Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | EUGÉNIA CUNHA | ||
Descritores: | PROCESSO DE ACOMPANHAMENTO DE MAIOR INTERESSE DO BENEFICIÁRIO | ||
Nº do Documento: | RP20240710238/24.5T8VNG.P1 | ||
Data do Acordão: | 07/10/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMAÇÃO | ||
Indicações Eventuais: | 5. ª SECÇÃO | ||
Área Temática: | . | ||
Sumário: | I - O processo de acompanhamento de maior é um processo especial, de natureza formalmente contenciosa e substancialmente de jurisdição voluntária – cfr. arts nº1, do 891º, nº2, do 986º, 987º e 988º, do CPC -, com caráter urgente, que se regula pelas disposições que lhe são próprias (v. art. 891º a 905º, do CPC) e pelas disposições gerais e comuns e, em tudo que não estiver previsto numas e noutras, pelo que estabelecido se encontra para o processo comum (v. nº1, do art. 549º, de tal diploma), o que conduz, desde logo, a que o juiz possa limitar os meios de prova aos que considere, em concreto, necessários à boa decisão da causa. II - O interesse que este processo visa garantir é o do beneficiário das medidas de acompanhamento. E verificada situação de necessidade da medida (requisito de ordem positiva) e a não suscetibilidade dessa medida ser suprida por via dos deveres gerais de cooperação e de assistência (requisito de ordem negativa) deve ser decretado o acompanhamento. III - Em situação de total incapacidade do acompanhado para reger a sua pessoa e os seus bens, devido à avançada idade e a demência, necessário se mostra o acompanhamento, impondo-se a adoção de medidas (mesmo de não pedidas – cfr..nº2, do art. 145º, do Código Civil) adequadas à situação apurada, para suprir as concretas deficiências na, indispensável, satisfação do imperioso interesse do acompanhado. IV - Cabe deferir o acompanhamento, na falta de escolha, nos termos do nº2, do art. 143º, do Código Civil, à pessoa cuja designação melhor salvaguarde o interesse imperioso do beneficiário, não podendo considerar-se como tal, nem pessoa idónea para o cargo, quem, injustificadamente, retira da conta da beneficiária mais de cem mil euros e a deposita em conta sua. | ||
Reclamações: | |||
Decisão Texto Integral: | Processo nº 238/24.5T8VNG.P1 Processo da 5ª secção do Tribunal da Relação do Porto (3ª Secção cível) Tribunal de origem do recurso: Juízo Local Cível de Vila Nova de Gaia - Juiz 5 Relatora: Des. Eugénia Cunha 1º Adjunto: Des. Ana Paula Amorim 2º Adjunto: Des. Miguel Baldaia Morais
Acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto
Sumário (cfr nº 7, do art.º 663º, do CPC): …………………………………………… …………………………………………… …………………………………………… *
Recorrente: AA
BB propôs ação especial de acompanhamento de CC, viúva, residente na Rua ..., ... ..., ..., pedindo se decrete que esta fica sujeita à medida de acompanhamento de representação geral, nos termos do disposto na alínea b) do nº 2 do artigo 145º do CC, alegando, para tanto, a idade da mesma e a sua total e definitiva incapacidade para reger a sua pessoa e os seus bens. Para exercer o cargo de Acompanhante indica a Requerente, sobrinha e afilhada da beneficiária, e AA, irmão da mesma. Foi citado o Ministério Público, em representação da beneficiária, dada a incapacidade desta para receber a citação. Procedeu-se a audição da beneficiária, da requerente e do referido irmão da beneficiária. * Foi proferida sentença com a seguinte parte dispositiva: “Nos termos expostos, julgo a acção procedente por provada, decretando a medida de administração total de bens de CC, nascida a ../../1928, fixando-se o ano de 2023 como a data a partir da qual tal medida se tornou necessária. Mais decido que a requerida não poderá testar ou perfilhar. Para exercer o cargo de acompanhante, nomeio a sua sobrinha, BB. Para integrar o conselho de família nomeio AA, irmão da beneficiária e a sua sobrinha DD. Sem custas, por estar a requerida isenta – cfr. artigo 4.º, n.º 1, al. l), do RCP. Fixo à acção o valor de €: 30.001,00. Notifique, registe e oportunamente comunique à repartição do Registo Civil competente nos termos do artigo 1920.º-B, aplicável ex vi do artigo 147.