Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
6013/23.7T8MAI.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MANUEL DOMINGOS FERNANDES
Descritores: MAIOR ACOMPANHADO
FIXAÇÃO DA DATA DA CONVENIÊNCIA DAS MEDIDAS
Nº do Documento: RP202505266013/23.7T8MAI.P1
Data do Acordão: 05/26/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMAÇÃO
Indicações Eventuais: 5. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Na reapreciação da prova a Relação goza da mesma amplitude de poderes da 1.ª instância e, tendo como desiderato garantir um segundo grau de jurisdição relativamente à matéria de facto impugnada, deve formar a sua própria convicção.
II - Atento o carácter instrumental da reapreciação da decisão da matéria de facto, no sentido de que a reapreciação pretendida visa sustentar uma certa solução para uma dada questão de direito, a inocuidade da aludida matéria de facto justifica que este tribunal indefira essa pretensão, em homenagem à proibição da prática no processo de atos inúteis (artigo 130.º do CPCivil).
III - A data a partir da qual as medidas decretadas se tornaram convenientes, que na sentença do processo especial de acompanhamento de maiores o juiz deve, nos termos do art.º 900.º do CPC, fixar, quando possível, não tem repercussão na validade dos atos do acompanhado.
IV - No regime do maior acompanhado só as decisões que decretam a cessação ou a modificação do acompanhamento podem ter efeitos retroativos.
V - O objetivo do art.º 900.º do CPCivil não é fixar a primeira data em que é possível afirmar que as medidas já são convenientes, mas sim fixar a data a partir da qual a conveniência passou a existir, se iniciou, razão pela qual a fixação da data não tem efeito ou interesse que vá para além de sinalizar aos terceiros que contactem com o acompanhado que o tribunal localizou a situação numa determinada data, a fim de que no seu relacionamento com o acompanhado possam atuar ou levar em consideração a existência nessa data das circunstâncias pessoais que tornavam conveniente a adoção de medidas que não estavam ainda decretadas.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 6013/23.7T8MAI.P1
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto-Juízo Local Cível ...



Relator: Dr. Manuel Fernandes
1º- Adjunto: Dr.ª Ana Olívia Loureiro
2º- Adjunto: Dr.ª Eugénia Marinho da Cunha



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Sumário
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I- RELATÓRIO


