Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1532/21.2T8AMT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FERNANDO VILARES FERREIRA
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO
LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
LIVRE APRECIAÇÃO DO JULGADOR
Nº do Documento: RP202406181532/21.2T8AMT.P1
Data do Acordão: 06/18/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: Não enferma de erro de julgamento a decisão da matéria de facto que se apresenta sustentada num juízo de maior probabilidade do acontecer, dotado de racionalidade, objetividade e inteligibilidade bastantes, e alcançado por via da livre apreciação das provas produzidas sob favorecimento da imediação.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: PROCESSO N.º 1532-21.2T8AMT.P1
[Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este – Juízo Local Cível de Penafiel]

Relator: Fernando Vilares Ferreira

Adjuntos: Maria da Luz Seabra

Anabela Dias da Silva

SUMÁRIO:

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I.

RELATÓRIO

1.

AA e mulher, BB, intentaram a presente ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra CC e DD.

Pediram que:

A – Seja reconhecido o seu direito de propriedade sobre o prédio identificado no art. 1.º da p. i.;

B – Seja reconhecido que a faixa de terreno descrita no art. 9.º da p. i., assinalada no levantamento topográfico junto como doc. 5, faz parte integrante do dito prédio; e

C – Sejam os Réus condenados a reconhecer o dito direito e a indemnizá-los pelos danos patrimoniais que lhes provocaram, com o corte dos pinheiros mencionados nos arts. 30.º a 34.º da p. i., em montante não inferior a 3.000,00€.

Alegaram, em síntese, que adquiriram o dito prédio, do qual é parte integrante a parcela em crise, com área de 980 m2, no processo de insolvência A..., Lda., e que por si e antepossuidores, incluindo a insolvente, praticam atos materiais de posse – limparam, cortaram árvores, mato, madeira, pagaram impostos, etc - sobre a totalidade do referido terreno, o que fazem há mais de, pelo menos 20 anos; a 1.ª Ré, arrogando-se dona da referida parcela, nela cortou cerca de 30 pinheiros, com o que lhes causou um prejuízo de cerca de 3.000,00€.

2.

Os Réus contestaram, impugnando a essencialidade da causa de pedir, contrapondo que a parcela de terreno em questão é propriedade da 1.ª Ré, fazendo parte da «Quinta ...», sendo que parte desta lhe foi doada, na proporção de metade pelo progenitor (2.º Réu) e outra metade foi adquirida ao outro comproprietário, Sr. EE; por si e antepossuidores, a 1.ª Ré praticou atos de posse sobre a referida parcela, há mais de 20 anos, nomeadamente, retirando mato, pinheiros e limpando; a dita parcela encontra-se delimitada por marcos, colocados pelos proprietários anteriores; admitiram o corte de pinheiros, mas apenas na área que é sua propriedade.

Foi ainda deduzida reconvenção pela 1.ª Ré, pedindo que os Reconvindos sejam condenados a reconhecer o seu direito de propriedade sobre a parcela de terreno em questão.

3.

Foi prolatado despacho saneador que julgou válida e regular a instância.

4.

Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença, com o seguinte DISPOSITIVO:

[Nestes termos, o Tribunal julga a ação totalmente procedente, por provada e, em consequência, decide:

1) Reconhecer o direito de propriedade dos autores sobre o prédio urbano denominado “Bouça de ...”, com a área de 2480 m2, composto de terreno para construção urbana, a confrontar de norte com o lote ..., de sul com FF, de nascente com Rua ... e de poente com a Rua ..., sito na Rua ..., ..., freguesia ..., concelho de Amarante, descrito na Conservatória dos Registos Civil, Predial, Comercial e Automóveis de Amarante sob o n.º ...38 da freguesia ... e inscrito na respetiva matriz predial sob o art. ...68.

2) Reconhecer que a faixa de terreno correspondente a parcela de terreno, de forma irregular, com a área de 980 m2, (devidamente delimitada a cor rosa no levantamento topográfico junto com Doc 5 da PI) faz parte da Bouça de ....

3) Condenar os réus a reconhecerem esse direito.

4) Condenar os réus a indemnizar os autores pelos danos patrimoniais que lhes provocaram, com o corte dos pinheiros nessa parcela de terreno, no valor de € 500,00, absolvendo-os do demais peticionado.

5) Julgar a reconvenção totalmente improcedente, por não provada.

6) Custas a cargo dos autores e dos réus na proporção do respetivo decaimento que se fixa em 20% para os autores e 80 % para os réus.

Valor da ação (já fixado): € 11.784,43.]

5.

Inconformados com a sentença, os Réus interpuseram o presente recurso de apelação, admitido com subida nos próprios autos e efeito devolutivo, assente nas seguintes CONCLUSÕES:

I. Vem o presente Recurso de Apelação interposto da douta Sentença de fls., que julgou totalmente procedente o pedido dos Autores nos presentes autos e, em consequência, reconhece o direito de propriedade dos autores sobre o prédio urbano denominado “Bouça de ...”, com a área de 2480 m2, composto de terreno para construção urbana, a confrontar de norte com o lote ..., de sul com FF, de nascente com Rua ... e de poente com a Rua ..., sito na Rua ..., ..., freguesia ..., concelho de Amarante, descrito na Conservatória dos Registos Civil, Predial, Comercial e Automóveis de Amarante sob o n.º ...38 da freguesia ... e inscrito na respetiva matriz predial sob o art. ...68, bem como reconhece que a faixa de terreno correspondente a parcela de terreno, de forma irregular, com a área de 980 m2, (devidamente delimitada a cor rosa no levantamento topográfico junto com Doc 5 da PI) faz parte da Bouça de ....

II. Mais determina a sentença de fls., que se condena os réus a reconhecerem esse direito, bem como a indemnizar os autores pelos danos patrimoniais que lhes provocaram, com o corte dos pinheiros nessa parcela de terreno, no valor de € 500,00, absolvendo-os do demais peticionado.

III. Por último, julgou improcedente o pedido reconvencional dos Réus de reconhecimento que a parcela de terreno com forma irregular com área de 980 m2, parcela constituída por terreno de mato e pinheiros, é parte integrante do prédio da Ré descrito na Conservatória dos Registos Civil, Predial, Comercial e Automóvel de Amarante sob o nº ...8 da freguesia ... e inscrito na respetiva matriz predial rústica sob o artigo ...05 da referida freguesia.

IV. Considerou o Tribunal a quo, em suma, que ficou provado “que os autores, por si e seus antecessores, têm vindo a possuir, usar e fruir o referido prédio, extraindo do mesmo todas as utilidades que este lhes pode proporcionar, retirando dele mato, lenha e madeira, administrando o e pagando as respetivas contribuições e impostos, o que fazem de forma contínua e ininterruptamente desde há muito mais de 20 anos, à vista de toda a gente, com exclusão de outrem e sem oposição de quem quer que seja. E ainda que deste prédio faz parte uma parcela de terreno, de forma irregular, com a área de 980 m2, devidamente delimitada a cor rosa no levantamento topográfico junto como Doc 5 da PI, a qual é constituída por terreno de mato e pinheiros. Acresce que também se deu como provado que essa faixa de terreno faz parte integrante do referido prédio dos autores e sempre foi utilizada por estes e respetivos antecessores que sempre nela cortaram o mato e dela retiraram lenha e madeira. A descrita parcela sempre foi utilizada, pelos autores e respetivos antecessores, nos moldes descritos, como parte integrante do seu prédio, contínua e ininterruptamente, desde há muito mais de 20 anos, à vista de toda a gente, com exclusão de outrem e sem oposição de quem quer que seja.”

V. Porém, da prova documental que instrui os presentes autos, bem como da prova testemunhal produzida em sede de audiência de discussão e julgamento e do relatório de inspeção ao local não resultam, s.m.o., qualquer facto que seja bastante para concluir o douto Tribunal nos termos que supra transcrevemos e, consequentemente, determinando a procedência do pedido dos Autores e consequentemente, a improcedência do pedido reconvencional dos Réus.