º, ambos do Código Civil. Publicite no portal. Consigno que esta decisão será objecto de reapreciação/revisão ao fim de cinco anos, sem prejuízo de antes desse prazo ser requerida a aludida revisão. No mais, cumpra nos termos promovidos”. * decisão: “…Cumpre concretizar essa sentença nos termos do artigo 145º, n.º 2, alínea b) do Código Civil uma vez que a mesma ficou omissa no que concerne à medida de representação geral, (para além da medida de administração total de bens), tal como vinha peticionado na petição inicial, artigo 614º, n.º 1 do Código de Processo Civil. Assim considerando tudo o decidido na referida sentença determino que a beneficiária CC fique sujeita também à medida de representação geral que ficará a cargo da acompanhante BB. * A medida de administração total de bens obedece ao disposto no artigo 1967º e 1935º e seguintes do Código Civil pelo que é este o regime legal que a acompanhante deverá seguir no que concerne à gestão dos bens da beneficiária. No caso concreto não se impõe a autorização prévia para a prática de determinados actos – artigo 145º, n.º 2, alínea d) do Código Civil. Isto, sem embargo do incidente de alteração do regime, caso existam circunstâncias factuais que o justifiquem – artigo 149º do Código Civil”. Apresentou AA recurso de apelação, pugnando pela revogação da decisão e sua substituição por outra que considere a ação improcedente, em virtude da medida de acompanhamento decretada não ser necessária, ou, em alternativa, pela sua nomeação como acompanhante com as consequências legais, formulando as seguintes CONCLUSÕES: “I. A decisão recorrida, não deve manter-se pois não consubstancia uma solução que consagra a justa e rigorosa interpretação e aplicação da lei e, muito menos, salvaguarda o interesse imperioso da pessoa do acompanhado. II. Importa salientar, desde logo, que o está em causa nos autos é a salvaguarda dos interesses da acompanhada e não qualquer interesse pessoal. III. A beneficiaria encontra-se acompanhada pela família no dia a dia, pelo que o acompanhamento de maior se torna absolutamente inócuo. IV. A decisão objeto do presente recurso violou o preceituado no nº 2 do artigo 143º do CC. V. A acompanhante não tem capacidade e/ou idoneidade para o desempenho da função para que foi nomeada. VI. O Tribunal desconsiderou completamente o depoimento do requerente, relativamente ao caracter e conduta, completamente desadequada, da acompanhante nomeada BB. VII. Ignorou a audição de testemunhas que poderiam contribuir para uma boa decisão da causa. VIII. E assim sendo, ignorou aquela que seria a vontade da beneficiária, e assim, não ficou salvaguardado o interesse imperioso da pessoa do acompanhado, sendo este o critério a atender para a designação. IX. A Sentença recorrida padece de falta de fundamentação, o que constitui uma nulidade prevista no artº 659º, nº 2 do Código do Processo Civil. X. A Sentença recorrida padece de um excesso de pronúncia, nulidade prevista no artº 615º, nº1, al. d). XI. Pelo exposto, como devido respeito, deverá a sentença ora recorrida ser revogada”. * Apresentou a requerente BB contra-alegações onde formula as seguintes CONCLUSÕES: 1. A sentença não padece do vício de falta de fundamentação porque a falta de fundamentação está limitada ao caso de total ausência de fundamentação, argumento que não colhe, nos termos do art. 607º, n.º 3, do C. P. Civil. 2. Também não existe excesso de pronúncia, pois só se pode afirmar que corre excesso de pronúncia quando se procede ao conhecimento de questões não suscitadas pelas partes ou que sejam de conhecimento oficioso. Não existe violação do disposto na 2ª parte da alínea d) do nº 1 do artigo 615º do Código de Processo Civil (ex vi artigo 666º, nº 1, do mesmo diploma). 3. A Beneficiária não escolheu o seu Beneficiário porque está muito demenciada, mas identificou a Requerente como pessoa de referência. 4. O Recorrente não gere idoneamente o património da Beneficiária porque permitiu que a mesma outorgasse um documento particular autenticado de doação do único imóvel que possuía. 5. Soçobrou-lhe um usufruto vitalício que não goza internada que está num Lar! 6. O Recorrente transferiu cem mil euros para uma conta por si titulada, mas o dinheiro é pertença exclusiva da Beneficiária, facto que poderão vir a ser sindicados em sede própria. 