AA, com residência em ..., em ..., em França, ao abrigo do disposto nos artigos 138º e 141º, ambos do Cód. Civil, veio intentar a presente ação especial de acompanhamento de maior, relativamente a BB, identificado nos autos, requerendo que se decrete o acompanhamento do requerido.
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Tendo o processo seguido os seus regulares termos foi, a final, proferida decisão do seguinte teor:
“Nestes termos, julgando a ação procedente, decide-se:
1. Declarar suprida a autorização do beneficiário para a interposição da presente ação;
2. Decretar a medida de acompanhamento de representação geral a BB, nascido no dia ../../1939, sendo filho de CC e de DD;
3. Fixar a data provável do início da necessidade de acompanhamento, pelo menos, no decurso do mês de setembro de 2023;
4. Nomear como acompanhante do beneficiário o mencionado EE, identificado nos autos, ao qual competirá a representação geral do acompanhado;
5. Determinar a desnecessidade de constituição de conselho de família, nomeando, no entanto, a indicada AA, filha do beneficiário, melhor identificada nos autos, para exercer o cargo de acompanhante substituta;
6. Determinar que a publicidade da decisão se limita ao que decorre do registo;
7. Consignar que não há notícia da existência de testamento vital ou de procuração para prestação de cuidados de saúde outorgados pelo beneficiário.
8. Consignar que o beneficiário fica impedido de perfilhar, adotar, exercer responsabilidades parentais, decidir as suas intervenções cirúrgicas e tratamentos, deslocar-se no país ou no estrangeiro, fixar domicílio/residência e testar;
9. Não são devidas custas, nos termos do artigo 4º n.º 1 do Regulamento das Custas Processuais.
Registe e notifique”.
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Não se conformando com o assim decidido veio o Requerente interpor o presente recurso concluindo da seguinte forma:
I. Salvo o devido respeito, o Tribunal a quo não poderia ter afirmado na fundamentação da matéria de facto da sentença:
a. “A este propósito, cumpre salientar que o mesmo [(rectius, EE, filho do beneficiário)] já vem desempenhando essas funções, sendo que o beneficiário e a esposa outorgaram uma procuração para o efeito.
b. Acresce que não se provou que essa procuração tenha sido outorgada pelo beneficiário sem que o mesmo não detivesse capacidade para o efeito”.
II. A intitulada “procuração” não é um instrumento notarial público, não está autenticada, nem as assinaturas reconhecidas em conformidade com a lei; a intitulada “procuração” para ser válida teria de cumprir com o preceituado no artigo 152.º do Código do Notariado, o qual estabelece que “Se o documento que se pretende autenticar estiver assinado a rogo, devem constar, ainda, do termo o nome completo, a naturalidade, o estado e a residência do rogado e a menção de que o rogante confirmou o rogo no ato da autenticação”;
III. Do mesmo modo, o artigo 154.º, n.º 3 do Código do Notariado estabelece que “O rogo deve ser dado ou confirmado perante o notário, no próprio ato do reconhecimento da assinatura e depois de lido o documento ao rogante”.
IV. E nos termos do artigo 155.º, n.º 4 do Código do Notariado “O reconhecimento da assinatura a rogo deve fazer expressa menção das circunstâncias que legitimam o reconhecimento e da forma como foi verificada a identidade do rogante”;
V. E, independentemente do rogo, sempre teriam de se verificar e ser imperativamente cumpridos os requisitos essenciais referidos na alínea a), do n.º 1 e n.º 2 do artigo 151.º do Código de Notariado, nomeadamente “1 - O termo de autenticação, além de satisfazer, na parte aplicável e com as necessárias adaptações, o disposto nas alíneas a) a n) do n.º 1 do artigo 46.º, deve conter ainda […a] declaração das partes de que já leram o documento ou estão perfeitamente inteiradas do seu conteúdo e que este exprime a sua vontade; 2- É aplicável à verificação da identidade das partes, bem como à intervenção de abonadores, intérpretes, peritos, leitores ou testemunhas, o disposto para os instrumentos públicos”.
VI. Ora, da intitulada “procuração” junta aos autos com o requerimento de referência n.º 47927328 (ref.ª citius n.º 38105256, de 08 de fevereiro de 2024) consta apenas o papel timbrado de um Cartório Notarial ..., a palavra “conteúdo” e três assinaturas.
VII. Do mesmo modo, em instrumento notarial público, autenticação de documentos ou reconhecimento de assinaturas tem de constar obrigatoriamente o dia, mês e ano ou lugar em que foi lavrado (rectius, o ato notarial);
VIII. A violação das normas imperativas suprarreferidas conduz, necessariamente, à nulidade das declarações inscritas na intitulada “Procuração”, nos termos do artigo 220.º do Código Civil;
IX. E, sempre com todo o devido respeito, sendo a nulidade de conhecimento oficioso (art.º 286.º do C.C.) não poderia o tribunal a quo fundamentar a sua decisão em um documento que encerra declarações negociais nulas.
X. Quer os artigos 151.º, 152.º, 154.º e 155.º do Código do Notariado, quer os artigos 220.º e 286.º do Código Civil são normas imperativas e deveriam ter sido interpretados no sentido de o documento junto aos autos não ter qualquer validade e relevância para a fundamentação da matéria de facto nos termos e para os efeitos do artigo 639.º, n.º 2, al. a) e b) do C.P.C.
XI. As declarações negociais integradas na intitulada “procuração” para poderem ser consideradas, como considerou o tribunal a quo, como resultantes de procuração outorgada em Cartório Notarial ... de constar obrigatoriamente de documento autêntico ou autenticado;
XII. Não sendo o caso, não pode esse facto ser dado como provado com base em documento “que não seja de força probatória superior” (art.º 364.º do C.C.);
XIII. Ademais, se alguém pretendesse prevalecer-se dos direitos que eventualmente resultassem da intitulada “procuração” cabia a essa pessoa fazer prova dos factos constitutivos dos direitos alegados (art.º 342.º do CC);
XIV. Sempre com o devido respeito, ao inverter o ónus de prova em contradição com o estipulado no referido artigo 342.º do CC, o tribunal a quo aplica também erradamente esta norma legal;
XV. Devendo este artigo 342.º do CC ser aplicado em conformidade com a interpretação referida no ponto XIII destas conclusões;
Consequentemente, nos termos e para os efeitos do artigo 640.º, n.º 1 do C.P.C.
XVI. O ponto 30. da matéria de facto dada como provada e descrito como “Em 19 de Agosto de 2022, o beneficiário e a sua esposa conferiram procuração no Cartório Notarial do Dr. FF, na ..., a favor do seu filho EE, a quem concederam poderes para gerir e administrar os seus bens” foi incorretamente julgado, devendo passar a fazer parte integrante dos factos dados como não provados, pois não tem sustentação na prova produzida, nem nas regras atinentes ao ónus de prova suprarreferidas;
XVII. Não havendo prova, porque o documento referido na fundamentação da decisão proferida pelo tribunal a quo padece de nulidade, esse facto deveria necessariamente ter sido dado como não provado, pois não há nos autos qualquer procuração validamente celebrada em Cartório Notarial que tenha sido junta até à data de interposição deste recurso;
