Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
62/15.6T9MAI-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FRANCISCO MOTA RIBEIRO
Descritores: PROCESSO PENAL
PEDIDO CÍVEL
REGULAMENTO DAS CUSTAS PROCESSUAIS
TAXA DE JUSTIÇA
REMANESCENTE
PAGAMENTO
DISPENSA
PRESSUPOSTOS
Nº do Documento: RP2024062662/15.6T9MAI-A.P1
Data do Acordão: 06/26/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL (CONFERÊNCIA)
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO PELA DEMANDANTE CÍVEL
Indicações Eventuais: 4. ª SECÇÃO CRIMINAL
Área Temática: .
Sumário: I – Tal como decorre do preceituado no artigo 6º, nº 7, do Regulamento das Custas Processuais, a dispensa do pagamento da taxa de justiça remanescente assume um caráter excecional, devendo o juiz fundamentá-la, tendo em conta a complexidade da causa e a conduta processual das partes, com o sentido específico de positivamente, no caso concreto, se verificar “uma menor complexidade ou maior simplicidade” da causa “e uma positiva atitude de cooperação das partes entre si e com o tribunal no delineamento do objeto do processo”
II – Numa situação em que não se vislumbra onde possa ter havido comportamento colaborante da recorrente na tramitação do processo, que seguiu os seus termos até final, cujo mérito não estava exclusivamente dependente da condenação do arguido, pelos factos constitutivos do crime que lhe vinha imputado, antes tendo implicado a análise da matéria de facto, que era bem distinta daquela que constituía o objeto do processo criminal, pois reportada a um pedido de pagamento de um valor bastante elevado, introduzindo no processo uma complexidade técnico-jurídica adicional, que pese embora não fosse especialmente relevante, não assumiu, no específico contexto em que foi obrigatoriamente considerada, uma simplicidade que implicasse um manifesto desequilíbrio entre a utilidade económica pretendida, a complexidade da causa e a taxa de justiça remanescente devida, não poderá ponderar-se a dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça fixado, posto que não considerado manifestamente excessivo ou desproporcionado.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 62/15.6T9MAI.P1 - 4.ª Secção

Relator: Francisco Mota Ribeiro

Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto


1. RELATÓRIO

1.1. No processo nº 62/15.6T9MAI, que corre termos no Juízo Central Criminal de Vila do Conde, Tribunal Judicial da Comarca do Porto, após requerimento apresentado pela demandante Cível, A... S.A., ao abrigo do art.º 6º, nº 7, do Regulamento das Custas Processuais, foi proferido despacho, a 23/01/2024, no qual foi decidido indeferir parcialmente o requerido, determinando-se a dispensa da requerente apenas do pagamento de metade do remanescente da taxa de justiça devida, no valor de € 18.559,50.
1.2. Não se conformando com tal decisão, dela veio interpor recurso a demandante cível, apresentando motivação que termina com as seguintes conclusões:

“1. O presente recurso vem interposto do Douto Despacho que indeferiu parcialmente o requerimento da demandante A..., S.A., dispensando a mesma apenas do pagamento de metade do remanescente da taxa de justiça devida, ou seja, de € 18.559,50.

2. A 21 de setembro de 2020, tendo sido notificada do despacho de acusação contra AA, a A... deduziu pedido de indemnização cível, no montante de € 3.166.479,81, tendo por base duas livranças subscritas pela sociedade comercial “B..., Lda.” e avalizadas pelo Arguido AA.

3. A 13 de abril de 2023, a A... foi notificada do agendamento da audiência de discussão e julgamento, a qual se realizou em seis sessões nos dias 11 de maio, 25 de maio, 26 de junho, 3 de julho e 7 de setembro, todas em 2023, tendo sido ouvida apenas uma testemunha indicada pela A..., S.A.

4. A 31 de outubro de 2023, foi proferido acórdão que julgou improcedentes todos os pedidos de indemnização cível pelo facto de não se ter demonstrado que os prejuízos sofridos pelos credores da sociedade B... se deveram a factos ilícitos cometidos pelo Arguido AA.