7. Refere ter uma procuração e agora um testamento e não os junta aos autos, pese embora a Recorrida tivesse interesse em anular ambos. 8. A Recorrida intentou a presente demanda para proteger a sua madrinha, logo após saber a sua morada que lhe foi ocultada pelo Recorrente. 9. O Recorrente impediu a Recorrida de visitar a tia, pois é bom de ver que não queria que “as verdades viessem ao de cima”! 10. A sentença deverá ser mantida na íntegra. * O MINISTÉRIO PÚBLICO apresentou contra-alegações a pugnar por que seja negado provimento ao recurso e mantida a sentença recorrida, sustentando não se verificar falta de fundamentação nem excesso de pronúncia, vício este esta sequer concretizado, e ser a solução adotada a mais equilibrada e justa, permitindo aos familiares envolverem-se nas decisões relativas à acompanhada por forma a assegurarem o seu bem-estar, para além de, por via do conselho de família, permitir assegurar a melhor gestão do património da mesma, que dele deve poder dispor para assegurar o bem-estar da acompanhada até ao fim dos seus dias e não para quaisquer outros fins, designadamente os visados pelo apelante.
Após os vistos, cumpre apreciar e decidir o mérito do recurso interposto. * II. FUNDAMENTOS - OBJETO DO RECURSO Apontemos, por ordem lógica, as questões objeto do recurso, tendo presente que o mesmo é balizado pelas conclusões das alegações do recorrente, estando vedado ao tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que se imponha o seu conhecimento oficioso, acrescendo que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido – cfr. arts 635º, nº3 e 4, 637º, nº2 e 639º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil -, ressalvado o estatuído no artigo 665º, de tal diploma legal. Assim, as questões a decidir são as seguintes: 1ª- Da nulidade da sentença por padecer dos vícios de falta de fundamentação e de excesso de pronúncia; 2ª- Da verificação dos requisitos do acompanhamento e se deve ser nomeado acompanhante o Recorrente, irmão da beneficiária (viúva, sem filhos, de 96 anos de idade e a padecer de demência) ou se bem foi o cargo deferido à requerente do processo especial de acompanhamento de maior, sobrinha e afilhada da mesma. * II.A – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO 1. FACTOS PROVADOS Com base na certidão de assento de nascimento junta aos autos, na audição da beneficiária, na documentação clínica e nas declarações do irmão da beneficiária, AA, foram considerados provados, com relevância para a decisão da causa, os seguintes factos: 1. A beneficiária nasceu a ../../1928 e é viúva. 2. A requerida padece de demência, que tem origem de foro psiquiátrico ou neurológico, tomando medicação para ela. 3. A doença de que a requerida padece determina que não seja capaz de cuidar de si. 4. A requerida tem critérios de Síndrome Demencial. 5. Não tem a noção do tempo. 6. Não se consegue situar cronologicamente. 7. Não reconhece o valor do dinheiro, nem conhece o valor económico dos bens. 8. Não consegue orientar-se sozinha na rua. 9. Não tem poder de locomoção autónoma. 10. Não consegue cuidar da sua higiene pessoal, do seu vestuário e da sua alimentação, carecendo sempre da ajuda de uma terceira pessoa. 11. Tem pouco insight para a doença. 12. É expectável agravamento progressivo da situação clínica. 13. A requerida mostra-se, devido à doença de que sofre, incapaz de zelar e cuidar da sua pessoa e bens. 14. A Requerida tem património imobiliário e mobiliário. 15. A requerida não tem filhos. 16. A requerente é sobrinha (e afilhada) da Beneficiária (os avós da requerente são os pais da beneficiária). 17. A gestão do património da beneficiária tem sido feita por AA. 18. A beneficiária era titular de uma conta bancária no Banco 1... e, por motivos não concretamente apurados, o referido AA transferiu mais de €100.000,00 provenientes de uma aplicação a prazo da conta da beneficiária para uma conta titulada por si e por outros familiares, tendo na mencionada conta da beneficiária ficado quantia não apurada, mas que tem servido para proceder a pagamentos de despesas da beneficiária. * II.B - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO 1ª- Da nulidade da sentença. Arguiu o Apelante, no recurso que apresentou, a nulidade da sentença por a mesma padecer dos vícios de falta de fundamentação e de excesso de pronúncia, previstos nas als b) e d), do nº1, do art.