Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2907/23.8T8STS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARTUR DIONÍSIO OLIVEIRA
Descritores: PROCESSO DE REVITALIZAÇÃO
PRINCÍPIO DA IGUALDADE DOS CREDORES
CRÉDITO BANCÁRIO
CRÉDITO COMUM
FINANCIAMENTO
Nº do Documento: RP202407102907/23.8T8STS.P1
Data do Acordão: 07/10/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – O artigo 194.º do CIRE, que consagra e regula o princípio da igualdade entre os credores, configura uma norma imperativa, cuja violação consubstancia um vício não negligenciável, para os efeitos do artigo 215.º do CIRE.
II – Aquele artigo não impõe uma absoluta igualdade de tratamento de todos os credores, abrindo espaço para uma discriminação positiva, fundada em específicos fatores de diferenciação.
III – Haverá violação do princípio da igualdade sempre que o plano preveja o tratamento desfavorável de um ou mais credores em relação aos restantes e essa diferenciação não esteja justificada por razões objectivas.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 2907/23.8T8STS.P1








Acordam no Tribunal da Relação do Porto




I. Relatório
A..., Lda., com sede na Praça ..., ..., ..., ... ..., intentou o presente processo especial de revitalização (PER), ao abrigo do disposto nos artigos 17.º-A e seguintes do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), tendo em vista dar início a negociações com os seus credores de modo a concluir com estes um acordo de pagamento conducente à sua revitalização.
Recebido o requerimento e nomeado administrador judicial provisório (AJP), em 05.12.2023 foi apresentada lista provisória de créditos, a qual não foi objecto de impugnações, pelo que se converteu em definitiva.
Concluídas as negociações, em 12.03.2024 a requerente depositou no tribunal a versão final do plano de recuperação conducente à revitalização da empresa, tendo sido publicada no portal Citius a indicação desse depósito.
Por requerimento apresentado em 18.03.2024, o credor Banco 1..., S.A. veio alegar circunstâncias que considera poderem gerar a não homologação do plano, nos termos do disposto no artigo 216.º, n.º 1 alínea a), do CIRE.
A requerente não depositou nova versão do plano, o que foi anunciado no portal Citius.
Mediante requerimento de 01.04.2024, 0 referido credor declarou o seu voto contra o plano apresentado e requereu a não homologação do mesmo, ao abrigo do referido artigo 216.º, n.º 1 alínea a), do CIRE.
O plano foi votado por credores cujos créditos representam 34,29% do total dos créditos relacionados com direito de voto; 77,11% do total dos votos expressos são favoráveis, todos eles não subordinados.
Já depois desta votação, a Sra. Juíza a quo decidiu conceder à requerente e ao AJP um prazo de 5 dias para se pronunciarem sobre o requerimento apresentado pelo credor Banco 1..., S.A. em 01.04.2024.
Por requerimento de 11.04.2024, a requerente afirmou assistir razão ao referido credor, pelo que requereu a rectificação do plano, «ficando a constar do mesmo o pagamento dos contratos reclamados pelo credor em 27 prestações vincendas, bem como a eliminação do período de carência de capital».
Por sua vez, o AJP defendeu que, «considerando a natureza do processo especial de revitalização e a autonomia dos credores (da maioria dos credores) para decidirem sobre a forma de recuperação dos seus créditos e a “adequação”/”reconhecimento” da devedora de manutenção do contrato bilateral de locação financeira com o Banco 1..., entende o signatário que não existem fundamentos objetivos para a não homologação do plano de recuperação, devendo, in máxime, declarar-se a sua ineficácia relativamente a esse contrato».
O tribunal a quo ordenou a notificação «aos restantes intervenientes, designadamente à credora oponente, “Banco 1..., S.A.”, a resposta junta pelo Sr. Administrador Judicial Provisório, a 15-04-2024, para que, em 5 dias, e atento o teor de tal resposta, se possam pronunciar».
O credor B... Lda., que anteriormente se havia abstido, veio em 17.04.2024 apresentar o seu voto contra o plano de revitalização/recuperação apresentado, pelo facto de propor um perdão de dívida de 50% e propor um período de carência para pagamento do remanescente, em prestações, em conformidade com a posição que já havia assumido em sede de negociações.
Por sua vez, o credor Banco 1..., S.A. veio comunicar «que nada tem a opor a que as cláusulas afetas aos credores comuns sejam declarada ineficazes perante o aqui credor Banco 1... S.A., ineficácia essa a decretar no sentido de equilibrar o não comprometimento do plano quanto aos demais credores, em face da sua aprovação, e salvaguardar a legalidade tendo por linha a especificidade da dívida aqui em objeto nas razões já melhor identificadas no requerimento de não homologação apresentado pelo Credor».
Foi proferida sentença que recusou a homologação do plano de revitalização apresentado pela devedora e aprovado pela maioria dos credores, por violação do princípio da igualdade, mais considerando «prejudicada a apreciação da questão suscitada pelo “Banco 1..., S.A.” e a alteração à proposta feita pela requerente/devedora após a votação do plano ou sua ineficácia perante um dos seus credores».
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Inconformada, a requerente apelou desta sentença, apresentando a respectiva alegação, que termina com as seguintes conclusões:
«a) A Apelante, salvo o devido respeito e melhor opinião em contrário, discorda da douta despacho/sentença ora recorrido.
b) A Apelante, salvo o devido e merecido respeito pela posição sufragada no douto despacho/sentença ora em crise, discorda da douta Decisão ora recorrida, que decidiu a não homologação o plano de recuperação apresentado pela Requerente, com custas a cargo da aqui Recorrente, pois entende-se que a mesma padece de vícios porquanto procede a uma incorreta interpretação das normas jurídicas aplicadas e incorreta interpretação e análise da documentação existente nos autos, com influência decisiva na decisão proferida.
c) Para os efeitos previstos nos arts. 222º-F, n.º 5 e 215º do CIRE apenas será não negligenciável a violação que se traduza numa lesão de tal modo grave dos interesses protegidos ou a proteger – nomeadamente de tutela da posição dos credores e do devedor - que, em concreto, mesmo ponderando o interesse da recuperação/reequilíbrio financeiro do devedor, o juiz não possa deixar de recusar-se a homologar o plano, inviabilizando com isso a recuperação.
d) A comparação a fazer é sempre entre a posição do devedor antes e depois da aprovação do plano de pagamento e não com o resultado de plano de recuperação homologado a outra entidade.
e) A aferição de se o plano proposto é viável ou fazível é já uma apreciação de mérito que não cabe ao tribunal por não previsto no art.º 215º do CIRE, mas aos credores com vista a determinar o respetivo sentido de voto.