Do mesmo modo, ainda sob a alçada do artigo 640.º, n.º 1 do C.P.C.
XVIII. Sempre com o devido respeito, o tribunal a quo andou mal ao integrar o ponto n.º 26 na matéria de facto dada como provada da forma como o fez, consagrando que “O requerido perdeu a sua capacidade de autonomia, pelo menos em setembro de 2023”, apesar de o tribunal a quo ter prova suficiente, inequívoca e especializada para considerar que “o requerido perdeu a sua capacidade de autonomia em 27/08/2018, ou seja, à data do 1.º AVC”;
XIX. Porquanto o relatório pericial e os esclarecimentos prestados pela Sra. Perita são inequívocos quanto a esse facto; na conclusão do relatório pericial está dito inequivocamente pela Sra. Perita que “o requerido mostrou à observação sintomatologia compatível com o diagnóstico défices cognitivos e alterações do comportamento decorrentes de AVC. É provável que este quadro clínico tenha tido início aquando do 1.º AVC, com agravamento acentuado em setembro de 2023 (último AVC). É uma patologia com tratamento de suporte e não curativo, com prognóstico desfavorável (cf. relatório pericial junto aos autos através de e-mail enviado pelo Hospital ... em 04 de março de 2024 (referência citius n.º 38346031, de 04 de março de 2024).
XX. Ora, a Sra. Perita apresentou o seu relatório pericial ao abrigo do artigo 899.º do C.P.C., ou seja, “elabora[ndo] um relatório que precis[ou ...], a afeção de que sofre o beneficiário, as suas consequências, a data provável do seu início […]”;
XXI. Quanto à afirmação perentória por parte da Senhora Perita sobre a data provável do início da afeção de que sofre o beneficiário o Meritíssimo Juiz a quo não suscitou quaisquer reservas, nem pediu esclarecimentos e, por esse facto, a aqui recorrente aceitou legitimamente que o Meritíssimo Juiz a quo não considerou, à data, que permanecessem dúvidas sobre a data provável do início da afeção de que sofre o beneficiário, pois se assim fosse deveria ter lançado mão do disposto no n.º 2 do artigo 899.º do C.P.C.
XXII. Foram pedidos esclarecimentos pelo filho do beneficiário (!) e a Senhora Perita manteve perentoriamente que a data provável do início da afeção de que sofre o beneficiário é a do 1.º AVC, ou seja, o AVC que o beneficiário sofreu em 27/08/2018 (cf. esclarecimentos prestados e juntos aos autos através de e-mail do Hospital ... em 02 de julho de 2024, referência citius n.º 39507300, de 02 de julho de 2024);
XXIII. Nestes esclarecimentos prestados pela Senhora Perita, esta reafirma perentoriamente que “Segundo os registos clínicos no processo, o requerido era autónomo previamente ao AVC sofrido em 2018. Após este evento ficou com sequelas motoras e cognitivas” e que “o requerido mostrou à observação sintomatologia compatível com o diagnóstico défices cognitivos e alterações do comportamento decorrentes de AVC. É provável que este quadro clínico tenha tido início aquando do 1.º AVC, com agravamento acentuado em setembro de 2023 (último AVC);
XXIV. Destarte, atendendo ao relatório pericial, aos esclarecimentos prestados e ao preceituado no referido artigo 899.º do C.P.C. o tribunal a quo deveria ter dado como provado que “o requerido perdeu a sua capacidade de autonomia em 27/08/2018, ou seja, à data do 1.º AVC”;
XXV. Devendo ser alterado o referido ponto n.º 26 da matéria de facto em conformidade, pois que o agravamento sofrido em 2023 nada altera a posição sempre defendida pela Senhora Perita quanto à data provável do início da afeção de que sofre o beneficiário, que não teve dúvidas em afirmar e reafirmar ter ocorrido aquando do 1.º AVC, ou seja, em 27/08/2018; e inexistem nos autos quaisquer outras provas que infirmem o que sempre foi defendido em perícia médica realizada;
XXVI. E em conformidade deverá ser alterado o ponto 3 da parte dispositiva da sentença no sentido de “Fixar a data provável do início da necessidade de acompanhamento em 27 de agosto de 2018”.
Sem prescindir,
XXVII. No âmbito da fundamentação de Direito, o tribunal a quo estabelece que “como acompanhante substituta desde já se designa a indicada AA, filha do beneficiário, melhor identificada nos autos, à qual o acompanhante deverá periodicamente fornecer todas as informações referentes à saúde e à gestão do património do beneficiário” e no ponto 5 da parte dispositiva da sentença o tribunal a quo apenas consagra “Determinar a desnecessidade de constituição de conselho de família, nomeando, no entanto, a indicada AA, filha do beneficiário, melhor identificada nos autos, para exercer o cargo de acompanhante substituta”;
XXVIII. Ora, sob pena de não ser possível à aqui recorrente dar cumprimento à decisão proferida e cumprir com o seu dever de cuidado e diligência no interesse imperioso do beneficiário em conformidade com preceituado no artigo 143.º. n.º 2 do C.C., deveria a sentença fixar expressamente a concreta periodicidade com que o acompanhante EE deve fornecer todas as informações referentes à saúde e à gestão do património do beneficiário”;
XXIX. Posto que só com essa informação prestada pelo acompanhante, em prazo não excessivamente longo, poderá a aqui recorrente exercer as suas funções de acompanhante substituta no imperioso interesse do beneficiário nos impedimentos do acompanhante designado, sem correr o risco de enquanto acompanhante substituta atuar erradamente por ação ou omissão face à falta de informação minimamente atualizada;
XXX. Devendo, por isso, a decisão do tribunal a quo ser alterada no sentido de fixar no ponto 5 da parte dispositiva da mesma uma periodicidade, no máximo, de 3 em 3 meses para o acompanhante fornecer todas as informações referentes à saúde e à gestão do património do beneficiário.
Sem conceder e, salvo o devido respeito,
XXXI. Na remota hipótese de improcederem os fundamentos aduzidos supra então, a sentença é igualmente nula (art.º 615.º, n.º 1, alínea c);
XXXII. Porquanto sempre será ambígua quanto ao modo e espaço temporal com que o acompanhante EE deverá fornecer à aqui recorrente (acompanhante substituta) as informações referentes à saúde e à gestão do património do beneficiário;
XXXIII. Para a salvaguarda do imperioso interesse do beneficiário, a aqui recorrente (acompanhante substituta) deverá estar informada, com uma periodicidade concretamente determinada e não muito longa, sob a evolução da saúde do beneficiário e o modo como a gestão do património do beneficiário está a ser levada a cabo pelo acompanhante EE, evitando-se desse modo o risco de acompanhante substituta não adotar a conduta adequada face à evolução da saúde e gestão do património do beneficiário; atendendo à afeção de que padece o beneficiário não poderá a aqui recorrente obter deste algumas dessas informações.
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Devidamente notificado contra-alegou o Ministério Público pronunciando-se pela improcedência do recurso.
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Corridos os vistos legais cumpre decidir.
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II- FUNDAMENTOS

