nem sequer necessariamente associado à prática de ilícito civil no domínio da responsabilidade extracontratual, não se mostra imperioso que a prestação devida pelo segurador seja aferível pelo dano efetivo ou esteja limitada a este, segundo o princípio indemnizatório consagrado no artigo 128.º da LCS para o contrato de seguro de danos.

Nessa conformidade, ao invés do que sustenta a apelante, não se afigura que a “indemnização” desse modo pré-determinada na ajuizada apólice de seguro seja, sem mais, contrária à natureza da atividade desportiva ou provoque um esvaziamento do objeto do contrato de seguro nos termos e para os efeitos do art. 6.º da LSD.

No caso vertente, o contrato de seguro desportivo celebrado entre a ré seguradora e a Federação Portuguesa de Voleibol - tendo a autora como beneficiária aderente - garante, no caso de invalidez permanente, a cobertura mínima de € 30.000,00, por acidente, em função do grau de desvalorização sofrida pela sinistrada, de acordo com a Tabela Nacional para Avaliação de Incapacidades Permanentes em Direito Civil, o que condiz com o critério objetivo imperativamente consagrado no art. 16.º, al. d), da LSD, sendo certo, outrossim, que esse seguro, na sua conformação legal, não é (contrariamente ao que parece ser entendimento da apelante) um seguro de responsabilidade civil destinado a reparar a integralidade dos danos sofridos pela pessoa segura (como é imposto, para esse tipo contratual, nos arts. 138º, nº 2 e 146º da LCS).

Nessa base, independentemente da natureza patrimonial ou não patrimonial dos danos sofridos pela autora em resultado do acidente desportivo em causa e da repercussão patrimonial do défice funcional permanente da integridade físico-psíquica fixado em 4 pontos (de acordo com a Tabela de Avaliação de Incapacidades Permanentes em Direito Civil), o ressarcimento dos mesmos não pode, nos termos explanados, deixar de ser efetuado em conformidade o que está pré-determinado na ajuizada apólice de seguro. Consequentemente - como se afirmou e decidiu na sentença recorrida -, tal passa por arbitrar uma prestação de capital (e não, verdadeiramente, uma “indemnização”, por não estarmos em presença, como se referiu, de um seguro de responsabilidade civil) na proporção desse grau de incapacidade sobre o valor do capital garantido, o que, in casu, equivale a €1.200,00 [€ 30.000,00 x 4%], mostrando-se, assim, afastada a atribuição de qualquer outra prestação a cargo da ré seguradora, como é reclamado pela apelante.

Isso mesmo é posto em evidência por RODRIGUES ROCHA[10], ressaltando que «a orientação que considera indemnizatórias, no seguro desportivo, as prestações de seguro por invalidez permanente não tem razão de ser. Com efeito, a lei é clara no sentido de que a cobertura comporta, neste caso, o “pagamento de um capital” e que o cálculo se “faz pelo grau de incapacidade fixado”, não em função dos danos», rematando, mais adiante (pág. 316), que «os limites mínimos de capital no seguro desportivo são manifestamente baixos. Ao legislador, não aos tribunais, incumbe e impõe-se revê-los ou alterar o método de cálculo».

Por conseguinte, o presente recurso terá de improceder.


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III. DISPOSITIVO

Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação interposta pela autora, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas do recurso a cargo da apelante.

Porto, 10/7/2024.
Miguel Baldaia de Morais

Ana Paula Amorim

José Eusébio Almeida


____________________
[1] Diploma a atender sempre que se citar disposição legal sem menção de origem.
[2] Para maior desenvolvimento sobre a análise do diploma que instituiu o seguro desportivo obrigatório, cfr., inter alia, ANA BRILHA, O Novo Regime do Seguro Desportivo – Verdadeira inovação?, in Revista Jurídica do Desporto, ano VI (janeiro/abril de 2009), págs. 293 e seguintes e  P F. ALVES, Decreto-Lei n.° 10/2009, de 12 de Janeiro, que estabelece o regime jurídico do seguro desportivo obrigatório, in AAVV, A nova legislação do desporto comentada, 2010, págs. 153 e seguintes.
[3] O início da cobertura no seguro desportivo, in O desporto que os tribunais praticam, AAVV, Almedina, 2014, pág. 211 e seguintes, onde igualmente sustenta que este seguro pode ainda qualificar-se como um seguro por conta de outrem, dado que os sujeitos passivos do dever de segurar não coincidem com a pessoa dos segurados, titulares da cobertura – os agentes desportivos; em idêntico sentido milita RODRIGUES ROCHA, Seguro desportivo – cobertura de danos não patrimoniais?, in Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, ano LXI (2020), nº 2, págs. 303 e seguinte – artigo acessível em https://www.fd.ulisboa.pt/wp-content/uploads/2021/10/Francisco-Rodrigues-Rocha.pdf.
[4] Segundo JOSÉ VASQUES (in Contrato de Seguro, Coimbra Editora, 1999, pág. 47) serão seguros de prestações indemnizatórias todos aqueles em que a prestação da seguradora consiste num valor a determinar a partir dos danos resultantes do sinistro, sendo seguros de prestações convencionadas todos aqueles em que o conteúdo e montante dessas prestações estejam previamente definidos, dependendo apenas a sua realização da verificação de determinado evento.
[5] Cfr., sobre a questão e por todos, acórdãos do STJ de 04.10.2018 (processo nº 4575/15.1T8BRG.G1), de 09.05.2019 (processo nº 1751/14.8TBVCD.P1.S1), de 7.11.2019 (processo nº 654/16.T8ABT.E1.S1) e de 6.04.2017 (processo nº 335/10.4TTOAZ-P1.S1), acórdão da Relação de Lisboa de 09.07.2014 (processo nº 1118/2002.L1.2), acórdão da Relação de Coimbra de 23.11.2018 (processo nº 4285/15.0T8CBR.C1), acórdãos desta Relação de 24.04.2018 (processo nº 293/13.9TBVFR.P1) e de 15.11.2018 (processo nº 1751/14.8TBVCD.P1), acórdão da Relação de Évora de 12.06.2019 (processo nº 945/13.8TVALR.E1) e acórdão da Relação de Guimarães de 28.11.2019 (processo nº 2541/17.1T8BCL.G1), todos disponíveis em www.dgsi.pt.
[6] Proferido no processo n.º 1311/11.5TJVNF.G1.S1, acessível em www.dgsi.pt.
[7] Proferido no processo n.º 335/10.4TTOAZ-P1.S1, acessível em www.dgsi.pt.
[8] Proferido no processo n.º 1015/20.8T8PVZ.P1.S1, acessível em www.dgsi.pt.  
[9] Prolatado no processo nº 654/16.6T8ABT.E1.S1, acessível em www.dgsi.pt.
[10] Ob. citada, pág. 308 e seguintes.