Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3846/23.8T8VFR-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANA VIEIRA
Descritores: PROVIDÊNCIA CAUTELAR
ARBITRAMENTO DE REPARAÇÃO PROVISÓRIA
REQUISITOS CUMULATIVOS
Nº do Documento: RP202407103846/23.8T8VFR-A.P1
Data do Acordão: 07/10/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: Para o decretamento da providência cautelar de arbitramento de reparação provisória, prevista nos artigos 388.º a 390.º do CPC, mostra-se necessária a verificação dos seguintes requisitos:
a)-Que esteja indiciada a existência de obrigação de indemnizar a cargo da requerida e do correspondente direito de indemnização do requerente pela produção de um dano;
b)-Que ocorra a verificação de situação de necessidade do requerente; e
c)-Que exista a comprovação de nexo de causalidade adequada entre a situação de necessidade verificada e o dano.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 3846/23.8T8VFR-A.P1

Origem: Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, S.M.Feira - Jc Cível - Juiz 1

Relatora: Ana Vieira

1º Adjunto Juiz Desembargador Dr. António Paulo Esteves Aguiar de Vasconcelos

2º Adjunto Juiz Desembargador Dr. Aristides Rodrigues de Almeida 


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Sumário

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Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I- RELATÓRIO

A Requerente AA, intentou a presente providência cautelar de Arbitramento de Reparação Provisória contra a Requerida A..., S.A., peticionando o arbitramento de uma indemnização no valor de € 500,00 mensais.

A requerente alega para tanto e em resumo que a sua filha BB, falecida no acidente de viação em 20/03/2016, contribuía para as despesas mensais do agregado familiar, uma vez que vivia com a Requerente, tendo esta perdido o mencionado apoio económico. Mais reitera que a falecida BB era um suporte financeiro essencial para o seu agregado familiar pois contribuía com € 300,00, mensalmente, para ajudar os pais com despesas atinentes a mercearia, água, luz e gás. Aduz ainda que, entendendo que tem direito a ser indemnizada pelo falecimento da filha, justifica o lançar mão da presente providência invocando que não pode aguardar pelo “natural moroso processo declarativo”.

A Requerente juntou documentos e arrolou testemunhas.

Foi citada a Requerida a qual veio deduzir oposição, invocando desde logo a excepção da ilegitimidade processual e substantiva activa da Requerente, bem como a prescrição do alegado direito que a Requerente pretende exercer, pois é de entendimento que o direito de indemnização por responsabilidade civil extracontratual prescreve em 3 anos contados da data da ocorrência do facto danoso, o que no seu entender já decorreu.

No mais, invoca que não se alcança de que maneira a Requerente “entende que, (apenas) atualmente, se verifica uma situação de necessidade, só ultrapassável através da presente providência cautelar.” e que “ o valor mensal que a Requerente peticiona (€ 500,00), representa praticamente o dobro do valor com o qual a falecida BB alegadamente contribuía (€ 300,00). ”

Conclui pela improcedência da presente providência cautelar.

A Requerida juntou documentos e arrolou testemunhas.

Realizou-se a audiência final, com observância de todas as formalidades legais, conforme se extrai da respectiva acta.

Foi proferida a sentença recorrida nos seguintes termos: «… V - Decisão:

Em face do exposto, julgo a presente providência cautelar parcialmente procedente e, em consequência, condeno a Requerida a pagar à Requerente, com efeitos desde Dezembro de 2023, a renda mensal de € 300,00 (trezentos euros), até ao dia 20 de cada mês, a título de reparação provisória.

A quantia referente às rendas de Dezembro/23 a Março/24 devem ser pagas em conjunto com a renda do corrente mês de Abril de 2024.

Custas pela requerida (cfr. art. 539.º, n.º 1, do Código de Processo Civil).

Fixo o valor do procedimento cautelar em € 6.000,00 (seis mil euros) – cfr. art. 304.º, n.º 3, al. a), do Código de Processo Civil. Registe e notifique…»(sic).


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A sentença recorrida tem o seguinte teor quanto ao saneamento dos autos (apreciação da matéria de excepção invocada) e quanto á decisão de direito:«… I – Relatório

A Requerente AA, intentou a presente providência cautelar de Arbitramento de Reparação Provisória contra a Requerida A..., S.A., peticionando o arbitramento de uma indemnização no valor de € 500,00 mensais.

…Foi citada a Requerida a qual veio deduzir oposição, invocando desde logo a excepção da ilegitimidade processual e substantiva activa da Requerente, bem como a prescrição do alegado direito que a Requerente pretende exercer, pois é de entendimento que o direito de indemnização por responsabilidade civil extracontratual prescreve em 3 anos contados da data da ocorrência do facto danoso, o que no seu entender já decorreu.

No mais, invoca que não se alcança de que maneira a Requerente “entende que, (apenas) atualmente, se verifica uma situação de necessidade, só ultrapassável através da presente providência cautelar.” e que “ o valor mensal que a Requerente peticiona (€ 500,00), representa praticamente o dobro do valor com o qual a falecida BB alegadamente contribuía (€ 300,00). ”

Conclui pela improcedência da presente providência cautelar.

Realizou-se a audiência final, com observância de todas as formalidades legais, conforme se extrai da respectiva acta.


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II – Saneamento

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O Tribunal é competente em razão da nacionalidade, da matéria, da hierarquia, do valor e da forma de processo.

O processo está isento de nulidades que o invalidem totalmente.

As partes estão dotadas de personalidade e capacidade judiciárias.


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Quanto à Ilegitimidade Activa processual da A. invocada pela R.:

O tribunal deve proceder à análise concreta da causa de pedir e do pedido formulado, pois que a competência deve ser aferida em função do modo como a causa é delimitada pelo A. na petição inicial e não pela controvérsia que resulta da confrontação entre a acção e a defesa atentando no pedido e causa de pedir.

No que concerne à legitimidade activa processual ( da Ilegitimidade substantiva mais adiante nos debruçaremos sobre o assunto): Conforme vem configurada a acção, arrogando-se a A. como sujeito da relação material controvertida, apresentando uma questão cuja matéria se mostra controvertida, tal é de per si suficiente para afirmar a sua legitimidade processual em face do que estatui o art. 30º, nº 1 e 3 do C.P. Civil, aqui aplicável, entendendo-se que a A. tem interesse direto em demandar, face aos concretos elementos que invoca.

No que concerne à invocada ilegitimidade substantiva trazida pela R.: Para analisar esta excepção revisitamos o que acima deixámos expresso sobre o conceito de legitimidade processual.

Conforme estatui o art.º 30.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, “o autor é parte legítima quando tem interesse direto em demandar”, densificando-se no n.º 2 do mesmo preceito que “o interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da ação” e ainda no n.º 3 que “na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para efeitos de legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor”.

Impõe-se ter em consideração que a legitimidade processual, que se não confunde com a denominada legitimidade substantiva, requisito da procedência do pedido, afere-se pelo pedido e causa de pedir, tal como os apresenta o autor, independentemente da prova dos factos que integram a última ( ver neste sentido Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, I, 1999, p. 52). Então, a parte é legítima quando, admitindo-se que existe a relação material controvertida, ela for efetivamente seu titular. Na verdade, “a relação controvertida, tal como a apresenta o autor e forma o conteúdo jurídico da pretensão deste é que é - em orientação jurídica - o objeto do processo, em face do qual (e, por isso, quase sempre determinável por simples exame da petição inicial) se aferem a legitimidade e os outros pressupostos que desse objeto dependam”. Em suma, “a parte é legítima quando, admitindo-se que existe a relação material controvertida, dela for efetivamente seu titular" (Castro Mendes, Manual de Processo Civil, Coimbra:1963, pp. 260-262).

È desta forma que, pelo cotejo da petição inicial quanto aos sujeitos, pedido e causa de pedir que importa aferir da exceção de ilegitimidade ativa dos autores.

Nos presentes autos, a autora, invocando a qualidade de progenitora (ascendente) de BB, falecida em 20-03-2016, invocando a autora que o óbito ocorreu na sequência e por causa de um acidente de viação causado pelo despiste do veículo ..-..-MR, conduzido por CC, segurado na Requerida e imputando a responsabilidade pela eclosão do mesmo ao condutor do MR, peticionam a condenação da Requerida no pagamento à A. da quantia de 500,00€ mensais, a título de alimentos.

A Requerida, devidamente citada, arguiu a ilegitimidade activa da Requerente, sustentando em síntese que a mesma não integra os beneficiários do direito reclamado nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 495.º do Código Civil, na medida em que não se encontra no leque de pessoas que poderiam exigir alimentos à falecida, tanto mais que, tendo a vítima um filho, a Requerida já o indemnizou, pelo que requer a absolvição do pedido.

Para encurtar argumentos, citemos com propriedade, por todos, o vertido no Ac. STJ Processo 674/20 VFR, datado de 25/05/2021, com o qual concordamos integralmente, ao consignar: “II - A indemnização por danos patrimoniais devidos aos parentes, em caso de morte da vítima, reconduz-se, praticamente, à prestação dos alimentos, sendo titulares deste direito os que podiam exigir alimentos ao lesado, em conformidade com o disposto pelos artigos 495º, nº 3 e 2009º, nº 1, do CC.