f) Neste caso os credores votaram favoravelmente pela aprovação do plano, mesmo aqueles credores comuns que se encontram em igualdade de circunstâncias com o credor “B...”.
g) No procedimento preventivo a que um devedor tem acesso em situação económica difícil ou em situação de insolvência iminente, a probabilidade de, findo o procedimento, o devedor já estar insolvente e ser mais provável que se lhe siga a declaração de insolvência e a liquidação universal convive com a hipótese de o devedor, mesmo sem obter a aprovação do acordo, não estar em situação de insolvência atual.
h) O credor que requer a não homologação do acordo de pagamento com o fundamento no disposto na al. a) do nº1 do art. 216º do CIRE tem o ónus de demonstrar, em termos plausíveis, que na ausência de plano ficaria em situação mais favorável de acordo com o cenário mais provável.
i) O credor “B...” não cumpriu o ónus de demonstrar, nos termos do disposto na al. a) do nº1 do art. 216º do CIRE, em termos plausíveis, que na ausência de plano ficaria em situação mais favorável de acordo com o cenário mais provável.
j) Não existe desigualdade de tratamento entre credores da mesma categoria ao contrário do alegado pelo douto Tribunal.
k) Para efeitos de recusa de homologação de plano aprovado em sede de PER, indagar se ocorre violação não negligenciável implica que o juiz faça uma ponderação entre o interesse da recuperação e os interesses que sejam, em concreto, tutelados pela norma violada, só devendo recusar a homologação quando ocorra uma violação de tal modo grave destes últimos que não possa exigir-se o seu sacrifício, fazendo prevalecer o primeiro.
l) O douto Tribunal ao colocar-se sem fundamento ao lado de um único credor e recusar a homologação do plano de recuperação o douto Tribunal não ponderou corretamente os interesses da devedora e de todos dos credores.
m)- O douto Tribunal ponderou apenas o interesse de um credor, inviabilizando com tal decisão a recuperação da devedora.
n)- O plano de recuperação conducente à revitalização do devedor há-de observar o princípio da igualdade dos credores, por força do disposto nos n.ºs 1 e 2, do artigo 194.º do CIRE, ex vi do seu artigo 17.º-F, n.º 5, no entanto, a observância de tal princípio não obsta, ao tratamento desfavorável de um credor em relação ao outro, ainda quando titulares de créditos da mesma natureza – afora as situações de consentimento, tácito ou expresso, do(s) credor(es) afetados – quando o desigual tratamento encontre o seu fundamento em justificadas razões objetivas, posto que o princípio da igualdade deverá ser aplicado na sua dimensão material, do que resulta deverem ser tratadas de modo igual situações idênticas e distintamente situações, também elas, distintas.
o) O processo especial de revitalização (PER) funciona como um processo pré-insolvencial (no sentido de preventivo de uma potencial insolvência), cuja grande vantagem é a possibilidade de o devedor obter um plano de recuperação sem ser declarado insolvente e através do qual se reserva aos credores um papel fundamental: o de “consentirem (pelo menos momentaneamente) no sacrifício dos seus direitos para viabilizarem o PER ou, então, manterem-se irredutíveis”.
p) O plano de revitalização obedece ao princípio da igualdade dos credores da insolvência, sem prejuízo das diferenciações justificadas por razões objetivas, apontando, assim, para uma tendencial igualdade de tratamento de credores que estejam em idênticas [mormente considerando a natureza - garantida, privilegiada, comum ou subordinada do respetivo crédito (art. 47º, nº4, do CIRE)] circunstâncias, a não ser que o correspondente tratamento diferenciado seja justificado por razões objetivas. Impondo, assim, tal princípio bifronte a necessidade de tratar igualmente o que é semelhante e de distinguir o que é distinto, sem prejuízo do acordo em contrário dos credores atingidos.
q) Não assiste, pois, razão ao douto Tribunal para proferir decisão de não homologação do plano de recuperação.
r) Não foi violado o princípio da igualdade.
s) Não foi violado o princípio da proporcionalidade.
t) Deve o despacho/sentença de não homologação do plano de recuperação ser revogado.
u) Deve ser declarada a inconstitucionalidade da norma prevista no artigo 194.º do CIRE, conjugada com o artigo 13.º da CRP, na dimensão interpretativa normativa segundo a qual no processo especial de revitalização, o despacho do juiz que recusa a homologação do plano de recuperação aprovado pela assembleia de credores, não está vinculado ao princípio da proibição do arbítrio, sendo suscetível de configurar uma inconstitucionalidade material por violação do artigo 205.º, n.º 1, da CRP, assim como é contrária ao princípio da vinculação dos Tribunais à lei e à Constituição, estando, por isso, ferida de inconstitucionalidade material por violação dos artigos 204.º da CRP».
Terminou pugnando pela procedência da apelação e pela revogação da sentença recorrida.
Não foi apresentada qualquer resposta a esta alegação.
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II. Objecto do Recurso
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, como decorre do disposto nos artigos 635.º, n.º 4, e 639.º do Código de Processo Civil (CPC), não podendo o Tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (cfr. artigo 608.º, n.º 2, do CPC). Não obstante, o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do citado diploma legal).
Tendo em conta o teor das conclusões formuladas pelo recorrente, importa decidir se o plano de revitalização apresentado pela devedora deve ser homologado, nomeadamente por não violar o princípio da igualdade dos credores.

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III. Fundamentação
A. Os Factos
A factualidade relevante para a apreciação deste recurso corresponde às ocorrências processuais descritas no relatório deste aresto, relevando ainda o teor do Plano de Recuperação junto aos autos em 12.03.2024, que aqui se dá por integralmente reproduzido, nomeadamente a parte que a seguir se transcreve:
«(…)
VII – MEDIDA PROPOSTA
O Plano de Recuperação deve indicar claramente as alterações dele decorrente para as posições jurídicas dos credores da devedora.
Analisada a viabilidade económica da empresa e o seu equilíbrio financeiro, temos por bem propor:
I) – Redução dos créditos por perdão e moratória, nos seguintes termos:
A) Estado
A1) Instituto de Gestão Financeira e Segurança Social
• A totalidade da dívida reconhecida no PER será paga em 11 prestações mensais e sucessivas, vencendo-se a primeira prestação até ao final do mês seguinte ao da votação do plano;
• Pagamento de juros vencidos e vincendos à taxa legalmente fixada para os juros de mora aplicáveis às dividas ao estado e das custas devidas nos processos executivos;
• As ações executivas pendentes para cobrança de dívida à segurança social, no âmbito das quais será implementado o plano prestacional, não são extintas, sendo suspensas, nos termos do artigo 194.º, do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social, na sequência da presente autorização e até integral cumprimento do plano de pagamentos autorizado;
• Dispensa de prestação de garantia nos termos do artigo 199.º, nº 13, do CPPT;
B) Contratos de Leasing
Os bens e equipamentos detidos em regime de locação estão a ser utilizados na atividade da empresa sendo bens de produção essenciais sem os quais a empresa não conseguirá laborar o que ditará a cessação da sua laboração.
