Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
238/24.5T8VNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: EUGÉNIA CUNHA
Descritores: PROCESSO DE ACOMPANHAMENTO DE MAIOR
INTERESSE DO BENEFICIÁRIO
Nº do Documento: RP20240710238/24.5T8VNG.P1
Data do Acordão: 07/10/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMAÇÃO
Indicações Eventuais: 5. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O processo de acompanhamento de maior é um processo especial, de natureza formalmente contenciosa e substancialmente de jurisdição voluntária cfr. arts nº1, do 891º, nº2, do 986º, 987º e 988º, do CPC -, com caráter urgente, que se regula pelas disposições que lhe são próprias (v. art. 891º a 905º, do CPC) e pelas disposições gerais e comuns e, em tudo que não estiver previsto numas e noutras, pelo que estabelecido se encontra para o processo comum (v. nº1, do art. 549º, de tal diploma), o que conduz, desde logo, a que o juiz possa limitar os meios de prova aos que considere, em concreto, necessários à boa decisão da causa.
II - O interesse que este processo visa garantir é o do beneficiário das medidas de acompanhamento. E verificada situação de necessidade da medida (requisito de ordem positiva) e a não suscetibilidade dessa medida ser suprida por via dos deveres gerais de cooperação e de assistência (requisito de ordem negativa) deve ser decretado o acompanhamento.
III - Em situação de total incapacidade do acompanhado para reger a sua pessoa e os seus bens, devido à avançada idade e a demência, necessário se mostra o acompanhamento, impondo-se a adoção de medidas (mesmo de não pedidas – cfr..nº2, do art. 145º, do Código Civil) adequadas à situação apurada, para suprir as concretas deficiências na, indispensável, satisfação do imperioso interesse do acompanhado.
IV - Cabe deferir o acompanhamento, na falta de escolha, nos termos do nº2, do art. 143º, do Código Civil, à pessoa cuja designação melhor salvaguarde o interesse imperioso do beneficiário, não podendo considerar-se como tal, nem pessoa idónea para o cargo, quem, injustificadamente, retira da conta da beneficiária mais de cem mil euros e a deposita em conta sua.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 238/24.5T8VNG.P1
Processo da 5ª secção do Tribunal da Relação do Porto (3ª Secção cível)
Tribunal de origem do recurso: Juízo Local Cível de Vila Nova de Gaia - Juiz 5



Relatora: Des. Eugénia Cunha
1º Adjunto:  Des. Ana Paula Amorim
2º Adjunto: Des. Miguel Baldaia Morais


Acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto

Sumário (cfr nº 7, do art.º 663º, do CPC):

……………………………………………

……………………………………………

……………………………………………


*

I. RELATÓRIO

Recorrente: AA

BB propôs ação especial de acompanhamento de CC, viúva, residente na Rua ..., ... ..., ..., pedindo se decrete que esta fica sujeita à medida de acompanhamento de representação geral, nos termos do disposto na alínea b) do nº 2 do artigo 145º do CC, alegando, para tanto, a idade da mesma e a sua total e definitiva incapacidade para reger a sua pessoa e os seus bens.

Para exercer o cargo de Acompanhante indica a Requerente, sobrinha e afilhada da beneficiária, e AA, irmão da mesma.

Foi citado o Ministério Público, em representação da beneficiária, dada a incapacidade desta para receber a citação.

Procedeu-se a audição da beneficiária, da requerente e do referido irmão da beneficiária.


*

Foi proferida sentença com a seguinte

parte dispositiva:

“Nos termos expostos, julgo a acção procedente por provada, decretando a medida de administração total de bens de CC, nascida a ../../1928, fixando-se o ano de 2023 como a data a partir da qual tal medida se tornou necessária.

 Mais decido que a requerida não poderá testar ou perfilhar.

Para exercer o cargo de acompanhante, nomeio a sua sobrinha, BB.

Para integrar o conselho de família nomeio AA, irmão da beneficiária e a sua sobrinha DD.

Sem custas, por estar a requerida isenta – cfr. artigo 4.º, n.º 1, al. l), do RCP.

Fixo à acção o valor de €: 30.001,00.

Notifique, registe e oportunamente comunique à repartição do Registo Civil competente nos termos do artigo 1920.º-B, aplicável ex vi do artigo 147.º, ambos do Código Civil.

Publicite no portal.

Consigno que esta decisão será objecto de reapreciação/revisão ao fim de cinco anos, sem prejuízo de antes desse prazo ser requerida a aludida revisão.

No mais, cumpra nos termos promovidos”.


*

Após, foi proferida a seguinte
 decisão:
“…Cumpre concretizar essa sentença nos termos do artigo 145º, n.º 2, alínea b) do Código Civil uma vez que a mesma ficou omissa no que concerne à medida de representação geral, (para além da medida de administração total de bens), tal como vinha peticionado na petição inicial, artigo 614º, n.º 1 do Código de Processo Civil.
Assim considerando tudo o decidido na referida sentença determino que a beneficiária CC fique sujeita também à medida de representação geral que ficará a cargo da acompanhante BB.
*
A medida de administração total de bens obedece ao disposto no artigo 1967º e 1935º e seguintes do Código Civil pelo que é este o regime legal que a acompanhante deverá seguir no que concerne à gestão dos bens da beneficiária.
No caso concreto não se impõe a autorização prévia para a prática de determinados actos – artigo 145º, n.º 2, alínea d) do Código Civil.
Isto, sem embargo do incidente de alteração do regime, caso existam circunstâncias factuais que o justifiquem – artigo 149º do Código Civil”.

Apresentou AA recurso de apelação, pugnando pela revogação da decisão e sua substituição por outra que considere a ação improcedente, em virtude da medida de acompanhamento decretada não ser necessária, ou, em alternativa, pela sua nomeação como acompanhante com as consequências legais, formulando as seguintes

CONCLUSÕES:

“I. A decisão recorrida, não deve manter-se pois não consubstancia uma solução que consagra a justa e rigorosa interpretação e aplicação da lei e, muito menos, salvaguarda o interesse imperioso da pessoa do acompanhado.