III - No caso vertente, os autores têm a qualidade de que depende a possibilidade legal do exercício do direito, pois que são os pais do falecido e, como tal, este estava vinculado a prestar-lhes alimentos, como alegam os autores que lhes prestava.”

Valendo-nos do contributo esclarecido do acórdão que vem de se citar, que acompanhamos in totum entendemos, parafraseando os doutos ensinamentos ali vertidos, que “ Em relação aos danos patrimoniais, ou seja, o prejuízo efetivo sofrido pela morte da vítima, tem direito a indemnização qualquer pessoa que pudesse exigir alimentos à vítima (lesado).

Estatui o nº 3 do art. 495 do CC que têm direito a indemnização os que podiam exigir alimentos ao lesado ou aqueles a quem o lesado os prestava.

E são titulares do direito a indemnização, como enunciado no nº 3 do art. 495º do CC, os ascendentes, aqui autores, porque conforme alegam, o lesado seu descendente já lhes prestava alimentos.

E de acordo com a ordem contemplada pelo art. 2009º, nº 1, b), do CC, os descendentes estão vinculados à prestação de alimentos.

Como se entendeu no Ac. deste STJ de 17-02-2009, no proc. nº 08A2124, “A referência que é feita, no respetivo nº 3, do artigo 495, do CC, aqueles que podiam exigir alimentos ao lesado, destina-se, desde logo, a explicitar o âmbito ou leque dos beneficiários de indemnização a que o terceiro causador do dano fica obrigado.

A isto acresce que a justificação teleológica deste normativo, ao referir-se, concretamente, aos alimentandos e não a outra categoria ou qualidade de destinatários, consiste no facto de no mesmo preceito se tentar preservar o direito a alimentos daqueles que já antes usufruíam ou deles podiam usufruir”.

Ao nível dos danos patrimoniais resultantes da perda da capacidade aquisitiva da vítima, está alegado o que esta auferia, em rendimentos do trabalho, do qual revertia (assim vem alegado) uma quantia para ajuda às despesas dos autores.

A indemnização por danos patrimoniais devidos aos parentes, em caso de morte da vítima, reconduz-se, praticamente, à prestação dos alimentos, sendo titulares deste direito os que podiam exigir alimentos ao lesado, em conformidade com o disposto pelos artigos 495º, nº 3 e 2009º, nº 1, do CC.

No caso vertente, os autores têm a qualidade de que depende a possibilidade legal do exercício do direito, pois que são os pais do falecido e, como tal, este estava vinculado a prestar-lhes alimentos, como alegam os autores que lhes prestava.

Em abstrato verifica-se a suscetibilidade desse mesmo benefício (direito a indemnização) pelos autores, ascendentes da vítima.

A suscetibilidade de terem direito, não equivale a terem-no.

Os autores teriam sempre de alegar e provar que os seus rendimentos são insuficientes atualmente e ou previsivelmente no futuro para prover às suas necessidades, por reporte aos parâmetros referenciais nos arts. 2003º e 2004º, do CC.(…)

Os autores alegam que estavam dependentes economicamente da vítima, que eram por esta ajudados. Que o filho (vítima) contribuía monetariamente.

Assim discorda-se do decidido na sentença, de que tendo a vítima falecido no estado civil de solteiro e tendo deixado como única herdeira a sua filha, esta descendente é única que tinha direito a peticionar uma prestação de alimentos, estando os autores excluídos desse direito.

Como refere P. Lima e A. Varela em anotação ao art. 495 do seu Código Civil anotado, o nº 3 constitui uma exceção ao princípio de que só o titular do direito violado ou do interesse imediatamente lesado tem direito a indemnização. Consagra o preceito o direito a indemnização a “terceiros que apenas reflexa ou indiretamente sejam prejudicados”.

Então, transpondo aqueles ensinamentos para o caso em apreciação, entendemos que a A. tem legitimidade para peticionar esta indemnização, com fundamento em danos patrimoniais pois, mais do que uma questão de ilegitimidade processual —pela mera aplicação da regra do art.º 30.º, admitindo-se a existência da relação material controvertida, a autora deve considerar-se uma lesada mediata com legitimidade processual e substantiva para formular o seu pedido ( cfr. ainda Arts. 2003º, 2004º, 2009º e 495º, todos do Cod. Civil).


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As partes são legítimas e estão representadas por Mandatário.

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Da prescrição do direito da Requerente

Em sede de contestação veio a Requerida invocar exceção peremptória de prescrição, alegando que o acidente a que se reportam os autos ocorreu a 20/3/2016, pelo que, à data da instauração da presente providência cautelar, o direito que a Requerente pretendia fazer valer estava prescrito, por já terem decorrido mais de três anos, nos termos do disposto no artº 498º do Código Civil, a contar da data da ocorrência do evento danoso.

Dado cumprimento ao contraditório, veio a Requerente responder à invocada prescrição, pugnando pela sua improcedência, porquanto na sentença proferida em 3/12/2020 e transitada em julgado em 18/01/2021 no processo crime nº 583/16.3T9VFR do Juízo Local Criminal de Oliveira de Azeméis (cfr. certidão junta aos autos) resulta que BB foi vítima de crime de homicídio por negligência, sendo o prazo de prescrição de 5 anos, pela aplicação conjugada dos arts. 118º, nº 1, al. c) e 137º, nº 1, ambos do Cod. Penal, entendendo que com a abertura do inquérito crime pelo M.P, resultante do falecimento da BB, foi interrompido o prazo prescricional previsto no Art. 498º do C. Civil. Mais alega que o prazo de prescrição de 5 anos interrompido com o inquérito se reiniciou com o trânsito em julgado do despacho que não admitiu o pedido cível ali deduzido.

Ora, dos documentos juntos pela Requerente extrai-se que o despacho que não admitiu o pedido de indemnização cível deduzido pela ali ofendida e aqui Requerente [( cfr. ainda sentença crime proferida e junta a estes autos de onde se retira: “ A ofendida AA deduziu pedido de indemnização cível contra a demandada Companhia de Seguros A..., S.A. a título de compensação por danos morais e patrimoniais. (…) foram os interessados civis remetidos para os meios comuns”)] e que remeteu os demandantes civis para os meios comuns foi proferido em 30/01/2020 e foi notificado por ofício em 3/2/2020.

Apreciando.

Ao abrigo do disposto do artº 498º, nº 1, do Código Civil “o direito de indemnização prescreve no prazo de três anos, a contar da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete, embora com desconhecimento da pessoa do responsável e da extensão integral dos danos, sem prejuízo da prescrição ordinária se tiver decorrido o respetivo prazo a contar do facto danoso”, sendo que se o facto ilícito constituir crime para o qual a lei estabeleça prescrição sujeita a prazo mais longo, é este o prazo aplicável (nº 3).

A prescrição constitui uma exceção peremptória que, a ser julgada procedente, importa a absolvição da Requerida do pedido (artºs 576º, nºs 1 e 3, e 579º do Código de Processo Civil).

Importa para a decisão a proferir sobre a invocada exceção de prescrição do direito da Requerente, atender-se aos seguintes elementos que resultam dos autos:

- a 23/11/2023, a Requerente instaurou a presente providência cautelar especificada de arbitramento de reparação provisória contra a Requerida, invocando um acidente de viação ocorrido a 20/03/2016;

- a 05/12/2023, a Requerida foi citada para os termos da presente providência cautelar;

- em consequência do acidente de viação, correu termos o processo crime nº 583/16.3T9VFR do Juízo Local Criminal de Oliveira de Azeméis ( cfr. certidão junta aos autos) onde foi proferida sentença em 3/12/2020 e transitada em julgado em 18/01/2021, ali figurando como arguido CC, condutor do veículo ..-..-MR, marca BMW, condenado por crime de homicídio por negligência de BB;

-no âmbito daquele processo foi prolatado despacho que, no que concerne ao pedido de indemnização cível deduzido pela ali ofendida e aqui Requerente [( cfr. ainda sentença crime proferida e junta a estes autos de onde se retira: “ A ofendida AA deduziu pedido de indemnização cível contra a demandada Companhia de Seguros A..., S.A. a título de compensação por danos morais e patrimoniais. (…) foram os interessados civis remetidos para os meios comuns”)] remeteu os demandantes civis para os meios comuns, despacho que foi proferido em 30/01/2020 e foi notificado à ora Requerente por ofício datado de 3/2/2020.

Passemos pois analisar qual o prazo de que dispunha a Requerente para intentar a presente providência cautelar.

Tal como acima se referiu, o nº 3 do artº 498º do Código Civil estipula que “se o facto ilícito constituir crime para o qual a lei estabeleça prescrição sujeita a prazo mais longo, é este o prazo aplicável”.