Nessa medida propõe-se:
• Consolidação da dívida à data da entrada do PER;
• Pagamento dos juros vencidos e outros encargos até à data de aprovação do Plano de Recuperação;
• Pagamento mensal de juros durante 6 meses seguintes à aprovação do Plano de Recuperação;
• Pagamento da dívida reclamada em 60 prestações mensais e sucessivas, com início após o período de carência de capital que é de 6 meses.
• Manutenção das demais condições contratuais estipuladas.
C) Créditos Comuns (Instituições de Crédito, Financeiras e Sociedades de Garantia Mútua)
• Pagamento dos juros vencidos e outros encargos nos 30 dias após a aprovação do Plano de Recuperação;
• Pagamento anual de juros nos 2 anos seguintes à aprovação do Plano de Recuperação;
• Pagamento da dívida reclamada em 60 prestações mensais iguais e sucessivas com início após o período de carência de capital que é de 2 anos.
• Manutenção das taxas de juros vigentes nos contratos originários celebrados com as instituições financeiras;
• Manutenção das garantais existentes;
B) Outros Créditos Comuns
• O período de carência de 2 (dois) anos será contabilizado após a data de trânsito em julgado do despacho de homologação do plano de recuperação;
• Pagamento de 50% do capital em dívida em 60 prestações mensais iguais e sucessivas;
• A primeira prestação terá vencimento no mês seguinte ao de término do período de carência – que é de 2 (dois) anos;
• Perdão total de juros de mora, juros vencidos e vincendos e de 50% de capital.
C) Créditos Subordinados
• Pagamento após integral pagamento dos restantes créditos.
Credores Não Identificados no Processo:
Os créditos que não se encontrem reconhecidos e que venham a ser reconhecidos, judicialmente ou extrajudicialmente, serão liquidados nas mesmas condições da respetiva natureza do crédito;
Créditos Sob Condição
Os créditos reconhecidos sob condição, verificando-se a condição a que estão sujeitos, serão pagos nas mesmas condições da respetiva natureza do crédito.
Cláusula de regresso de melhor fortuna
Este Plano está sujeito à cláusula “salvo regresso de melhor fortuna”.
(…)
Fundamentação da medida proposta:
O plano de recuperação apresenta-se de acordo com o princípio da igualdade plasmado no artigo 194.º, n.º 1 do CIRE, nos termos do qual deve obedecer ao princípio da igualdade dos credores, sem prejuízo das diferenciações justificadas por razões objetivas. A norma coloca em revelo a observância do princípio da igualdade consubstanciado na necessidade de tratar igualmente o que é semelhante e de distinguir o que é distinto, na proporção da desigualdade, sem prejuízo da ponderação das circunstâncias de cada situação poder justificar outros alinhamentos, nomeadamente tendo em conta as fontes do crédito.
O presente plano de recuperação prevê propostas diferentes para a satisfação das obrigações para as diferentes categorias de créditos e credores.
In Casu, foi derrogado o princípio da igualdade no que concerne à forma distinta de pagamento dos créditos reconhecidos mediante natureza privilegiada (créditos do Estado) em relação aos demais créditos, atenta a existência de legislação própria. De referir que relativamente a estes créditos não pode deixar de se atender ao facto de as regras de pagamento dos créditos detidos pelo Estado (Instituto de Gestão Financeira e Segurança Social) serem ditadas por normas legais imperativas de direito público não derrogáveis (princípio da indisponibilidade dos créditos tributários). O que não sucede com as demais, que podem ser derrogadas, com respeito pelos créditos do CIRE, e que por isso o plano de recuperação pode prever providências com incidência no passivo da devedora diversas para os restantes credores.
Foi ainda derrogado o princípio da igualdade no que concerne à forma distinta de pagamento dos créditos comuns, consoante os mesmos sejam de entidades bancárias, financeiras ou de garantia mútua e outros.
Estes créditos são da mesma natureza, no entanto os detidos por entidades bancárias, financeiras e de garantia mútua destinaram-se a financiamentos específicos da atividade alocados ao desenvolvimento da atividade ou para fazer face a necessidades pontuais e imediatas de tesouraria.
Sem estes financiamentos pontuais a empresa teria cessado a sua atividade.
O dinheiro que é hoje o principal fator produtivo é um dos bens mais escassos e o acesso a ele em mercado de capitais é cada vez mais escasso e jamais sem sólidas garantias e retribuição fixada unilateralmente pelo operador financeiro, razão pela qual se justifica o pagamento de juros, como forma de garantir a realização de operações financeiras indispensáveis ao exercício da atividade.
O incumprimento desses contratos financeiros e a falta de pagamento do valor dos títulos cambiários e respetivos juros obriga a comunicação a central de responsabilidade de crédito, enquadrada pelo DL 204/2008 gerida pelo Banco de Portugal, situação que vai ter a inevitável consequência de interdição/inacessibilidade a crédito bancário tão necessário ao desenvolvimento da atividade.
Esta medida e tratamento diferenciado é assim indispensável para que a empresa continue a ter acesso ao crédito e desta forma garantir a sua sustentabilidade e alicerces para o futuro.

(…)».

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B. O Direito
1. Na sua versão originária, o CIRE abandonou o primado da recuperação da empresa que caracterizava o anterior Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência (CPEREF), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 132/93, de 23 de Abril, e elegeu como principal finalidade do processo de insolvência a satisfação dos credores, por via da liquidação do património do devedor ou pela forma prevista num plano de insolvência, o qual se poderia basear na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, conforme preceituado na primeira versão do artigo 1.º do CIRE, que referia em primeiro lugar a liquidação do património e só depois a recuperação da empresa. Concomitantemente, o novo código desjudicializou o processo de insolvência e colocou nas mãos dos credores o destino do devedor, erigindo-os em verdadeiros “proprietários económicos” da empresa.
Em 2012, com a pressão da crise económica e do acordo de ajuda financeira ao Estado Português firmado com a denominada troika (Banco Central Europeu, o Fundo Monetário Internacional e a União Europeia), a Lei n.º 17/2012, de 20 de Abril, introduziu profundas alterações no CIRE. Mantendo o primado da satisfação dos credores e a ampla desjudicialização do processo de insolvência, passou a privilegiar a recuperação da empresa como mecanismo para atingir aquela finalidade.
