Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3026/21.7T9MTS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PAULA GUERREIRO
Descritores: CRIME DE ABUSO DE CONFIANÇA CONTRA A SEGURANÇA SOCIAL
REPRESENTANTES DA PESSOA COLETIVA
PERDA DE VANTAGENS
TERCEIRO BENEFICIÁRIO
Nº do Documento: RP202406193026/21.7T9MTS.P1
Data do Acordão: 06/19/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL/CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CRIMINAL
Área Temática: .
Sumário: I - Os representantes/gestores de pessoas coletivas são penalmente responsáveis nos termos do art. 6º do RGIT.
II - A perda de vantagens do crime é medida sancionatória análoga às medidas de segurança e visa o restabelecimento da ordem económica.
III - Para ser declarada a perda de vantagens, demonstrada que esteja a responsabilidade criminal, não obsta que o beneficiário tenha sido terceiro como resulta do art. 110 nº1 al. b) do CP.

(Sumário da responsabilidade da Relatora)
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 3026/21.7T9MTS.P1





1.Relatório


Nos autos de Processo Comum com julgamento perante Tribunal Singular que com o nº 3026/21.7T9MTS do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Local Criminal de Matosinhos, Juiz 1, foi em 24/10/2023, depositada sentença com o seguinte dispositivo:
«1. Condenar o arguido AA pela prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, previsto e punido pelo artigo 107.º, n.º 1 do RGIT, na pena de pena de 160 (cento e sessenta) dias de multa, à razão diária de €6 (seis euros), no montante global de €960 (novecentos e sessenta euros).
2. Deferir o pedido formulado pelo Ministério Público e, em consequência, decretar a obrigação de entrega ao Estado pelo arguido do valor de €19.322,26 (dezanove mil, trezentos e vinte e dois euros e vinte e seis cêntimos), correspondente à perda da vantagem patrimonial obtida mediante a prática do crime pelo qual vai condenado.
3. Condenar o arguido nas custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 1,5 UC, já reduzida a metade por força da confissão, e nos encargos do processo (cf. artigos 344.º, nº2, al. a) e b), 513.º, nº1 e 514.º, n.º1, do Código de Processo Penal).»
Inconformado com a decisão veio o arguido interpor o presente recurso.
É o seguinte o teor das conclusões deste recurso:
«1 – O presente recurso tem unicamente por objeto a decisão do Tribunal que condenou o arguido a pagar ao Estado a quantia de 19 322,26 €, correspondente à perda da vantagem patrimonial obtida mediante a prática do crime de abuso de confiança à Segurança Social.
2 – O arguido, AA, foi condenado pela prática, em autoria material, de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, p. e p. pelo artigo 107.º, n.º 1, do RGIT, na pena de 160 dias de multa, à taxa diária de 6 €, o que perfaz o montante global de 960 €.
O Tribunal decidiu ainda “[d]eferir o pedido formulado pelo Ministério Público e, em consequência, decretar a obrigação de entrega ao Estado pelo arguido do valor de €19.322,26 (dezanove mil, trezentos e vinte e dois euros e vinte e seis cêntimos), correspondente à perda da vantagem patrimonial obtida mediante a prática do crime pelo qual vai condenado.”
3 – Dá-se aqui por reproduzida a facticidade, relevante, que o tribunal a quo deu como assente e que se mostra descrita na motivação do recurso.
4 – Acolhe-se na totalidade, por se mostrar acertada, a exposição feita na Sentença relativamente ao quadro teórico-jurídico do crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, à subsunção jurídica operada e à pena aplicada.
5 – No segmento da perda de vantagem patrimonial, que foi decretada, estriba-se uma superlativa assimetria do arguido no que afeta à Sentença proferida, porquanto, nesse recorte, na perspetiva do arguido, se conforma nada judiciosa e sobremodo desarrazoado – na motivação, foi transcrita a fundamentação do Tribunal a esse propósito.
6 – A decisão do Tribunal devia ter sido bem diferente.
7 – O artigo 110.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, previne a matéria controvertida e constitui, por isso, o punctum saliens do presente recurso.