Por conseguinte, o alargamento do prazo prescricional previsto no artº 498º, nº 3, do Código Civil não está dependente de previamente ter corrido processo crime, nem da existência de uma condenação penal, não impedindo o arquivamento do inquérito, só por si, a dedução do pedido de indemnização em ação cível formulado com base em factos que poderão preencher um tipo legal de crime cujo prazo prescricional seja superior ao prazo de 3 anos - nº 1 do artº 498º do Código Civil (neste sentido, pode ver-se o Ac. STJ de 23/10/2012 e 29/10/2002, in www.dgsi.pt).

Vem sendo entendimento dominante que o único requisito de que a lei faz depender a aplicação do prazo mais longo previsto nesta norma é o facto ilícito constituir delito criminal e este ter um prazo de prescrição mais dilatado do que os três anos previstos no nº 1, não se exigindo que tenha existido um processo crime em que se tenha apurado a prática de um crime, bastando a verificação que a factualidade geradora de responsabilidade civil e da respetiva obrigação de indemnizar preencha os elementos de um ilícito penal, relativamente ao qual o ordenamento penal admite o seu apuramento judicial em prazo mais alargado que o previsto no artº 498º, nº 1, do Código Civil.

Apenas é exigida a alegação pela Requerente da matéria de facto suscetível de demonstrar a ocorrência de delito penal, o que manifestamente, in casu, a Requerente fez (ver articulado resposta às exceções).

Então, admitindo-se que a Requerente tenha legitimidade para apresentar pedido de indemnização cível (o que trataremos mais à frente uma vez que a Requerida invoca a ilegitimidade activa substantiva da Requerente), concluímos que a conduta do condutor do veículo MR (seguro na Requerida) é susceptível, em abstrato, de integrar a prática, em concurso efectivo, de um crime homicídio negligente. P. e p. pelas disposições conjugadas dos Arts. 15º e 137º, nº 1 do Código Penal e de um crime de ofensa à integridade física por negligência grave, previsto e punido pelo artº 148º nºs 1, do Código Penal.

O facto ilícito típico alegadamente praticado pelo condutor do MR subsumido ao art. 137º do C.P. é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa e o crime p. e p. pelo Art. 148º é punido com pena de prisão até 1 ano ou pena de multa até 120 dias, nos termos conjugados no disposto nos artºs 137º, nº 1, 15º, 148º, todos do Código Penal, sendo o prazo da prescrição do procedimento criminal de 5 anos (artº 118º, nº 1, al c), do Código Penal).

Ora, tendo sido instaurado inquérito crime com acusação e submissão a julgamento, o qual concluiu por remeter para os meios comuns os interessados civis, deve considerar-se que o prazo de cinco anos de prescrição só reiniciou a sua contagem dos tais 5 anos com o conhecimento dessa decisão pelos interessados civis, no caso a Requerente AA, por aplicação do critério definido no artº 306º, nº 1, do Código Civil.

Termos em que, tendo a Requerente sido notificada do despacho que a remeteu para os meios comuns por ofício datado de 03/02/2020, poderia a mesma intentar ação cível (ou providência cautelar especificada de arbitramento de reparação provisória) para além do prazo de três anos previsto no artº 498º, nº 1, do Código Civil, desde que alegue que o facto ilícito invocado constitui crime, como já se disse o fez, iniciando-se na data da notificação do despacho de arquivamento a contagem do alongamento do prazo de prescrição, no caso de 5 anos, esgotando-se o mesmo nunca antes de 3/02/2025.

Assim, estribando-se o pedido de indemnização no domínio da responsabilidade civil extracontratual, o direito da Requerente, à data da citação, e também da data da instauração da providência cautelar, não se achava prescrito, face ao disposto no artº 498º, nº 3, do Código Civil.

Como tal, o direito que a Autora pretendia fazer valer não prescreveu antes da citação da ora Requerida.

Portanto, ainda que este Tribunal não disponha da concreta data de trânsito daquele despacho em que a Requerente é notificada de que como interessada civil é remetida para os meios comuns, será sempre a partir desta data de notificação do despacho (à falta da data do trânsito do mesmo) que o prazo de cinco anos começou a contar, reiniciando-se ( o mesmíssimo prazo de 5 anos como analisado), para a propositura da presente providência cautelar especificada de arbitramento provisório de reparação, não estando prescrito o direito que pretende fazer valer.

Pelo exposto, e ao abrigo das referidas disposições legais, não reconheço a verificação da exceção peremptória de prescrição.


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Não existem outras nulidades que invalidem todo o processo, excepções ou questões prévias ou incidentais de que cumpra conhecer e que obstem ao conhecimento do mérito da causa.

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IV O Direito

Aqui chegados, concluindo pela legitimidade processual e substantiva, material da Requerente para propor a presente acção, urge apreciar da verificação dos requisitos da providência cautelar de que a Requerente convocou.

A Requerente apresentou a providência cautelar de arbitramento de reparação provisória, que se encontra regulada nos artigos 388.º e seguintes do Novo Código de Processo Civil, pretendendo com esta providência antecipar o efeito jurídico pretendido na acção principal, visa garantir a tutela do direito em situações manifestamente graves.

Preceitua o artigo 388.º do Novo Código de Processo Civil, em conjugação com o art. 565.º do Código Civil, que, como dependência da acção de indemnização fundada em morte ou lesão corporal, os lesados, bem como os titulares do direito a que se refere o n.º 3 do art. 495.º do Código Civil, podem requerer o arbitramento de quantia certa, sob a forma de renda mensal, como reparação provisória do dano. Na esteira do entendimento no Ac. TRC, Proc. 918/09.5TBPBL, datado de 24/2/2015, “

1. É indemnizável, nos termos do art. 495º, nº 3 do Código Civil, tanto no caso de morte como no de lesão corporal, o prejuízo sofrido por aqueles que poderiam exigir alimentos ao lesado – o cônjuge, os seus descendentes, ascendentes, irmãos e sobrinhos ( art. 2009º CC) – ou por aqueles a quem este os prestava no cumprimento de uma obrigação natural. 2. Têm direito a tal indemnização as pessoas que, no momento da lesão, podiam exigir já alimentos ao lesado e também aqueles que só mais tarde viriam a ter esse direito, se o lesado fosse vivo. 3. Para ser exercitado tal direito, não é necessário estar-se já a receber alimentos, mas é necessário demonstrar, com razoável grau de previsibilidade, que se está (no momento da morte do obrigado a alimentos) em condições de, factual e legalmente, os poder vir a exigir.”

De acordo com o disposto no art. 388.º, n.º 4, do Novo Código de Processo Civil, este regime também tem aplicação às situações em que a pretensão indemnizatória se funde em dano susceptível de pôr seriamente em causa o sustento ou a habitação do lesado.

Além destes requisitos, o decretamento desta providência cautelar depende, ainda, do preenchimento dos seguintes requisitos cumulativos: a) - a existência de indícios suficientemente fortes quanto à obrigação de indemnizar por parte do requerido; b) – a verificação de uma situação de necessidade iminente e actual; c) – a existência de nexo de causalidade entre os danos sofridos pelo requerente e a situação de necessidade que fundamenta o recurso à tutela cautelar – cfr. neste sentido o Ac. TRL Proc. 482/14.3 de 16/02/2016.

Como estamos em sede de providência, apenas se exige uma prova meramente indiciária/sumária dos referidos requisitos, com base em juízos de verosimilhança (vide último Acórdão mencionado)

Passando à apreciação daqueles pressupostos, haverá, desde logo, que apurar da indiciação («fumus bonus iuris») da existência da obrigação de indemnizar a cargo do requerido, o que nos remete para uma análise sumaria dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, pois o deferimento da providência depende da existência de prejuízos cuja factualidade indicie, com razoável dose de segurança, que os mesmos possam vir a ser imputados ao lesante, seja a título de culpa efectiva ou presumida, seja com base no risco (cfr. Abrantes Geraldes, in Temas de Processo Civil”, Almedina, Vol. IV, pág. 162).

Volvendo ao caso em apreço, resulta evidenciado que a conduta do segurado na Ré é censurável, contribuindo primordialmente para a ocorrência do embate, com o que a Requerida concorda.

Destarte, sobressai, num juízo de mera verosimilhança, que a conduta do veículo segurado na Ré foi causal, ou pelo menos concausal, do acidente, pelo que temos por fortemente indiciado que o evento ilícito ocorreu por culpa do condutor do veículo seguro na Ré, do qual resultaram prejuízos no património da Requerente que determinam a obrigação de indemnizar daquela, por força do contrato de seguro automóvel a que se vinculou e em vigor à data do evento danoso.

Suplantado este requisito, atentemos se ocorre uma situação de necessidade. Diremos já, atenta a invocada surpresa da Requerida pelo facto de a Requerente apenas estes anos volvidos do acidente vir requerer a indemnização em apreço, com pretendidos reflexos na improcedência do peticionado, que equacionamos a actualidade da necessidade da Requerente: esta consistirá numa situação de carência económica, ou seja, na impossibilidade actual da lesada fazer face às suas despesas, as quais, como salienta Abrantes Geraldes, podem “envolver, de acordo com o normal padrão de vida do lesado, componentes ligadas à diminuição do bem- estar, da educação ou do vestuário, que não apenas os atinentes à capacidade de almejar o seu próprio sustento ou de prover à sua habitação” (cfr. ob. cit., pág. 136).