VI. Ora, na verdade, entendem os aqui Apelantes que andou mal o Tribunal a quo em dar como não provado os seguintes factos:

“D) A parcela de terreno de forma irregular, com área de 980 m2, constituída por terreno de mato e pinheiros, sempre foi utilizada por esta e anteriormente pelo seu pai, 2.º Réu, que sempre dela cuidaram e agindo em tudo correspondente ao exercício do direito de propriedade, de forma contínua e ininterrupta, há cerca de mais de vinte anos.

E) A 1.ª e 2º réus sempre o utilizaram e retiraram dele mato e outros bens florestais, designadamente pinheiros, de forma contínua, à vista e com conhecimento de toda a gente e sem oposição de que quer que fosse.

F) Sempre procederam ao corte de mato e vegetação, limpeza e corte e abate de arvoredo,

G) E sempre dessa parcela de terreno cuidaram com zelo e diligência, à vista de todos e sem a oposição de ninguém, há mais de 20 anos, isto é, pelo menos desde 1996.

I) A referida parcela de terreno, encontrava se e encontra se naturalmente demarcada por “marcos” que haviam sido colocados pelos proprietários antecessores dos aqui Réus, demarcando desta forma o seu prédio.

J) Ao longo dos últimos 25 anos apenas a Ré e proprietários antecessores do seu prédio foram os únicos e exclusivos utilizadores da referida parcela, seja pelo corte de mato e vegetação seja pelo abate de arvoredo.

K) O 2.º Réu, procedeu aos abates de pinheiro, mas de pinheiros existentes numa parcela de terreno propriedade da sua filha aqui Ré e com o seu consentimento e conhecimento.

L) O 2.º Réu, procedeu aos abates de pinheiro, mas de pinheiros existentes numa parcela de terreno propriedade da sua filha aqui Ré e com o seu consentimento e conhecimento.

M) A parcela de terreno em crise nos presentes autos e da qual os aqui autores se arrogam proprietários, encontra se demarcada pelo menos desde 1996 (data da aquisição do prédio pelo Réu) por “marcos”, como pressuposto da propriedade do Réu e posteriormente da sua filha, aqui 1.ª;”

VII. Bem como, andou mal o Tribunal a quo a considerar provados os seguintes factos:

“7. Do prédio supra descrito no art. 1.º faz parte uma parcela de terreno, de forma irregular, com a área de 980 m2, devidamente delimitada a cor rosa no levantamento topográfico junto como Doc 5 da PI.

10. A identificada faixa de terreno faz parte integrante do referido prédio dos autores e sempre foi utilizada por estes e respetivos antecessores que sempre nela cortaram o mato e dela retiraram lenha e madeira.

11. A descrita parcela sempre foi utilizada, pelos autores e respetivos antecessores, nos moldes descritos, como parte integrante do seu prédio, contínua e ininterruptamente, desde há muito mais de 20 anos.

12. À vista de toda a gente, com exclusão de outrem e sem oposição de quem quer que seja.”

VIII. Assim, entendem o Recorrente que a convicção criada resulta de evidente contradição entre os pressupostos de facto e a conclusão decisória alcançada pelo Tribunal a quo, revelando-se o raciocínio dedutivo, antinómico na sua coerência, validade e compatibilidade discursiva e   fáctico-material, pelo que nessa medida se impugna a decisão recorrida.

IX. Tal como resulta da factualidade dada como provada que não segue impugnada na presente apelação, Apelante e Apelados são proprietários de prédios contíguos.

X. A Apelante é dona e legítima possuidora do prédio rústico denominado “Quinta ...”, com área total de 20800 m2, composto por cultura, videiras em cordão, pinhal e mato.

XI. Por conseguinte, é também dona e legítima possuidora da parcela de terreno de forma irregular com área de 980 m2, parcela constituída por terreno de mato e pinheiros, parcela esta que integra do seu prédio e em crise nos presentes autos.

XII. Ora, no caso dos autos, os aqui Apelantes, ao momento em que são e foram proprietários, sempre atuaram por forma correspondente ao exercício do seu direito de propriedade.

XIII. A parcela de terreno em crise, foi propriedade do Apelante desde 1996, passando posteriormente e desde novembro 2019 a ser propriedade da sua filha, aqui também Apelante.

XIV. Tanto mais, que a parcela de terreno em crise nos presentes autos e da qual os Apelados se arrogam proprietários, encontrava-se delimitada por “marcos” colocados pelos proprietários antecessores dos Apelantes.

XV. Ora, tendo os antecessores proprietários do prédio da Apelante promovido o legal exercício do direito de demarcação da parcela em crise, será o mesmo norteadora para a composição da presente relação material controvertida.

XVI. A parcela de terreno em crise nos presentes autos e da qual os aqui Apelados se arrogam proprietários, encontra-se demarcada pelo menos desde 1996 (data da aquisição do prédio pelo Apelado) por “marcos”, como pressuposto da propriedade do Apelante e posteriormente da sua filha, aqui Apelante, uma vez que a colocação de “marcos” deve ser efetuada de acordo com o definido no respetivo título de propriedade.

XVII. Além da referida marcação e em respeito da mesma, a Apelante e os seus antecessores proprietários vêm fazendo uso, de forma pacifica, à vista de todos e sem a oposição de ninguém há mais de 20 anos.

XVIII. Praticando atos como o corte de mato e vegetação, limpeza e corte e abate de arvoredo, inerentes ao exercício da legítima posse e propriedade da parcela em crise.

XIX. Entendem os Apelantes que foi produzida prova nos presentes autos que demonstra que: a) a parcela em crise se encontra devidamente demarcada e individualizada; b) que a Apelante e proprietários antecessores fazem uso da referida parcela uso, de forma pacifica, à vista de todos e sem a oposição de ninguém há mais de 20 anos.

XX. Pelo que, andou mal o Tribunal a quo ao não reconhecer que a parcela de terreno com forma irregular com área de 980 m2, parcela constituída por terreno de mato e pinheiros, é parte integrante do prédio da Apelante descrito na Conservatória dos Registos civil, predial, Comercial e Automóvel de Amarante sob o nº ...8 da freguesia ... e inscrito na respetiva matriz predial rústica sob o artigo ...05 da referida freguesia.

XXI. Tal como resulta dos autos a Apelante é dona e legítima possuidora do prédio rústico denominado “Quinta ...”, com área total de 20800 m2, composto por cultura, videiras em cordão, pinhal e mato.

XXII. Tal prédio veio à propriedade total da Apelante, por doação do Apelante, seu pai, e aquisição de metade em novembro de 2019 ao Sr. EE.

XXIII. Porém o Apelante, antes da transmissão à Apelante sua filha, era o comproprietário do mesmo desde fevereiro de 1996, ou seja, desde fevereiro de 1996 que a família dos Apelantes tem a propriedade, ainda que parcial, e posse do referido imóvel.

XXIV. Na verdade, tal como resulta do acervo documental junto aos autos, concretamente as certidões de registo predial, o prédio da Apelante, desde fevereiro de 1996 tem como proprietários: a) O Apelante e seu irmão GG; b) O Apelante e o Sr. EE; c) A Apelante e o Sr. EE; d) E por fim, desde 2019, a Apelante;

XXV. O que traz aos autos o Apelante, que foi proprietário do imóvel supra identificado desde fevereiro de 1996 a Novembro de 2019, é que a parcela de parcela de terreno de forma irregular, com área de 980 m2, constituída por terreno de mato e pinheiros, sempre foi utilizada pelo Apelante e seus comproprietários, que sempre dela cuidaram e agindo em tudo correspondente ao exercício do direito de propriedade, de forma contínua e ininterrupta, há cerca de mais de vinte anos.

XXVI. Para tanto, demonstra que cortava ali a vegetação e os pinheiros, servindo inclusive tal parcela (em aproveitamento das suas características de relevo) como local de descarga de utensílios e matérias de construção civil.