8 – Mostra-se comprovado, além do mais, o seguinte:
a) - o arguido era sócio-gerente da A... Lda.;
b) - agiu sempre em nome, no interesse e em representação da dita sociedade;
c) - na contextura do indigitado procedimento, o arguido atuou nos subsecutivos termos:
i) não procedeu à entrega, ao Estado, das cotizações que deduziu e reteve das remunerações pagas aos trabalhadores e membros dos órgãos estatutários da dita sociedade; e
ii) integrou no património da sociedade o montante global de 19 322,26 €, respeitante às reportadas contribuições dos trabalhadores e dos membros dos órgãos estatutários.
e) - Agiu, em nome e no interesse da referida sociedade, com o propósito concretizado de não entregar aos cofres do Estado Português os montantes referentes às cotizações devidas à Segurança Social e, dessa forma, integrá-los no património da A... Lda., fazendo uso deles no giro comercial desta.
9 – A infração é cometida em nome da sociedade quando se intersere na esfera da sua atividade ou em conexão com esta; e é praticada no interesse da sociedade quando se inscreve no domínio da sua organização, funcionamento ou realização dos seus fins.
10 – Do mencionado relato factual, extrata-se, linear e inconcussamente, que a vantagem patrimonial, emergente do facto ilícito cometido (o crime de abuso de confiança contra a Segurança Social), se consolidou, única e exclusivamente, no hemisfério/universo da pessoa coletiva – a A... Lda. Em verdade, diante da factualidade assentada, foi esta que beneficiou, na totalidade, dos proventos resultantes da não entrega, ao Estado/Segurança Social, dos montantes atinentes às cotizações devidas.
11 – Nos casos em que o arguido age em nome, no interesse e em representação de uma sociedade, como ocorre na situação em pauta, é esta que colhe ou arrecada a vantagem advinda do não pagamento das contribuições. Ou seja: é a sociedade que se enriquece – e não o seu representante.
12 – Posto isso, tanto quanto é certo que a vantagem não foi aqui adquirida pelo agente, mas por outrem (por um terceiro: a sociedade), não pode ser decretada a obrigação de o arguido entregar ao Estado a quantia de 19 322,26 €.
13 – É, pois, essa a mais adequada exegese do artigo 110.º, n.º 1, alínea b), quando positiva que são declaradas perdidas a favor do Estado as vantagens de facto ilícito típico, considerando-se como tal todas as coisas, direitos ou vantagens que constituam vantagem económica, direta ou indiretamente resultante desse facto, para o agente ou para outrem.
14 – Isto é: se a vantagem patrimonial se refletir, ou se repercutir também, na esfera do agente, deve ser declarada contra ele a perda da vantagem patrimonial; se, reversamente, a vantagem patrimonial tiver sido adquirida somente por terceiro, é contra este que deve ser declarada a perda, visto que foi ele o único beneficiário.
15 – Não se verifica, assim, por inexistência de vantagem ou benefício a seu favor, a pressuposição conformadora da declaração de perda de vantagens do crime relativamente ao arguido
16 – De resto, é esse o alinhamento, tendencialmente uniforme e convergente, da doutrina e da jurisprudência. Nesse apartado, foram citados excertos de autores e de jurisprudência que caucionam inteiramente a reportada inteleção do arguido: na doutrina, mencionaram-se Paulo Pinto de Albuquerque e M. Miguez Garcia e J. M. Castela Rio; e na jurisprudência, referenciaram-se os sumários e algum desenvolvimento acrescido dos subsequentes Acórdãos, todos da Relação do Porto: de 30/04/2019, de 10/11/2021 e de 18/01/2023, relatados, na devida ordem, pelos Juízes -Desembargadores Élia São Pedro, João Pedro Maldonado e William Themudo Gilman.
17 – Não se verificam os pressupostos para a declaração da perda de vantagem patrimonial relativamente ao arguido – está, pois, abduzida a sobredita responsabilidade, irrogada ao arguido, de sorte que este deve, nessa parte, ser absolvido.
18 – O Tribunal a quo, ao decidir nos termos em que o fez, violou o estabelecido no artigo 110.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal.»
Conclui pedindo que na procedência do recurso seja o arguido absolvido da obrigação de entregar ao Estado a quantia de 19.322,26 €.
O recurso foi admitido em 4/12/2023.