Revisitando os factos indiciariamente demonstrados e acima alinhados, ressalta que este requisito se mostra verificado, sendo patente a situação de carência económica da Requerente, cuja fonte de rendimento mensal é muito modesta, -atentas as várias despesas incontornáveis que possui - para prover ao seu sustento, como alimentação, medicação, água, luz, gás, sendo que com a morte da filha BB se viu privada do auxílio traduzido no contributo financeiro desta, sendo que à data do evento danoso a BB lhe dava uma relevante ajuda económica assumindo despesas várias da Requerente no montante de cerca de € 300,00.

As despesas da Requerente, ainda que se pressupõe que agora viva só, mantêm-se, aumentando em termos de dispêndio mensal, quer porque consabidamente a “vida” está mais cara quer porque toma mais medicação com o consequente aumento das despesas, sendo despesas quotidianas da vida familiar, comuns à maioria das economias domésticas como electricidade, gás, água e ainda alimentação e medicação para a Requerente, atenta a fragilidade da sua situação clínica que se infere do apurado.

Advém pois, uma situação de necessidade da Requerente, com incontornável nexo de causalidade com os danos sofridos na decorrência do sinistro em apreço nestes autos, donde sobressai que a morte de BB obliterou a ajuda que esta dava à Requerente sua mãe, com um claro impacto na sua situação económica, eivada de dificuldades, que afecta seriamente a satisfação das necessidades da lesada Requerente.

Entendemos por verificados os requisitos de que depende o deferimento da providência de arbitramento de reparação provisória, razão pela qual deve ser fixada uma renda mensal da reparação provisória do dano sofrido pela Requerente, da responsabilidade da requerida.

Que dizer quanto à quantia mensal a arbitrar?

A quantia mensal a fixar a favor da Requerente, deverá ser fixada, de acordo com o disposto no art. 388.º, n.º 3, do Novo Código de Processo Civil, obedecendo a critérios equitativos, pelo que à míngua de outros elementos, o valor do rendimento do lesado deve servir como guia para a fixação do valor da renda, por corresponder ao normal padrão de vida do mesmo, assegurando agora, como antes do acidente, as necessidades básicas que assim não ficarão afectadas por via do evento danoso ( cfr. acórdão já referido no Proc. 482/14), sendo que a mensalidade arbitrada deve ser adequada não só a colmatar as necessidades de alimentação, despesas com a economia doméstica, vestuário, e bem-estar do requerente, tendo também por escopo pôr termo ao estado de necessidade provocado ou agravado pelo dano sofrido.

Resumindo, a renda mensal a arbitrar à Requerente deverá procurar compensar o valor dos rendimentos do lesado aquando do sinistro ao montante das despesas consideradas imprescindíveis, calculadas mensalmente.

Considerando que a requerente, à época do falecimento de BB, auferia apenas o correspondente ao Rendimento Social de Inserção e se encontra a receber actualmente uma pensão de sobrevivência de € 488,82, que é praticamente encaminhado para as despesas com a sua alimentação, medicação e despesas com água, luz, gás, sopesando que a sinistrada auferia à data do sinistro 530,00 por mês, dispondo mais de metade para ajuda ao indispensável sustento dos pais, habitação e despesas correntes por paralelismo com a definição de alimentos, julga- se equitativo fixar uma renda mensal no valor de € 300,00 (trezentos euros), pois entendemos exagerado o valor peticionado que se conteria na quase totalidade do que a BB auferia.

Tendo por orientação, que por força da remissão legal para o artigo 386.º, n.º 1, do Código de Processo Civil ( cfr. art. 389º do C.P.C.), decretada a providência a renda é devida a partir do primeiro dia do mês subsequente à data da dedução do respectivo pedido, a quantia fixada é devida desde Dezembro de 2023, estando já em dívida quatro prestações, que devem ser liquidadas com a prestação do mês de Abril de 2024.


***

V - Decisão:

Em face do exposto, julgo a presente providência cautelar parcialmente procedente e, em consequência, condeno a Requerida a pagar à Requerente, com efeitos desde Dezembro de 2023, a renda mensal de € 300,00 (trezentos euros), até ao dia 20 de cada mês, a título de reparação provisória.

A quantia referente às rendas de Dezembro/23 a Março/24 devem ser pagas em conjunto com a renda do corrente mês de Abril de 2024.

Custas pela requerida (cfr. art. 539.º, n.º 1, do Código de Processo Civil).

Fixo o valor do procedimento cautelar em € 6.000,00 (seis mil euros) – cfr. art. 304.º, n.º 3, al. a), do Código de Processo Civil. Registe e notifique…»(sic).


*

Inconformado com a predita decisão, veio a requerido interpor o presente recurso, o qual foi admitido como de apelação a subir de imediato, nos autos e com efeito devolutivo.

A requerida com o requerimento de interposição do recurso apresentou alegações, formulando, a final, as seguintes conclusões: CONCLUSÕES

1.º

Vem o presente recurso interposto da sentença proferida a fls. , no âmbito da providência cautelar de Arbitramento de Reparação Provisória supra identificada, a qual julgou parcialmente procedente a providência cautelar proposta pela Requerente AA, condenando, em consequência, a Requerida, ora Recorrente, no pagamento de uma renda mensal no valor de € 300,00, com a qual a Requerida, ora Recorrente, salvo o devido respeito, não se poderá conformar.

2.º

Salvo o devido respeito (que é muito), a ora Recorrente não poderá conformar-se com a sentença proferida, uma vez que entende que, ao arbitrar a reparação provisória em causa nos presentes autos, o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 342.º; 483.º; e 495.º, n.º 3 do Código Civil (doravante CC) e 388.º do CPC.

Ora vejamos,

3.º

O cerne do presente processo prendia-se essencialmente com a análise do eventual preenchimento dos requisitos cumulativos de que depende o decretamento da presente providência cautelar.

4.º

São requisitos cumulativos do instituto de arbitramento de reparação provisória conforme previsto no artigo 388.º do CPC, os seguintes:

i) A existência de indícios suficientemente fortes quanto à obrigação de indemnizar por parte do requerido;

ii) A verificação de uma situação de necessidade iminente e atual;

iii) A existência de nexo de causalidade entre os danos sofridos pelo requerente e a situação de necessidade que fundamenta o recurso à tutela cautelar.

5.º

Ora, primeiramente, refira-se que, a ora Recorrente entende que, in casu, não se verifica qualquer indício quanto à obrigação de indemnizar, ainda que não se discuta a responsabilidade pelo acidente, na medida em que, no entendimento da ora Recorrente, a Requerente, ora Recorrida, não se encontra no leque de pessoas que poderiam exigir alimentos à falecida, desde logo porque, à falecida BB sobreviveu um filho menor, este sim com direito de exigir alimentos à falecida.

6.º

É verdade que, a Jurisprudência tem entendido que “têm direito a tal indemnização as pessoas que, no momento da lesão, podiam exigir já alimentos ao lesado e também aqueles que só mais tarde viriam a ter esse direito, se o lesado fosse vivo.” – Conforme Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 24/02/2015, proferido no âmbito do processo n.º 918/09.5TBPBL.C1, disponível em www.dgsi.pt.

7.º

Refere-se ainda no Acórdão supra citado que “para ser exercitado tal direito, não é necessário estar-se já a receber alimentos, mas é necessário demonstrar, com razoável grau de previsibilidade, que se está (no momento da morte do obrigado a alimentos) em condições de, factual e legalmente, os poder vir a exigir.”.

8.º

No presente caso, apenas se provou que a falecida BB e o seu filho menor de idade viviam com a Requerente, ora Recorrida, e com o marido da mesma, contribuindo, assim, e por esse motivo, para as despesas do agregado familiar. O que não é o mesmo que prestar alimentos.

9.º

Acresce que, não resultou qualquer indício de que, no momento do falecimento da filha da Requerente, esta estivesse em condições de exigir alimentos àquela (que também apenas auferia a quantia de € 530,00 mensais (facto provado n.º 6).

10.º

Até porque, aquele que pretende obter alimentos deve alegar e provar a sua necessidade e a impossibilidade de, por si, os obter, provando, nomeadamente, que não pode trabalhar e que não tem bens com que possa satisfazer as suas necessidades.

11.

Ora, no caso dos autos apenas se apurou que a Autora se encontrava a receber como único rendimento uma pensão de sobrevivência, no valor de € 488,82 (facto provado n.º 12), não tendo resultado provado (ou sequer indiciado), que a Requerente, ora Requerida, não se encontrava em condições de, por si, obter rendimentos, por alegadamente não poder trabalhar.

12. Ora, tendo a falecida BB um filho menor totalmente a seu cargo, questiona-se: caso a falecida BB não contribuísse para o agregado familiar por dele fazer parte integrante, estaria a falecida em condições de, com os rendimentos que auferia, prestar alimentos à sua mãe, ora Requerente? A resposta negativa parece-nos clara.

13.