II. Importa salientar, desde logo, que o está em causa nos autos é a salvaguarda dos interesses da acompanhada e não qualquer interesse pessoal.

III. A beneficiaria encontra-se acompanhada pela família no dia a dia, pelo que o acompanhamento de maior se torna absolutamente inócuo.

IV. A decisão objeto do presente recurso violou o preceituado no nº 2 do artigo 143º do CC.

V. A acompanhante não tem capacidade e/ou idoneidade para o desempenho da função para que foi nomeada.

VI. O Tribunal desconsiderou completamente o depoimento do requerente, relativamente ao caracter e conduta, completamente desadequada, da acompanhante nomeada BB.

VII. Ignorou a audição de testemunhas que poderiam contribuir para uma boa decisão da causa.

VIII. E assim sendo, ignorou aquela que seria a vontade da beneficiária, e assim, não ficou salvaguardado o interesse imperioso da pessoa do acompanhado, sendo este o critério a atender para a designação.

IX. A Sentença recorrida padece de falta de fundamentação, o que constitui uma nulidade prevista no artº 659º, nº 2 do Código do Processo Civil.

X. A Sentença recorrida padece de um excesso de pronúncia, nulidade prevista no artº 615º, nº1, al. d).

XI. Pelo exposto, como devido respeito, deverá a sentença ora recorrida ser revogada”.


*

Apresentou a requerente BB contra-alegações onde formula as seguintes CONCLUSÕES:

1. A sentença não padece do vício de falta de fundamentação porque a falta de fundamentação está limitada ao caso de total ausência de fundamentação, argumento que não colhe, nos termos do art. 607º, n.º 3, do C. P. Civil.

2. Também não existe excesso de pronúncia, pois só se pode afirmar que corre excesso de pronúncia quando se procede ao conhecimento de questões não suscitadas pelas partes ou que sejam de conhecimento oficioso. Não existe violação do disposto na 2ª parte da alínea d) do nº 1 do artigo 615º do Código de Processo Civil (ex vi artigo 666º, nº 1, do mesmo diploma).

3. A Beneficiária não escolheu o seu Beneficiário porque está muito demenciada, mas identificou a Requerente como pessoa de referência.

4. O Recorrente não gere idoneamente o património da Beneficiária porque permitiu que a mesma outorgasse um documento particular autenticado de doação do único imóvel que possuía.

5. Soçobrou-lhe um usufruto vitalício que não goza internada que está num Lar!

6. O Recorrente transferiu cem mil euros para uma conta por si titulada, mas o dinheiro é pertença exclusiva da Beneficiária, facto que poderão vir a ser sindicados em sede própria.

7. Refere ter uma procuração e agora um testamento e não os junta aos autos, pese embora a Recorrida tivesse interesse em anular ambos.

8. A Recorrida intentou a presente demanda para proteger a sua madrinha, logo após saber a sua morada que lhe foi ocultada pelo Recorrente.

9. O Recorrente impediu a Recorrida de visitar a tia, pois é bom de ver que não queria que “as verdades viessem ao de cima”!

10. A sentença deverá ser mantida na íntegra.


*

O MINISTÉRIO PÚBLICO apresentou contra-alegações a pugnar por que seja negado provimento ao recurso e mantida a sentença recorrida, sustentando não se verificar falta de fundamentação nem excesso de pronúncia, vício este esta sequer concretizado, e ser a solução adotada a mais equilibrada e justa, permitindo aos familiares envolverem-se nas decisões relativas à acompanhada por forma a assegurarem o seu bem-estar, para além de, por via do conselho de família, permitir assegurar a melhor gestão do património da mesma, que dele deve poder dispor para assegurar o bem-estar da acompanhada até ao fim dos seus dias e não para quaisquer outros fins, designadamente os visados pelo apelante.

Após os vistos, cumpre apreciar e decidir o mérito do recurso interposto.


*

II. FUNDAMENTOS

- OBJETO DO RECURSO

Apontemos, por ordem lógica, as questões objeto do recurso, tendo presente que o mesmo é balizado pelas conclusões das alegações do recorrente, estando vedado ao tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que se imponha o seu conhecimento oficioso, acrescendo que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido – cfr. arts 635º, nº3 e 4, 637º, nº2 e 639º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil -, ressalvado o estatuído no artigo 665º, de tal diploma legal.

Assim, as questões a decidir são as seguintes:

1ª- Da nulidade da sentença por padecer dos vícios de falta de fundamentação e de excesso de pronúncia;

2ª- Da verificação dos requisitos do acompanhamento e se deve ser nomeado acompanhante o Recorrente, irmão da beneficiária (viúva, sem filhos, de 96 anos de idade e a padecer de demência) ou se bem foi o cargo deferido à requerente do processo especial de acompanhamento de maior, sobrinha e afilhada da mesma.


*

II.A – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

1. FACTOS PROVADOS

Com base na certidão de assento de nascimento junta aos autos, na audição da beneficiária, na documentação clínica e nas declarações do irmão da beneficiária, AA, foram considerados provados, com relevância para a decisão da causa, os seguintes factos:

1. A beneficiária nasceu a ../../1928 e é viúva.

2. A requerida padece de demência, que tem origem de foro psiquiátrico ou neurológico, tomando medicação para ela.

3. A doença de que a requerida padece determina que não seja capaz de cuidar de si.

4. A requerida tem critérios de Síndrome Demencial.

5. Não tem a noção do tempo.

6. Não se consegue situar cronologicamente.

7. Não reconhece o valor do dinheiro, nem conhece o valor económico dos bens.

8. Não consegue orientar-se sozinha na rua.

9. Não tem poder de locomoção autónoma.

10. Não consegue cuidar da sua higiene pessoal, do seu vestuário e da sua alimentação, carecendo sempre da ajuda de uma terceira pessoa.