º 615.º, do Código de Processo Civil, diploma a que pertencem todos os preceitos citados sem outra referência, defendendo os apelados não padecer a mesma dos apontados vícios, sequer concretizados se mostrando. Analisemos, em primeiro lugar, das invocadas nulidades, pois que as mesmas contendem com a validade da própria decisão. Começa por se referir que as “Causas de nulidade da sentença”, vêm taxativamente consagradas no referido preceito que estabelece: “1 - É nula a sentença quando: a) …; b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão; c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível; d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento; e) …”. As nulidades da sentença são, assim, tipificados, vícios formais, intrínsecos de tal peça processual, reportando-se à estrutura, à inteligibilidade e aos limites, sendo vícios do silogismo judiciário inerentes à sua formação e à harmonia formal entre as premissas e a conclusão, que não podem ser confundidas com erros de julgamento (error in judicando) de facto ou de direito[1]. Trata-se de um error in procedendo, nada tendo a ver com os erros de julgamento (error in judicando), seja em matéria de facto seja em matéria de direito. E, como vícios intrínsecos daquela peça processual, as nulidades da sentença são apreciadas em função do texto da sentença e do discurso lógico que nela é desenvolvido, não podendo ser confundidas com erros de julgamento de facto nem com erros de aplicação das normas jurídicas aos factos, erros de julgamento, estes, a sindicar noutro âmbito. Nos erros de julgamento assiste-se a uma deficiente análise crítica das provas produzidas e/ou a uma deficiente enunciação e/ou interpretação dos institutos jurídicos aplicados ao caso concreto. Esses erros, por não respeitarem já a defeitos que afetam a própria estrutura da sentença, antes o mérito da relação material controvertida, nela apreciada, não a inquinam de invalidade, mas de error in judicando atacáveis em via de recurso[2]. Os vícios da sentença são, portanto, aqueles que “afetam formalmente a sentença e provocam a dúvida sobre a sua autenticidade, como é o caso da falta de assinatura do juiz, ou a ininteligibilidade do discurso decisório por ausência total de explicação da razão por que se decide de determinada maneira (falta de fundamentação), quer porque essa explicação conduzir logicamente a resultado oposto do adotado (contradição entre os fundamentos e a decisão), ou uso ilegítimo do poder jurisdicional em virtude de pretender resolver questões de que não podia conhecer (excesso de pronúncia) ou não tratar de questões que deveria conhecer (omissão de pronúncia)”[3] ou condenar ultra petitum, tendo o julgador de limitar a condenação ao que, concretamente, vem peticionado, em obediência ao princípio do dispositivo. Os referidos vícios respeitam à “estrutura ou aos limites da sentença. Respeitam à estrutura da sentença os fundamentos das alíneas b) (falta de fundamentação), c) (oposição entre os fundamentos e a decisão). Respeitam aos seus limites os das alíneas d) (omissão ou excesso de pronúncia) e e) (pronúncia ultra petitum)”[4]. Analisemos os invocados vícios, que se reportam quer à estrutura quer aos limites, exarando-se, desde já, que, fundamentada é a decisão, quer de facto quer de direito e conheceu o Tribunal das questões que devia apreciar. Improcedem, por conseguinte, as referidas conclusões da apelação, não ocorrendo a violação dos normativos invocados pelo apelante, improcedendo as arguidas nulidades da sentença, que se não verificam. * Encontramo-nos perante um processo especial - “Do acompanhamento de maiores” -, que se regula pelas disposições que lhe são próprias (artigos 891º a 905º, do Código de Processo Civil, diploma a que pertencem todos os preceitos citados sem outra referência) e pelas disposições gerais e comuns e, em tudo que não estiver previsto numas e noutras, pelo que se encontra