5. Paralelamente, a Recorrente A... foi notificada pelo Douto Tribunal a quo para, no prazo de 10 dias, proceder ao pagamento do remanescente da taxa de justiça devida pelo pedido de indemnização cível formulado no montante de € 37.119,00.

6. A 21 de novembro de 2023, a Demandante A... requereu a dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça, ao abrigo da parte final do n.º 7 do artigo 6.º do RCP, por entender que o respetivo pedido de indemnização cível não tornou o processo mais complexo.

7.O Tribunal a quo que indeferiu parcialmente o pedido de dispensa do remanescente da taxa de justiça, fixando-o em € 18.559,50, por entender que o pedido de indemnização cível formulado implicou uma análise da matéria de facto distinta daquela que constituía o objeto do processo criminal, nomeadamente, quando à subscrição de duas livranças, o que introduziu uma complexidade técnico-jurídica adicional.

8.A Demandante A..., S.A. não pode concordar com a decisão proferida pelo Tribunal a quo, uma vez que, em seu entendimento, o pedido de indemnização cível deduzido pela A..., S.A. é bastante simples e o respetivo requerimento probatório é igualmente acessível a qualquer pessoa.

9. O n.º 7 do artigo 6.º do mesmo diploma legal prescreve que, nas causas de valor superior a (euro) 275 000, o remanescente da taxa de justiça é considerado na conta a final, salvo se a especificidade da situação o justificar e o juiz de forma fundamentada, atendendo designadamente à complexidade da causa e à conduta processual das partes, dispensar o pagamento.

10. A parte final do referido n.º 7 do artigo 6.º do R.C.P. admite a dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça quando a especificidade da situação o justificar e, por outro lado, atenta a complexidade da causa e a conduta processual das partes.

11. A dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça pode ser total ou parcial consoante o resultado da ponderação das especificidades da situação concreta (utilidade económica da causa, complexidade do processado e comportamento das partes), iluminada pelos princípios da proporcionalidade e da igualdade – Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça em 12 de dezembro de 2013.

12.O Regulamento das Custas Processuais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26 de dezembro, procurou adequar o valor da taxa de justiça ao tipo de processo em causa e aos custos que, em concreto cada processo acarreta para ao sistema judicial.

13. O valor da taxa de justiça não deve ser fixado tendo por base uma mera correspondência tabelar face ao valor da causa considerando que o valor da causa não permite obter uma ponderação da complexidade do processo ou da geração de custos para o processo judicial.

14.Consagra-se um sistema misto que assenta no valor da ação, até um certo limite máximo, e na possibilidade de correção da taxa de justiça atendendo à complexidade da causa, independentemente do valor económico atribuído à causa.

15.O Regulamento das Custas Processuais determina a possibilidade de graduação casuística e prudencial do montante da taxa de justiça a final atendendo a critérios de proporcionalidade, justeza e adequação dos valores da taxa de justiça devida pela parte em determinada ação ou procedimento.

16.O Tribunal a quo somente teve em consideração o valor da causa para a fixação do remanescente da taxa de justiça, sendo que, a nosso ver, haverá lugar à dispensa da totalidade do pagamento do remanescente da taxa de justiça.

17.O pedido de indemnização cível consubstanciado no articulado apresentado em 21 de setembro de 2020 não se revela especialmente complexo, uma vez que não abarca questões incidentais, nem tão pouco diligências de prova complexas.

18.A audiência de discussão e julgamento realizou-se em seis sessões, mas a sua extensão não se deveu à Demandante A..., S.A., a qual somente indicou uma testemunha, para além das testemunhas já indicadas na acusação, sendo a prova somente referente à dívida titulada pela Demandante.