11. Tem pouco insight para a doença.

12. É expectável agravamento progressivo da situação clínica.

13. A requerida mostra-se, devido à doença de que sofre, incapaz de zelar e cuidar da sua pessoa e bens.

14. A Requerida tem património imobiliário e mobiliário.

15. A requerida não tem filhos.

16. A requerente é sobrinha (e afilhada) da Beneficiária (os avós da requerente são os pais da beneficiária).

17. A gestão do património da beneficiária tem sido feita por AA.

18. A beneficiária era titular de uma conta bancária no Banco 1... e, por motivos não concretamente apurados, o referido AA transferiu mais de €100.000,00 provenientes de uma aplicação a prazo da conta da beneficiária para uma conta titulada por si e por outros familiares, tendo na mencionada conta da beneficiária ficado quantia não apurada, mas que tem servido para proceder a pagamentos de despesas da beneficiária.


*

II.B - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
1ª- Da nulidade da sentença.
Arguiu o Apelante, no recurso que apresentou, a nulidade da sentença por a mesma padecer dos vícios de falta de fundamentação e de excesso de pronúncia, previstos nas als b) e d), do nº1, do art.º 615.º, do Código de Processo Civil, diploma a que pertencem todos os preceitos citados sem outra referência, defendendo os apelados não padecer a mesma dos apontados vícios, sequer concretizados se mostrando.
Analisemos, em primeiro lugar, das invocadas nulidades, pois que as mesmas contendem com a validade da própria decisão.
Começa por se referir que as “Causas de nulidade da sentença”, vêm taxativamente consagradas no referido preceito que estabelece:
“1 - É nula a sentença quando:
a) …;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) …”.
As nulidades da sentença são, assim, tipificados, vícios formais, intrínsecos de tal peça processual, reportando-se à estrutura, à inteligibilidade e aos limites, sendo vícios do silogismo judiciário inerentes à sua formação e à harmonia formal entre as premissas e a conclusão, que não podem ser confundidas com erros de julgamento (error in judicando) de facto ou de direito[1].  Trata-se de um error in procedendo, nada tendo a ver com os erros de julgamento (error in judicando), seja em matéria de facto seja em matéria de direito.
E, como vícios intrínsecos daquela peça processual, as nulidades da sentença são apreciadas em função do texto da sentença e do discurso lógico que nela é desenvolvido, não podendo ser confundidas com erros de julgamento de facto nem com erros de aplicação das normas jurídicas aos factos, erros de julgamento, estes, a sindicar noutro âmbito. Nos erros de julgamento assiste-se a uma deficiente análise crítica das provas produzidas e/ou a uma deficiente enunciação e/ou interpretação dos institutos jurídicos aplicados ao caso concreto. Esses erros, por não respeitarem já a defeitos que afetam a própria estrutura da sentença, antes o mérito da relação material controvertida, nela apreciada, não a inquinam de invalidade, mas de error in judicando atacáveis em via de recurso[2].
Os vícios da sentença são, portanto, aqueles que “afetam formalmente a sentença e provocam a dúvida sobre a sua autenticidade, como é o caso da falta de assinatura do juiz, ou a ininteligibilidade do discurso decisório por ausência total de explicação da razão por que se decide de determinada maneira (falta de fundamentação), quer porque essa explicação conduzir logicamente a resultado oposto do adotado (contradição entre os fundamentos e a decisão), ou uso ilegítimo do poder jurisdicional em virtude de pretender resolver questões de que não podia conhecer (excesso de pronúncia) ou não tratar de questões que deveria conhecer (omissão de pronúncia)”[3] ou condenar ultra petitum, tendo o julgador de limitar a condenação ao que, concretamente, vem peticionado, em obediência ao princípio do dispositivo.
Os referidos vícios respeitam à “estrutura ou aos limites da sentença. Respeitam à estrutura da sentença os fundamentos das alíneas b) (falta de fundamentação), c) (oposição entre os fundamentos e a decisão). Respeitam aos seus limites os das alíneas d) (omissão ou excesso de pronúncia) e e) (pronúncia ultra petitum)”[4].