Logo no seu artigo 1.º, passou a preceituar que o processo de insolvência «tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores».
Paralelamente, criou um processo pré-insolvencial (o PER, previsto no artigo 1.º, n.º 2, e regulado nos artigos 17.º-A a 17.º-I) destinado a permitir aos titulares de empresas que se encontrem em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, mas que ainda sejam suscetíveis de recuperação, estabelecer negociações com os respetivos credores de modo a concluir com estes acordo conducente à sua revitalização.
De harmonia com o disposto no artigo 17.º-F, n.º 7, do CIRE, nos 10 dias seguintes à recepção do plano de recuperação que tiver sido aprovado nos termos dos números anteriores, o juiz decide se deve homologar ou recusar a homologação desse plano, aplicando, com as necessárias adaptações, as regras previstas no título IX, em especial o disposto nos artigos 194.º a 197.º, no n.º 1 do artigo 198.º e nos artigos 200.º a 202.º, 215.º e 216.º.
Os preceitos destes artigos 215.º e 216.º regulam a não homologação do plano de insolvência, em termos inteiramente aplicáveis à não homologação do plano de recuperação aprovado no âmbito do PER.
O artigo 215.º regula a não homologação oficiosa do plano, nos seguintes termos:
O juiz recusa oficiosamente a homologação do plano de insolvência aprovado em assembleia de credores no caso de violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo, qualquer que seja a sua natureza, e ainda quando, no prazo razoável que estabeleça, não se verifiquem as condições suspensivas do plano ou não sejam praticados os actos ou executadas as medidas que devam preceder a homologação.
Como referem Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Quid Juris, 3.ª ed., 2015, p. 781), «normas procedimentais são, pois, todas aquelas que regem a atuação a desenvolver no processo, que incluem os passos que nele devem ser dados até que a assembleia de credores decida sobre as propostas que lhe foram presentes (…). Normas relativas ao conteúdo serão, por sua vez, todas as respeitantes à parte dispositiva do plano, mas além delas, ainda aquelas que fixam os princípios a que ele deve obedecer imperativamente e as que definem os temas que a proposta deva contemplar».
Em qualquer dos casos, apenas as violações não negligenciáveis das normas em causa justificam a não homologação do plano, como preceitua o artigo 215.º do CIRE.
Citando de novo Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, «são não negligenciáveis, todas as violações de normas imperativas que acarretem a produção de um resultado que a lei não autoriza. Diversamente, são desconsideráveis as infrações que atinjam simplesmente regras de tutela particular que podem, todavia, ser afastadas com o consentimento do protegido», acrescentando os mesmos autores que importa, assim, «sindicar se a nulidade observada é susceptível de interferir com a boa decisão da causa, o que significa valorar se interfere ou não com a justa salvaguarda dos interesses protegidos ou a proteger – nomeadamente no que respeita à tutela devida à posição dos credores e do devedor nos diversos domínios em que se manifesta – tendo em conta o que é, apesar de tudo, livremente renunciável» (ob. cit., p. 782).
Entre as normas relativas ao conteúdo do plano de recuperação, o próprio artigo 17.º-F, n.º 7, do CIRE destaca, entre outras, a do artigo 194.º do CIRE, que consagra e regula o princípio da igualdade entre os credores, reflexo da já referida primazia que o CIRE veio conferir à satisfação dos direitos dos credores, mesmo no confronto com a protecção da empresa (cfr. ac. do TRG, de 10.04.2012, proc. n.º 2261/11.0TBBRG-E.G1, rel. Ana Cristina Duarte). Tratando-se de uma norma imperativa, a sua violação consubstancia um vício não negligenciável, para os efeitos do artigo 215.º do CIRE (cfr. ac. do TRC, de 26.04.2022, proc. n.º840/21.7T8ACB.C1, rel. Maria João Areias).
Por sua vez, o artigo 216.º regula a não homologação a solicitação dos interessados, preceituando o seguinte no seu n.º 1:
O juiz recusa ainda a homologação se tal lhe for solicitado pelo devedor, caso este não seja o proponente e tiver manifestado nos autos a sua oposição, anteriormente à aprovação do plano de insolvência, ou por algum credor ou sócio, associado ou membro do devedor cuja oposição haja sido comunicada nos mesmos termos, contanto que o requerente demonstre em termos plausíveis, em alternativa, que:
a) A sua situação ao abrigo do plano é previsivelmente menos favorável do que a que interviria na ausência de qualquer plano, designadamente face à situação resultante de acordo já celebrado em procedimento extrajudicial de regularização de dívidas;
b) O plano proporciona a algum credor um valor económico superior ao montante nominal dos seus créditos sobre a insolvência, acrescido do valor das eventuais contribuições que ele deva prestar.
Por força do disposto no artigo 17.º-F, n.º 3, no âmbito do PER, o prazo para a solicitação da não homologação do plano, “nos termos e para os efeitos previstos nos artigos 215.º e 216.º, com as devidas adaptações”, é de 10 dias a contar da publicação no portal Citius do anúncio advertindo da junção ou não junção de nova versão do plano.
No presente caso, apenas o credor Banco 1..., S.A. se apresentou dentro deste prazo a requerer a não homologação do plano (cfr. requerimento apresentado em o1.04.2024), com fundamentos que o tribunal a quo não chegou a apreciar por ter considerado, na decisão recorrida, que essa apreciação estava prejudicada, decisão que não mereceu, nesta parte, qualquer censura dos diversos interessados.
O credor B... Lda. não deduziu semelhante pedido no mesmo prazo, tal como não o fez anteriormente, cingindo-se a sua intervenção nos autos até ao termo do referido prazo à junção de procuração forense em 11.12.2023.
Só muito mais tarde, já depois da votação do Plano na qual se absteve, quando o tribunal a quo ordenou a notificação de todos os intervenientes para se pronunciarem sobre a posição assumida pelo AJP em 15.04.2024, é que este credor veio apresentar o seu voto contra o Plano, sem chegar a pedir de forma explícita a sua não homologação, remetendo para as razões que aduziu num requerimento que havia remetido ao AJP ainda em sede de negociações (cfr. requerimento junto em 140402024 e documento anexo).
Não estavam, assim, verificados os pressupostos legais da intervenção do juiz ao abrigo do disposto no artigo 216.º do CIRE.