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cf. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do C.P.Civil.
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No seguimento desta orientação são duas as questões que importa apreciar:
a)- saber se tribunal recorrido cometeu erro na apreciação da prova e assim na decisão da matéria de facto;
b)- decidir em conformidade face à alteração, ou não, da matéria factual.
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A)- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

É a seguinte a matéria de facto que vem dada como provado pelo tribunal recorrido:
1. BB nasceu no dia ../../1939, sendo filho de CC e de DD.
2. O beneficiário é casado com GG, a qual também é requerida no âmbito de um processo de acompanhamento de maior.
3. O beneficiário tem dois filhos, designadamente a requerente AA (nascida em ../../1965) e EE (nascido em ../../1963).
4. No início do ano de 2017, o beneficiário BB foi encaminhado pelo médico que o acompanhava em França, onde esteve emigrado vários anos, para consulta de neurologia por suspeita de eventual epilepsia.
5. Em julho de 2018, o beneficiário BB sofreu um AVC isquémico com enfarte talâmico esquerdo.
6. Em outubro de 2018, o beneficiário BB recebeu assistência numa Unidade de Cuidados Intensivos de Cardiologia por ter tido um episódio que lhe afetou a sua mão esquerda.
7. Nas circunstâncias aludidas em 5) e em 6), o beneficiário foi encaminhado para consulta de neurologia, sendo que o exame neurológico revelou sequelas de paralisia facial inferior direita, com dificuldade em realizar gestos com a mão esquerda e uma diminuição da força de preensão na mão esquerda, em consequência do enfarte lacunar esquerdo.
8. Nessas mesmas circunstâncias, o beneficiário ficou sujeito a sessões de fisioterapia com enfoque nos alongamentos passivos músculo-tendinosos para ganho articular (nomeadamente nas mãos e articulações peri-articulares do tornozelo), trabalho de referenciação multissensorial (trabalho propriocetivo, em privação visual), bem como trabalho neuro motor e de ganho de marcha em tarefas duplas cognitivo-motoras.
9. Tendo então iniciado terapia da fala para avaliação e reeducação da memória e tratamento de problemas cognitivos, tendo sido identificados problemas no domínio urológico.
10. O AVC referido em 5) sucedeu em resultado de vários fatores de risco cardiovasculares, tendo causado ao beneficiário problemas de memória, problemas cognitivos, apatia, entre outros.
11. Em resultado do mencionado AVC, o beneficiário BB sofreu consequências no plano neurológico, com persistência de atraso psicomotor e com problemas de linguagem.
12. Nessas circunstâncias, o beneficiário e a sua mulher continuaram a residir na casa de que são proprietários.
13. Posteriormente, o beneficiário sofreu um AVC em agosto de 2022 e um último AVC em Setembro de 2023, o qual causou um agravamento acentuado da sua situação clínica.
14. A partir de novembro de 2023, o beneficiário passou a estar integrado no Lar A..., da Santa Casa da Misericórdia ....
15. Sendo que o requerido já beneficiava de apoio domiciliário dessa instituição, nas valências de alimentação e higiene, cerca de um ano antes de ser integrado no Lar.
16. Atualmente, o beneficiário padece de défices cognitivos e de alterações de comportamento decorrentes de AVC.
17. O requerido encontra-se reformado, auferindo uma pensão de reforma de montante não concretamente apurado.
18. O beneficiário desloca-se em cadeira de rodas.
19. O requerido não consegue cuidar da sua higiene pessoal, nem confecionar refeições, nem executar tarefas domésticas.
20. Não tem noção do espaço e do tempo, não distinguindo os dias da semana, nem as estações do ano.
21. Não consegue ler, escrever ou fazer contas.
22. O requerido não dispõe de capacidade para tomar a medicação que lhe está prescrita, nem para tomar decisões quanto a cuidados de saúde, designadamente, consultas, tratamentos e internamentos.
23. E não conhece o dinheiro, nem tem noção do valor relativo do mesmo.
24. A requerida não é capaz de manter uma conversa lógica e coerente e não é capaz de compreender o teor de documentos.
25. A situação clínica da requerida é irreversível e permanente.
26. O requerido perdeu a sua capacidade de autonomia, pelo menos em setembro de 2023.
27. O beneficiário é cuidado no quotidiano pelos serviços do Lar onde se encontra, sendo que o património do beneficiário está a ser gerido pelo seu filho EE.
28. Não é conhecido qualquer testamento vital ou procuração para prestação de cuidados de saúde outorgados pelo requerido ou a ele referente.
29. O beneficiário é proprietário é proprietário de diversos imóveis e titular de contas bancárias.
30. Em 19 de Agosto de 2022, o beneficiário e a sua esposa conferiram procuração no Cartório Notarial do Dr. FF, na ..., a favor do seu filho EE, a quem concederam poderes para gerir e administrar os seus bens.
31. Em agosto de 2023, o mencionado EE alterou o estado de movimentação das contas bancárias de que o beneficiário e a sua esposa são titulares em França, associando para o efeito o seu número de telefone.
32. O mencionado EE efetuou um levantamento de uma conta titulada pelo beneficiário e pela sua esposa em França, no valor de € 98.000,00.
33. Tendo depositado tal montante numa conta aberta em nome do beneficiário e da esposa em Portugal.
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Factos não provados:

34. O mencionado EE esteja a impedir o contacto da requerente AA com o beneficiário.
35. Tal situação de isolamento se mostre prejudicial para o beneficiário.
36. A movimentação aludida em 32) tenha sido efetuada sem conhecimento e contra a vontade do beneficiário.
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III. O DIREITO

Como supra se referiu a primeira questão que importa apreciar e decidir consiste em:
b)- saber se o tribunal recorrido cometeu erro na apreciação da prova e assim na decisão da matéria de facto.
Como resulta do corpo alegatório e das respetivas conclusões a recorrente abrange, com o recurso interposto, a impugna a decisão da matéria de facto, não concordando com a resenha de algum dos factos dados como provados.
Vejamos, então, se lhe assiste razão.
O controlo de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, não pode aniquilar (até pela própria natureza das coisas) a livre apreciação da prova do julgador, construída dialeticamente na base da imediação e da oralidade.
Efetivamente, a garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto não subverte o princípio da livre apreciação da prova (consagrado no artigo 607.º nº 5) que está deferido ao tribunal da 1ª instância, sendo que, na formação da convicção do julgador não intervêm apenas elementos racionalmente demonstráveis, já que podem entrar também elementos que em caso algum podem ser importados para a gravação vídeo ou áudio, pois que a valoração de um depoimento é algo absolutamente impercetível na gravação/transcrição.[1]
Ora, contrariamente ao que sucede no sistema da prova legal, em que a conclusão probatória é prefixada legalmente, no sistema da livre apreciação da prova, o julgador detém a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos, objeto do julgamento, com base apenas no juízo que fundamenta no mérito objetivamente concreto do caso, na sua individualidade histórica, adquirido representativamente no processo.
O que é necessário e imprescindível é que, no seu livre exercício de convicção, o tribunal indique os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela sobre o julgamento do facto como provado ou não provado”.[2]
De facto, a lei determina expressamente a exigência de objetividade, através da imposição da fundamentação da matéria de facto, devendo o tribunal analisar criticamente as provas e especificar os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador (artigo 607.º, nº 4 do CPCivil).
Todavia, na reapreciação dos meios de prova, a Relação procede a novo julgamento da matéria de facto impugnada, em busca da sua própria convicção, desta forma assegurando o duplo grau de jurisdição sobre essa mesma matéria, com a mesma amplitude de poderes da 1.ª instância.[3]
Impõe-se-lhe, assim, que “analise criticamente as provas indicadas em fundamento da impugnação, quer a testemunhal, quer a documental, conjugando-as entre si, contextualizando-se, se necessário, no âmbito da demais prova disponível, de modo a formar a sua própria e autónoma convicção, que deve ser fundamentada”.[4]
Tendo presentes estes princípios orientadores, vejamos agora se assiste razão à apelante neste segmento recursivo da impugnação da matéria de facto, nos termos por ela pretendidos.
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O ponto 30. dos factos provados tem a seguinte redação:
- Em 19 de Agosto de 2022, o beneficiário e a sua esposa conferiram procuração no Cartório Notarial do Dr. FF, na ..., a favor do seu filho EE, a quem concederam poderes para gerir e administrar os seus bens”.
Alega a apelante que o referido ponto factual devia ter sido dado como não provado.

Sustenta esta sua pretensão na circunstância de que o documento em causa encerra, em si mesmo, declarações negociais nulas e, por isso, sem quaisquer efeitos probatórios.

Mas pergunta-se qual a relevância jurídica do facto em questão em termos decisórios do pleito?

A resposta é simples nenhuma.

Analisando.