Analisemos os invocados vícios, que se reportam quer à estrutura quer aos limites, exarando-se, desde já, que, fundamentada é a decisão, quer de facto quer de direito e conheceu o Tribunal das questões que devia apreciar.
Sendo frequente a confusão entre a nulidade da decisão (a poder conduzir à anulação da sentença) e a discordância do resultado obtido, cumpre reforçar e deixar claro que os vícios da sentença não podem ser confundidos com erros de julgamento (error in judicando), que são erros quanto à decisão de mérito, estes decorrentes de má perceção da realidade factual (error facti) e/ou aplicação do direito (error juris) de forma que o decidido não corresponde à realidade normativa (que, na procedência, conduzem à alteração da decisão da matéria de facto e/ou à revogação da decisão).
E, com efeito, “Ao juiz cabe especificar os fundamentos de facto e de direito da decisão (art. 607-3). Há nulidade (no sentido de invalidade, usado pela lei) quando falte em absoluto a indicação dos fundamentos de facto ou a indicação dos fundamentos de direito da decisão (ac. do STJ de 17.10.90, Roberto Valente, AJ, 12, p. 20: constitui nulidade a falta de discriminação dos factos provados). Não a constitui a mera deficiência de fundamentação (ac. do TRP de 6.1.94, CJ, 1994, I. p 197: a simples indicação do preceito legal aplicável constitui fundamentação suficiente da decisão…”[5].
 E no que concerne a insuficiência de fundamentação de facto, diga-se que, integrando a sentença tanto a decisão sobre a matéria de facto como a fundamentação dessa decisão (art. 607º, nº3 e 4), “deve considerar-se que a nulidade consagrada na alínea b), do nº1 (falta de especificação dos fundamentos de facto que justificam a decisão) apenas se reporta à primeira, sendo à segunda, diversamente, aplicável o regime do art. 662, nºs 2-d e 3, alíneas b) e d) (ac. do TRP de 5.3.15, Aristides Rodrigues de Almeida, www.dgsi.pt.proc.1644/11, e ac. do TRP de 29.6.15, Paula Leal de Carvalho, www.dgsi.pt, proc 839/13)”[6].
Assim, “é nula a sentença que não especifique os fundamentos de facto e de direito ou que se caracterize pela sua ininteligibilidade, previsões que a jurisprudência tem vindo a interpretar de forma uniforme, de modo a incluir apenas a absoluta falta de fundamentação e não a fundamentação alegadamente insuficiente e ainda menos o putativo desacerto da decisão (STJ 2-6-16,781/11).” [7].
Deste modo, importa distinguir entre erros de atividade ou de construção da sentença, geradores de nulidade a que se reporta aquele art. 615º, n.º 1, dos erros de julgamento, que apenas afetam o valor doutrinal da decisão, sujeitando-a ao risco de ser revogada ou alterada[8] atacáveis em via de recurso e não determinativos daquela invalidade.
A deficiente fundamentação, em que apenas se verifica uma insuficiente ou errada análise das provas produzidas ou uma indevida enunciação e interpretação dos institutos jurídicos aplicados ao caso concreto, não constitui omissão de fundamentação, determinativa de nulidade da sentença, mas mero erro de julgamento, atacável e sindicável em via de recurso[9].
E nos casos em que o vício da deficiente fundamentação se coloque ao nível da decisão sobre a matéria de facto, esse vício tem de ser solucionado mediante as regras próprias enunciadas nos n.ºs 1 e 2 do art. 662º.
Relativamente a vício de pronúncia (al. d)), cumpre referir que “Devendo o juiz conhecer de todas as questões que lhe são submetidas, isto é, de todos os pedidos deduzidos, com as respetivas causas de pedir, das exceções invocadas e de todas as exceções de que oficiosamente lhe cabe conhecer (v. nº2, do art. 608º), o não conhecimento de pedido ou exceção, cujo conhecimento não esteja prejudicado pelo anterior conhecimento de outra questão, constitui nulidade, já não a constituindo a omissão de considerar linhas de fundamentação jurídica diferentes das seguidas na sentença, que as partes hajam invocado”[10].
Assim, cabe distinguir “questões” das “razões ou argumentos”, pois que uma coisa é o tribunal deixar de pronunciar-se sobre questões que devia apreciar e outra, diversa, é invocar razão, boa ou má, procedente ou improcedente, para justificar a sua abstenção. “São, na verdade, coisas diferentes: deixar de conhecer a questão de que devia conhecer-se, e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar as suas pretensões”[11]
A não apreciação pelo tribunal quanto a questões que lhe são submetidas determina a nulidade da sentença, não a sendo suscetível de determinar a falta de discussão das “razões” ou “argumentos” invocados para concluir sobre as questões.
A nulidade da sentença, por omissão ou excesso de pronúncia, há de, assim, resultar da violação do dever prescrito no n.º 2, do referido artigo 608º, do qual resulta o dever do juiz de resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão resulte esteja prejudicada pela solução dada a outras, e não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.
O dever imposto no nº2, do artigo 608º diz respeito ao conhecimento, na sentença, de todas as questões de fundo ou de mérito que a apreciação do pedido e da causa de pedir apresentadas pelo autor (ou, eventualmente, pelo réu reconvinte) suscitam. Só estas questões é que são essenciais à solução do pleito e já não os argumentos, razões, juízos de valor ou interpretação e aplicação da lei aos factos.
O Tribunal a quo limitou-se a conhecer da pretensão formulada com a invocada causa de pedir.
In casu, confunde o apelante a invocação da nulidade da sentença por excesso de pronúncia com a existência de erro de julgamento, este o efetivo fundamento do seu recurso que apresentou, que será conhecido de seguida.

Improcedem, por conseguinte, as referidas conclusões da apelação, não ocorrendo a violação dos normativos invocados pelo apelante, improcedendo as arguidas nulidades da sentença, que se não verificam.


*
2º- Do meio processual: processo especial “Do acompanhamento de maiores”.