Mas tal não impedia, naturalmente, que essa intervenção pudesse ocorrer ao abrigo do artigo 215.º do mesmo código. Ora, embora apelando à posição assumida pelo credor B... Lda., o tribunal a quo decidiu não homologar o plano aprovado com fundamento na violação do princípio da igualdade dos credores consagrado no artigo 194.º do CIRE, sendo este fundamento, como vimos, subsumível à previsão daquele artigo 215.º.
É contra esta decisão que se insurge a recorrente, pelo que importa analisar se ocorreu a apontada violação.
2. Dispõe assim este artigo 194.º:
1 – O plano de insolvência obedece ao princípio da igualdade dos credores da insolvência, sem prejuízo das diferenciações justificadas por razões objectivas.
2 – O tratamento mais desfavorável relativamente a outros credores em idêntica situação depende do consentimento do credor afectado, o qual se considera tacitamente prestado no caso de voto favorável.
3 – É nulo qualquer acordo em que o administrador da insolvência, o devedor ou outrem confira vantagens a um credor não incluídas no plano de insolvência em contrapartida de determinado comportamento no âmbito do processo de insolvência, nomeadamente quanto ao exercício do direito de voto.
Por sua vez, o artigo 196.º, n.º 1, do mesmo código acrescenta que o plano de insolvência pode, nomeadamente, conter as seguintes providências com incidência no passivo do devedor:
a) O perdão ou redução do valor dos créditos sobre a insolvência, quer quanto ao capital, quer quanto aos juros, com ou sem cláusula «salvo regresso de melhor fortuna»;
b) O condicionamento do reembolso de todos os créditos ou de parte deles às disponibilidades do devedor;
c) A modificação dos prazos de vencimento ou das taxas de juro dos créditos;
d) A constituição de garantias;
e) A cessão de bens aos credores.
Estas normas consagram, sem qualquer equívoco, a possibilidade de o plano prever a alteração, a redução ou a extinção de créditos sobre o devedor, independentemente da sua natureza ou da qualidade dos seus titulares, desde que tais medidas não violem o princípio da igualdade plasmado no artigo 194.º ou as demais regras consagradas no título IX.
Ao dispor que o plano obedece ao princípio da igualdade dos credores, sem prejuízo das diferenciações justificadas por razões objectivas, o n.º 1 deste artigo 194.º consagra uma dimensão material do princípio da igualdade, pondo em evidência as duas vertentes que o caracterizam: a necessidade de tratar do mesmo modo o que é semelhante e de tratar de modo diferenciado o que é distinto. Isto, sem prejuízo da possibilidade de os credores atingidos pela violação do princípio da igualdade darem a sua anuência, nos termos previstos no n.º 2, do mesmo artigo 194.º.
Como se escreve no ac. do TRC de 26.04.2022, já antes citado, «os credores não têm de ser tratados todos da mesma maneira, abrindo-se espaço para uma discriminação positiva, fundada em específicos fatores de diferenciação, dentro dos quais se poderão contar a data da constituição, a fonte ou a proveniência do crédito e o respetivo montante, desde que a diferenciação se revele materialmente fundada. A proibição da violação do principio da igualdade não significa uma situação de igualdade absoluta em todas as situações, nem proíbe diferenças de tratamento, apenas impedindo que o tratamento diferenciado se funde em fatores de diferenciação ilegítimos ou outros que que “se apresentem contrários à dignidade humana, incompatíveis com o princípio do Estado de direito democrático, ou simplesmente arbitrários ou pertinentes”.»
Em consonância com o exposto, a jurisprudência dos tribunais superiores vem defendendo de forma consistente que haverá violação do princípio da igualdade sempre que o plano preveja o tratamento desfavorável de um ou mais credores em relação aos restantes e essa diferenciação não esteja justificada por razões objectivas (cfr. ac. do TRL, de 27.10.2020, proc. n.º 27086/19.1T8LSB.L1-1, rel. Manuela Espadaneira Lopes).
Neste sentido, refere-se o seguinte no ac. do TRE, de 24.05.2018, citado no referido aresto do TRL:
«Relativamente ao sentido e alcance do princípio da igualdade dos credores consagrado no art. 194.º do CIRE, a jurisprudência que vem sendo consolidada pelos Tribunais Superiores assenta, designadamente e no que aqui importa salientar, nos seguintes vetores:
- estabelecendo o plano de revitalização do devedor diferenciações entre os credores, é necessário que nele se justifique o diferente tratamento, com a indicação das razões objetivas que lhe estão subjacentes; [Ac. STJ de 24/11/2015 (José Rainho)]
- necessário se torna, desde logo, justificar no próprio plano o diferente tratamento, com a indicação das razões objetivas para essa diferença; [Ac. STJ de 08/10/2015 (Júlio Gomes), processo n.º 1898/13.8TYLSB.S1]
- o princípio da igualdade dos credores não proíbe ao plano de insolvência que faça distinções entre eles; proíbe apenas diferenciações de tratamento sem fundamento material bastante, sem uma justificação razoável, segundo critérios objetivos relevantes; [Ac. TRC de 01/04/2014 (Henrique Antunes).]
- a simples menção de que existe necessidade do devedor vir a ser apoiado financeiramente no futuro pelas instituições financeiras credoras, não constitui razão objetiva justificadora da desigualdade de tratamento estabelecido no plano, quando tal menção não está acompanhada de uma vinculação efetiva, concreta e programada de apoio por parte dessas instituições financeiras; [Ac. STJ de 24/11/2015 (José Rainho)].
- o carácter estratégico de alguns credores é insuficiente para derrogar o princípio da igualdade dos credores de uma mesma classe quando faz recair sobre alguns deles, de forma desproporcionada, as perdas, ou seja, quando a revitalização do devedor é conseguida à custa do sacrifício grave ou severo de apenas alguns dos credores da mesma classe; [Ac. TRC de 17/03/2015 (Henrique Antunes)].
- a finalidade visada com a contração do crédito (crédito contraído para aquisição de habitação vs. crédito contraído para aquisição de bens de consumo) pode relevar para estabelecer diferenciação de tratamento no plano; [Ac. TRC de 01/04/2014 (Henrique Antunes).]
- ainda que alguma diferenciação se justifique, importa atentar na razoabilidade e no carater proporcional da diferenciação imposta pelo plano; [Ac. STJ de 24/11/2015 (José Rainho)].
- as diferenciações entre credores não podem radicar na própria necessidade de aprovação do plano; pelo contrário, é este que, na sua substância, tem que respeitar, tanto quanto possível, o princípio da igualdade entre os credores. [Ac. TRP de 14/05/2013 (Vieira e Cunha)].
Impõe-se, pois, tratar de forma idêntica todos os credores, mas levando em linha de conta a qualidade, natureza e finalidade dos respetivos créditos».