XXVII. Neste sentido, confira-se o depoimento das testemunhas HH e II, bem como o depoimento da testemunha JJ, madeireiro que procedeu ao corte dos pinheiros na referida parcela.

XXVIII. A referida testemunha prova nos autos que procedeu ao corte de 30 pinheiros em 2020, a mando do Apelante, tal como o tinha feito há cerca de 10 anos atrás, no mesmo local e a mando do Apelante.

XXIX. O corte das árvores de há 10 anos atrás a que se refere a testemunha e que os Apelantes alegam no seu articulado, é ainda corroborada pela testemunha KK, pai do Apelado, que identifica a existência de “trepes” correspondentes a troncos de árvores cortadas há muitos anos atrás na referida parcela.

XXX. Por último, assume especial relevância nos presentes autos o depoimento de LL, que foi comproprietário do Apelante desde fevereiro de 1996 e ainda foi proprietário e legitimo possuidor do prédio do Apelado, desde 2004 até 2011.

XXXI. Atenta a sua dupla qualidade, foi possível demonstrar nos presentes autos o animus relativo à propriedade da parcela em crise nos presentes autos, seja como comproprietário do Apelante, seja como proprietário, ainda que por intermédio de sociedade comercial da qual era sócio e gerente, do prédio agora propriedade dos Apelados.

XXXII. A referida testemunha demonstrou claramente que sempre atuou como proprietário da parcela em crise nos autos, desde fevereiro de 1996, quando adquiriu em conjunto com o Apelante o prédio agora na propriedade da Apelante.

XXXIII. Tal convicção de propriedade da referida parcela não lhe advém da aquisição do prédio agora na propriedade dos Apelados, mas sim desde o momento da aquisição, em compropriedade, do prédio da Apelante.

XXXIV. Destarte, conjugada a prova testemunhal supra identificada com os demais elementos probatórios produzidos nos autos, sempre deveria terem sido dados como provados os factos identificados nos pontos D, E, F, G e J dos factos dados como não provados.

XXXV. Assim, resulta nos autos que a parcela de terreno de forma irregular, com área de 980 m2, constituída por terreno de mato e pinheiros, sempre foi utilizada pelos Apelantes que sempre dela cuidaram e agindo em tudo correspondente ao exercício do direito de propriedade, de forma contínua e ininterrupta, há cerca de mais de vinte anos.

XXXVI. Com efeito, sempre deveriam ter sido dados como provados os seguintes factos:

E. A parcela de terreno de forma irregular, com área de 980 m2, constituída por terreno de mato e pinheiros, sempre foi utilizada por esta e anteriormente pelo seu pai, 2.º Réu, que sempre dela cuidaram e agindo em tudo correspondente ao exercício do direito de propriedade, de forma contínua e ininterrupta, à vista de todos e sem a oposição de ninguém, pelo menos desde fevereiro 1996.

F. A 1.ª e 2º réus sempre o utilizaram e retiraram dele mato e outros bens florestais, designadamente pinheiros, de forma contínua, à vista e com conhecimento de toda a gente e sem oposição de que quer que fosse.

XXXVII. Também não podem os Apelantes aceitar como não provado o ponto “I” e “M” dos factos não provados, considerando a prova documental junta aos autos e ainda o relatório de inspeção ao local.

XXXVIII. Na verdade, das várias fotografias juntas aos autos verifica-se que quer os prédios dos Apelados e da Apelante e ainda a parcela em crise nos autos se encontra demarcada com pedras de marcação, vulgos marcos.

XXXIX. Assim, o Sr. Perito quando questionado sobre a consciência, limites e configurações da parcela em crise nos autos, por referência aos marcos em pedra existentes no prédio e na parcela em crise, responde de forma cabal que:

“Existem marcos de pedra no local, marcos estes verificados no local e constantes de levantamentos apensos ao processo que se reproduzem parcialmente de seguida.” – Cfr. Resposta ao quesito 33º do relatório de inspeção ao local.

XL. Ora, a demarcação identificada no relatório de inspeção ao local é consentânea com forma e relevo da parcela em crise, atribuída pelos Apelantes e que a determina como parte integrante do prédio da Apelante.

XLI. Independentemente da forma geométrica da parcela em crise e sua semelhança a qualquer forma de parte de qualquer animal ou objeto mundano, certo é que a existência do marco, assinalado como marco número 2 no relatório de inspeção é demonstrativo que tal parcela não integra do prédio da propriedade dos Apelados.

XLII. Nenhum outro motivo ou fundamento foi trazido aos autos para justificar a existência do marco assinalado como marco número 2 no relatório de inspeção que separa, em linha reta com os demais marcos, a parcela em crise nos autos do prédio dos Apelados.

XLIII. Se a existência do referido marco é factual, nenhuma prova foi produzida nos autos que afaste a sua existência com a veemência que se exige.

XLIV. Pelo que, andou mal o Tribunal a quo ao não considerar como provado que a parcela em crise nos autos encontrava-se e encontra-se naturalmente demarcada por “marcos” pelo menos desde 1996 como pressuposto da propriedade da Apelante e seus proprietários antecessores.

XLV. Ora, atento o teor o relatório de inspeção ao local que identifica e carateriza os marcos existentes na parcela em crise nos autos e não tendo sido produzido qualquer outro meio de prova que afastasse a sua validade, mal andou o Tribunal a quo a considerar como não provados os pontos “I” e “M” supra transcritos.

XLVI. Com efeito, sempre deverá ser julgado como provado que:

G. A parcela de terreno em crise nos presentes autos e da qual os aqui Apelantes se arrogam proprietários, encontra se demarcada pelo menos desde 1996 (data da aquisição do prédio pelo Réu) por “marcos”, como pressuposto da propriedade do Réu e posteriormente da sua filha, aqui 1.ª.

XLVII. No que respeita aos pontos “K” e “L” da factualidade dada como não provada, reportamo-nos para os depoimentos transcritos supra quanto à impugnação da matéria dada como não provada nos pontos D, E, F, G e J, bem como às declarações de parte do Apelante.

XLVIII. Ora, considerando que a parcela em crise nos presentes autos é da propriedade da Apelante, por estar integrada no prédio de que é proprietária, o corte dos pinheiros aí existentes promovido a pedido do Apelante DD, sempre deverá ser dado como provada a factualidade não provada e ora impugnada.

XLIX. Com efeito, sempre deverá ser julgado como provado que:

H. O 2.º Réu, procedeu aos abates de pinheiro, mas de pinheiros existentes numa parcela de terreno propriedade da sua filha aqui Ré e com o seu consentimento e conhecimento.

L. Tudo visto, deverá ser reconhecido e declarado que a parcela de terreno com forma irregular com área de 980 m2, parcela constituída por terreno de mato e pinheiros, é parte integrante do prédio da Apelante descrito na Conservatória dos Registos civil, predial, Comercial e Automóvel de Amarante sob o nº ...8 da freguesia ... e inscrito na respetiva matriz predial rústica sob o artigo ...05 da referida freguesia, revogando-se assim, a sentença recorrida.

6.

Contra-alegaram os Autores, defendendo a falta de impugnação válida da decisão em matéria de facto e, em todo o caso, pugnando pela improcedência do recurso.

III.

OBJETO DO RECURSO

1.

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este tribunal conhecer de questões nelas não incluídas, salvo se forem de conhecimento oficioso (cf. artigos 635.º, n.º 4, 637.º, n.º 2, 1.ª parte, e 639.º, nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil (CPCivil).

Ao invés do sustentado pelos Apelados em sede de contra-alegações, julgamos que os Apelantes cumpriram de forma adequada e suficiente os ónus de alegação no que concerne à impugnação da decisão em matéria de facto, elencados sob o n.º 1 do art. 640.º do CPCivil.