estabelecido para o processo comum, o que pode envolver o uso dos poderes de gestão previstos no nº2, 3 e 4 art. 590º, e a prolação de despacho saneador – cfr. nº1, do art. 549º. O referido artigo 891º, no seu nº1, determina serem aplicáveis ao processo de acompanhamento de maior, “com as necessárias adaptações, o disposto nos processos de jurisdição voluntária, no que respeita aos poderes do juiz, ao critério de julgamento e à alteração das decisões com fundamento em circunstâncias supervenientes”, o que se justifica e impõe pela “multiplicidade de circunstâncias observáveis, incompatível com uma rigidez processual, compreendendo-se, assim, a alteração do paradigma revelada pela maior aproximação ao regime dos processos de jurisdição voluntária (arts 986º a 988º)”[12]. Em matéria de critérios de julgamento os processos de jurisdição voluntária “não estão sujeitos a regras de legalidade estrita mas sim a ditames “ex-aequo et bono”. Mas para além disso, os mesmos processos têm também outras características singulares de que se destaca a predominância do princípio do inquisitório na investigação dos factos e na obtenção das provas (art.º 986º, n.º 1 do CPC) e a alterabilidade das decisões com base em alteração superveniente das circunstâncias que as determinaram (art.º 988º, n.º 1)”[13]. E, pese embora se trate de um processo de jurisdição contenciosa[14], bem se ressalta no referido Acórdão deste tribunal a sua natureza hibrida, não sendo um típico processo de jurisdição voluntária[15], mas que contempla: i) um reforço dos poderes inquisitórios do juiz – v. nº2, do artigo 986º, no que respeita aos poderes oficiosos do juiz na investigação dos factos e recolha de meios de prova (afloramento, reforçado até, o princípio do inquisitório genericamente consagrado no art. 411º); ii) um fortalecimento dos poderes de direção do juiz - v. artigo 987º, no que respeita a dever o juiz decretar as medidas que considere mais adequadas ao caso concreto (alicerçando-se a decisão em razões de oportunidade ou de conveniência), com o respeito, possível, da vontade do beneficiário, e podendo limitar os meios de prova aos que considere, em concreto, necessários à boa decisão da causa; iii) a suscetibilidade de revisão das decisões – v. art. 988º, no que concerne à possibilidade de alteração das medidas quando circunstâncias supervenientes o justifiquem e art. 155º, do CC (revisão supletiva e quinquenal das medidas de acompanhamento[16]. E quanto à instrução do processo, é obrigatória a audição de beneficiário pelo juiz (art. 139º, do CC e nº2, do art. 897º e, ainda, art. 898º), o que lhe confere imediação e, por norma, oralidade, e, em regra, é necessária prova pericial, para definir a concreta incapacidade e o seu caráter transitório ou permanente (nº1, do art. 897º e art. 899º) e dispõe o juiz de amplos poderes instrutórios (podendo investigar livremente os factos e reunir os elementos necessários), submetidos ao dever de: i)- indagar a natureza da incapacidade imputada ao beneficiário; ii) - apurar as concretas medidas idóneas a supri-la, com preservação do grau de autonomia possível do mesmo[17](cfr. nº1, do art. 897º e nº2, do art. 986º e 1ª parte, do nº1, do art. 900º), sendo que, em relação às provas que tenham sido propostas, tem de ser analisada e avaliada a sua pertinência ou necessidade, podendo o juiz não admitir provas, caso as considere desnecessárias (cfr nº2, do art. 886º) e havendo limitação legal quanto ao número de testemunhas – 5, considerando-se não escritos os nomes das que no rol ultrapasse o número legal (nº3, do art. 511º, supletivamente aplicável) - (cfr. nº1, do art. 294º, aplicável ex vi nº1, do art. 986º), sendo desnecessárias as provas que, atento o estado da causa, sejam insuscetíveis de acrescentar um elemento probatório que se repercuta no desfecho da lide, ou por dizerem respeito a factos que já se mostram devidamente comprovados, ou por respeitarem a factos que não constam do elenco a apurar na causa, ou, ainda, por já constar do processo prova de igual ou superior relevo[18]. * - Do regime jurídico dos maiores acompanhados: requisitos do acompanhamento e critério de nomeação do acompanhante.