Como resulta do art.º 138.º do C. Civil, o acompanhamento de maior visa a aplicação de medidas para “potenciar a possibilidade de participar ativamente no mundo jurídico por parte de quem enfrenta barreiras para tal”, de modo a permitir “abranger as situações em que estes obstáculos se criam quer ao nível da formação quer ao nível da expressão da vontade”.[5]

Portanto, o processo destinado a assim prover–e, naturalmente, a decisão nele a proferir–é para acautelar a situação de necessidade de acompanhamento do beneficiário, nomeando-lhe um acompanhante e fixando as medidas legalmente previstas e que se considerem necessárias para atingir tal desiderato (é o que resulta, nomeadamente, dos arts. 140.º, nº1, 143.º, 145.º, 146.º, 147.º e 149º, nº 1 do CCivil e 900.º, nº1 do CPCivil).

Por outro lado, e como resulta do art.º 145.º do C. Civil, as medidas de acompanhamento– ainda que o catálogo das mesmas previsto no nº 2 seja aberto[6]–são traçadas por via do seu cometimento ou desempenho ao acompanhante e sempre tendo presente que “o regime do maior acompanhado se orienta pelo princípio de aproveitamento de toda a capacidade de exercício e de gozo do acompanhado”.[7]

Estando o respetivo processo delineado para prover à situação de necessidade de acompanhamento do maior e para, em vista de lhe dar execução, nomear-lhe um acompanhante e traçar a este um leque de competências apropriadas para o pôr em prática, tal processo, além do apuramento da necessidade de acompanhamento da pessoa em causa, tem exclusivamente como âmbito de decisão o relacionamento e interação entre o beneficiário do acompanhamento e o acompanhante (embora quanto a este possa designar um substituto ou possa até designar vários acompanhantes, como se prevê no nº 2 do art.º 900.º do CPCivil e nº 3 do art.º 143ºº do CCivil).

Desta forma, a apreciação da validade de tal documento não obsta à tomada de decisão quanto ao acompanhamento do beneficiário BB, ou da nomeação do acompanhante mais idóneo, não sendo este um elemento com relevo no que respeita ao objeto do processo e aos seu thema decidendum, ou seja, a matéria factual constante do citado ponto factual não tem, como acima se referiu, qualquer relevância em termos de solução jurídica do pleito.
Desta forma, atento o carácter instrumental da reapreciação da decisão da matéria de facto, no sentido de que a reapreciação pretendida visa sustentar uma certa solução para uma dada questão de direito, a inocuidade da aludida matéria de facto justifica que este tribunal indefira essa pretensão, em homenagem à proibição da prática no processo de atos inúteis (artigo 130.º do CPCivil).
Como refere Abrantes Geraldes,[8]De acordo com as diversas circunstâncias, isto é, de acordo com o objeto do recurso (alegações e, eventualmente, contra-alegações) e com a concreta decisão recorrida, são múltiplos os resultados que pela Relação podem ser declarados quando incide especificamente sobre a matéria de facto. Sintetizando as mais correntes: (…) n) Abster-se de conhecer da impugnação da decisão da matéria de facto quando os factos impugnados não interfiram de modo algum com a solução do caso, designadamente por não se visionar qualquer solução plausível da questão de direito que esteja dependente da modificação que o recorrente pretende operar no leque de factos provados ou não provados”.
Bem pode dizer-se, pois, que a impugnação da decisão sobre matéria de facto, neste conspecto, é mera manifestação de “inconsequente inconformismo[9], razão pela qual nos abstemos de a reapreciar relativamente às alíneas em questão.[10]


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Impugna depois a apelante o ponto 26. da fundamentação factual.

Este facto tem seguinte redação:

“O requerido perdeu a sua capacidade de autonomia, pelo menos em setembro de 2023”.

Propugna o apelante que o citado ponto factual devia ter antes a seguinte redação:

“O requerido perdeu a sua capacidade de autonomia em 27/08/2018, ou seja, à data do 1.º AVC.”

Para o efeito convoca o relatório pericial e os esclarecimentos prestados pela Sra. Perita.

Mas, salvo o devido respeito, por diferente entendimento, o relatório pericial em questão não afirma, de forma perentória, que o requerido perdeu a sua capacidade de autonomia aquando do seu primeiro AVC ocorrido 27/08/2018.

Com efeito, a conclusão que aí consta é a seguinte:

 

Portanto, o que aí se afirma é que é provável que a sintomatologia que o beneficiário apresentava em 08/02/2024 (défices cognitivos e alterações de comportamento) tivesse tido início aquando do primeiro AVC, com o agravamento acentuado em setembro de 2023 (último AVC).

Ora a probabilidade não equivale a certeza, razão pela qual, apesar de serem patentes as sequelas após o 1.º AVC sofrido pelo requerido, a verdade é que a sua perda de autonomia observada aquando da realização do exame pericial, só pode ser estabelecida com algum grau de certeza clinica depois do segundo AVC ocorrido em setembro de 2023.


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Nestes termos o ponto 26. dos factos provados deve permanecer com a mesma redação que dele consta porque corretamente alicerçado no entendimento vertido no relatório pericial e, por lógia implicância, o ponto 3. da parte dispositiva da decisão que fixou como data provável do início da necessidade de acompanhamento o mês de setembro de 2023.

Mas, importa ainda sopesar o seguinte.

Não há equivalência entre data a partir da qual as medidas decretadas se tornaram convenientes e data a partir da qual as medidas decretadas se aplicam, rectius, a fixação da data daquele evento não equivale a afirmar a data a partir do qual se aplicam as medidas decretadas.

No regime do maior acompanhado só existe uma situação em que a decisão judicial pode ter efeitos retroativos. É o caso das decisões que decretam a cessação ou a modificação do acompanhamento, para as quais o n.º 2 do artigo 149.º do Código Civil estabelece que os seus efeitos “podem retroagir à data em que se verificou a cessação ou modificação referidas no número anterior”.

Contudo, nem nessas situações, a produção dos efeitos da sentença em data anterior à sua prolação é automática ou forçosa. A norma só estabelece que os seus efeitos podem retroagir a momento anterior, pelo que caberá ao julgador, consoante as circunstâncias do caso e as necessidades do acompanhado, decidir se os efeitos da sentença devem, no caso, ter esse efeito retroativo.

Não existe norma legal que preveja ou consinta esse efeito retroativo das decisões que decretam as medidas de acompanhamento.