Com efeito, tendo os Apelantes identificado com precisão os pontos de facto que consideram incorretamente julgados, assim como a decisão que entendem dever ser proferida sobre os ditos pontos, tendo por base a devida valoração aos meios de prova que especificam relativamente a cada um dos pontos, ou conjunto de pontos relacionados entre si, sendo certo que relativamente aos depoimentos testemunhais que têm em conta, não deixaram de indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o recurso, mediante transcrição dos respetivos trechos que têm como relevantes, nenhuma dificuldade temos em identificar o alcance e as razões da discórdia dos Recorrentes ante a decisão em matéria de facto, e daí que tenhamos por observados os requisitos formais exigidos para o conhecimento do mérito.

Assim, e sem prejuízo das questões que possam justificar o conhecimento oficioso do tribunal, o que nos cabe apreciar e decidir passa pelo seguinte:
a) Se se justifica operar a modificação da decisão recorrida em matéria de facto, designadamente quanto às alíneas D), E), F), G), I), J), K), L) e M) do elenco dos factos não provados, assim como aos pontos 7) e 10) a 12) do elenco dos factos julgados provados; e, operando em alguma medida a modificação,
b) Se se justifica a alteração da solução determinada pela decisão sob recurso, acolhendo a pretensão dos Apelantes.

III.

FUNDAMENTAÇÃO

1.

OS FACTOS

1.1.

Factos provados

O Tribunal a quo julgou provados os seguintes factos:

a. Da Petição Inicial

1. Encontra-se registado a favor dos Autores o prédio urbano denominado Bouça de ...”, com a área de 2480 m2, composto de terreno para construção urbana, a confrontar de norte com o lote ..., de sul com FF, de nascente com Rua ... e de poente com a Rua ..., sito na Rua ..., ..., freguesia ..., concelho de Amarante, descrito na Conservatória dos Registos Civil, Predial, Comercial e Automóveis de Amarante sob o n.º ...38 da freguesia ... e inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo ...68.

2. O descrito prédio foi desanexado do prédio rústico denominado “Bouça de ...”, composto por pinhal e mato, sito em ..., freguesia ..., concelho de Amarante, descrito na Conservatória dos Registos Civil, Predial, Comercial e Automóveis de Amarante sob o n.º ...91 da freguesia ....

3. O prédio descrito no ponto anterior, do qual veio a ser desanexado o prédio supra descrito no ponto 1), foi adquirido pelos Autores na sequência de apresentação de proposta em carta fechada no âmbito do processo de insolvência da ante possuidora A..., Lda.

4. Os Autores, por si e seus antecessores, têm vindo a possuir, usar e fruir o referido prédio, extraindo do mesmo todas as utilidades que este lhes pode proporcionar, retirando dele mato, lenha e madeira, administrando-o e pagando as respetivas contribuições e impostos.

5. O que fazem de forma contínua e ininterruptamente desde há muito mais de 20 anos.

6. À vista de toda a gente, com exclusão de outrem e sem oposição de quem quer que seja.

7. Do prédio supra descrito no ponto 1) faz parte uma parcela de terreno, de forma irregular, com a área de 980 m2, devidamente delimitada a cor rosa no levantamento topográfico junto como Doc 5 da PI.

8. A referida parcela de terreno é constituída por terreno de mato e pinheiros.

9. Apesar de atualmente, após a desanexação referida integrar um prédio urbano, composto de terreno para construção urbana.

10. A identificada faixa de terreno faz parte integrante do referido prédio dos Autores e sempre foi utilizada por estes e respetivos antecessores que sempre nela cortaram o mato e dela retiraram lenha e madeira.

11. A descrita parcela sempre foi utilizada, pelos Autores e respetivos antecessores, nos moldes descritos, como parte integrante do seu prédio, contínua e ininterruptamente, desde há muito mais de 20 anos.

12. À vista de toda a gente, com exclusão de outrem e sem oposição de quem quer que seja.

13. A 1.ª Ré é dona de um prédio rústico, denominado “Quinta ...”, composto de cultura, videiras em cordão, pinhal e mato, a confrontar de norte com estradão público, de sul com MM, de nascente com NN e de poente com estradão público (Rua ...), sito no lugar ..., freguesia ..., concelho de Amarante, inscrito na matriz rústica da freguesia ... no art. ...05 e descrito na Conservatória dos Registos Civil, Predial, Comercial e Automóveis de Amarante sob a ficha ...8 da freguesia ....

14. O descrito prédio veio à posse da 1.ª Ré por doação dos seus pais (o 2.º Réu e a esposa) e por compra a EE.

15. Entre o prédio dos autores e o da 1.ª Ré interpõe-se a via pública, denominada Rua ..., que há muito mais de 20 anos se encontram separados pela referida via pública.

16. Sucede, porém que apesar de bem saberem que a parcela de terreno supra descrita no ponto 7) não faz parte do prédio da 1.ª Ré e de os antecessores desta nunca, os réus procederam ao abate de 30 pinheiros existentes na referida parcela.

17. Fazendo-o contra a vontade e sem o consentimento dos Autores.

18. Tendo procedido, entre 20.09.2020 e 20.11.2020, ao abate de 30 pinheiros que pertenciam aos Autores, por se encontrarem na descrita parcela de terreno e, por isso, dentro do limite do prédio destes, sendo ainda visíveis no local as bases do tronco dos referidos pinheiros.

19. Ao aperceber-se do corte dos referidos pinheiros, o Autor abordou o madeireiro que procedeu ao abate dos mesmos, JJ, residente em ..., ..., o qual referiu que o tinha feito por indicação do 2.º Réu que se apresentou como sendo o dono dos pinheiros em questão e da parcela de terreno onde os mesmos se encontravam e a quem havia comprado as ditas árvores.

20. O Autor apresentou queixa crime pelo abate dos pinheiros que deu origem ao Inquérito que correu termos pelo DIAP de Amarante sob o n.º 842/20.0GBAMT.

21. Ouvido no âmbito do referido processo crime, na qualidade de arguido, o 2.º Réu confirmou que foi ele quem vendeu e autorizou o abate dos pinheiros, afirmando ser ele o dono dos mesmos e da parcela onde estes se encontravam.

22. Tendo o identificado JJ confirmado que procedeu ao abate dos pinheiros em virtude de os ter comprado ao 2.º Réu, que se arrogou dono dos mesmos.

23. Os Réus apoderaram-se dos referidos pinheiros em seu próprio proveito, arrecadando o produto da respetiva venda.

24. Os Réus procederam ao abate de número não determinado de pinheiros, sendo que 10 a 15 desses pinheiros, tinham um diâmetro variável entre 20 a 25 cm e destinavam-se a madeira.

25. Os restantes pinheiros, com diâmetro não superior a 20 cm destinavam-se a biomassa.

26. Os pinheiros com diâmetro superior a 20 cm eram já árvores adultas, aptas ao fornecimento de madeira.

27. As restantes eram árvores em fase de crescimento, aptas ao fornecimento de biomassa.

28. Os referidos pinheiros têm um valor de mercado de cerca de € 500,00.

b. Da Contestação / Reconvenção

29. O prédio rústico denominado “Quinta ...”, descrito na Conservatória do Registo Civil, Predial, Comercial e Automóvel de Amarante sob o número ...8 da freguesia ..., e inscrito na respetiva matriz sob o número ...05 da freguesia ..., com área total de 20800 m2, composto por cultura, videiras em cordão, pinhal e mato encontra-se registado a favor da 1.ª Ré.

30. Tal prédio rústico confronta a norte com o Estradão Público, a Sul com MM, a nascente com NN e a poente com o Estradão Público, descrito na Conservatória do Registo Civil, Predial, Comercial e Automóvel de Amarante sob o número ...8 da freguesia ..., e inscrito na respetiva matriz sob o número ...05 da freguesia ....