19. O n.º 5 do artigo 6.º do Regulamento das Custas Processuais dispõe que, o juiz pode determinar, a final, a aplicação dos valores de taxa de justiça constantes da tabela i-C, que faz parte integrante do presente Regulamento, às ações e recursos que revelem especial complexidade.

20. O n.º 7 do artigo 530.º do CPC (aqui aplicável) dispõe, para efeitos de condenação no pagamento da taxa de justiça, as ações que se consideram especialmente complexas.

21.O pedido de indemnização cível deduzido pela Demandante não contende com questões de elevada especialização jurídica, especificidade técnica ou que importem a análise combinada de questões jurídicas de âmbito muito diverso.

22.A Demandante apresentou um único articulado nos autos e respetiva prova documental e arrolou uma única testemunha sua para prova do crédito invocado na petição inicial

23. O articulado junto ao processo não se pode considerar prolixo considerando que não foram utilizadas mais palavras do que o necessário para os factos invocados pela Demandante..

24.A conduta da Demandate A..., S.A. foi pautada por uma boa fé processual e cooperante com a ação da justiça, entendimento, aliás, corroborado pelo Tribunal a quo.

25.O Tribunal a quo entendeu que o pedido de indemnização cível deduzido pela Demandante implicou uma análise da matéria de facto distinta da acusação e que a subscrição das livranças e respetivo imposto selo introduziram no processo uma complexidade técnico-jurídica adicional.

26.No pedido de indemnização cível, a Demandante A... apenas refere ser portadora de duas livranças nos montantes de € 2.269.998,33 e de € 10.000,00, ambas subscritas pela sociedade comercial “B... – Soc. Construção e Obras Públicas, Lda.” e avalizadas pelo Arguido AA e outro, e que tais responsabilidades estão garantidas por hipotecas, não tendo recebido, até à data da p.i., qualquer quantia, mesmo no próprio decorrer do respetivo processo de insolvência.

27. A Demandante juntou cópia das duas referidas livranças, bem assim como escrituras de constituição de hipoteca e certidões prediais dos bens imóveis hipotecados, tendo indicado ainda uma testemunha para prova do crédito e junto o comprovativo de pagamento da taxa de justiça no valor de € 1.632,00.

28.A análise técnico-jurídica de duas livranças avalizadas pelo Arguido AA não introduz no processo qualquer complexidade técnico-jurídica, pois que as livranças são títulos de crédito que são utilizadas por todas as instituições de crédito, quer como livranças desconto, quer como livranças caução.

29.Como livranças desconto correspondem a verdadeiros financiamentos, enquanto livranças caução configuram garantias de cumprimento de outros negócios jurídicos subjacentes.

30.Esta forma de financiamento e de garantia é, salvo o devido respeito, utilizada por um comum cidadão visto como o bom pai de família ou o homem médio, pelo que, em nosso entendimento, não pode a mesma relevar uma especial complexidade para quem tem conhecimentos técnicos e especializados.

31.O código de processo penal prevê o pedido de indemnização cível, o que significa que, necessariamente, são trazidos aos autos factos que exigem um conhecimento da matéria cível e, por outro lado, a Demandante A... já liquidou uma taxa de justiça no montante de € 1.632,00 que, em nosso entendimento, é suficiente para a necessária análise técnico-jurídico dos factos cíveis carreados aos autos pela Demandante.

32.Um remanescente da taxa de justiça num montante de € 18.559,50 é manifestamente desproporcional para o objeto do pedido de indemnização cível formalizado pela Demandante e respetivos meios de prova.

33.A Demandante foi notificada nos autos do despacho de acusação, tendo defendido o seu direito de crédito, atuado perante o tribunal e contrapartes com lealdade, transparência e colaboração, não tendo praticado quaisquer manobras dilatórias e, inclusivamente, liquidou a respetiva taxa de justiça de € 1.632,00.

34.Deve haver uma proporcionalidade entre o valor da taxa de justiça a pagar por cada interveniente no processo e a contraprestação inerente aos custos do processo para o sistema de justiça.