Na verdade, o que a lei dá ao juiz é, nos termos do n.º 2 do artigo 138.º do Código Civil, a possibilidade de em qualquer altura do processo, determinar as medidas de acompanhamento provisórias e urgentes, necessárias para providenciar quanto à pessoa e bens do requerido.

Precisamente por a sentença e as medidas nela decretadas não terem efeito retroativo, mas, antes da decisão, poder haver necessidade urgente de acautelar a pessoa ou os bens do requerido, a lei confere ao juiz a possibilidade de decretar medidas provisórias cujos efeitos estarão naturalmente dependentes de a final, na sentença, ser deferido o acompanhamento e decretarem-se medidas de acompanhamento que absorvam ou consumam as medidas provisórias.

Portanto, o que a lei manda é fixar, quando possível, a data a partir da qual as medidas decretadas se tornaram convenientes, isto é, o momento em que para assegurar o bem-estar, a recuperação, o pleno exercício de todos os direitos e o cumprimento dos deveres do maior passou a ser vantajoso ou benéfico decretar medidas de acompanhamento.

Esta fixação só ocorre quando for possível, ou seja, se forem reunidas informações que permitam situar no tempo o início dessa situação.

Por isso, a fixação da data não tem efeito ou interesse que vá para além de sinalizar aos terceiros que contactem com o acompanhado que o tribunal localizou a situação numa determinada data, a fim de que no seu relacionamento com o acompanhado possam atuar ou levar em consideração a existência nessa data das circunstâncias pessoais que tornavam conveniente a adoção de medidas que não estavam ainda decretadas.

Isto não se confunde com a questão da validade dos atos do acompanhado.

Sobre essa questão rege o disposto no artigo 154.º do CCivil sob a epigrafe “Atos do acompanhado” que preceitua o seguinte:

1- Os atos praticados pelo maior acompanhado que não observem as medidas de acompanhamento decretadas ou a decretar são anuláveis:

a) Quando posteriores ao registo do acompanhamento;

b) Quando praticados depois de anunciado o início do processo, mas apenas após a decisão final e caso se mostrem prejudiciais ao acompanhado.

2 - O prazo dentro do qual a ação de anulação deve ser proposta só começa a contar-se a partir do registo da sentença.

3 - Aos atos anteriores ao anúncio do início do processo aplica-se o regime da incapacidade acidental.

Este regime replica, com as devidas adaptações, e sintetiza aquele que vigorava antes no regime da interdição.

Era a seguinte a redação dos artigos 148.º a 150.º do CCivil, anterior à Lei n.º 49/2018, de 14 de agosto, que criou o regime jurídico do maior acompanhado:

Artigo 148.º (Atos do interdito posteriores ao registo da sentença)

São anuláveis os negócios jurídicos celebrados pelo interdito depois do registo da sentença de interdição definitiva.

Artigo 149.º (Atos praticados no decurso da ação)

1. São igualmente anuláveis os negócios jurídicos celebrados pelo incapaz depois de anunciada a proposição da ação nos termos da lei de processo, contanto que a interdição venha a ser definitivamente decretada e se mostre que o negócio causou prejuízo ao interdito.

2. O prazo dentro do qual a ação de anulação deve ser proposta só começa a contar-se a partir do registo da sentença.

Artigo 150.º (Atos anteriores à publicidade da ação)

Aos negócios celebrados pelo incapaz antes de anunciada a proposição da ação é aplicável o disposto acerca da incapacidade acidental.

Como se vê, tal como sucedia antes com o interdito, se depois do registo da sentença de acompanhamento o acompanhado praticar um ato em desconformidade com as medidas de acompanhamento decretadas na sentença, o ato é anulável-art.º 154.º, n.º 1, alínea a) do CCivil.

Se o ato for praticado depois de instaurado o processo judicial de acompanhamento, mas antes do registo da sentença respetiva, o ato é igualmente anulável, mas apenas após a decisão final, e desde que no momento da sua prática já tenha ocorrido a publicitação do início do processo e o ato tenha causado prejuízo ao beneficiário-art.º 154.º, n.º 1, alínea b).

Se o ato tiver sido praticado antes do anúncio do início do processo, tal como sucedia no regime da interdição, aplica-se o regime da incapacidade acidental do artigo 257.º do CCivil, por remissão do n.º 3 do artigo 154.º do mesmo diploma legal.

O ato é anulável desde que do lado do declaratário e do lado do declarante estejam preenchidos os pressupostos do artigo 257.º.

Em relação ao declarante é necessário que este se encontre acidentalmente incapacitado de entender o sentido da declaração negocial que fez ou não tivesse o livre exercício da sua vontade; em relação ao declaratário, é necessário que aquela incapacidade seja notória ou conhecida do declaratário.

Se não tiver sido instaurada nenhuma ação de acompanhamento, os atos praticados pelo maior também podem ser anulados, mas por aplicação direta do regime da incapacidade acidental, ou seja, desde que se demonstrem os respetivos pressupostos, independentemente de saber se a demonstração deste tornava ou não necessária ou conveniente a adoção de medidas de acompanhamento.


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Daqui resulta que a data a partir da qual as medidas decretadas se tornaram convenientes não interfere minimamente com este regime porquanto não existe norma legal que lhe atribua esse (ou outro) efeito. E isso também ocorria no domínio da legislação pretérita com a sentença de interdição, para a qual o artigo 901.º do Código de Processo Civil, na redação então vigente, também estabelecia que o juiz fixasse «sempre que possível, a data do começo da incapacidade».