No caso concreto, discute-se apenas se a diferenciação estabelecida no plano entre os créditos comuns das “Instituições de Crédito, Financeiras e Sociedades de Garantia Mútua”, por um lado, e os demais créditos comuns, por outro lado, é compaginável com o referido princípio da igualdade dos credores.
Tal diferenciação é clara e consiste no seguinte:
- Os créditos comuns titulados por instituições de crédito, financeiras e sociedades de garantia mútua não são sujeitos a qualquer perdão ou redução no que concerne ao capital ou aos juros em dívida, sendo os juros de mora já vencidos pagos no prazo de 30 dias após a aprovação do plano e o capital em dívida pago em 60 prestações mensais após o período de carência de 2 anos, embora durante esse período continuem a vencer-se juros de mora, que devem ser pagos anualmente; deste modo, o sacrifício imposto a estes credores traduz-se na imposição de uma moratória, mas que é remunerada pelo pagamento de juros e mora, e no pagamento fraccionado da dívida;
- Os restantes créditos comuns ficam sujeitos a um perdão total dos juros vencidos e vincendos e a uma redução de 50% do capital, sendo este pago em 60 prestações mensais após o período de carência de 2 anos, mas que se conta desde a data de trânsito em julgado do despacho de homologação do plano de recuperação; assim, o sacrifício imposto e estes credores traduz-se na imposição de uma moratória pura, sem qualquer compensação, e ligeiramente maior, no perdão total dos juros vencidos e vincendos, na redução do capital a 50% e no seu pagamento fraccionado.
A desigualdade de tratamento é, assim, ostensiva e foi expressamente assumida no próprio plano, que a justifica nos termos acima transcritos.
Afirma-se aí, em primeiro lugar, que os créditos comuns titulados por instituições de crédito, financeiras e sociedades de garantia mútua se destinaram a financiamentos específicos sem os quais a empresa teria cessado a sua atividade.
Afirma-se, de seguida, que o incumprimento dos contratos com as instituições de crédito, financeiras e sociedades de garantia mútua «obriga a comunicação a central de responsabilidade de crédito, enquadrada pelo DL 204/2008 gerida pelo Banco de Portugal, situação que vai ter a inevitável consequência de interdição/inacessibilidade a crédito bancário tão necessário ao desenvolvimento da atividade».
As referidas instituições seriam, assim, uma espécie de parceiros estratégicos da devedora, de suporte à sua actividade e à sua reabilitação.
Mas, como bem assinala a decisão recorrida, os restantes credores comuns, maxime os fornecedores, «não deixaram de ser “financiadores” da atividade da requerente/devedora, já que forneceram a crédito», sendo igualmente legítimo concluir que, sem estes fornecimentos, a devedora não teria logrado prosseguir a sua atividade.
Acresce que o incumprimento dos contratos celebrados com tais entidades já ocorreu, como se infere do vencimento de juros de mora, pelo que, em conformidade com o referido DL 204/2008, a sua comunicação à Central de Responsabilidades de Crédito já ocorreu, por força do respectivo artigo 3.º.
Em todo o caso, conforme foi defendido no já citado ac. do STJ, de 24.11.2015 a propósito de uma questão semelhante à que aqui nos ocupa (mais concretamente um plano que previa, para certos credores comuns, o perdão de 50% do capital em dívida, a perda de juros vencidos e vincendos e o pagamento dos outros 50% em 84 prestações mensais e sucessivas após um período de carência de 24 meses, ao passo que os “fornecedores de imobilizado”, titulares de créditos igualmente comuns, receberiam o pagamento integral das rendas e juros em 84 prestações mensais e sucessivas, com termo inicial no mês seguinte à data do trânsito em julgado da decisão de homologação, e que os créditos comuns provenientes de financiamentos bancários seriam pagos na totalidade, incluindo os juros vencidos e vincendos, em 132 prestações mensais e sucessivas, com um período de carência de 24 meses para o pagamento do capital, mas não para o pagamento dos juros; neste plano também se invocava, para além do mais, a necessidade de, no futuro, as entidades bancárias continuarem a financiar a actividade operacional da sociedade), «naqueles casos em que as instituições bancárias se vinculam a apoiar financeiramente o devedor em certos termos concretos, efetivos e programados (fixados no plano) que denotem, de forma minimamente significativa, a assunção de sacrifícios e de riscos para elas, tal possa constituir um fator justificador de uma diferenciação do regime de satisfação dos créditos no confronto de outros credores. Não assim quando, ao invés, o plano é omisso relativamente a tal, ou quando não mostra que exista qualquer efetiva, concreta e programada vinculação ao apoio financeiro, ou ainda quando em nada se revela na prática a existência de sacrifícios e riscos associados às operações financeiras que tais instituições bancárias se proponham favorecer. Repare-se, quanto a este último segmento, que a lei já beneficia à partida os credores financiadores do devedor com um privilégio creditório (nº 2 do art. 17º-H do CIRE), o que, logicamente, minimiza os seus riscos».
No mesmo sentido se pronunciou o ac. do TRG, de 25.05.2017 (proc. n.º 618/16.0T8PTL.G1), citado na decisão recorrida, onde também estava em causa «o tratamento diferenciado nos pagamentos dos créditos comuns das Instituições Bancárias e dos créditos, também comuns, dos Fornecedores – aquelas com o pagamento faseado em 120 prestações mensais (10 anos), com pagamento de juros mensais, calculados à taxa Euribor a 12M, acrescida de 3%, e os Fornecedores com o pagamento faseado em 181 prestações mensais (16 anos), sem pagamento de juros, prevendo o reembolso de 50% do capital em 180 prestações, e os outros 50% de uma só vez (“pagamento bullet”)».
Nesta situação – em que a diferença de tratamento aparentava ser menos vincada do que na situação destes autos – a Relação considerou haver violação do princípio da igualdade dos credores, argumentando assim: «se atentarmos bem no Plano facilmente extrairemos dele que os Credores Bancos, sendo titulares de créditos comuns, não têm qualquer sacrifício com o Plano: recebem juros, à taxa Euribor a 12 meses, acrescida de 3%, mesmo no decurso do período de carência, para além de receberem o capital por inteiro. Bem vistas as coisas, estaremos perante um acordo de reestruturação da dívida, e menos de um plano de revitalização, a exigir cedências dos credores. Já os Credores Fornecedores, também eles titulares de créditos comuns, estão obrigados a perdoar os juros vencidos e vincendos, são-lhes pagos 50% do capital ao longo de muito mais tempo (180 prestações em vez das 120 daqueles), e os outros 50% numa 181.ª prestação. Não consta do Plano que os Credores Bancos assumam, sequer, o compromisso de financiarem a Devedora, esta é que tenta concitar as suas boas graças, na esperança de eles o fazerem».