Como tivemos oportunidade de analisar noutros acórdãos, o regime jurídico dos maiores acompanhados foi consagrado com grande maleabilidade, sendo suscetível de integrar vastas situações carecidas de tutela – v. art. 138º, do CC “maior impossibilitado, por razões de saúde, deficiência, ou pelo seu comportamento, de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres”- e possibilitando a adoção das medidas que, dentro de um vasto leque, concretamente se vierem a revelar mais adequadas ao caso. Sendo o interesse a garantir no processo especial de maior acompanhado o do beneficiário e devendo ser, sempre que adequado, respeitada a vontade do mesmo temos, também, que esta só tem de ser seguida a ser conforme àquele imperioso interesse, devendo o julgador afastar-se dela na constatação da falta de conformidade. * - A concreta situação: da necessidade de nomeação de acompanhante e da idoneidade da acompanhante para satisfação do “interesse imperioso da beneficiária. No caso vem pedida a medida de acompanhamento de representação geral da beneficiária, por a mesma padecer de total e absoluta incapacidade, por razões de saúde e idade, para governar a sua pessoa e os seus bens. Concretizados estão, no requerimento inicial, o pedido e a causa de pedir e verifica-se que os factos alegados resultaram provados, não tendo o apelante impugnado a decisão de facto. Encontram-se, no requerimento inicial, alegados os factos que fundamentam a legitimidade e que justificam a proteção da maior através de acompanhamento revelando-se a requerida medida de acompanhamento necessária face à situação clínica, sempre podendo, como vimos, o Tribunal cometer ao acompanhante o regime que entenda adequado, independentemente do que haja sido pedido (cfr. nº2, do art. 145º, do CC). No caso, bem resulta a alegação e prova da total incapacidade imputada à beneficiária, com handicaps e limitações quer no que respeita ao governo da sua pessoa quer no que concerne à administração dos seus concretos bens (padecendo de demência) e mostram-se provados factos que permitem apurar as concretas medidas idóneas a supri-la. Na verdade, considerou o Tribunal a quo: “… os documentos clínicos juntos aos autos e, bem assim, o contacto que tivemos com a beneficiária aquando da sua audição, fornecem prova cabal da sua incapacidade e sustentam a aplicação de uma medida de acompanhamento. Com efeito, apurou-se que a beneficiária não sabe ler nem escrever, não sabe efectuar cálculos, não conhece o dinheiro e o seu valor em virtude da patologia de que padece. Este quadro é crónico, progressivo e definitivo, tornando-a dependente de terceiros para os mais elementares actos do quotidiano. Dispõe o artigo 900.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil que “Reunidos os elementos necessários o juiz designa o acompanhante e define as medidas de acompanhamento, nos termos do artigo 145º do Código Civil e, quando possível, fixa a data a partir da qual as medidas decretadas se tornaram convenientes.”. … No caso, atento o que se demonstrou quanto à falta de capacidade da beneficiária, para se auto reger e para reger os próprios bens, entendemos que ao acompanhante deve atribuir-se a administração total dos bens, sem dispensa da constituição do conselho de família, nos termos previstos no artigo 145.º, n.ºs 2, alínea c) e 4, todos do Cód. Civil”. Necessário se mostrando o acompanhamento e a medida de representação geral, temos que, também, quanto à nomeação de acompanhante, bem entendeu o Tribunal a quo ao considerar não reunirem os autos condições de nomeação do apelante para o cargo de acompanhante, antes o devendo ser a sobrinha da beneficiária, a requerente, BB, dado, desde logo, ter aquele revelado não zelar pelos interesses da acompanhada, designadamente ao efetuar “transferência de mais de € 100.000,00 da conta da beneficiária”, fazendo-o “sem avisar os restantes familiares”. Assim bem foi decidido pelo Tribunal a quo, como sustenta o MP: Improcedem, por conseguinte, as conclusões da apelação, não ocorrendo a violação de qualquer dos normativos invocados pelo apelante, devendo, por isso, a decisão recorrida ser mantida. As custas do recurso são da responsabilidade do recorrente dada a total improcedência da sua pretensão recursória (nº1 e 2, do artigo 527º, do Código de Processo Civil). * III. DECISÃO Pelos fundamentos expostos, os Juízes do Tribunal da Relação do Porto acordam em julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirmam, integralmente, a sentença recorrida. * Custas pelo apelante, pois que ficou vencido – art. 527º, nº1 e 2, do CPC.