Posto isto, a Recorrente não vislumbra de que forma pôde o Tribunal a quo concluir que a Requerente estaria em condições de exigir alimentos à falecida BB e de que se verifica o requisito da aparência ou probabilidade de existência do direito (fumus boni iuris).

14.Ademais, a Recorrente não aceita que tenha sido feita prova da situação de necessidade invocada pela Requerente, essencialmente por duas ordens de razões: a primeira, porque esta não fez prova de todas as despesas que invocou; e a segunda, porque, além de a ora Requerente ter agora menos despesas do que tinha à data do acidente (veja-se que o agregado era composto por 4 pessoas e agora é apenas constituído pela Requerente), a presente providência apenas foi interposta pela Requerente praticamente 8 anos após o falecimento da sua filha e da “perda” da alegada ajuda financeira da mesma.

15. De facto, quanto às despesas da Requerente, apenas se provou que “gasta € 53,79 mensalmente em farmácia” (facto provado n.º 15).

16. No entanto (espante-se!) nada mais se provou quanto às demais alegadas despesas da Requerente. Assim, não tendo a Requerente demonstrado concretamente quais as despesas mensais que suporta, não é possível concluir que se encontre atualmente numa situação de carência económica que justifique o decretamento da providência requerida.

17. Tanto mais que, não ficou demonstrado no âmbito da presente providência que a Requerente suporta despesas superiores aos seus rendimentos ou que não tem outras ajudas (atente-se que a Requerente tem outro filho além da falecida).

18. Por outro lado, o Tribunal a quo ignorou o facto de a Requerente só ter interposto a presente providência cautelar decorridos já praticamente 8 anos desde o falecimento da sua filha BB.

19. Mais, o Tribunal a quo igualmente ignorou que o agregado familiar da ora Requerente atualmente é constituído unicamente pela Requerente, visto que a sua filha e o seu marido faleceram e o neto vive agora com o pai. Pelo que, naturalmente, se o agregado familiar era constituído por quatro pessoas e agora é constituído por apenas uma, atualmente são menores as despesas de alimentação, água, luz, gás, medicação, vestuário, etc., do que à data do acidente.

20. É doutrina e jurisprudência assente que, enquanto para o preenchimento do requisito obrigação de indemnizar se exige apenas um mero juízo de verosimilhança, típico das providências cautelares, para o perigo na demora já se exige do juiz uma convicção segura da situação de necessidade económica, como decorrência dos danos causados pelo acidente – veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa datado de 26/06/2014.

21. Ora, tendo em conta que a Requerente não teve qualquer acréscimo nas suas despesas fixas por força do acidente que levou ao falecimento da sua filha, bem pelo contrário, na medida em que, o agregado familiar reduziu substancialmente, reduzindo, igualmente, as despesas inerentes ao mesmo, não se verifica qualquer fundamento fáctico ou legal para a procedência da presente providência cautelar.

22. Com efeito, no caso dos autos não ficou suficientemente apurada a existência de um estado de necessidade económica por parte da Requerente – cujo ónus de prova só a si incumbia, por força do disposto no artigo 342.º n.º 1 do CC – sendo que, a verificação de tal requisito era, de todo, essencial para a eventual procedência da presente providência cautelar de arbitramento de reparação provisória.

Mais, ainda que a matéria de facto constante do processo permitisse ao Tribunal concluir, com um alto grau de probabilidade, num juízo sumário, que a Requerida, ora Recorrente, seria condenada a ressarcir os danos sofridos pela Requerente, a verdade é que, não se demonstrou que a alegada situação de necessidade não se compatibiliza com a delonga normal do processo judicial.

24. No entanto, conforme referido no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 19/02/2004, proferido no processo n.º 9647/2003-6, disponível em www.dgsi.pt:

«Com a providência cautelar, visa-se acautelar o efeito útil da ação principal, mantendo inalterada a situação preexistente à ação, por forma a não ser prejudicada por efeito de qualquer acontecimento prejudicial. O procedimento cautelar tem por fim prevenir o “periculum in mora”, não sendo sua função a condenação por ofensa do direito “acautelado”».

25. Sucede, porém, que, no presente caso, a situação da Requerente, ora Recorrida, é a mesma desde o falecimento da sua filha, há 8 anos, pelo que, inexiste qualquer  “periculum in mora”.

26. Até porque, se a Recorrida já esperou 8 anos sem ter avançado com qualquer ação ou providência, claramente que poderá esperar pelo desfecho da ação judicial que já deveria ter posto há uns bons anos, tendo em conta a factualidade por si alegada e a sua alegada carência económica.

27. Por fim, refira-se que, além dos requisitos supra referidos, deve verificar-se um nexo de causalidade entre a situação de necessidade em que se encontra a Requerente e os danos que a mesma sofreu em consequência do facto danoso, ou seja, o estado de necessidade deve resultar do dano gerador de uma das obrigações de indemnização previstas no artigo 388.º do CPC.

28. No presente caso, da fundamentação da sentença parece resultar, salvo melhor entendimento, o Tribunal a quo considerou ser de ponderar, para o caso, o facto de a vida estar consabidamente mais cara.

Sucede que, tal facto é, no entendimento da Recorrente, totalmente irrelevante para a decisão da causa. De facto, o que releva é apurar se a situação de alegada carência económica tem nexo causal com a inexistência da contribuição mensal da BB para as despesas do agregado familiar. E tal prova a Requerente, ora Recorrida, não logrou fazer!

30. A Requerente, ora Recorrida, não demonstrou que foi o falecimento da filha e a inexistência da contribuição mensal da mesma para as despesas do agregado familiar que, de alguma forma, levaram ao seu estado de carência.

31. Até porque, reitere-se, as despesas da Requerente, no presente caso, não só não aumentaram, como diminuíram, fruto do falecimento das pessoas que compunham o agregado familiar da Requerente.

32. Nesta medida, e por qualquer dos identificados fundamentos, deverá ser dado provimento ao presente recurso, sendo revogada a douta sentença recorrida, sob pena de, a manter-se a decisão proferida, manter-se uma decisão na qual se encontram incorretamente interpretadas e/ou aplicadas as normas legais previstas nos artigos 342.º; 483.º; e 495.º, n.º 3 do Código Civil (doravante CC) e 388.º do CPC.

NESTES TERMOS E NOS DEMAIS DE DIREITO, DEVE SER CONCEDIDO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO, REVOGANDO-SE A SENTENÇA PROFERIDA, SÓ ASSIM SE FAZENDO JUSTIÇA!..»(sic).

A requerente juntou contra-alegações tendo pugnado em resumo pela manutenção da decisão recorrida tendo formulado as seguintes conclusões:

«… CONCLUSÕES:

A- A Recorrida é uma das pessoas que poderia exigir alimentos à falecida BB, ex vi Art.º 495.º n.º 3 e 2009.º, ambos do C.C..

B- A Recorrida beneficiava da ajuda da filha, quer nas compras, quer no pagamento das contas, e ainda em quantia mensal não inferior a € 300,00 (há cerca de 8 anos).

C- Entender-se que um casal que vive com pouco mais de € 1.000,00 anuais não está em condições de exigir alimentos à filha, que com eles reside, e que recebe pelo menos metade disso em cada mês de calendário, é negar toda e qualquer regra da experiência comum e que não tem com a realidade o mínimo de correspondência.

 D- A Recorrida não está em condições de, por si, fazer face às despesas porquanto, uma mãe que perde uma filha nas circunstâncias dos autos, que já não trabalhava naquela época, por não ter condições de saúde para o fazer, e que viu agravar todo o seu quadro psicopatológico, é apenas desumano.

E- Constam dos autos relatórios clínicos a evidenciar o agravamento de estado de saúde da Recorrida, bem como, a necessidade cada vez mais premente de recurso a medicação e a tratamentos mais frequentes.

F- É manifesto que não só a Recorrida carece de alimentos, como os recebia de facto.

G- É ainda manifesta a actualidade desse necessidade, na medida em que o país enfrentou um aumento significativo de produtos básicos, sendo que, na alimentação o aumento médio foi de cerca de 18,7% e no gás de praticamente 80% num só ano.

H- Desconsiderar tamanha realidade é negar a justiça do caso concreto e de uma reparação premente que urge ser concretizada.

I- Só uma total desconsideração pela realidade factual actual é que pode ser compatível com a visão vertida no Recurso a que se responde. Aliás,

J- É manifesta a situação de necessidade actual da Requerente, que fundamentou o decretamento da providência, não merecendo por isso qualquer censura a Sentença recorrida, impondo-se assim a improcedência do mesmo, a confirmação da decisão recorrida, assim se fazendo a tão costumada JUSTIÇA!...»(sic).


*

Após os vistos legais e nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre decidir.

***

II- DO MÉRITO DO RECURSO

1. Definição do objecto do recurso

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. arts. 635º, nº 4, 637º, nº 2, 1ª parte e 639º, nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil[1].

Porque assim, atendendo á estrutura das conclusões das alegações apresentadas pela apelante, resulta que a questão a analisar traduz-se na alegada existência de erro na aplicação do direito, isto é, determinar se estão ou não preenchidos os requisitos para o decretamento da presente providência cautelar.