Encontramo-nos perante um processo especial - “Do acompanhamento de maiores” -, que se regula pelas disposições que lhe são próprias (artigos 891º a 905º, do Código de Processo Civil, diploma a que pertencem todos os preceitos citados sem outra referência) e pelas disposições gerais e comuns e, em tudo que não estiver previsto numas e noutras, pelo que se encontra estabelecido para o processo comum, o que pode envolver o uso dos poderes de gestão previstos no nº2, 3 e 4 art. 590º, e a prolação de despacho saneador – cfr. nº1, do art. 549º. 
O referido artigo 891º, no seu nº1, determina serem aplicáveis ao processo de acompanhamento de maior, “com as necessárias adaptações, o disposto nos processos de jurisdição voluntária, no que respeita aos poderes do juiz, ao critério de julgamento e à alteração das decisões com fundamento em circunstâncias supervenientes”, o que se justifica e impõe pela “multiplicidade de circunstâncias observáveis, incompatível com uma rigidez processual, compreendendo-se, assim, a alteração do paradigma revelada pela maior aproximação ao regime dos processos de jurisdição voluntária (arts 986º a 988º)”[12].
Em matéria de critérios de julgamento os processos de jurisdição voluntária “não estão sujeitos a regras de legalidade estrita mas sim a ditames “ex-aequo et bono”.
Mas para além disso, os mesmos processos têm também outras características singulares de que se destaca a predominância do princípio do inquisitório na investigação dos factos e na obtenção das provas (art.º 986º, n.º 1 do CPC) e a alterabilidade das decisões com base em alteração superveniente das circunstâncias que as determinaram (art.º 988º, n.º 1)[13].  E, pese embora se trate de um processo de jurisdição contenciosa[14], bem se ressalta no referido Acórdão deste tribunal a sua natureza hibrida, não sendo um típico processo de jurisdição voluntária[15], mas que contempla:
i) um reforço dos poderes inquisitórios do juiz – v.  nº2, do artigo 986º, no que respeita aos poderes oficiosos do juiz na investigação dos factos e recolha de meios de prova (afloramento, reforçado até, o princípio do inquisitório genericamente consagrado no art. 411º);
 ii) um fortalecimento dos poderes de direção do juiz - v. artigo 987º, no que respeita a dever o juiz decretar as medidas que considere mais adequadas ao caso concreto (alicerçando-se a decisão em razões de oportunidade ou de conveniência), com o respeito, possível, da vontade do beneficiário, e podendo limitar os meios de prova aos que considere, em concreto, necessários à boa decisão da causa;
iii) a suscetibilidade de revisão das decisões – v. art. 988º, no que concerne à possibilidade de alteração das medidas quando circunstâncias supervenientes o justifiquem e art. 155º, do CC (revisão supletiva e quinquenal das medidas de acompanhamento[16].
E quanto à instrução do processo, é obrigatória a audição de beneficiário pelo juiz (art. 139º, do CC e nº2, do art. 897º e, ainda, art. 898º), o que lhe confere imediação e, por norma, oralidade, e, em regra, é necessária prova pericial, para definir a concreta incapacidade e o seu caráter transitório ou permanente (nº1, do art. 897º e art. 899º) e dispõe o juiz de amplos poderes instrutórios (podendo investigar livremente os factos e reunir os elementos necessários), submetidos ao dever de:
i)- indagar a natureza da incapacidade imputada ao beneficiário;
ii) - apurar as concretas medidas idóneas a supri-la, com preservação do grau de autonomia possível do mesmo[17](cfr. nº1, do art. 897º e nº2, do art. 986º e 1ª parte, do nº1, do art. 900º),
 sendo que, em relação às provas que tenham sido propostas, tem de ser analisada e avaliada a sua pertinência ou necessidade, podendo o juiz não admitir provas, caso as considere desnecessárias (cfr nº2, do art. 886º) e havendo limitação legal quanto ao número de testemunhas – 5, considerando-se não escritos os nomes das que no rol ultrapasse o número legal (nº3, do art. 511º, supletivamente aplicável) - (cfr. nº1, do art. 294º, aplicável ex vi nº1, do art. 986º), sendo desnecessárias as provas que, atento o estado da causa, sejam insuscetíveis de acrescentar um elemento probatório que se repercuta no desfecho da lide, ou por dizerem respeito a factos que já se mostram devidamente comprovados, ou por respeitarem a factos que não constam do elenco a apurar na causa, ou, ainda, por já constar do processo prova de igual ou superior relevo[18].

*

- Do regime jurídico dos maiores acompanhados: requisitos do acompanhamento e critério de nomeação do acompanhante.

Como tivemos oportunidade de analisar noutros acórdãos, o regime jurídico dos maiores acompanhados foi consagrado com grande maleabilidade, sendo suscetível de integrar vastas situações carecidas de tutela – v. art. 138º, do CC “maior impossibilitado, por razões de saúde, deficiência, ou pelo seu comportamento, de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres”- e possibilitando a adoção das medidas que, dentro de um vasto leque, concretamente se vierem a revelar mais adequadas ao caso.
O regime atual, “do acompanhamento de maiores”, resultou, precisamente, de o anterior quadro legal se revelar insuficiente para dar cobertura a outras situações merecedoras de tutela legal, pois, desde logo, “O aumento da longevidade passou também a evidenciar a necessidade de serem adotadas medidas em função da perda progressiva da autonomia por via do envelhecimento ou de afeções degenerativas de natureza física ou psíquica. Na maioria das situações, são identificáveis graus de autonomia pessoal diferenciados que há que respeitar e preservar condignamente, sem acentuar em demasia interesses de terceiros relativamente ao património dessas pessoas”[19]. “Daí a necessidade de flexibilizar o regime jurídico dos maiores acompanhados, segundo um modelo em que as medidas a adotar são determinadas em função das concretas circunstâncias de ordem pessoal do visado (…) Para o efeito, foi seguido o modelo de acompanhamento por ser “o que melhor corresponde à profunda intenção normativa e cultural de tratar o visado como ser humano em parte inteira, com direito à solidariedade e ao apoio que se mostrem necessários” (Meneses Cordeiro. “Da Situação jurídica do maior acompanhado”, na Rev. de Direito Civil, 2018, nº3, p. 547) acrescentando que “o acompanhamento visa a dignidade e a liberdade das pessoas; ele procura salvaguardar e ampliar a sua autonomia e o âmbito da sua vida privada”[20].
O artigo 145.º, com a epígrafe “Âmbito e conteúdo do acompanhamento”, consagra:
“1- O acompanhamento limita-se ao necessário.
2- Em função de cada caso e independentemente do que haja sido pedido, o tribunal pode cometer ao acompanhante algum ou alguns dos regimes seguintes:
a) Exercício das responsabilidades parentais ou dos meios de as suprir, conforme as circunstâncias;
b) Representação geral ou representação especial com indicação expressa, neste caso, das categorias de actos para que seja necessária;
c) Administração total ou parcial de bens;
d) Autorização prévia para a prática de determinados actos ou categorias de actos;
e) Intervenções de outro tipo, devidamente explicitadas.
3- Os actos de disposição de bens imóveis carecem de autorização judicial prévia e específica.
4- A representação legal segue o regime da tutela, com as adaptações necessárias, podendo o tribunal dispensar a constituição do conselho de família.
5- À administração total ou parcial de bens aplica-se, com as adaptações necessárias, o disposto nos artigos 1967.º e seguintes” (negrito nosso).