35. Face às razões sobreditas, nomeadamente da simplicidade do PIC deduzido e dos meios de prova apresentados e do comportamento colaborante da Demandante no processo, o pagamento do remanescente da taxa de justiça inicial no valor de € 18.559,50 corresponde a uma desproporcionalidade entre o serviço prestado e o custo a cobrar, revelando-se numa verdadeira condenação por quem já sofreu um prejuízo no seu direito de crédito de € 3.166.479,81.

36. A Demandante deve ser isentada de proceder ao pagamento da totalidade do remanescente da taxa de justiça nos termos do n.º 7 do artigo 6.º do R.C.P., razão pela qual se requer a revogação do Despacho ora em crise.”

1.3. O Ministério Público respondeu, concluindo pela negação de provimento ao recurso, nos seguintes termos:

“1 – O estabelecido no n.º 7 do art.º 6 do Regulamento das Custas Processuais concede ao juiz a possibilidade de dispensar, no todo ou em parte, o pagamento do remanescente da taxa de justiça devida a final quando o valor da causa exceda o valor de € 275.000, pressupondo que tal dispensa se imponha e justifique em função da complexidade da causa, da sua utilidade económica e da conduta processual das partes, sob a ponderação dos princípios da proporcionalidade e da igualdade.

2 - Ora, no caso concreto e para o efeito importa ponderar o pedido de indemnização civil apresentado por parte da recorrente, que implicou a análise pelo Tribunal de matéria de facto diversa daquela que constituía o objeto do processo criminal e que acarretou uma maior complexidade técnico-jurídica.

3 – Por essa razão, consideramos que não se verificam preenchidos os requisitos para que a recorrente seja dispensada do pagamento do remanescente da taxa de justiça devida, tal como por si requerido.

4 - Assim sendo, o M.º Juiz “a quo” decidiu bem ao indeferir parcialmente o requerimento da recorrente dispensando-a apenas, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 7, do Regulamento das Custas Processuais, do pagamento de metade do remanescente da taxa de justiça devida.”

1.4. O Tribunal recorrido, antes de ordenar a remessa do processo a este Tribunal de recurso, ao abrigo do art.º 414º, nº 4, do CPP, considerou não vislumbrar fundamento para que o despacho recorrido fosse reparado.

1.5. O Exmo. Sr. Procurador-Geral-Adjunto, junto deste Tribunal da Relação, emitiu douto parecer, no qual concluiu pela improcedência do recurso.

1.6. Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.

1.7. Tendo em conta os fundamentos do recurso interposto pela recorrente e os poderes de cognição deste Tribunal, importa essencialmente apreciar e decidir se existe ou não fundamento para, a título excecional, nos termos previstos no art.º 6º, nº 7, do Regulamento das Custas Processuais, dispensar a recorrente do pagamento do remanescente da taxa de justiça, em função da verificação ou não, em concreto, de uma menor complexidade do processo e da conduta de cooperação das partes nele registada.

2.  FUNDAMENTAÇÃO

2.1. Factos a considerar

2.1.1. A recorrente deduziu pedido cível contra o arguido AA, ex-sócio-gerente da sociedade B..., Lda., pedindo a sua condenação no pagamento da quantia de 3.166.489,81 €, acrescida de juros de mora à taxa legal, desde 17/05/2012 até efetivo e integral pagamento;

2.1.2. Alegou como fundamento, em síntese, que na qualidade de credora cessionária de crédito anteriormente titulado pelo Banco 1..., SA., é portadora e legítima possuidora de duas livranças, no valor global de 2.279.998,33€, que venceram juros, cujo pagamento foi ainda garantido por duas hipotecas genéricas, sobre dois prédios, um urbano e outro rústico, melhor descritos no articulado do pedido cível, não tendo a demandante cível recebido até ao momento qualquer montante, nem no decurso do processo de insolvência da sociedade B..., Lda..