***

III- FUNDAMENTOS DE FACTO

Visando analisar o objecto do recurso, cumpre enunciar os factos provados e não provados pelo tribunal a quo.

Nesse contexto, cumpre referir que a sentença recorrida consignou a seguinte matéria de facto:«… III – Fundamentação da matéria de facto

Da audiência final resultaram indiciariamente provados os seguintes factos:

. Factos indiciariamente provados:

Factos a considerar

Na decisão, importa considerar os seguintes factos indiciariamente provados:

1) BB, filha da Requerente, no dia 20 de Março de 2016, pelas 18H00, domingo, no Itinerário complementar nº ... (IC...), ao quilómetro 264.830, localidade, freguesia e concelho de Oliveira de Azeméis, seguia na viatura conduzida por CC, concretamente, veículo ligeiro de passageiros, marca «BMW», de matrícula ..-..-MR no sentido Sul/Norte, sendo que,

2) Nessas circunstâncias de tempo e lugar, o referido condutor não conseguiu evitar o despiste da viatura,

3) Do referido despiste resultou, a morte da filha da Requerente AA, a identificada BB que ocupava o banco da frente direito.

4) A falecida BB, à data do acidente era um suporte financeiro para o casal composto pela Requerente e o seu falecido marido.

5) Aquela ajudava a sua família, com a quantia de cerca de € 300,00 mensais.

6) O rendimento mensal da filha BB era de € 530,00 mês.

7) A BB entregava aos pais cerca de € 300,00 por mês para ajuda no pagamento das despesas de água, luz, gás e mercearia

8) O rendimento da Requerente e do seu falecido marido era à época o correspondente ao Rendimento Social de Inserção – Cfr. doc. 3 correspondente às declarações de I.R.S. dos anos 2013, 2014 e 2015., num Rendimento coletável no ano anterior à morte da BB foi de pouco mais de € 1.000,00.

9) A BB e o seu filho viviam com os pais da BB.

10) Com o falecimento de BB, a Requerente deixou de poder contar, mensalmente com a ajuda da sua filha que ascendia a cerca de € 300,00 mês.

11)À data do falecimento da filha, já tinha uma leve depressão, e com a morte prematura da BB, (conforme documento anexo com o Requerimento inicial sob o n.º 4, para o qual se remete e aqui se dá por reproduzido na íntegra).

12) A Requerente atualmente tem como único rendimento uma pensão de sobrevivência no valor de € 488,82 (quatrocentos e oitenta e oito euros e oitenta e dois cêntimos), conforme doc. junto sob o n.º 5, para o qual se remete e aqui se dá por reproduzido na íntegra).

13) Com esse rendimento que tem de suprir as suas necessidades básicas do dia-a- dia, pagando as contas de água, luz, gás, telefone, alimentação e medicamentos.

14) O referido CC havia transmitido para a Requerida a responsabilidade pela circulação da referida viatura

15) A Requerente actualmente gasta € 53,79 mensalmente em farmácia – cfr. doc. n.º 5 , para o qual se remete e aqui se dá por reproduzido na íntegra).

16) Á falecida BB sobreviveu um filho menor.

17) A Requerida procedeu ao pagamento de uma indemnização no valor de € 145.000,00 ao filho menor da falecida, devidamente representado pelo seu progenitor DD, para compensação de todos os danos resultantes da morte de BB, (conforme recibo de quitação junto sob documento n.º 1 com a oposição, para o qual se remete e aqui se dá por reproduzido na íntegra).

18) Por contrato titulado pela apólice n.º ..., celebrado com o proprietário do veículo de matrícula ..-..-MR (doravante designado apenas por MR), em vigor à data do acidente, foi transferida para a Requerida Seguradora toda a responsabilidade por danos causados a terceiros pelo referido veículo

19) Ao abrigo do referido contrato de seguro, encontravam-se cobertos, à data do acidente, os riscos inerentes à circulação do veículo MR perante terceiros.

20) O acidente ocorreu no dia 20/03/2016, pelas 18h00, ao km 264,830 do Itinerário Complementar ... (IC...), na freguesia e concelho de Oliveira de Azeméis.

21) No referido acidente, foram intervenientes, além do veículo seguro MR, o veículo de matrícula ..- ..-LZ e o veículo de matrícula ..-..-QN.

22) A falecida BB circulava no interior do veículo seguro MR, ocupando o lugar ao lado do condutor.

23) Ao abrigo do contrato de seguro referente ao veículo MR, a ora Requerida assumiu a responsabilidade pela regularização dos danos decorrentes do acidente aqui em apreço.

24) Motivo pelo qual indemnizou o filho da falecida, devidamente representado pelo seu progenitor DD, por todos os danos decorrentes do falecimento de BB.


*

Factos não provados

Não resultaram provados outros factos com relevância para a decisão da causa.


***

Não se responde à matéria alegada nos demais artigos do requerimento inicial não elencados nos factos indiciariamente provados por conterem juízos conclusivos e conceitos de direito, tendo-se igualmente expurgado da matéria de facto indiciariamente provada quaisquer alusões de carácter conclusivo e displicente para a boa decisão da causa….» (sic).

***

IV - FUNDAMENTOS DE DIREITO

A recorrente alega que o cerne do presente processo prendia-se essencialmente com a análise do eventual preenchimento dos requisitos cumulativos de que depende o decretamento da presente providência cautelar.

A apelante refere que, sem estar em causa a configuração do acidente de viação ou a distribuição da culpa, entende que a matéria de facto considerada como provada nos presentes autos impunha, no caso concreto, uma decisão diferente, uma vez que entende não estarem verificados in casu os requisitos de que depende o decretamento da providência cautelar.

Refere a recorrente que face à factualidade considerada como provada e supra transcrita, entende que a decisão proferida foi manifestamente injusta e não teve em consideração todo o circunstancialismo em torno do pedido da Requerente, nomeadamente, o facto de a mesma sobreviver há pelo menos 8 (oito) anos sem a ajuda financeira da filha sem nunca ter proposto qualquer ação ou providência com base no alegado estado de carência que agora invoca.

Neste contexto a recorrente procede á análise individual de cada um dos requisitos necessários ao decretamento da providência cautelar,

I – DA ALEGADA EXISTÊNCIA DE INDÍCIOS SUFICIENTEMENTE FORTES QUANTO À OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAR

Neste segmento a recorrente entende que no caso, não se verifica qualquer indício quanto à obrigação de indemnizar, ainda que não se discuta a responsabilidade pelo acidente.

É certo que, nos termos do disposto no artigo 495.º, n.º 3 do CPC, “Têm igualmente direito a indemnização os que podiam exigir alimentos ao lesado ou aqueles a quem o lesado os prestava no cumprimento de uma obrigação natural.”.

No entanto, no presente caso, a Recorrente entende que a ora Requerente, não se encontra no leque de pessoas que poderiam exigir alimentos à falecida, desde logo porque, à falecida BB sobreviveu um filho menor, este sim com direito de exigir alimentos à falecida. Refere que, a ora Recorrente já procedeu ao pagamento ao filho da falecida de uma indemnização no valor de € 145.000,00 pelos danos por si sofridos.

Alega que no caso, não resultou provado que a falecida BB prestava alimentos à Requerente, ora Recorrida. O que resultou provado é que, a falecida BB e o seu filho menor de idade viviam com a Requerente, ora Recorrida, e com o marido da mesma, contribuindo, assim, e por esse motivo, para as despesas do agregado familiar.

Refere que considera que, contribuir para o agregado familiar por fazer parte integrante do mesmo é totalmente diferente de prestar alimentos aos progenitores.

Entende a apelante que face á factualidade provada não se poderá considerar provado que falecida prestava alimentos a requente, mas sim que a falecida contribuía para o agregado familiar, o qual, naturalmente, também sobrecarregava com as despesas inerentes a si e ao seu filho.

Mais refere que não resultou qualquer indício de que, no momento do falecimento da filha da Requerente, esta estivesse em condições de exigir alimentos àquela.

Até porque, aquele que pretende obter alimentos deve alegar e provar a sua necessidade e a impossibilidade de, por si, os obter, provando, nomeadamente, que não pode trabalhar e que não tem bens com que possa satisfazer as suas necessidades.

Ora, no caso dos autos apenas se apurou que a Autora se encontrava a receber como único rendimento uma pensão de sobrevivência, no valor de € 488,82 (facto provado n.º 12), não tendo resultado provado (ou sequer indiciado), que a Requerente, não se encontrava em condições de, por si, obter rendimentos, por alegadamente não poder trabalhar.

Mais alega que , o rendimento da falecida BB era de € 530,00 (facto provado n.º 6) e que  tendo a falecida BB um filho menor totalmente a seu cargo, questiona-se: caso a falecida BB não contribuísse para o agregado familiar por dele fazer parte integrante, estaria a falecida em condições de, com os rendimentos que auferia, prestar alimentos à sua mãe, ora Requerente? A resposta negativa parece-nos clara.