31. Foi o segundo 2.º Réu quem, por contrato de doação doou à 1.ª Ré metade do prédio rústico, composto de cultura, videiras em cordão, pinhal e mato, sito no lugar ..., freguesia ..., concelho de Amarante, descrito na Conservatória do Registo Predial de Amarante sob o número .../..., aí registado a favor dos Primeiros Outorgantes pela AP. ...4 de 1996/02/22 e Ap ...61 de 2014/01/28 inscrito na respetiva matriz rústica sob o artigo ...05 da referida freguesia ..., com o valor patrimonial de €248,33 (duzentos e quarenta e oito euros e trinta e três cêntimos) e declarado de €15.000,00 (quinze mil euros).

32. O aqui 2.º Réu antes da transmissão à sua filha, 1.ª Ré, era o comproprietário do mesmo desde fevereiro de 1996.

33. O referido imóvel desde 1996 pertencia ao aqui Réu e ao seu irmão, LL, tendo sido hipotecado a favor do Sr. EE.

34. No âmbito de processo de execução fiscal o referido Sr. EE, diligenciou nos termos legais por adjudicar a parte do irmão do aqui Réu, passando assim a figurar como proprietários o aqui 2.º Réu e o Sr. EE.

35. Em novembro de 2019, o Sr. EE vendeu a sua parte do referido imóvel à filha do aqui Réu, ficando a aqui Ré com a totalidade do prédio.

1.2.

Factos não provados

Da matéria tida por relevante, o Tribunal de que vem o recurso julgou não ter resultado provado:

A) Os réus procederam ao abate de 30 pinheiros, sendo que 18 desses pinheiros, com o peso total de cerca de 12 toneladas,

B) Os pinheiros tinham, respetivamente o peso total de cerca de 12 e 8 toneladas.

C) Os referidos pinheiros eram árvores saudáveis, aptas ao fornecimento de madeira e biomassa, tendo um valor de mercado não inferior a €3.000,00 (três mil euros).

D) A parcela de terreno de forma irregular, com área de 980 m2, constituída por terreno de mato e pinheiros, sempre foi utilizada por esta e anteriormente pelo seu pai, 2.º Réu, que sempre dela cuidaram e agindo em tudo correspondente ao exercício do direito de propriedade, de forma contínua e ininterrupta, há cerca de mais de vinte anos.

E) A 1.ª e 2.º Réus sempre o utilizaram e retiraram dele mato e outros bens florestais, designadamente pinheiros, de forma contínua, à vista e com conhecimento de toda a gente e sem oposição de quem quer que fosse.

F) Sempre procederam ao corte de mato e vegetação, limpeza e corte e abate de arvoredo,

G) E sempre dessa parcela de terreno cuidaram com zelo e diligência, à vista de todos e sem a oposição de ninguém, há mais de 20 anos, isto é, pelo menos desde 1996.

H) A consciência dos Réus de que a referida parcela lhes pertence resulta da informação que lhes foi transmitida pelos anteriores proprietários do prédio da Ré CC, sobre os limites e configurações do mesmo, por referência aos marcos em pedra existentes no prédio e na parcela em crise.

I) A referida parcela de terreno encontrava-se e encontra-se naturalmente demarcada por “marcos” que haviam sido colocados pelos proprietários antecessores dos aqui Réus, demarcando desta forma o seu prédio.

J) Ao longo dos últimos 25 anos apenas a Ré e proprietários antecessores do seu prédio foram os únicos e exclusivos utilizadores da referida parcela, seja pelo corte de mato e vegetação, seja pelo abate de arvoredo.

K) O 2.º Réu procedeu aos abates de pinheiro, mas de pinheiros existentes numa parcela de terreno propriedade da sua filha aqui Ré e com o seu consentimento e conhecimento.

L) O 2.º Réu procedeu aos abates de pinheiro, mas de pinheiros existentes numa parcela de terreno propriedade da sua filha aqui Ré e com o seu consentimento e conhecimento.

M) A parcela de terreno em crise nos presentes autos e da qual os aqui Autores se arrogam proprietários, encontra-se demarcada pelo menos desde 1996 (data da aquisição do prédio pelo Réu) por “marcos”, como pressuposto da propriedade do Réu e posteriormente da sua filha, aqui 1.ª Ré.

1.3.

Apreciação da impugnação em matéria de facto

1.3.1.

Segundo dispõe o art. 662.º, n.º 1 do CPCivil, “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos dados como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.

À luz deste preceito, “fica claro que a Relação tem autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis e com observância do princípio do dispositivo no que concerne à identificação dos pontos de discórdia”[1].

O Tribunal da Relação usa do princípio da livre apreciação da prova com a mesma amplitude de poderes da 1.ª instância, nos termos consagrados pelo art. 607.º, n.º 5, do CPCivil, sem olvidar, porém, alguns condicionalismos em torno dos princípios da oralidade e da imediação.

A modificabilidade da decisão de facto é ainda suscetível de operar nas situações previstas nas diversas alíneas do n.º 2 do art. 662.º do CPCivil.

1.3.2.

A prova é “a atividade realizada em processo tendente à formação da convicção do tribunal sobre a realidade dos factos controvertidos”[2], tendo “por função a demonstração da realidade dos factos” (art. 341.º do CCivil) - a demonstração da correspondência entre o facto alegado e o facto ocorrido.

Sendo desejável, em prol da realização máxima da ideia de justiça, que a verdade processual corresponda à realidade material dos acontecimentos (verdade ontológica), certo e sabido é que nem sempre é possível alcançar semelhante patamar ideal de criação da convicção do juiz no processo de formação do seu juízo probatório.

Daí que a jurisprudência que temos por mais representativa acentue que a “verdade processual, na reconstrução possível, não é nem pode ser uma verdade ontológica”, não podendo sequer ser distinta ou diversa “da reconstituição possível do passado, na base da avaliação e do julgamento sobre factos, de acordo com procedimentos e princípios e regras estabelecidos”, os quais são muitas vezes encontrados nas chamadas “regras da experiência”[3].

Movemo-nos no domínio do que a doutrina considera como standard de prova ou critério da suficiência da prova, que se traduz numa regra de decisão indicadora do nível mínimo de corroboração de uma hipótese para que esta possa considerar-se provada, ou seja, possa ser aceite como verdadeira[4].

Para LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA, “pese embora a existência de algumas flutuações terminológicas, o standard que opera no processo civil é, assim, o da probabilidade prevalecente ou “mais provável que não”. Este standard consubstancia-se em duas regras fundamentais:
(i) Entre as várias hipóteses de facto deve preferir-se e considerar-se como verdadeira aquela que conte com um grau de confirmação relativamente maior face às demais;
(ii) Deve preferir-se aquela hipótese que seja “mais provável que não”, ou seja, aquela hipótese que é mais provável que seja verdadeira do que seja falsa.

Em primeiro lugar, este critério da probabilidade lógica prevalecente – insiste-se – não se reporta à probabilidade como frequência estatística mas sim como grau de confirmação lógica que um enunciado obtém a partir das provas disponíveis.

Em segundo lugar, o que o standard preconiza é que, quando sobre um facto existam provas contraditórias, o julgador deve sopesar as probabilidades das diferentes versões para eleger o enunciado que pareça ser relativamente “mais provável”, tendo em conta os meios de prova disponíveis. Dito de outra forma, deve escolher-se a hipótese que receba apoio relativamente maior dos elementos de prova conjuntamente disponíveis”[5].

Os meios de prova, enquanto “modos por que se revelam os factos que servem de fonte das relações jurídicas”[6], encontram no Código Civil os seguintes tipos: a confissão (arts. 352.º a 361.º); a prova documental (arts. 362.º a 387.º); a prova pericial (arts. 388.º e 389.º); a prova por inspeção (arts. 390.º e 391.º); e a prova testemunhal (arts. 392.º a 396.º). O art. 466.º do CPCivil acrescenta a “prova por declarações de parte”.

Nos termos do preceituado no art. 607.º, n.º 5, do CPCivil, “o juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto; a livre apreciação não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes”.

O cit. normativo consagra o chamado princípio da livre apreciação da prova, que assume carácter eclético entre o sistema de prova livre e o sistema de prova legal.