2.1.3. Como prova testemunhal indicou as testemunhas já arroladas pelo Ministério Público na acusação, e ainda uma outra, melhor identificada na petição cível deduzida.

2.1.4. Apresentou ainda prova documental, ao todo 6 documentos, entre os quais certidões da Conservatória do Registo Predial e de escrituras públicas com documentos complementares, que totalizam 30 páginas.

2.1.5. O Tribunal a quo, no acórdão proferido sobre o mérito da causa, fundamentou a improcedência dos pedidos cíveis deduzidos, nos seguintes termos:

A responsabilidade de quem pratica um crime não se esgota em sede penal, podendo assumir, paralelamente, relevância no campo cível, nomeadamente em função do surgir da obrigação do agente reparar os prejuízos decorrentes do facto praticado.

Independentemente do respetivo processamento ter lugar no âmbito da ação penal, o pedido de indemnização civil tem que ser apreciado com base nos pressupostos de que a lei civil faz depender a existência de direito a indemnização. Assim, nos termos do disposto no artigo 483.º, n.º 1, do Código Civil, aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação. São, pois, pressupostos do direito à indemnização: o facto violador de um direito ou interesse alheio; a ilicitude; o vínculo de imputação do facto ao agente a título de culpa; o dano; e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.

De todo o modo, importa ter sempre presente que, conforme decorre do disposto no artigo 71.º do Código do Processo Penal e se mostra suportado também pela doutrina expressa no Assento do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/99 8, o pedido de indemnização civil deduzido em processo penal apenas pode ter como fonte a responsabilidade civil extracontratual fundada no facto ilícito criminal. Por isso, no caso em apreço, não podem proceder os pedidos de indemnização que foram formulados unicamente com base na alegação pelos demandantes da falta de pagamento de créditos emergentes do fornecimento de bens ou serviços à sociedade insolvente B..., Lda., da qual o ora arguido/demandado era o único sócio e gerente.

Por outro lado, também não se encontra consagrada na nossa Ordem Jurídica qualquer princípio de responsabilidade objetiva que, a partir do momento em que alguém é condenado pela prática de um crime de insolvência dolosa de uma determinada sociedade comercial, faça incidir sobre essa pessoa a obrigação de proceder ao pagamento dos créditos cujo pagamento não foi obtido no processo de execução universal que é a insolvência. O responsável pelo crime cometido apenas pode ser responsabilizado, conforme decorre do já mencionado artigo 483.º, n.º 1, do Código Civil, se se demonstrar que existe uma ligação causal (ou seja, direta e necessária) entre os factos concretos que ele cometeu e os prejuízos sofridos pelos credores cujos créditos não foram pagos.

Ora, revertendo mais uma vez a nossa atenção para o caso dos autos, verifica-se que, no essencial, mais não se provou, quanto à atuação do arguido/demandado, do que o facto de ele, no âmbito das funções que exercia enquanto único gerente da sociedade B..., ter simulado a celebração de dois contratos-promessa por força dos quais a sociedade aparentava ter prometido vender dois prédios de tal sociedade, justamente aqueles que, aquando da declaração de insolvência daquela sociedade, foram os únicos bens que se logrou apreender a favor da massa insolvente. Não se provou, todavia, que esses bens tivessem sido subtraídos ao património da sociedade que veio a ser declarada insolvente (ao contrário, provou-se até que - ainda que devido à ação zelosa do sr. administrador da insolvência que operou a resolução dos mencionados “contratos-promessa” - os prédios em causa acabaram por ser vendidos no âmbito do processo de insolvência, revertendo para a massa insolvente os quantitativos monetários correspondente ao preço que foi pago pelos respetivos compradores), nem que o arguido/demandado haja incorrido na prática de qualquer outro tipo de atos que agravassem o deficit financeiro da sociedade B... que, em 2012, esteve na base da respetiva declaração de insolvência. Por isso, face aos factos que se logrou provar, não se pode dizer que o arguido tivesse concorrido para a situação de escassez patrimonial que levou a que os titulares de créditos sobre a sociedade B..., mesmo depois de, no âmbito do processo de insolvência desta sociedade, ser liquidado todo o seu património, não tivessem conseguido obter a cobrança das quantias monetárias que lhes eram devidas. Consequentemente, por não se ter demonstrado que os prejuízos sofridos pelos credores da sociedade B... se deveram a quaisquer factos ilícitos cometidos por AA, devem improceder todos os pedidos de indemnização civil que, contra este, foram deduzidos nos autos.”