Pelo exposto, a Recorrente não vislumbra de que forma pôde o Tribunal a quo concluir que a Requerente estaria em condições de exigir alimentos à falecida BB.

Assim, no entendimento da ora Recorrente, não se verifica o requisito da aparência ou probabilidade de existência do direito (fumus boni iuris).

Por outro lado, a recorrente alega que apesar de entender que não está preenchido a probabilidade do direito, que o fundamento nuclear do recurso contende com os restantes requisitos que enuncia.

II – DA ALEGADA VERIFICAÇÃO DE UMA SITUAÇÃO DE NECESSIDADE

Neste segmento alega que quanto á situação de necessidade não se exige um risco de indigência, ou de risco de sobrevivência, mas a insuficiência de rendimentos deve ser suficientemente séria, não bastando uma qualquer dificuldade na gestão orçamental da vida económica do lesado., Refere que no arbitramento de indemnização provisória, tal como,  no procedimento de alimentos provisórios, a decisão favorável pressupõe uma situação de flagrante necessidade

Considera que a recorrente não fez prova dessa necessidade por duas ordens de razão: a primeira, porque esta não fez prova de todas as despesas que invocou; e a segunda, porque, além de a ora Requerente ter agora menos despesas do que tinha à data do acidente (veja-se que o agregado era composto por 4 pessoas e agora é apenas constituído pela Requerente), a presente providência apenas foi interposta pela Requerente praticamente 8 anos após o falecimento da sua filha e da “perda” da alegada ajuda financeira da mesma.

Alega que a requerente apenas provou que gasta mensalmente na farmácia 53,79 Euros mas não provou mais despesas, nem provou que a Requerente suporta despesas superiores aos seus rendimentos (sempre seriam facilmente comprováveis documentalmente).

Assim, não tendo a Requerente demonstrado concretamente quais as despesas mensais que suporta, não é possível concluir que se encontre atualmente numa situação de carência económica que justifique o decretamento da providência requerida.

Por outro lado, a requerente também não provou que não tem outras ajudas (atente-se que a Requerente tem outro filho além da falecida).

Refere por outro lado, que, o que realmente deixa a Recorrente indignada é que o Tribunal a quo ignorou o facto de a Requerente só ter interposto a presente providência cautelar decorridos já praticamente 8 anos desde o falecimento da sua filha BB. E o Tribunal a quo igualmente ignorou que o agregado familiar da ora Requerente atualmente é constituído unicamente pela Requerente, visto que a sua filha e o seu marido faleceram e o neto vive agora com o pai.

Pelo que, naturalmente, se o agregado familiar era constituído por quatro pessoas e agora é constituído por apenas uma, atualmente são menores as despesas de alimentação, água, luz, gás, medicação, vestuário, etc., do que à data do acidente.

Refere que tendo em conta que a Requerente não teve qualquer acréscimo nas suas despesas fixas por força do acidente que levou ao falecimento da sua filha, bem pelo contrário, na medida em que, o agregado familiar reduziu substancialmente, reduzindo, igualmente, as despesas inerentes ao mesmo, não se verifica qualquer fundamento fáctico ou legal para a procedência da presente providência cautelar.

Pelo exposto, conclui que não ficou suficientemente apurada a existência de um estado de necessidade económica por parte da Requerente – cujo ónus de prova só a si incumbia, por força do disposto no artigo 342.º n.º 1 do CC – sendo que, a verificação de tal requisito era, de todo, essencial para a eventual procedência da presente providência cautelar de arbitramento de reparação provisória. E conclui, não estarem preenchidos os requisitos essenciais para ser decretada a presente providência cautelar.

Mais alega que mesmo que a factualidade  permitisse ao Tribunal concluir, com um alto grau de probabilidade, num juízo sumário, que a Requerida, ora Recorrente, seria condenada a ressarcir os danos sofridos pela Requerente, a verdade é que, não se demonstrou que a alegada situação de necessidade não se compatibiliza com a delonga normal do processo judicial.

Até porque, se a Recorrida já esperou 8 anos sem ter avançado com qualquer ação ou providência, claramente que poderá esperar pelo desfecho da ação judicial que já deveria ter posto há uns bons anos, tendo em conta a factualidade por si alegada e a sua carência económica.

Por outro lado, a recorrente coloca em causa a existência do nexo causal entre a situação de necessidade e os danos alegados.

III – DO ALEGADO NEXO CAUSAL ENTRE A SITUAÇÃO DE NECESSIDADE E OS DANOS ALEGADOS PELA REQUERENTE

Neste segmento, alega que o tribunal a quo considerou ser de ponderar, para o caso, o facto de a vida estar consabidamente mais cara, sendo que considera essa questão totalmente irrelevante para a decisão da causa.

Alega que o importante é apurar se a situação de alegada carência económica tem nexo causal com a inexistência da contribuição mensal da BB para as despesas do agregado familiar.

Entende a recorrente que a requerente não logrou fazer essa prova porque não demonstrou que foi o falecimento da filha e a inexistência da contribuição mensal da mesma para as despesas do agregado familiar que, de alguma forma, levaram ao seu estado de carência. Mais invoca que a Requerente, sustentou o agregado familiar durante cerca de 8 anos, sem nunca ter interposto qualquer providência cautelar.

Pelo exposto, refere que não compreende a razão pela qual a Requerente agora invoca que, na sequência do acidente, da morte da filha e da inexistência da contribuição mensal da mesma para as despesas do agregado familiar, ficou em situação de carência económica (de resto as despesas da Requerente, no presente caso, não só não aumentaram, como diminuíram, fruto do falecimento das pessoas que compunham o agregado familiar).

Conclui, assim a recorrente que a decisão proferida violou, pelas razões expostas, o disposto nos artigos 342.º; 483.º; e 495.º, n.º 3 do Código Civil (doravante CC) e 388.º do CPC, pelo que, deverá ser revogada e, por conseguinte, substituída por outra que julgue improcedente a procedência cautelar requerida.

Verifica-se que no caso dos autos estamos perante uma providência cautelar de arbitramento de indemnização provisória.

Estabelece o artigo º 388.º do CPC:

1 - Como dependência da ação de indemnização fundada em morte ou lesão corporal, podem os lesados, bem como os titulares do direito a que se refere o n.º 3 do artigo 495.º do Código Civil, requerer o arbitramento de quantia certa, sob a forma de renda mensal, como reparação provisória do dano.

2 - O juiz defere a providência requerida desde que se verifique uma situação de necessidade em consequência dos danos sofridos e esteja indiciada a existência de obrigação de indemnizar a cargo do requerido.

3 - A liquidação provisória, a imputar na liquidação definitiva do dano, é fixada equitativamente pelo tribunal.

4 - O disposto nos números anteriores é também aplicável aos casos em que a pretensão indemnizatória se funde em dano suscetível de pôr seriamente em causa o sustento ou habitação do lesado.”

Estamos perante uma providência cautelar antecipatória, que tutelar o direito invocado na acção principal, visando evitar que a demora na tramitação venha a colocar em causa a decisão final.

Conforme refere (Abrantes Geraldes, Temas da reforma do processo civil, IV volume, 2001, Almedina, p. 135 a 136), esta providência é aplicável ás situações em que a morte ou lesão corporal é acompanhada de uma redução dos ganhos que afecte seriamente a satisfação das necessidades básicas do lesado e dos que dele directamente dependem e não  serão apenas as despesas do próprio lesado que devem ser antecipadamente asseguradas, não existindo razões para excluir as correspondentes aos familiares dele dependente.

O requisito da necessidade tem de ser preenchido por um critério razoável que não limite a providência a situações de próximas da indigência, nem abranja situações onde o lesado veja afectado o seu património devido aos danos, exigindo-se que essa necessidade tenha influência manifesta na sua situação económica.

Estrão excluídas da tutela desta providência as situações em que o lesado sofra danos sofrer danos de natureza patrimonial que afectam o seu património mas continua a ter plena capacidade de subsistência própria e de todos aqueles que estão dependentes do seu património.

Considera-se que a situação de necessidade deve traduzir-se numa efectiva redução dos ganhos do lesado, que afecte seriamente e de forma definitiva a possibilidade de este satisfazer as suas necessidades básicas, bem como daqueles que directamente de si dependem.

Por outro lado, esse requisito da situação de necessidade como requisito desta providencia exige que seja uma insuficiência actual (reportando-se às condições de vida do lesado existentes no momento em que recorre à providência de arbitramento da reparação provisória) e manifesta de rendimentos para fazer face às despesas inerentes à vivência do lesado e seus dependentes, de acordo com um padrão de vida digno, definido pelos valores vigentes.

Tendo-se em conta o caso dos autos verifica-se que o tribunal recorrido considerou que o acidente de viação sofrido pela filha da requerente deveu-se a culpa exclusiva do segurado da apelante, e entendeu existir um estado de necessidade e fixou uma renda mensal provisória no valor de 300 Euros.

Relativamente á questão suscitada quanto a se considerar que não está preenchido o requisito suficientes da obrigação de indemnizar, a mesma contende com a invocada ilegitimidade activa que foi suscitada e analisada na decisão (sendo que a requerente não coloca em causa como ocorreu o acidente).