Porto, 10 de julho de 2024 Assinado eletronicamente pelos Juízes Desembargadores Eugénia Cunha Ana Paula Amorim Miguel Baldaia de Morais ________________ [1] Cfr., entre muitos, Ac. do STJ de 1/4/2014, Proc. 360/09: Sumários, Abril /2014, e Ac. da RE de 3/11/2016, Proc. 1070/13, in dgsi.Net. [2] Ac. STJ. 08/03/2001, Proc. 00A3277, in dgsi.net. [3] Abílio Neto, Novo Código de Processo Civil Anotado, 2ª ed., janeiro/2014, pág. 734. [4] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, volume 2º, 3ª Edição Almedina, pág. 735. [5]Ibidem, pág 735 e seg. [6] Ibidem, pág 736. [7] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, O Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2ª Edição, Almedina, pág. 763. [8] Ac. STJ de 5/4/2016, Proc. 128/13, Sumários Abril/2016, pág 8, Abílio Neto, in Novo Código de Processo Civil Anotado, 4ª ed., Março/2017; pág. 921. [9] Ac. STJ. 08/03/2001, Proc. 00A3277, in dgsi.pt. [10] Ibidem, pág 737. [11]Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, 5º vol., págs. 55 e 143. [12] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, O Código de Processo Civil Anotado, vol. II, Almedina, pág. 331 [13] Ac. RP de 28/2/2021, proc. 1050/20.6T8PRD.P1, in dgsi.pt [14] Pedro Callapez, Acompanhamento de maiores, in Processos Especiais, Rui Pinto e Ana Alves Leal (coordenação), vol. I, AAFDL Editora, pág. 105 [15]Não sendo o processo de acompanhamento de maiores, formalmente, um processo de jurisdição voluntária, “em termos substanciais” pode ser qualificado como tal – cfr. Miguel Teixeira de Sousa, O novo Regime Jurídico do Maior Acompanhado, in E-book do Centro de Estudos Judiciários, 2019, p. 46 e v., ainda, Ac. RL de 26 de setembro de 2019, proc. 735/17, citados por Pedro Callapez, Acompanhamento de maiores, in Processos Especiais, Rui Pinto e Ana Alves Leal (coordenação), vol. I, AAFDL Editora, pág. 105 [16]Pedro Callapez, Acompanhamento de maiores, in Processos Especiais, Rui Pinto e Ana Alves Leal (coordenação), vol. I, AAFDL Editora, pág. 105 e seg e António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, O Código de Processo Civil Anotado, vol. II, Almedina, pág. 331 [17] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, O Código de Processo Civil Anotado, vol. II, Almedina, pág. 337 [18] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, O Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2ª edição, Almedina, pág. 532 [19] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, O Código de Processo Civil Anotado, vol. II, Almedina, pág. 329 [20] Ibidem, pág. 330 [21] Pedro Callapez, Acompanhamento de maiores, in Processos Especiais, Rui Pinto e Ana Alves Leal (coordenação), vol. I, AAFDL Editora, pág. 99 [22] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, O Código de Processo Civil Anotado, vol. II, Almedina, pág. 330 [23] Ibidem, pág. 330 e seg. [24] Pedro Callapez, Acompanhamento de maiores, in Processos Especiais, Rui Pinto e Ana Alves Leal (coord.), vol. I, AAFDL Editora, pág. 108 e v. Ac. RP de 26/9/2019, aí citado [25] Paula Távora Vítor, em anotação ao art. 143º, do Código Civil Anotado Ana Prata (Coord.), vol. I, 2ª edição, Almedina, pág. 179. [26] Cfr. Ac. TRP de 22/03/2021, processo 63/19.5T8PVZ.P2 in www.dgsi.pt, citado no Ac. da RP de 9/10/2023, processo nº 8626/22.5T8VNG.P1, em que a ora Relatora foi adjunta. |