Assim, o tribunal aprecia livremente a prova testemunhal (art. 396.º do CCivil e arts. 495.º a 526.º do CPCivil), bem como os depoimentos e declarações de parte (arts. 452.º a 466.º do CPCivil, exceto na parte em que constituam confissão; a prova por inspeção (art. 391.º do CCivil e arts. 490.º a 494.º do C.PCivil); a prova pericial (art. 389.º do CCivil e arts. 467.º a 489.º do CPCivil); e ainda no caso dos arts. 358.º, nºs 3 e 4, 361.º, 366.º, 371.º, n.ºs 1, 2ª parte e 2, e 376.º, n.º 3, todos do CCivil.

Por sua vez, estão subtraídos à livre apreciação os factos cuja prova a lei exija formalidade especial: é o que acontece com documentos ad substantiam ou ad probationem; também a confissão quando feita nos termos do art. 358.º, nºs 1 e 2 do CCivil; e os factos que resultam provados por via da não observância do ónus de impugnação (art. 574.º, n.º 2, do CPCivil).

O sistema de prova legal manifesta-se na prova por confissão, prova documental e prova por presunções legais, podendo distinguir-se entre prova pleníssima, prova plena e prova bastante”[7].

A prova pleníssima não admite contraprova nem prova em contrário. Nesta categoria integram-se as presunções iuris et de iure (art. 350.º, n.º 2, in fine do CCivil).

Por sua vez, a prova plena é aquela que, para impugnação, é necessária prova em contrário (arts. 347.º e 350.º, n.º 2, ambos do CCivil). Assim será com os documentos autênticos que fazem prova plena do conteúdo que nele consta (art. 371.º, n.º 1, do CCivil), sem prejuízo de ser arguida a sua falsidade (art. 372.º, n.º 1, do CCivil), e também com as presunções iuris tantum (art. 350.º, n.º 2, do CCivil).

Por último, a prova bastante carateriza-se por ser suficiente a mera contraprova para a sua impugnação, ou seja, a colocação do julgador num estado de dúvida quanto à verdade do facto (art. 346.º do CCivil). Assim se distingue prova em contrário de contraprova – aquela, mais do que criar um estado de dúvida, tem de demonstrar a não realidade do facto[8].

1.3.3.

Defendem os Réus/Apelantes que a matéria descrita no elenco dos factos não provados, sob as alíneas D) a G) e I) a M,) deveria antes ter sido julgada provada, e que a matéria descrita no elenco dos factos provados, sob os pontos 7), 10), 11) e 12), deveria antes ter sido julgada não provada, considerando a valoração que entendem ser devida aos meios de prova produzidos que especificam.

Vejamos então, escutada integralmente por nós a gravação da prova pessoal produzida em audiência de julgamento, e analisados os demais meios probatórios documentais atinentes.

1.3.1.1.

Das alíneas D), E), F), G), J), K e L) do elenco dos factos não provados e dos pontos 7), 10), 11) e 12) do elenco dos factos provados

Relativamente à matéria em epígrafe, a pretensão de modificação da decisão recorrida assenta na valoração que os Apelantes entendem ser devida aos depoimentos das testemunhas HH, II, JJ, KK e LL, nos segmentos da gravação áudio que transcrevem.

No que respeita especificamente às alíneas K) e L), os Recorrentes acrescentam as declarações de parte do Réu como meio de prova alegadamente beneficiador da sua pretensão. Contudo, porque em lado algum das alegações/conclusões indicam com exatidão as passagens da respetiva gravação, nem mesmo sob a forma de transcrição dos segmentos que têm por relevantes, não cumprem o ónus previsto no art. 640.º, n.º 2, a), do CPCivil, não pode em rigor tal meio de prova ser objeto de reavaliação nesta instância de recurso.

Por seu turno, o juízo probatório alcançado pelo Exmo. Juiz de Direito assentou essencialmente no que passamos a transcrever:

[O réu DD e as várias testemunhas que o mesmo arrolou vieram defender que essa parcela de terreno era parte integrante do prédio «Quinta ...» que o mesmo adquiriu no ano de 1996 juntamente com o seu irmão LL.

A questão, aparentemente, torna-se mais confusa sobretudo por o terreno agora dos autores – Bouça de ... – ter sido propriedade do Sr. LL, irmão do Réu entre os anos de 2004 e 2016, sendo ambos também comproprietários na Quinta ....

Donde, desde logo por este facto, mesmo que o réu tivesse comprovado atos de posse - o que, em abono da verdade se diga, não o fez – sobre a indicada parcela de terreno, ainda importaria apurar se o mesmo agia na qualidade de proprietário (tratando aquela parcela como parte integrante da Quinta ...) e portanto se praticou verdadeiros atos de posse ou se o fazia por mera tolerância do irmão (se tratava aquela parcela como parte integrante da Bouça de ...). Isto porque, além de serem comproprietários da Quinta ..., os referidos irmãos ainda eram sócios de uma empresa de construção civil que usava esta última também como estaleiro.

Mas esta aparente confusão – de facto e de direito – é efetivamente tão só aparente, em face da prova que foi produzida em audiência, em conjugação com a prova documental e em face das regras da normalidade.

No que respeita à prova testemunhal, cumpre referir que pelo conhecimento direto que detinham, a serenidade que demostraram, o desinteresse, a evidente imparcialidade e, sobretudo, por o que relataram ao Tribunal encontrar corroboração nos documentos e nas regras da normalidade, assumiram especial relevância os depoimentos das testemunhas OO – filho dos vendedores da Bouça de ..., topógrafo que fez o levantamento topográfico em questão nos autos logo no momento da venda em 2004 e que mostrou aos potencias compradores os limites do terreno que bem conhecia face à sua profissão e ligação familiar do mesmo - PP – vendedor da Quinta ... ao réu e ao irmão -, QQ – residente no local há cerca de 77 anos –, RR – que tentou comprar a Bouça de ... há 20 anos e que perdeu o negócio para o LL.

E da conjugação de todos estes depoimentos entre si resulta cristalino que a parcela de terreno em crise nos autos sempre foi parte integrante da Bouça de .... Primeiro porque o referido topógrafo assim o fez consignar no documento por si elaborado e garantiu convictamente em Tribunal esse facto. Segundo porque a testemunha RR igualmente garantiu que a compra que tentou efetuar em 2004 abrangia essa parcela denominada de .... Por outro lado, a testemunha PP garantiu que a Quinta ... tinha como limite o estradão e por isso não abrangia a referida parcela a qual se situa na parte de cima (desse mesmo estradão) e que a divisão ente a Quinta ... (que lhe coube na herança dos sogros) e a Bouça de ... (que na mesma herança coube ao cunhado OO) era feita através do caminho público. E também a Sr.ª QQ atestou que após 2016 foi sempre o Sr. AA e o pai quem limpavam aquela área, sem oposição dos réus e que nunca viu estes a limparem essa parte do terreno. E ainda que viu há muitos anos o réu DD cortar pinheiros na parte de baixo do caminho, mas não cortou nenhum na parte de cima.

Ora, face à singeleza destes depoimentos, dispensamo-nos de desenvolver outras considerações sobre os anteriores proprietários dos terrenos em crise nos autos aquando das partilhas efetuadas por morte dos antigos proprietários da Quinta .... Mas sempre diremos que decorre das regras da normalidade que, nas partilhas, por via de regra, se usam os caminhos para dividir parcelas, não fazendo qualquer sentido que no caso concreto fosse retirada uma pequena parcela de um lote menor (Bouça de ... tinha área de 2480 m2) para o ir acrescentar a um lote maior (Quinta ... tinha área de 20800 m2) sobretudo quando essa parcela se tratava apenas de monte. A ser necessário parcelar lotes para igualar partilhas o normal seria que a Quinta ... cedesse parcela à Bouça de ... e não o contrário.