2.1.6. Por seu turno, no despacho recorrido, no qual se deferiu parcialmente a pretensão deduzida pela recorrente, dispensando-se esta apenas de metade do remanescente da taxa de justiça e não da sua totalidade, como por ela pretendido, foi aduzida a seguinte fundamentação:

No caso em apreço, a demandante A... S.A., formulou um pedido de indemnização civil no valor de 3.166.479,81 €, correspondente ao somatório do capital de duas livranças que haviam sido subscritas pelo arguido (2.279.998,33 €uros), com o valor de juros vencidos sobre esse montante até 18-09-2020 (852.386,04 €) e com o valor do imposto de selo (34.095,44 €) liquidado aquando da concessão do empréstimo que ficou garantido por aquelas livranças.

Nada de negativo há a apontar quanto à conduta processual da demandante, pois, da parte desta, não se verificou qualquer prolixidade ao nível das alegações que efetuou, nem resultou da sua atividade qualquer incidente adicional em relação à apreciação da sua pretensão de fundo. Por outro lado, a intervenção processual da demandante também não originou a realização de diligências probatórias complexas ou a inquirição de elevado número de testemunhas.

Todavia, diferentemente daquilo que é alegado no requerimento em epígrafe, o mérito do pedido de indemnização civil apresentado não estava exclusivamente dependente da condenação do arguido; mais do que isso, os termos do pedido de indemnização que foi apresentado implicou a análise de matéria de facto bem distinta daquela que constituía o objeto do processo criminal, designadamente aquela que se reporta à subscrição de duas livranças (jamais referidas na acusação) e ao pagamento de um valor bastante elevado a título de imposto de selo, introduzindo assim no processo uma complexidade técnico-jurídica adicional que, necessariamente, teve que ser enfrentada pelo tribunal coletivo que procedeu ao julgamento da causa. Face a tal, não se considera haver fundamento bastante para que a demandante seja dispensada do pagamento da totalidade do remanescente da taxa de justiça.

De todo o modo, atentos os demais fatores que, acima, foram primeiramente evidenciados, considera-se justificável e proporcional que a requerente seja dispensada do pagamento de metade do remanescente da taxa de justiça devida.”

2.2. Fundamentos fáctico-conclusivos e jurídicos

Diz o art.º 6º, nº 1, do Regulamento das Custas Processuais o seguinte: “A taxa de justiça corresponde ao montante devido pelo impulso processual do interessado é fixada em função do valor e complexidade da causa de acordo com o presente Regulamento, aplicando-se, na falta de disposição especial, os valores constantes da tabela i-A, que faz parte integrante do presente Regulamento.” Estabelecendo-se, por outro lado, no nº 7 do mesmo artigo que “Nas causas de valor superior a (euro) 275 000, o remanescente da taxa de justiça é considerado na conta a final, salvo se a especificidade da situação o justificar e o juiz de forma fundamentada, atendendo designadamente à complexidade da causa e à conduta processual das partes, dispensar o pagamento.”

A primeira consideração a tomar é a de que a dispensa do pagamento da taxa de justiça remanescente assume um caráter excecional, devendo o juiz fundamentá-la, tendo em conta a complexidade da causa e a conduta processual das partes, com o sentido específico de positivamente, no caso concreto, se verificar “uma menor complexidade ou maior simplicidade” da causa “e uma positiva atitude de cooperação das partes entre si e com o tribunal no delineamento do objeto do processo[1].