Assim, o princípio do mínimo necessário, consagrado no artigo 145º, do Código Civil, impõe proporcionalidade entre a medida adotada e a situação apurada, a fim de preservar, na medida do possível, a autonomia e dignidade do beneficiário, cuja esfera pessoal só pode ser invadida da forma estritamente necessária a suprir as concretas deficiências e incompatibilidades detetadas – o indispensável à satisfação do imperioso interesse do acompanhado, com observância do princípio do aproveitamento de toda a capacidade de exercício e de gozo do mesmo.
O referido artigo consagra, exemplificativamente, medidas que visam suprir, independentemente da sua causa, a maior fragilidade do beneficiário, salvaguardando tanto quanto possível a sua autonomia[21].
Resulta do referido artigo 138º, do CC, e da al. a), do nº1, do art. 892º, do CPC, serem dois os requisitos do acompanhamento, tendo os factos a revelar e a densificar a necessidade das medidas de acompanhamento - que “justificam a proteção do maior através de acompanhamento” - de ser concretizados no requerimento inicial, para serem objeto de instrução:
i)- Um “de ordem subjetiva correspondente à impossibilidade de o sujeito se autodeterminar no que respeita ao exercício dos seus direitos, bem como à assunção e ao cumprimento dos seus deveres, o que permite que o acompanhamento possa ser decretado em relação a situações transitórias e temporárias”[22];
ii)- Outro “de ordem objetiva demanda que a impossibilidade referida derive de razões de saúde, de deficiência ou do comportamento do beneficiário. As razões de saúde abrangem as patologias de ordem física e psíquica, num alargamento do quadro dos fundamentos das interdições, abarcando situações transitórias como as decorrentes de um acidente ou de uma intervenção cirúrgica. A deficiência corresponde a “qualquer perda ou anomalia da estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatómica, contemplando, quer as alterações orgânicas, quer as funcionais”, integrando três dimensões, física (somática), mental (psíquica) e situacional (handicap) (…) desde que a deficiência limite a desempenho do sujeito em termos volitivos e/ou cognitivos. No que respeita ao comportamento, justificam o decretamento do acompanhamento os casos de comportamento pródigo ou condicionado pelo abuso de bebidas alcoólicas e estupefacientes e outras situações “em que o indivíduo tem uma compulsão para determinado tipo de comportamento que coarta a sua liberdade ou em que, fruto de um dado comportamento, perde a possibilidade de, sem qualquer condicionante de tipo aditivo ou de outro tipo, dominar a sua vontade, vendo-se, por isso, impossibilitado de exercer os seus direitos de forma livre””[23]
O acompanhamento só será decretado se estiverem verificadas duas condições: a necessidade da medida (requisito de ordem positiva) e a não suscetibilidade dessa medida ser suprida por via dos deveres gerais de cooperação e de assistência (requisito de ordem negativa)[24].
 Dada a multiplicidade de circunstâncias, necessário se torna, apurar, com rigor, a situação, de fragilidade, do caso, para que, depois de o mesmo delimitado faticamente, e com os contornos das vertentes pessoal e patrimonial, se possa efetuar a subsunção jurídica e determinar o acompanhamento que se impõe.

Consagrando o Código Civil, que o acompanhamento do maior visa assegurar o seu bem-estar, a sua recuperação, o pleno exercício de todos os seus direitos e o cumprimento dos seus deveres, salvo as exceções legais ou determinadas por sentença (n.º 1, do art. 140º) e que a medida não tem lugar sempre que o seu objetivo se mostre garantido através dos deveres gerais de cooperação e de assistência que no caso caibam (n.º 2, do referido artigo), conferiu-se ao beneficiário a escolha do acompanhante, sujeita, no entanto, a confirmação pelo Tribunal (n.º 1, do artigo 143º), estabelecendo este artigo, com a epígrafe “Acompanhante”:
1- O acompanhante, maior e no pleno exercício dos seus direitos, é escolhido pelo acompanhado ou pelo seu representante legal, sendo designado judicialmente.
2- Na falta de escolha, o acompanhamento é deferido, no respetivo processo, à pessoa cuja designação melhor salvaguarde o interesse imperioso do beneficiário, designadamente:
a) Ao cônjuge não separado, judicialmente ou de facto;
b) Ao unido de facto;
c) A qualquer dos pais;
d) À pessoa designada pelos pais ou pela pessoa que exerça as responsabilidades parentais, em testamento ou em documento autêntico ou autenticado;
e) Aos filhos maiores;
f) A qualquer dos avós;
g) À pessoa indicada pela instituição em que o acompanhado esteja integrado;
h) Ao mandatário a quem o acompanhado tenha conferido poderes de representação;
i) A outra pessoa idónea.
3- Podem ser designados vários acompanhantes com diferentes funções, especificando-se as atribuições de cada um, com observância dos números anteriores.” (negrito nosso),

dispondo o artigo 144.º do Código Civil, quanto a Escusa e exoneração do acompanhante:
“1- O cônjuge, os descendentes ou os ascendentes não podem escusar-se ou ser exonerados.
2- Os descendentes podem ser exonerados, a seu pedido, ao fim de cinco anos, se existirem outros descendentes igualmente idóneos.
3- Os demais acompanhantes podem pedir escusa com os fundamentos previstos no artigo 1934.º ou ser substituídos, a seu pedido, ao fim de cinco anos”.