Mas também os documentos juntos aos autos, em especial as certidões prediais e cadernetas prediais, confirmam esta tese, pois que referem que Bouça de ... confronta de nascente com a Rua ... (corresponde ao estradão que divide os dois prédios) e a Quinta ... confronta de poente com estradão público. Ora se a tese dos réus fosse correta a confrontação do seu prédio teria que ser, não com o estradão, mas com o prédio dos autores. E se sempre souberam destas confrontações e as consideravam erradas, porque nunca as alteraram? Não se percebe.

Por outro lado, várias testemunhas e mesmo o réu e a testemunha LL sempre se referiram aos dois prédios em crise como sendo um «o da parte de baixo» e outro «o da parte de cima», o que indiciava a divisão pelo estradão, sendo que, além do mais, a testemunha LL garantiu que o declive entre os terrenos se verificava na zona do estradão, pelo que, também por esta via, se constata que era o estradão quem dividia os terrenos.

E que dizer do nome popular dado aquela faixa de terreno? O termo ... apenas permite a conclusão que a parcela de terreno em crise é parte integrante da faixa de terreno retangular que se lhe segue pois que as duas juntas efetivamente podem assemelhar-se à forma de um bacalhau. A não ser assim, ie, a parte triangular e a retangular fossem separadas e de distintos proprietários, não seria mais fácil essa parte ser identificada como triângulo? Porquê ...?

Uma nota também quanto aos alegados marcos que supostamente dividiam aquelas duas parcelas, para dizer que, a ser verdadeira a tese dos réus, apenas se justificava que fossem colocados dois marcos exatamente no fim da zona retangular da parcela do terreno dos autores, para atestar que o mesmo terminava naquele local. Para quê mais marcos? Os demais marcos referidos na inspeção judicial não qualificada realizada nos autos, em face das regras da normalidade, servem apenas e tão só para delimitar a Bouça de ... (integrando a parcela em crise nos autos) relativamente aos terrenos vizinhos, denominados terrenos da casa da Laje. Acresce que da prova testemunhal considerada credível e das regras da normalidade, atentas as suas caraterísticas, não faz qualquer sentido que o denominado marco 2 seja efetivamente um marco, pois que nesse caso, a configuração dos terrenos seria absolutamente inviável, sendo pouco crível que numa partilha delimitassem dessa forma os prédios.

Uma palavra quanto à tese dos réus apresentadas nas suas declarações e sua credibilidade.

A tese do réu DD além de não fazer qualquer sentido pelas razões apontadas, de ter sido contrariada pelas indicadas testemunhas e regras da normalidade, padece de incongruências, nomeadamente quando afirmou que o vendedor de terreno de baixo - sr. PP – lhe mostrou os marcos todos, incluindo os referidos na inspeção não judicial, quando a testemunha PP negou tal facto e o próprio irmão LL disse que não lhes foram mostrados os marcos porque conheciam os terrenos e confiavam no que dizia o Sr. PP. Também afirmou o réu que limpou aquela parcela de terreno facto desmentido pela testemunha QQ que vive no local há mais de 70 anos e nunca o viu a limpar.

Também afirmou que o autor AA fez uma limpeza no seu terreno e que respeitou os referidos marcos, ie que só limpou até à zona retangular, facto que o autor negou de forma séria e honesta. Aliás, das declarações da testemunha KK, corroboradas pela testemunha QQ resulta que era o Autor, por si ou através do progenitor quem limpava a parcela em crise nos autos e que nunca se limitou apenas à zona retangular.

Uma palavra quanto à credibilidade das testemunhas dos réus.

Exceto na parte em que relataram factos contrários aos interesses dos réus, as testemunhas que o mesmo arrolou não foram valoradas, por não se mostrarem credíveis e ser evidente que pretendiam favorecer a sua posição ou por serem contrariadas pelos demais meios de prova, em especial face aos depoimentos das testemunhas consideradas absolutamente credíveis.

Acresce que foram testemunhos vagos, imprecisos, incoerente e inconsistentes.

Em especial muito se duvidou da veracidade das declarações da testemunha II, sobrinho do réu, por a fonte do seu conhecimento respeitar a um período em que era criança, duvidando-se do interesse de uma criança com 7, 10 ou 15 anos por marcos e divisórias de terrenos.

Igualmente da testemunha HH por ter sido funcionário da construção civil e nessa medida não ter causa justificativa para saber de marcos divisores de terremos, apesar de afirmar ali ter trabalhado, sobretudo quando os terrenos – de cima e de baixo – eram dos seus dois patrões e não se colocariam ainda quaisquer problemas com extremas.

Também SS, irmão do Réu, não mereceu credibilidade por ser parcial e contraditório uma vez que quis logo afirmar no início do seu depoimento (deixando antever ao que vinha) que a parte de cima pertencia ao terreno de baixo, mas quando depois dizia que o caminho é que dividia os dois terrenos. Mas também por saber exatamente onde existiam os marcos, mas nem sequer saber quem eram os confiantes dos prédios.

E a testemunha TT, que além de amigo do réu evidenciou um discurso vago, impreciso e titubeante quanto aos limites dos prédios, sendo que a sua versão é frontalmente contrariada pela do irmão OO, muito mais sérios e preciso.

E a testemunha LL, também não se mostrou credível quando quis convencer o Tribunal que a parcela de cima pertencia ao terreno de baixo, pois não só essa versão é contrariada pelos demais meios de prova, como o próprio refere que era no caminho que existia a diferença de quotas entre os terrenos, sendo que se referia aos mesmos como terreno de baixo e terreno de cima. Acresce que não se compreende como tendo a parcela em crise sido objeto do «seu processo de insolvência», o mesmo nunca tenha reclamado da afetação dessa parcela que, na sua tese, não lhe pertencia ou que nunca tenha avisado o irmão desse facto. Acresce que também esta sua versão é contrariada pelas demais provas dos autos.

Assim, tudo conjugado, atenta a posição das partes nos respetivos articulados, a fundamentação acabada de referir, os documentos juntos e a prova testemunhal em audiência, não temos dúvidas que a parcela de terreno em crise nos autos sempre fez parte do terreno ... e não da Quinta ..., nunca tendo os réus praticados os atos que alegaram na sua contestação /reconvenção sobre a indicada parcela, pelo que tais factos foram considerados não provados, sendo os atos de posse dos autores e seus ante possuidores sobre tal parcela, considerados provados].

Ora, tudo visto e ponderado, o juízo probatório que formulamos não diverge em nada do que se apresenta como essencial à convicção alcançada pela 1.ª instância, que consideramos solidamente motivada.

Com efeito, a matéria de facto julgada provada e não provada em apreço, coaduna-se inteiramente, a nosso ver, com um juízo probatório sobre o conjunto dos meios de prova produzidos, “sob o signo da probabilidade lógica – de evidence and inference, i. e., segundo um critério de probabilidade lógica prevalecente, portanto, segundo o grau de confirmação lógica que os enunciados de facto obtêm a partir das provas disponíveis”. É certo que a convicção formada pelo tribunal diverge radicalmente da tese que os Recorrentes apresentam, mas é sem qualquer dúvida uma convicção objetiva, alicerçada numa perspetiva eminentemente “universalista” da prova produzida, ao invés da formada pelos Apelantes, compreensivelmente subjetiva, ancorada em fragmentos de prova convenientes e na vontade de fazer prevalecer a sua própria verdade.

1.3.1.2.

Das alíneas I) e M) do elenco dos factos não provados

Defendem os Apelantes que a factualidade descrita no elenco dos factos não provados, sob as alíneas I) – “A referida parcela de terreno encontrava-se e encontra-se naturalmente demarcada por “marcos” que haviam sido colocados pelos proprietários antecessores dos aqui Réus, demarcando desta forma o seu prédio” – e M) – “A parcela de terreno em crise nos presentes autos e da qual os aqui Autores se arrogam proprietários, encontra-se demarcada pelo menos desde 1996 (data da aquisição do prédio pelo Réu) por “marcos”, como pressuposto da propriedade do Réu e posteriormente da sua filha, aqui 1.ª Ré” – é merecedora de passar a integrar o elenco dos factos provados.