No Comentário ao Código Civil de Carvalho Fernandes e Brandão Proença[11] refere-se a este respeito: “É assim, exigível a prova da incapacidade no momento do ato, não bastando demonstrar um estado habitual de insanidade de espírito, à época do negócio, como se chegou a sustentar no âmbito do CC1867 (...; Ac. STJ 22.01.2009). Importa, contudo, ter presente o relevo prático, nesta matéria, da sentença de interdição, quando esta fixe, por ser possível, a data em que se iniciou a incapacidade natural (artigo 901.º, n.º 1, do CPC2013). Na vigência do Código de Seabra, doutrina autorizada fazia decorrer da declaração da data do começo da incapacidade constante da sentença que decretava a interdição o valor de presunção, elidível por prova em contrário, de que o ato impugnado realizado posteriormente a essa data se realizou em momento em que o seu autor estava incapaz (Manuel de Andrade, 1954: 263, Ferrer Correia, 1954:295; Manuel de Andrade, 2003: 91). Na vigência do CC1966, a doutrina e a jurisprudência têm recusado atribuir a tal declaração judicial o valor de presunção legal de existência de incapacidade no momento da prática do ato-seja presunção iuris et de iure, seja mesmo iuris tantum-, atribuindo-lhe, maioritariamente, o valor de mera presunção simples, natural, judicial, de facto ou de experiência, que, embora constitua um começo de prova, não inverte o ónus da prova da existência da incapacidade no momento da prática do ato-ónus que impende sobre quem pede a anulação, a quem cabe completar a prova de primeira aparência com outros factos que demonstrem a incapacidade (neste sentido, Emídio Santos, 2011: 93 e 94; Anabela de Sousa Gonçalves, 2012: 122; Ac. STJ 19.06.1973; Ac. STJ 14.01.1975; Ac. STJ 8.04.1981; Ac. STJ 28.02.1985; Ac. STJ 9.12.2004; Ac. STJ 22.01.2009, Ac. STJ 16.03.2011). Referindo-se a uma forte presunção de que o negócio praticado depois da data em que principiou a incapacidade natural, segundo a sentença, foi celebrado por pessoa incapacitada de entender o sentido da declaração ou privada do livre exercício da sua vontade, cf. Pires de Lima/Antunes Varela, 1987: 157. No sentido de que a presunção de facto inverte o ónus da prova, cf. Menezes Cordeiro, 2011: 499, Ac. STJ 5.07.2001 e Ac. RC 10.03.2009”.


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Como assim e a nosso ver, como já noutro passo se assinalou, a fixação, quando possível, da data a partir da qual as medidas decretadas se tornaram convenientes não tem qualquer outro interesse que vá para além de sinalizar aos terceiros que contactem com o acompanhado que o tribunal localizou a situação numa determinada data, a fim de que no seu relacionamento com o acompanhado possam atuar ou levar em consideração a existência nessa data das circunstâncias pessoais que tornavam conveniente a adoção de medidas que não estavam ainda decretadas.

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Destarte, não se divisa qual o alcance da pretendida alteração factual e do ponto 3. da parte dispositiva da decisão nos termos impetrados pela apelante.

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Finalmente, entende a Recorrente que, tendo sido fixada na sentença que o acompanhante lhe “deverá periodicamente fornecer todas as informações referentes à saúde e à gestão do património do beneficiário”, deveria ter sido fixada a periodicidade com que o acompanhante teria que o fazer.

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Sob este conspecto também, salvo o devido respeito, falece razão à apelante.

Consta da decisão recorrida, na parte da fundamentação jurídica: o seguinte trecho:

Assim, como acompanhante substituta desde já se designa a indicada AA, filha do beneficiário, melhor identificada nos autos, à qual o acompanhante deverá periodicamente fornecer todas as informações referentes à saúde e à gestão do património do beneficiário”.
Como dele se evidencia o tribunal recorrido limitou-se, dentro dos poderes que a lei lhe confere, a designar a apelante como acompanhante substituta do beneficiário (cf. artigos 143.º, nº 3 do CCivil e 900.°, n.º 2, do CPCivil) e a quem, o acompanhante nomeado, deveria periodicamente fornecer todas as informações referentes à saúde e à gestão do património do beneficiário.
Como se torna evidente, quando o tribunal nomeia um acompanhante substituto, tem-se em vista as situações em que o acompanhante nomeado, por razões pessoais, ou de outra índole não possa desempenhar essa função de forma transitória ou até definitiva, ou seja, o acompanhante substituto é uma figura nomeada judicialmente que só atua quando o acompanhante principal não puder exercer as suas funções, seja por motivos temporários (ex: doença, ausência) ou definitivos (ex: morte, renúncia, escusa, destituição).
Ora, nessas situações o acompanhante substituto passe a exercer as funções que incumbiam ao acompanhante nomeado e, por assim ser, a sentença recorrida, ao determinar a prestação de informações à acompanhante substituta referentes à saúde do beneficiário extravasa a previsão daqueles normativos e, como tal, não existe fundamento legal para que seja imposto ao acompanhante nomeado a periodicidade dessa informação.

Vejamos agora a questão da informação relativa à gestão do património do beneficiário.
Preceitua o artigo 151.º, nº 2 do CCivil que “o acompanhante presta contas ao acompanhado e ao tribunal, quando cesse a sua função ou, na sua pendencia, quando assim seja judicialmente determinado”.
É também essa a conclusão que se extrai do disposto no art.º 1944.º do CCivil, que estabelece a obrigação de prestar contas do tutor-posto que, nos termos do n.º 4 do art.º 145º do CCivil, a representação legal do acompanhado segue o regime da tutela, com as adaptações necessárias.
Estabelecem estas normas, inequivocamente, uma obrigação de prestação de contas a cargo do acompanhante, sendo que o CPCivil prevê, nos artigos 948º do Código de Processo Civil, um “processo especialíssimo” para a prestação de contas do tutor ou do acompanhante.
Acontece que, do primeiro dos normativos citados resulta, com toda a clareza, que o acompanhante presta contas apenas quando cesse a sua função ou, na sua pendência, quando assim seja determinado judicialmente.
Nestes termos, torna-se evidente que também aqui o tribunal recorrido excedeu a previsão legal do citado artigo 151.º, nº 2, ou seja, o acompanhante não está obrigado a fornecer informações relativas à gestão do património do beneficiário, apenas está obrigado a prestar contas quando cesse a sua função ou, na pendência da mesma, quando tal seja determinado judicialmente, pelo que, também sob este conspecto não existe fundamento legal para que seja fixada a periodicidade dessa informação.

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Remata depois a apelante alegando que na remota hipótese de improcederem os fundamentos aduzidos supra então, a sentença é igualmente nula (art.º 615.º, n.º 1, alínea c), porquanto sempre será ambígua quanto ao modo e espaço temporal com que o acompanhante EE deverá fornecer à aqui recorrente (acompanhante substituta) as informações referentes à saúde e à gestão do património do beneficiário (cf. conclusões XXXI e XXXII).
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Nos termos do artigo 615.º, nº 1 al. c) do CPCivil a sentença é nula quando: “Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível”.