“Na falta de escolha do acompanhante, cabe ao Tribunal designá-lo segundo o critério do “interesse imperioso do beneficiário”, um padrão que tem de ser interpretado em primeira linha não por referência a um critério puramente objetivo do melhor interesse, mas concedendo prevalência à vontade reconhecível, ainda que não expressa do beneficiário, a razões de proximidade com o acompanhante e às necessidades pessoais daquele”[25].
O nº2, do art. 143º estabelece uma lista não taxativa dos que poderão ser nomeados pelo Tribunal para exercerem a função de acompanhante, embora no conceito indeterminado consagrado na al. i) “pessoa idónea” possam ser integradas todas as figuras que se desejem, não acolhidas nas alíneas anteriores. Impõe-se, apenas, que, concretamente, à pessoa em causa possa ser conferida essa característica, por forma a que a sua designação seja tida como a que melhor salvaguarde o interesse imperioso do beneficiário.
Não havendo escolha, não estando o beneficiário em situação que lhe permita efetuá-la e, ainda, nos casos de desadequada escolha por desconforme aos seus interesses[26], a garantir, pelo Tribunal, cabe ao julgador a decisão da “pessoa cuja designação melhor salvaguarde o interesse imperioso do beneficiário.

Sendo o interesse a garantir no processo especial de maior acompanhado o do beneficiário e devendo ser, sempre que adequado, respeitada a vontade do mesmo temos, também, que esta só tem de ser seguida a ser conforme àquele imperioso interesse, devendo o julgador afastar-se dela na constatação da falta de conformidade.


*

- A concreta situação: da necessidade de nomeação de acompanhante e da idoneidade da acompanhante para satisfação dointeresse imperioso da beneficiária.   
No caso vem pedida a medida de acompanhamento de representação geral da beneficiária, por a mesma padecer de total e absoluta incapacidade, por razões de saúde e idade, para governar a sua pessoa e os seus bens.
Concretizados estão, no requerimento inicial, o pedido e a causa de pedir e verifica-se que os factos alegados resultaram provados, não tendo o apelante impugnado a decisão de facto. 
Encontram-se, no requerimento inicial, alegados os factos que fundamentam a legitimidade e que justificam a proteção da maior através de acompanhamento revelando-se a requerida medida de acompanhamento necessária face à situação clínica, sempre podendo, como vimos, o Tribunal cometer ao acompanhante o regime que entenda adequado, independentemente do que haja sido pedido (cfr. nº2, do art. 145º, do CC).
No caso, bem resulta a alegação e prova da total incapacidade imputada à beneficiária, com handicaps e limitações quer no que respeita ao governo da sua pessoa quer no que concerne à administração dos seus concretos bens (padecendo de demência) e mostram-se provados factos que permitem apurar as concretas medidas idóneas a supri-la.

Na verdade, considerou o Tribunal a quo:

“… os documentos clínicos juntos aos autos e, bem assim, o contacto que tivemos com a beneficiária aquando da sua audição, fornecem prova cabal da sua incapacidade e sustentam a aplicação de uma medida de acompanhamento.

Com efeito, apurou-se que a beneficiária não sabe ler nem escrever, não sabe efectuar cálculos, não conhece o dinheiro e o seu valor em virtude da patologia de que padece.

Este quadro é crónico, progressivo e definitivo, tornando-a dependente de terceiros para os mais elementares actos do quotidiano.

Dispõe o artigo 900.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil que “Reunidos os elementos necessários o juiz designa o acompanhante e define as medidas de acompanhamento, nos termos do artigo 145º do Código Civil e, quando possível, fixa a data a partir da qual as medidas decretadas se tornaram convenientes.”.

… No caso, atento o que se demonstrou quanto à falta de capacidade da beneficiária, para se auto reger e para reger os próprios bens, entendemos que ao acompanhante deve atribuir-se a administração total dos bens, sem dispensa da constituição do conselho de família, nos termos previstos no artigo 145.º, n.ºs 2, alínea c) e 4, todos do Cód. Civil”.

Necessário se mostrando o acompanhamento e a medida de representação geral, temos que, também, quanto à nomeação de acompanhante, bem entendeu o Tribunal a quo ao considerar não reunirem os autos condições de nomeação do apelante para o cargo de acompanhante, antes o devendo ser a sobrinha da beneficiária, a requerente, BB, dado, desde logo, ter aquele revelado não zelar pelos interesses da acompanhada, designadamente ao efetuar “transferência de mais de € 100.000,00 da conta da beneficiária”, fazendo-o “sem avisar os restantes familiares”.

Assim bem foi decidido pelo Tribunal a quo, como sustenta o MP:
“… o recorrente, que não conseguiu justificar a que título ou qual o eventual benefício para a mesma subjacente da transferência para uma conta bancária titulada pelo próprio, esposa e filha de uma quantia de mais de €100.000,00 (cem mil euros) pertencente à acompanhada e que dela pode vir a precisar a qualquer momento para assegurar o seu bem estar no tempo que lhe restar.
Não se compreende, pois, a alegação do recorrente de que “o acompanhamento de maior se torna absolutamente inócuo” quando, em simultâneo, actua mediante um comportamento em que retira da esfera da acompanhada a possibilidade de a mesma gerir a sua vida, uma vez que entende que a mesma de tal não está capaz, sendo que o faz mediante informal, e como tal não controlável, atuação e gestão, e daí a oposição à formal, e como tal controlável, medida de acompanhamento.
Tudo sem prejuízo de que aparentemente, como é perceptível ao longo do recurso e dos autos, a acompanhada já terá disposto se não na totalidade, pelo menos, em parte significativa do seu património, pelo que se estranha esta alusão.
… No caso concreto resulta da decisão em crise que a requerida nasceu em ../../1928, é viúva, mostra-se demenciada e toma medicação para esta doença que tem origem em incapacidade do foro psiquiátrico ou neurológico e que a doença de que padece determina que a requerida não seja capaz de cuidar de si.
As circunstâncias de saúde em que se encontra a acompanhada reclamam a adoção de medidas de acompanhamento que lhe permitam assegurar o seu bem-estar e a recuperação do maior, assegurar o pleno exercício dos seus direitos e o cumprimento dos seus deveres (in Maiores Acompanhados A disciplina da Lei n.º 49/2018 de 14 de agosto de Mafalda Miranda Barbosa, Gestlegal, pag. 51).
Em nosso entender, a solução adoptada por ser abrangente e implicar a fiscalização por parte do Tribunal, que inclusivamente está obrigado a proceder à sua revisão, é a que melhor assegura os interesses da acompanhada.
Já a propugnada, pelo recorrente, manutenção do estado de ”acompanhada pela família no dia a dia” com base num ”acompanhamento de maior”[que] “se torna absolutamente inócuo” mais não é do que uma inaceitável desproteção de quem, como a acompanhada, precisa de auxílio”.