Em primeira instância o MP respondeu ao recurso alegando em síntese que a perda de vantagens é obrigatória desde que se verifiquem os seus pressupostos legais.
A perda de vantagens inclui todo e qualquer benefício patrimonial que resulte do crime, seja adquirido diretamente através da prática do facto ilícito-típico ou mediante transação ou troca com o objeto diretamente adquirido.
Considerando o caso do abuso de confiança em relação à segurança social, pelo prejuízo causado ao Estado, consistente nas quantias devidas à Segurança Social pelo gerente que fez das quantias suas e usou como decidiu em sua escolha.
Não assume qualquer relevância expor e detalhar o circuito do dinheiro para concluirmos a sua utilização/apropriação final, sendo apenas um gerente e quem praticou o facto ilícito.
Conclui no sentido de que se verificam os pressupostos para a declaração da perda de vantagem patrimonial relativamente ao arguido.
O Tribunal a quo, ao decidir nos termos em que o fez, não violou o estabelecido no artigo 110.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal.
Pugna pela improcedência do recurso e manutenção do decidido.
Nesta Relação o Sr. Procurador-geral-adjunto emitiu parecer também no sentido da improcedência do presente recurso e manutenção do segmento impugnado da sentença recorrida.
Cumprido o disposto no art. 417 nº 2 do CPP veio o recorrente responder ao parecer expressando a sua total discordância do parecer emitido por considerar que: «dos factos comprovados “extrata-se, linear e inconcussamente, que a vantagem patrimonial, emergente do facto ilícito cometido (o crime de abuso de confiança contra a Segurança Social), se consolidou, única e exclusivamente, no hemisfério/universo da pessoa coletiva – a A... Lda. Em verdade, diante da factualidade assentada, foi esta que beneficiou, na totalidade, dos proventos resultantes da não entrega, ao Estado/Segurança Social, dos montantes atinentes às cotizações devidas.”»
Pelo exposto o recorrente considera que o desígnio e a assertiva do Ministério Público (ao secundar a sentença) esbarram, em jeito de colisão totalmente frontal, com o texto e a literalidade da facticidade demonstrada e que «Por tal motivo, o Digno Procurador-Geral Adjunto procura sobrepujar ou extrapassar esse obstáculo intransponível com apelo ao que se poderia designar de subtexto, sc., à dedução e interpretação meramente subjetiva a partir de determinados referentes do texto fáctico apurado – preterindo, assim, a focalização efetivamente objetiva dos factos adscritos, registados e provados.»
Conclui reafirmando a pretensão recursiva.
2. Fundamentação
A- Circunstâncias com interesse para a decisão a proferir
Pelo respetivo interesse passamos a transcrever a decisão recorrida, quanto à fundamentação de facto e de direito:
«III. Fundamentação
A) De facto
Factos Provados
Resultaram provados os seguintes factos:
1. A sociedade “A... Lda.” foi uma sociedade por quotas, teve sede na Rua ..., Matosinhos e foi titular do NIPC ...21.
2. A referida sociedade foi constituída em 28.09.2009 e iniciou a sua atividade em 01.10.2009.
3. A sociedade “A... Lda.” tinha por objeto social atividades de consultadoria e programação informática, gestão e exploração de equipamentos informáticos e outras atividades relacionadas com as tecnologias de informação, comércio a retalho de computadores, unidades periféricas e programas informáticos e outros equipamentos, outras atividades de consultadoria para os negócios e gestão.
4. A gerência da referida sociedade esteve, desde 23.04.2010 entregue ao arguido AA, o qual enquanto sócio-gerente, da referida sociedade, na qualidade de seu legal representante atuou sempre em nome e no interesse da mesma e exerceu de facto todas as funções de gestão e administração da “A... Lda.” até à data do cancelamento da sua matrícula ocorrida em 21.11.2022.
5. Nessa sequência, era o arguido quem dava as ordens, decidia o giro económico e de afetação das receitas às despesas, tomava as decisões, vinculava a empresa, assinava contratos, contratava pessoal e procedia ao pagamento dos salários e recebia os pagamentos dos clientes.
6. No âmbito da sua atividade, a sociedade arguida empregava diversos trabalhadores, que prestavam serviço sob as suas ordens e direção, por intermédio do arguido, no estabelecimento localizado na sua sede, e a quem eram pagas mensalmente as correspondentes remunerações, depois de descontada e retida a percentagem relativa às contribuições de tais trabalhadores para a Segurança Social.