Esta argumentação é transponível para o nosso caso, com a diferença de que os fornecedores e demais credores comuns que não sejam instituições de crédito têm direito a ser pagos dentro de um período pouco superior ao previsto para estas instituições, mas com um perdão total de juros e uma redução do capital a 50%.
No caso em apreço, como se afirma na decisão recorrida, «a proposta de plano não contém qualquer menção acerca da efetiva, concreta e programada vinculação das entidades bancárias credoras a esse suposto apoio financeiro futuro». Ora, nos termos do disposto no artigo 195.º, n.º 2, do CIRE, o plano deve conter todos os elementos relevantes para efeitos da sua aprovação pelos credores e homologação pelo juiz. Assim, o que efectivamente consta do plano aprovado a respeito da necessidade de financiamento bancário não traduz mais do que uma mera expectativa da devedora, ou seja, uma razão subjectiva para a diferenciação proposta nesse plano.
De resto, como se acrescenta no referido acórdão do STJ, citando ac. do TRC, de 17.03.2015 (proc. n.º 338/13.7TBOFR-A.C1), «o carácter estratégico de alguns credores é insuficiente para derrogar o princípio da igualdade dos credores de uma mesma classe quando faz recair sobre alguns deles, de forma desproporcionada, as perdas, ou seja, quando a revitalização do devedor é conseguida à custa do sacrifício grave ou severo de apenas alguns dos credores da mesma classe. Seria o caso».
Pelas razões expostas, conclui-se que o plano não apresenta quaisquer razões objectivas que justifiquem o tratamento desigual dispensado aos diversos credores comuns, mais concretamente o tratamento mais favorável conferido às instituições de crédito. E ainda que alguma diferenciação se justificasse, sempre estaria por justificar a desproporção da diferenciação concretamente prevista, na medida em que as instituições de crédito veriam integralmente satisfeitos os seus créditos e remunerada a moratória prevista com o vencimento de juros de mora, ao passo que os demais credores comuns veriam os seus créditos reduzidos a metade do capital em dívida, a pagar fraccionadamente depois de decorridos dois anos, sem qualquer compensação por esta moratória.
Deste modo, bem andou o tribunal a quo ao concluir que, neste caso, existe violação do princípio da igualdade, o que configura uma violação não negligenciável das normas aplicáveis ao conteúdo do plano, pelo que não estão reunidas as necessárias condições para a homologação do plano apresentado.
Veio, porém, a recorrente alegar que os credores comuns em igualdade de circunstâncias com o credor “B...” votaram favoravelmente pela aprovação do plano. Mas não é verdade que todos o tenham feito.
Já vimos que o artigo 194.º, n.º 2, do CIRE permite que os credores atingidos por um tratamento mais desfavorável o consintam, presumindo-se que o fazem quando votam favoravelmente o plano aprovado. No entanto, também vimos que o total de votantes corresponde a apenas 34,29% dos créditos; os restantes 65,71% abstiveram-se, sem que daí se possa inferir o seu consentimento. A estes acrescem os votos expressos contra a aprovação do plano, que correspondem a 7,85% do total dos créditos (22,89% dos votos expressos). Assim, em suma, apenas 26,44% dos credores (77,11% dos votantes expressos) votaram favoravelmente a aprovação do plano, nem todos correspondendo a credores comuns, sendo certo que apenas relativamente a estes se pode presumir que consentiram o tratamento mais desfavorável. Os restantes 73,56% dos credores votaram contra ou abstiveram-se, não lhe sendo extensível a referida presunção.
Concluímos, assim, que a esmagadora maioria dos credores, na qual se incluem muitos credores comuns que não correspondem a instituições de crédito, não prestou o consentimento previsto no artigo 194.º, n.º 2, do CIRE, pelo que se mantém a violação do princípio da igualdade consagrado nessa norma.
Alegou ainda a recorrente que o tribunal a quo ponderou apenas o interesse de um credor, não tendo ponderado corretamente os interesses da devedora e dos demais credores. Do exposto já decorre que assim não foi. Pelo contrário, o que o tribunal a quo fez foi ponderar o princípio da igualdade dos credores consagrado no artigo 194.º do CIRE, cuja derrogação não foi autorizada pela maioria dos visados, sendo certo que esta ponderação não dependia do impulso destes, antes se impondo a actuação oficiosa do tribunal.
Deste modo, bem andou o tribunal a quo ao concluir que, neste caso, existe violação do princípio da igualdade, o que configura uma violação não negligenciável das normas aplicáveis ao conteúdo do plano, pelo que não estão reunidas as necessárias condições para a homologação do plano apresentado.
Por fim, a recorrente veio invocar a inconstitucionalidade do artigo 194.º do CIRE, conjugada com o artigo 13.º da CRP, «na dimensão interpretativa normativa segundo a qual no processo especial de revitalização, o despacho do juiz que recusa a homologação do plano de recuperação aprovado pela assembleia de credores, não está vinculado ao princípio da proibição do arbítrio, sendo suscetível de configurar uma inconstitucionalidade material por violação do artigo 205.º, n.º 1, da CRP, assim como é contrária ao princípio da vinculação dos Tribunais à lei e à Constituição, estando, por isso, ferida de inconstitucionalidade material por violação dos artigos 204.º da CRP», acrescentando que «a interpretação normativa, vertida no douto despacho/sentença de não homologação do plano, seguindo a interpretação literal e restritiva do artigo 194.º do CIRE, afasta-se da filosofia e do ratio subjacente ao PER, introduzido no CIRE, pela Lei n.º 16/2012, de 20 de abril, que dá primazia ao interesse público de preservação do tecido empresarial e da economia nacional é contrária ao princípio da vinculação dos Tribunais à lei e à Constituição, estando, por isso, ferida de inconstitucionalidade material por violação dos artigos 204.º da CRP».
Mas desta alegação não decore em que termos a interpretação que o tribunal a quo fez do artigo 194.º do CIRE, e que este tribunal ad quem secundou, viola o princípio da proibição do arbítrio. Como se escreve no ac. do TRG, de 25.05.2017, já antes citado, «[a] enunciação do princípio da igualdade consagrada no art.º 194.º, n.º 1 do C.I.R.E. tem na sua génese a proibição do arbítrio, não admitindo diferenciações de tratamento sem uma justificação razoável, baseada em razões objectivas». Ora, a referida interpretação deste artigo 194.º assentou, precisamente, na proibição de diferenciações de tratamento que não sejam justificadas por razões objectivas, conforme abundantemente exposto ao longo deste aresto.