Entendemos, assim, como o considerou o Tribunal a quo que a solução adotada é necessária, equilibrada e ajustada ao caso, sendo a mais transparente e que melhor protege o interesse da beneficiária, que carece de auxílio e proteção, impondo-se, face à incapacidade de reger a sua pessoa e os seus bens, que o seja da forma válida e eficaz referida pelo Ministério Público, como decretado pelo Tribunal de 1ª instância.
Verifica-se que, para além da medida ser necessária e indispensável, não cabe nomear acompanhante o apelante, dadas as circunstâncias do caso, de desvio de dinheiro da conta da beneficiária e de saída de bens do seu património, carecendo a mesma de proteção dos demais familiares, justificando-se a nomeação da apelante, que se vem revelando pessoa idónea para o cargo e interessada na satisfação do imperioso interesse da beneficiária.

Improcedem, por conseguinte, as conclusões da apelação, não ocorrendo a violação de qualquer dos normativos invocados pelo apelante, devendo, por isso, a decisão recorrida ser mantida.

As custas do recurso são da responsabilidade do recorrente dada a total improcedência da sua pretensão recursória (nº1 e 2, do artigo 527º, do Código de Processo Civil).


*

III. DECISÃO

Pelos fundamentos expostos, os Juízes do Tribunal da Relação do Porto acordam em julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirmam, integralmente, a sentença recorrida.


*

Custas pelo apelante, pois que ficou vencido – art. 527º, nº1 e 2, do CPC.

Porto, 10 de julho de 2024

Assinado eletronicamente pelos Juízes Desembargadores

Eugénia Cunha

Ana Paula Amorim

Miguel Baldaia de Morais


________________
[1] Cfr., entre muitos, Ac. do STJ de 1/4/2014, Proc. 360/09: Sumários, Abril /2014, e Ac. da RE de 3/11/2016, Proc. 1070/13, in dgsi.Net.
[2] Ac. STJ. 08/03/2001, Proc. 00A3277, in dgsi.net.
[3] Abílio Neto, Novo Código de Processo Civil Anotado, 2ª ed., janeiro/2014, pág. 734.
[4] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, volume 2º, 3ª Edição Almedina, pág. 735.
[5]Ibidem, pág 735 e seg.
[6] Ibidem, pág 736.
[7] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, O Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2ª Edição, Almedina, pág. 763.
[8] Ac. STJ de 5/4/2016, Proc. 128/13, Sumários Abril/2016, pág 8, Abílio Neto, in Novo Código de Processo Civil Anotado, 4ª ed., Março/2017; pág. 921.
[9] Ac. STJ. 08/03/2001, Proc. 00A3277, in dgsi.pt.
[10] Ibidem, pág 737.
[11]Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, 5º vol., págs. 55 e 143.
[12] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, O Código de Processo Civil Anotado, vol. II, Almedina, pág. 331
[13] Ac. RP de 28/2/2021, proc. 1050/20.6T8PRD.P1, in dgsi.pt
[14] Pedro Callapez, Acompanhamento de maiores, in Processos Especiais, Rui Pinto e Ana Alves Leal (coordenação), vol. I, AAFDL Editora, pág. 105
[15]Não sendo o processo de acompanhamento de maiores, formalmente, um processo de jurisdição voluntária, “em termos substanciais” pode ser qualificado como tal – cfr. Miguel Teixeira de Sousa, O novo Regime Jurídico do Maior Acompanhado, in E-book do Centro de Estudos Judiciários, 2019, p. 46 e v., ainda, Ac. RL de 26 de setembro de 2019, proc. 735/17, citados por Pedro Callapez, Acompanhamento de maiores, in Processos Especiais, Rui Pinto e Ana Alves Leal (coordenação), vol. I, AAFDL Editora, pág. 105
[16]Pedro Callapez, Acompanhamento de maiores, in Processos Especiais, Rui Pinto e Ana Alves Leal (coordenação), vol. I, AAFDL Editora, pág. 105 e seg e António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, O Código de Processo Civil Anotado, vol. II, Almedina, pág. 331
[17] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, O Código de Processo Civil Anotado, vol. II, Almedina, pág. 337
[18] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, O Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2ª edição, Almedina, pág. 532
[19] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, O Código de Processo Civil Anotado, vol. II, Almedina, pág. 329
[20] Ibidem, pág. 330
[21] Pedro Callapez, Acompanhamento de maiores, in Processos Especiais, Rui Pinto e Ana Alves Leal (coordenação), vol. I, AAFDL Editora, pág. 99
[22] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, O Código de Processo Civil Anotado, vol. II, Almedina, pág. 330
[23] Ibidem, pág. 330 e seg.
[24] Pedro Callapez, Acompanhamento de maiores, in Processos Especiais, Rui Pinto e Ana Alves Leal (coord.), vol. I, AAFDL Editora, pág. 108 e v. Ac. RP de 26/9/2019, aí citado
[25] Paula Távora Vítor, em anotação ao art. 143º, do Código Civil Anotado Ana Prata (Coord.), vol. I, 2ª edição, Almedina, pág. 179.
[26] Cfr. Ac. TRP de 22/03/2021, processo 63/19.5T8PVZ.P2 in www.dgsi.pt, citado no Ac. da RP de 9/10/2023, processo nº 8626/22.5T8VNG.P1, em que a ora Relatora foi adjunta.