O preceito em análise foi aditado pela Lei nº 7/2012, de 13/02, colmatando assim a ausência de norma análoga à do art.º 27º, nº 3, do anterior Código das Custas Judiciais, não sendo alheia a uma tal alteração os juízos de inconstitucionalidade que foram sendo produzidos pelo Tribunal Constitucional a um regime misto de taxação de custas que, embora assente, não apenas no valor da causa, mas também na complexidade dos autos, a verdade era que, nas palavras do acórdão do acórdão nº 421/2013, de 15/07/2013, um tal critério operava apenas num sentido único: “garantindo que os processos suscetíveis de serem qualificados como especialmente complexos importem para o sujeito passivo da correspondente obrigação tributária um custo que efetivamente reflita esse maior grau de complexidade. Mas não atua em sentido contrário, assegurando às ações de elevado valor que fiquem claramente aquém de um padrão médio de complexidade um nível de tributação adequado ao (menor) serviço efetivamente prestado.” Daí o mesmo Tribunal ter julgado “inconstitucionais por violação do direito de acesso aos tribunais, consagrado no artigo 20.º da Constituição, conjugado com o princípio da proporcionalidade, decorrente dos artigos 2.º e 18.º, n.º 2, segunda parte, da Constituição, as normas contidas nos artigos 6.º e 11.º, conjugadas com a tabela I -A anexa, do Regulamento das Custas Processuais, na redação introduzida pelo Decreto -Lei n.º 52/2011, de 13 de abril, quando interpretadas no sentido de que o montante da taxa de justiça é definido em função do valor da ação sem qualquer limite máximo, não se permitindo ao tribunal que reduza o montante da taxa de justiça devida no caso concreto, tendo em conta, designadamente, complexidade do processo e o caráter manifestamente desproporcional do montante exigido a esse título”.

Sendo ainda relevantes, no sentido do apuramento casuístico da excecional possibilidade de dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça, as seguintes considerações, tecidas por aquele mesmo Tribunal, no Acórdão nº 301/2009, de 22/06/2009: “estando em causa a aferição da proporcionalidade de um determinado quantitativo pecuniário, no caso de ele se mostrar como contrapartida adequada da utilização de um serviço, atentas as características da sua natureza e da sua concreta execução, com incidência nos custos, não faz sentido concluir que ele viola a proibição do excesso, com fundamento em que, noutras circunstâncias aplicativas, seria esse o resultado a que conduziria o critério de cálculo. Quando a censura constitucional tem como alvo a rigidez e automaticidade do critério legal, com a consequente falta de flexibilidade adaptativa a circunstâncias específicas que podem justificar uma redução de taxa, essas circunstâncias, na fiscalização concreta, têm que ser tidas em consideração.” Aí se acrescentando que, nessa perspetiva, “não pode passar despercebido que a situação sub judicio difere substancialmente, sob o ponto de vista da natureza do processo e da complexidade da tramitação, das duas outras sobre que recaíram aqueles acórdãos, em que foi emitido um juízo de inconstitucionalidade. Quanto ao Acórdão n.º 227/07, o cálculo de custas nele em apreciação referia-se a procedimentos cautelares e respetivos recursos, tendo sido apurado um valor de € 584.403,82, muito superior ao que está em questão nos presentes autos. No caso do Acórdão n.º 471/07, foi decisiva da pronúncia de inconstitucionalidade a simplicidade da tramitação, que findou, em 1.ª instância, no saneador.