Muito menos se compreende a alegação de uma suposta violação do artigo 205.º, n.º 1, da CRP. Ainda que a fundamentação da decisão recorrida não respeitasse as exigências constitucionais (e infraconstitucionais) de fundamentação das decisões judiciais, não se consegue compreender em que medida essa circunstância poderia ferir de inconstitucionalidade a interpretação que aquele tribunal fez do artigo 194.º do CIRE. A consequência para a falta de fundamentação seria outra, nada tem que ver com a conformidade constitucional da interpretação daquela norma.
Em todo o caso, embora decorra da alegação da recorrente que esta discorda da fundamentação expendida na decisão recorrida, mas não se vislumbra – nem a recorrente esclarece – em que termos se pode afirmar que aquela decisão não está fundamentada na forma prevista na lei.
O artigo 205.º, n.º 1, da CRP, nos termos do qual as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei, configura uma garantia constitucional de conformação legal, pois confere ao legislador ordinário o poder de regular aquele dever de fundamentação, reflectido nas normas infraconstitucionais a seguir analisadas.
Concomitantemente, erige-se como uma vertente do direito fundamental a um processo equitativo consagrado no artigo 20.º, n.º 4 da CRP. Assim se compreende que tal dever de fundamentação seja apenas dispensável no caso de decisões de mero expediente, como decorre do disposto nos artigos 152.º, n.º 4, e 154.º, n.º 1, do CPC.
Deste modo, ainda que a questão não suscite especiais dúvidas, a respectiva decisão deve ser fundamentada nos termos que se apresentem ajustados ao caso.
O grau máximo da exigência legal de fundamentação das decisões judiciais manifesta-se, naturalmente, nas decisões finais das acções contestadas (cfr. artigo 607.º, n.ºs 3 e 4, do CPC), sendo a lei processual menos exigente, por exemplo, nas decisões relativas aos incidentes da instância e procedimentos cautelares (cfr. artigos 295.º e 365.º, n.º 2, do CPC), nas decisões de acções não contestadas (cf. artigo 567.º, n.º 3, do CPC) e nos despachos interlocutórios em que não tenha sido deduzida oposição e a questão a proferir seja manifestamente simples (cfr. artigo 154.º, n.º 2, do CPC).
No presente caso, a decisão recorrida constitui a decisão final de um PER, mais concretamente de não homologação do plano aprovado pelos credores, a cuja fundamentação se deve aplicar o disposto nos artigos 607.º e 608.º do CPC, com as necessárias adaptações, maxime o disposto no n.º 3 daquela primeira disposição legal, por remissão do artigo 17.º, n.º 1, do CIRE. Quanto às normas jurídicas aplicáveis, o próprio CIRE refere de forma expressa que a decisão de homologação ou não homologação do plano aprovado se deve fundamentar no disposto no seu artigo 17.º-F, n.º 7, que por sua vez remete para os artigos 194.º a 197.º, 198.º, n.º 1, 200.º a 202.º, 215.º e 216.º, do mesmo código. Foi, precisamente, o que fez o tribunal a quo, cuja fundamentação permite compreender sem dificuldade o iter cognoscitivo que conduziu à decisão de não homologação, pelo que dá integral cumprimento às exigências constitucionais e infra-constitucionais de fundamentação das decisões judiciais e satisfaz todas as finalidades destas exigências, inclusivamente permitir às partes recorrer dessa decisão de forma esclarecida.
Também não se compreende a alusão ao artigo 13.º da CPR, não esclarecendo a recorrente em que medida a interpretação em escrutínio seja violadora da igualdade dos cidadãos perante a lei ou da proibição de discriminação em razão da ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.
Ainda que o tratamento diferenciado dispensado aos diferentes credores comuns violasse o princípio da igualdade dos credores no processo de insolvência, nunca o princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º da CRP, já que a devedora e ora recorrente teve um tratamento legal igual a todos os outros devedores, não tendo sido vítima de qualquer discriminação (a este respeito, vide o ac. do STJ, de 13.11.2014 (proc. n.º 3970/12.2TJVNF-A.P1.S1).
Também não tem razão a recorrente quando afirma que a interpretação literal e restritiva do artigo 194.º do CIRE feita pela primeira instância se afasta da filosofia e do ratio subjacente ao PER, introduzido no CIRE pela Lei n.º 16/2012, de 20 de abril, que dá primazia ao interesse público de preservação do tecido empresarial e da economia nacional, pelo que aquela interpretação é contrária ao princípio da vinculação dos Tribunais à lei e à Constituição, estando, por isso, ferida de inconstitucionalidade material por violação do artigo 204.º da CRP.
Não esclarece a recorrente qual o direito ou princípio constitucional violado, limitando-se a invocar a violação “da filosofia e do ratio subjacente ao PER, introduzido no CIRE pela Lei n.º 16/2012, de 20 de abril”, ou seja, de normas infraconstitucionais.
De todo o modo, como já dissemos, se é verdade que Lei n.º 17/2012, de 20 de Abril, passou a privilegiar a recuperação da empresa, em detrimento da liquidação do património do devedor insolvente e da repartição do produto obtido pelos credores, é igualmente verdade que manteve o primado da satisfação dos credores, de que a recuperação da empresa e a liquidação do seu património são meros instrumentos, não estando o tribunal vinculado a optar pelos mecanismos de recuperação quando estes colocam em causa a satisfação dos credores, a qual, por sua vez, deve respeitar a igualdade entre estes, nos moldes definidos na lei.
De resto, ao contrário do que parece pressupor a recorrente, a recuperação de determinadas empresas não serve necessariamente o interesse público de preservação do tecido empresarial e da economia nacional, podendo mesmo revelar-se contrário a este interesse.
Pelas razões expostas, improcede a desconformidade constitucional alegada pela recorrente.
Em síntese conclusiva, resta concluir ser inteiramente acertada que a decisão do tribunal a quo de considerar que o plano aprovado viola o princípio da igualdade previsto no artigo 194.º do CIRE e que tal violação configura uma violação não negligenciável de uma norma imperativa aplicável ao seu conteúdo, o que justifica a não homologação do referido plano.
Impõe-se, assim, confirmar a decisão recorrida e condenar a recorrente nas custas da apelação (cfr. artigo 527.º, n.º 1, do CPC).


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IV. Decisão
Pelo exposto, os Juízes do Tribunal da Relação do Porto julgam improcedente a apelação e confirmam a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.
Registe e notifique.




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Sumário (artigo 663.º, n.º 7, do CPC):
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Porto, 10 de Julho de 2024
Artur Dionísio Oliveira
Maria da Luz Seabra
Maria Eiró