Considera-se que a sentença é obscura quando enferma de “ambiguidade, equivocidade ou de falta de inteligibilidade”.

Verifica-se a ambiguidade quando de um vocábulo, de uma expressão ou de uma asserção é possível extrair uma pluralidade de sentidos e inexistam meios de, com segurança, determinar o sentido querido ou prevalecente.

Na primeira situação, não é possível ficar a saber o que o juiz quis dizer; na segunda, hesita-se entre dois sentidos diferentes e, porventura, opostos. A sentença mostra-se equívoca quando o sentido decisório se perfile como duvidoso para um qualquer destinatário normal.

Ocorre obscuridade quando não se pode retirar sentido algum, quando um termo ou uma frase usados no texto da decisão não tenham um sentido percetível, determinável.
Contudo, este vício apenas determina a nulidade da sentença se a decisão for ininteligível ou incompreensível.[12] A ambiguidade ou obscuridade que possam ocorrer na sentença só integrarão a nulidade decisória prevista neste normativo se algum desses vícios tornarem a decisão incompreensível, por inacessível ao intelecto, impedindo a compreensão da decisão judicial por fundadas dúvidas ou incertezas.
A respeito da obscuridade e ambiguidade da sentença, dizia o Professor Alberto dos Reis[13], que a “(…) sentença é obscura quando contém algum passo cujo sentido seja ininteligível; é ambígua quando alguma passagem se preste a interpretações diferentes”, explicitando que “(…) num caso não se sabe o que o juiz quis dizer; no outro hesita-se entre dois sentidos diferentes e porventura opostos”, mencionando ser “(…) evidente que em última análise, a ambiguidade é uma forma especial de obscuridade” por “(…) se a determinado passo da sentença é suscetível de duas interpretações diversas, não se sabe ao certo, qual o pensamento do juiz”.

Ora, lendo a decisão recorrida e, concretamente, o trecho em causa, já acima transcrito, não se descortina onde se materializa tal vício, já que a mesmo é perfeitamente inteligível e compreensível para qualquer cidadão que empreenda a sua leitura.
Como já supra se referiu nele se evidencia o tribunal recorrido limitou-se, dentro dos poderes que a lei lhe confere, a designar a apelante como acompanhante substituto do beneficiário (cf. artigos 143.º, nº 3 do CCivil e 900.°, n.º 2, do CPCivil) e a quem, o acompanhante nomeado, deveria periodicamente fornecer todas as informações referentes à saúde e à gestão do património do beneficiário.
Onde se verifica então a propalada obscuridade na referida passagem?
Mas, o referido trecho da decisão é ininteligível ou incompreensível?
A resposta é, redondamente, negativa.
A falta de fixação de qualquer regime temporal para a prestação de informações não torna a decisão obscura nos moldes acima vertidos, aliás, quando muito o que poderia configurar era omissão de pronúncia se acaso tivesse colocada tal questão para decisão ao tribunal recorrido o que não foi, manifestamente, o caso.

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Improcedem, assim, todas as conclusões formuladas pela apelante e, com elas, o respetivo recurso.

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DECISÃO

Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente e, consequentemente, confirmam a decisão recorrida.
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Custas a cargo da apelante (artigo 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPCivil)
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Notifique.
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Porto, 26 de maio de 2025

Dr. Manuel Fernandes

Dr.ª Ana Olívia Loureiro

Dr.ª Eugénia Marinho da Cunha



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[1] De facto, “é sabido que, frequentemente, tanto ou mais importantes que o conteúdo das declarações é o modo como são prestadas, as hesitações que as acompanham, as reações perante as objeções postas, a excessiva firmeza ou o compreensível enfraquecimento da memória, etc.”-Abrantes Geraldes in “Temas de Processo Civil”, II Vol. cit., p. 201) “E a verdade é que a mera gravação sonora dos depoimentos desacompanhada de outros sistemas de gravação audiovisuais, ainda que seguida de transcrição, não permite o mesmo grau de perceção das referidas reações que, porventura, influenciaram o juiz da primeira instância” (ibidem). “Existem aspetos comportamentais ou reações dos depoentes que apenas podem ser percecionados, apreendidos, interiorizados e valorados por quem os presencia e que jamais podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro tribunal que vá reapreciar o modo como no primeiro se formou a convicção dos julgadores” (Abrantes Geraldes in “Temas…” cit., II Vol. cit., p. 273).
[2] Miguel Teixeira de Sousa in Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1997, p. 348.
[3] Cf. acórdãos do STJ de 19/10/2004, CJ, STJ, Ano XII, tomo III, pág. 72; de 22/2/2011, CJ, STJ, Ano XIX, tomo I, pág. 76; e de 24/9/2013, processo n.º 1965/04.9TBSTB.E1.S1, disponível em www.dgsi.pt.
[4] Cf. Ac. do S.T.J. de 3/11/2009, processo n.º 3931/03.2TVPRT.S1, disponível em www.dgsi.pt.
[5] Cf.  Paula Távora Vítor, in “Código Civil Anotado”, Ana Prata (Coord.), Volume I, 2ª edição, Almedina, 2019, pág. 168.
[6] Neste sentido, Pinto Monteiro, “Das incapacidades ao maior acompanhado – Breve apresentação da Lei nº49/18”, in www.cej.mj.pt, pág. 22.
[7] Cf. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. II, Almedina, 2021, reimpressão, pág. 340.
[8] In Recursos em Processo Civil Novo Regime, 2.ª edição revista e atualizada pág. 297.
[9] A.S. Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”; Almedina, 5.ª edição, 169.
[10] Importa lembrar que no preâmbulo do Dec. Lei n.º 39/95, de 15 de fevereiro (pelo qual foi introduzido o segundo grau de jurisdição em matéria de facto) o legislador fez constar que um dos objetivos propostos era “facultar às partes na causa uma maior e mais real possibilidade de reação contra eventuais (…) erros do julgador na livre apreciação das provas e na fixação da matéria de facto relevante para a solução jurídica do pleito (…)” (negrito e sublinhados nossos).
[11]Cf. Parte Geral/[coord. De Luís Carvalho Fernandes, José Brandão Proença].–Lisboa: Universidade Católica Editora, 2014, página 331.
[12] Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida Direito Processual Civil, Vol. II, Almedina, 2015, pág. 369.
[13] In “Código de Processo Civil Anotado”, Volume V, pág. 151.