Também no âmbito do citado Acórdão nº 421/2013, do mesmo Tribunal, foi sublinhada a ideia central de que “a taxa de justiça assume, como todas as taxas, natureza bilateral ou correspetiva, constituindo contrapartida devida pela utilização do serviço público da justiça por parte do respetivo sujeito passivo. Por isso que, não estando nela implicada a exigência de uma equivalência rigorosa de valor económico entre o custo e o serviço, dispondo o legislador de uma «larga margem de liberdade de conformação em matéria de definição do montante das taxas», é, porém, necessário que «a causa e justificação do tributo possa ainda encontrar-se, materialmente, no serviço recebido pelo utente, pelo que uma desproporção manifesta ou flagrante com o custo do serviço e com a sua utilidade para tal utente afeta claramente uma tal relação sinalagmática que a taxa pressupõe» (citado Acórdão n.º 227/2007).”  Aí se concluindo ser o que acontecia, no caso aí posto, quando “se exige ao autor de uma simples ação declarativa de condenação, que terminou com a homologação da desistência do pedido, apresentada ainda antes de decorrido o prazo da contestação, o pagamento a final de uma taxa de justiça no valor de €118.360,80”.

Chegados a este ponto, não vemos como seja possível afirmar-se que, no caso dos autos, o remanescente da taxa de justiça fixado em resultado da decisão recorrida, no valor de 18.559,50 €, possa ser considerado manifestamente excessivo ou desproporcionado, e assim ponderada a sua dispensa, partindo de uma relação concomitante com a utilidade económica que a recorrente pretendia obter com a ação cível instaurada, no valor de 3.166.489,81 €, acrescida de juros de mora à taxa legal, desde 17/05/2012 até efetivo e integral pagamento, ademais a circunstância de a respetiva ação ter decorrido até à prolação da sentença final sobre o mérito da causa, e ainda que não se possa afirmar que, em concreto, a mesma haja assumido uma especial complexidade, a verdade é que não é a ausência desta, mas antes a sua excecional simplicidade e a relevante cooperação das partes na composição do litígio que poderão justificar a dispensa do pagamento de um tal remanescente, como aliás aconteceu nos exemplos dados supra, nos quais estavam em questão valores de taxa de justiça muitíssimo elevados, e em que a simplicidade da causa havia sido marcada pela simplicidade da tramitação do processo, que findou em 1.ª instância no saneador, sem, portanto, chegar a julgamento, ou que terminou com a homologação da desistência do pedido, apresentada ainda antes de decorrido o prazo da contestação, estando nesta última em discussão do pagamento de uma taxa de justiça no valor de 118.360,80 €.

No caso dos autos, ao contrário do alegado, não vislumbramos onde possa ter havido comportamento colaborante da recorrente na tramitação do processo, que seguiu os seus termos até final, cujo mérito não estava exclusivamente dependente da condenação do arguido, pelos factos constitutivos do crime que lhe vinha imputado, antes tendo implicado a análise da matéria de facto, que, como bem frisou o Tribunal a quo, era bem distinta daquela que constituía o objeto do processo criminal, pois reportada a um pedido de pagamento de um valor bastante elevado, “introduzindo no processo uma complexidade técnico-jurídica adicional”, que pese embora não fosse especialmente relevante, não assumiu, no específico contexto em que foi obrigatoriamente considerada, uma simplicidade que implicasse um manifesto desequilíbrio entre a utilidade económica pretendida, a complexidade da causa e a taxa de justiça remanescente devida, nos termos em que a mesma resulta fixada no despacho recorrido, sendo certo que a audiência de julgamento decorreu durante 6 sessões, e pese embora a recorrente tivesse apresentado uma única testemunha, a suportar exclusivamente o pedido cível, a verdade é que fez valer em favor deste as testemunhas que haviam sido arroladas pelo Ministério Público na acusação.

Razão por que, sem necessidade de mais considerações, irá ser negado provimento ao recurso.


3. DISPOSITIVO

Face ao exposto, acordam os juízes da 2.ª Secção Criminal (4ª Secção Judicial) deste Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso interposto pela demandante cível A..., S.A.

Custas a cargo da recorrente


Porto, 2024-06-26

Francisco Mota Ribeiro

Cláudia Sofia Rodrigues

José Piedade


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[1] Salvador da Costa, Regulamento das Custas Processuais Anotado, 5ª Edição, Almedina, Coimbra, 2013, p. 201.