Elegem para tal o meio de prova de inspeção ao local, levada a cabo por perito por determinação do tribunal, cujo relatório foi junto aos autos em 7.7.2022 (Ref.ª CITIUS 8066522), mormente a referência à existência de “marcos de pedra no local”, nos termos da resposta dada pelo Sr. Perito ao quesito 33.º, assim: “Existem marcos de pedra no local, marcos estes verificados no local e constantes de levantamentos apensos ao processo que se reproduzem parcialmente de seguida”.

Argumentam os Apelantes: [47. Ora, a demarcação identificada no relatório de inspeção ao local é consentânea com forma e relevo da parcela em crise, atribuída pelos Apelantes e que a determina como parte integrante do prédio da Apelante. 48. Independentemente da forma geométrica da parcela em crise e sua semelhança a qualquer forma de parte de qualquer animal ou objeto mundano, certo é que a existência do marco, assinalado como marco número 2 no relatório de inspeção é demonstrativo que tal parcela não integra do prédio da propriedade dos Apelados. 49. Nenhum outro motivo ou fundamento foi trazido aos autos para justificar a existência do marco assinalado como marco número 2 no relatório de inspeção que separa, em linha reta com os demais marcos, a parcela em crise nos autos do prédio dos Apelados. 50. Se a existência do referido marco é factual, nenhuma prova foi produzida nos autos que afaste a sua existência com a veemência que se exige].

Ora, para além do que se deixou bem notado na decisão recorrida em torno dos invocados “marcos”, que acolhemos sem esforço[9], uma coisa é a existência de pedras dispostas numa certa configuração sobre um dado terreno (coisa que o Sr. Perito efetivamente constatou, nos termos que retratou / ilustrou no seu relatório); outra coisa, bem distinta, é a qualificação das ditas pedras enquanto marcos válidos de demarcação de prédios pertencentes a proprietários diferentes (coisa a que o Sr. Perito não deu resposta, nem tinha como dar).

Com efeito, como se deixou lucidamente vertido no acórdão desta Relação e Secção, de 12.10.2010[10]: [A demarcação pode ser feita judicialmente ou extrajudicialmente. A demarcação extrajudicial, porque não se trata de um meio de aquisição de propriedade, pode efectuar-se validamente por simples acordo verbal – cfr. art. 219, nº 1 do Cód. Civil. Fazendo-se por acordo entre as partes, constituirá os termos de um contrato a que elas deverão considerar-se ligadas, o que é, aliás, decorrência dos princípios da liberdade contratual e da eficácia dos contratos, consagrados nos arts. 405 e 406 do Cód. Civil. Continuando, dir-se-á que sobre esta matéria escreve o seguinte António Carvalho Martins (in “A acção de demarcação”, Coimbra Editora, 1988, pág. 34): “A demarcação pode ser judicial ou extrajudicial, mas neste segundo caso é claro que não se pode obrigar os confinantes a concorrerem para a demarcação. Faz-se-lhes um convite amigável para assistirem à colocação de marcos que, naturalmente, pertencerão todos ao pretendente; os confinantes não são obrigados a contribuir para a despesa do fabrico e da dita colocação dos marcos, nem é de uso que estes pertençam, interpoladamente, a cada um dos confinantes da mesma linha divisória. A demarcação extrajudicial pode ser validamente feita, e frequentemente o é, por mero acordo verbal. Convém, todavia, que seja reduzida a escrito particular, descrevendo-se a forma porque se efectivou a colocação dos marcos, e quais são os sinais naturais adoptados como tais, «ad perpetuam rei memoriam», pois as testemunhas vão morrendo, e, num dado momento, pode ser preciso recomeçar.”].

No caso, parece-nos evidente que nem tão pouco foram alegados factos adequados a concluir pela demarcação dos prédios em questão, sob qualquer das ditas formas (judicial ou extrajudicial por acordo), e daí que da disposição das pedras no terreno, como dado conta pelo Sr. Perito, não possa extrair-se a qualificação técnico-jurídica de demarcação presente nas alíneas I) e M) do elenco dos factos não provados.

1.3.1.3.

Não vemos, pois, razões válidas para censurar em qualquer segmento a decisão da matéria de facto, porque sustentada, conforme adiantámos, num juízo de maior probabilidade do acontecer formulado pela 1.ª instância, com base no princípio da livre apreciação das provas produzidas, e favorecido pela imediação, dotado de racionalidade, objetividade e inteligibilidade bastantes.

Concluímos pela total improcedência do recurso em matéria de facto, pelo que mantemos inalterada a corresponde decisão prolatada pelo Tribunal a quo.

3.

OS FACTOS E O DIREITO

3.1.

A modificação da solução jurídica alcançada pela 1.ª instância dependia em absoluto, na própria tese dos Apelantes, da possibilidade de operarmos por via deste recurso a modificação da decisão da matéria de facto.

Como os factos apurados pela 1.ª instância se mantêm intocados, inalterada tem de permanecer a solução jurídica ditada pela sentença, assente na boa aplicação do direito, não se justificando da nossa parte qualquer desenvolvimento nesta matéria.

3.2.

Tendo dado causa às custas do recurso, os Apelantes constituíram-se na obrigação de as suportar (cfr. arts. 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPCivil, e 1.º do RCProcessuais).

IV.

DECISÃO

Pelos fundamentos expostos, na improcedência do recurso, acordamos em:


a) Manter a decisão da 1.ª instância; e
b) Condenar os Recorrentes nas custas do recurso.



***


Tribunal da Relação do Porto, 18 de junho de 2024

Os Juízes Desembargadores,

Fernando Vilares Ferreira

Maria da Luz Seabra

Anabela Dias da Silva


__________________
[1] ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES, Recursos em Processo Penal, 6.ª Edição Atualizada, Almedina, 2020, p. 332.
[2] Cf. MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, As partes, o objeto e a prova na ação declarativa, Lex, 1995, p. 195.
[3] Cf. Ac. do STJ de 06.10.2010, relatado por HENRIQUES GASPAR no processo 936/08.JAPRT, acessível em www.dgsi.pt.
[4] Cf. LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA, O Standard de Prova no Processo Civil e no Processo Penal, janeiro de 2017, acessível em http://www.trl.mj.pt/PDF/O%20standard%20de%20prova%202017.pdf.
[5] Ob. cit.
[6] Cf. TOMÉ GOMES, Um olhar sobre a prova em demanda da verdade no Processo Civil, in Revista do Centro de Estudos Judiciários, n.º 3, 2005, p. 152.
[7] Cf. CASTRO MENDES, Do conceito de prova em processo civil, Ática, 1961, Tese de Doutoramento apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, p. 413.
[8] Cf. PAIS DE AMARAL, Direito Processual Civil, 12.ª edição, Almedina, 2015, p. 293.
[9] “Uma nota também quanto aos alegados marcos que supostamente dividiam aquelas duas parcelas, para dizer que, a ser verdadeira a tese dos réus, apenas se justificava que fossem colocados dois marcos exatamente no fim da zona retangular da parcela do terreno dos autores, para atestar que o mesmo terminava naquele local. Para quê mais marcos? Os demais marcos referidos na inspeção judicial não qualificada realizada nos autos, em face das regras da normalidade, servem apenas e tão só para delimitar a Bouça de ... (integrando a parcela em crise nos autos) relativamente aos terrenos vizinhos, denominados terrenos da casa da Laje. Acresce que da prova testemunhal considerada credível e das regras da normalidade, atentas as suas caraterísticas, não faz qualquer sentido que o denominado marco 2 seja efetivamente um marco, pois que nesse caso, a configuração dos terrenos seria absolutamente inviável, sendo pouco crível que numa partilha delimitassem dessa forma os prédios.”
[10] Relatado por RODRIGUES PIRES no processo 934/07.1TBOVR.P1, acessível em www.dgsi.