Entende a Recorrente que a ora Requerente, não se encontra no leque de pessoas que poderiam exigir alimentos à falecida, desde logo porque, à falecida BB sobreviveu um filho menor, este sim com direito de exigir alimentos à falecida.

Todavia, entende-se que a recorrida tem legitimidade substantiva para os ternos da presente acão  porque é indemnizável, nos termos do art. 495º nº 3 do Código Civil, tanto no caso de morte como no de lesão corporal, o prejuízo sofrido por aqueles que poderiam exigir alimentos ao lesado – o cônjuge, os seus descendentes, ascendentes, irmão e sobrinhos (art. 2009º CC) – ou por aqueles a quem este os prestava no cumprimento de uma obrigação natural. Acompanhamos a jurisprudência que defende que, para ser exercitado este direito, não é necessário estar-se já a receber alimentos, mas que é necessário demonstrar, com razoável grau de previsibilidade, que se está (no momento da morte do obrigado a alimentos) em condições de os poder vir a exigir.

Neste sentido vide o Ac da RC Processo: 918/09.5TBPBL.C1, Relator: ANABELA LUNA DE CARVALHO 24-02-2015 Sumário: 1.- É indemnizável, nos termos do art. 495º nº 3 do Código Civil, tanto no caso de morte como no de lesão corporal, o prejuízo sofrido por aqueles que poderiam exigir alimentos ao lesado – o cônjuge, os seus descendentes, ascendentes, irmão e sobrinhos (art. 2009º CC) – ou por aqueles a quem este os prestava no cumprimento de uma obrigação natural.

2.- Têm direito a tal indemnização as pessoas que, no momento da lesão, podiam exigir já alimentos ao lesado e também aqueles que só mais tarde viriam a ter esse direito, se o lesado fosse vivo.

3.- Para ser exercitado tal direito, não é necessário estar-se já a receber alimentos, mas é necessário demonstrar, com razoável grau de previsibilidade, que se está (no momento da morte do obrigado a alimentos) em condições de, factual e legalmente, os poder vir a exigir.

E igualmente, vide o Ac do STJ Processo: 674/20.6T8VFR.S1 Relator: JORGE DIAS, 25-05-2021, Sumário: I - Do teor literal do nº 2 do art. 496 C. Civil, decorre que só na falta da primeira classe de familiares é que os referidos no segundo grupo terão direito a indemnização, ou seja, só se não houver cônjuge nem descendentes da vítima é que os ascendentes passarão a ter direito à indemnização.

II - A indemnização por danos patrimoniais devidos aos parentes, em caso de morte da vítima, reconduz-se, praticamente, à prestação dos alimentos, sendo titulares deste direito os que podiam exigir alimentos ao lesado, em conformidade com o disposto pelos artigos 495º, nº 3 e 2009º, nº 1, do CC.

III - No caso vertente, os autores têm a qualidade de que depende a possibilidade legal do exercício do direito, pois que são os pais do falecido e, como tal, este estava vinculado a prestar-lhes alimentos, como alegam os autores que lhes prestava.».

Pelo exposto, julga-me improcedente este segmento do recurso.

Relativamente aos restantes requisitos da providência verifica-se que o tribunal recorrido entendeu existir um estado de necessidade atenta a seguinte factualidade demonstrada:

«.. 3) Do referido despiste resultou, a morte da filha da Requerente AA, a identificada BB que ocupava o banco da frente direito.

4) A falecida BB, à data do acidente era um suporte financeiro para o casal composto pela Requerente e o seu falecido marido.

5) Aquela ajudava a sua família, com a quantia de cerca de € 300,00 mensais.

6) O rendimento mensal da filha BB era de € 530,00 mês.

7) A BB entregava aos pais cerca de € 300,00 por mês para ajuda no pagamento das despesas de água, luz, gás e mercearia

8) O rendimento da Requerente e do seu falecido marido era à época o correspondente ao Rendimento Social de Inserção – Cfr. doc. 3 correspondente às declarações de I.R.S. dos anos 2013, 2014 e 2015., num Rendimento coletável no ano anterior à morte da BB foi de pouco mais de € 1.000,00.

9) A BB e o seu filho viviam com os pais da BB.

10) Com o falecimento de BB, a Requerente deixou de poder contar, mensalmente com a ajuda da sua filha que ascendia a cerca de € 300,00 mês.

11) À data do falecimento da filha, já tinha uma leve depressão, e com a morte prematura da BB, (conforme documento anexo com o Requerimento inicial sob o n.º 4, para o qual se remete e aqui se dá por reproduzido na íntegra).

12) A Requerente atualmente tem como único rendimento uma pensão de sobrevivência no valor de € 488,82 (quatrocentos e oitenta e oito euros e oitenta e dois cêntimos), conforme doc. junto sob o n.º 5, para o qual se remete e aqui se dá por reproduzido na íntegra).

13) Com esse rendimento que tem de suprir as suas necessidades básicas do dia-a- dia, pagando as contas de água, luz, gás, telefone, alimentação e medicamentos.

15) A Requerente actualmente gasta € 53,79 mensalmente em farmácia – cfr. doc. n.º 5, para o qual se remete e aqui se dá por reproduzido na íntegra).

16)  Á falecida BB sobreviveu um filho menor.

17) A Requerida procedeu ao pagamento de uma indemnização no valor de € 145.000,00 ao filho menor da falecida, devidamente representado pelo seu progenitor DD, para compensação de todos os danos resultantes da morte de BB, (conforme recibo de quitação junto sob documento n.º 1 com a oposição, para o qual se remete e aqui se dá por reproduzido na íntegra).

23) Ao abrigo do contrato de seguro referente ao veículo MR, a ora Requerida assumiu a responsabilidade pela regularização dos danos decorrentes do acidente aqui em apreço.

24) Motivo pelo qual indemnizou o filho da falecida, devidamente representado pelo seu progenitor DD, por todos os danos decorrentes do falecimento de BB…»

Neste segmento quanto á verificação dos restantes pressupostos da providência nomeadamente a necessidade, aderimos á fundamentação da sentença recorrida e consideramos que a acçaõ deve ser julgada procedente porque se demonstra que a requerente aufere 488,00 Euros de pesão e gasta em farmácia mensalmente mais de 50 Euros, e que a sua falecida filha era o suporte financeira da família e dava 300 Euros por mês para as despesas básicas do agregado familiar.

Verifica-se que a requerente aufere menos que o salário mínimo nacional e tem despesas em farmácia mensalmente e que recebia 300 Euros da sua falecida filha para pagar despesas fixas e básicas, sendo ficar sem esse rendimento causa um estado de necessidade e implica a procedência da providência. Atento o rendimento da requerente ser abaixo do salário mínimo constata-se ser manifesto que existe um estado de necessidade por parte da requerente e que a ausência dos 300 euros que recebia para pagar rendas fixas, devido ao falecimento da sua filha, causa esse estado de necessidade.

Neste sentido, vide Ac da RE Processo: 917/19.9T8ABF.E1, Relator: CRISTINA DÁ MESQUITA 27-02-2020, Sumário: 1 – No procedimento cautelar de arbitramento de reparação provisória o requerente terá de fazer uma prova sumária do direito à indemnização, mas quanto à existência de uma situação de necessidade deve ser feita uma prova suficiente, em conformidade com o regime geral dos procedimentos cautelares (cfr. art. 368.º, n.º 1, do CPC).

2 – Na ausência de determinação do valor do vencimento auferido pelo lesado antes da eclosão do acidente de viação, e com vista a fixar o valor da “renda” a atribuir àquele, afigura-se adequado recorrer, como ponto de partida para tal fixação, ao valor do salário mínimo nacional por ser um valor que, presumivelmente, é suficiente para assegurar a cada trabalhador um nível de vida minimamente condigno.».

Relativamente ao argumento suscitado pela recorrente de que a providência deveria ser indeferida devido a só após 8 anos do falecimento e como tal não existiria esse estado de necessidade, verifica-se, tal como referida quanto á prescrição que a requerente não demorou 8 anos para instaurar esta acção. No caso a Requerente foi notificada do despacho que a remeteu para os meios comuns por ofício datado de 03/02/2020, e só após essa data iria instaurar uma acção cível ou instaurar a providência cautelar.

Assim, improcede o referido segmento do recurso.

Por fim, improcede igualmente o ultimo segmento de recurso (a alegada falta de causalidade entre a situação e os danos) porque a requerente logrou demonstrar o estado de necessidade e que o mesmo decorre da ausência do recebimento do valor que a sua filha lhe dava.

O presente recurso de apelação terá, por conseguinte, de improceder, aderindo-se á fundamentação jurídica da sentença.


***

III- DISPOSITIVO

Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas a cargo do apelante/recorrente (art. 527º, nºs 1 e 2).

Notifique-se.


Porto, 10/7/2024
Ana Vieira
António Paulo Vasconcelos
Aristides Rodrigues de Almeida
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[1] Diploma a atender sempre que se citar disposição legal sem menção de origem.