7. O arguido, em nome, no interesse e em representação da referida sociedade pagava, também, aos respetivos membros dos órgãos estatutários as devidas remunerações, descontando e retendo sobre as mesmas a percentagem relativa às contribuições devidas à Segurança Social.
8. Assim, no período compreendido entre março de 2016 a janeiro de 2020 o arguido, em nome, no interesse e em representação da referida sociedade deduziu e reteve das remunerações pagas pela sociedade, à taxa de 11%, a parte das contribuições devidas pelos trabalhadores e membros dos órgãos estatutários.
9. O arguido, em nome, no interesse e em representação da referida sociedade não procedeu à entrega ao Estado, das cotizações que previamente deduziu e reteve dos salários dos seus trabalhadores, nos montantes, taxas e períodos que, de seguida, se discriminam:




10. Nestes períodos, apesar das deduções e retenções efetuadas, arguido, em nome, no interesse e em representação da referida sociedade não remeteu, nem fez remeter tais montantes, mensalmente descontados, à Segurança Social, entre o 10.º e o 20.º dia, do mês seguinte a que diziam respeito as cotizações, nem nos 90 dias posteriores ao termo desse prazo.
11. O arguido, em nome, no interesse e em representação da referida sociedade integrou, assim, no património da mesma, o montante global de €19.322,26 (dezanove mil trezentos e vinte e dois euros e vinte e seis cêntimos), respeitante às contribuições dos trabalhadores e dos membros dos órgãos estatutários da dita sociedade relativas aos meses supra indicados.
12. Em 14.10.2021, foi o arguido, em representação da referida sociedade pessoalmente notificado para proceder ao pagamento das quantias em dívidas, acrescida de juros e valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias, com a advertência de que o referido pagamento determinaria a não punibilidade da sua conduta e a extinção do procedimento criminal.
13. Não obstante, o arguido não procedeu ao pagamento da quantia em dívida, naquele prazo, estando o Estado lesado na mencionada quantia.
14. Ao atuar da forma descrita, o arguido agiu de forma livre e consciente, em nome e no interesse da referida sociedade, com o propósito concretizado de não entregar aos cofres do Estado Português os montantes referentes às cotizações à Segurança Social acima discriminados, que foram deduzidos às remunerações pagas aos seus trabalhadores e dessa forma, integrá-los no património da referida sociedade fazendo uso deles no giro comercial desta, bem sabendo que estas quantias não lhe pertenciam, não obstante agiu conforme o descrito.
15. O arguido, na qualidade de legal representante da sociedade arguida, bem sabia que estava obrigado a entregar aos cofres do Estado Português os montantes referentes às cotizações à Segurança Social acima discriminados a quem sabia pertencerem e eram devidos.
16. O arguido atuou de forma livre, voluntária e consciente em representação legal da sociedade “A... Lda.” enquanto sócio e gerente, com o propósito concretizado de obter benefícios patrimoniais que não lhe eram devidos, pois pertenciam ao Estado Português, decorrentes da não entrega dos montantes referentes às cotizações à Segurança Social deduzidas dos salários pagos que reteve e ciente de que essa sua conduta era suscetível de diminuir as receitas tributárias, não obstante agiu conforme o descrito, o que quis e conseguiu.
17. Agiu o arguido de forma livre, voluntária e consciente, sempre na qualidade de gerente de facto e direito da sociedade “A... Lda.”, em nome e no interesse desta, sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal.
18. O arguido não tem antecedentes criminais.
19. O arguido é programador e informático, auferindo mensalmente o vencimento de €800, reside com um filho em casa deste. Concluiu o bacharelato em matemática.
Factos não provados
Com relevo para a decisão da causa inexistem factos não provados.
Indicação, valoração e análise crítica da prova
A convicção do Tribunal relativamente aos factos considerados provados fundou-se na apreciação crítica da prova produzida de harmonia com o princípio da livre apreciação da prova consagrado no artigo 127.º do Código de Processo Penal, o qual impõe uma valoração de acordo com critérios lógicos e objetivos que determinem uma convicção racional, objetivável e motivável.
O arguido desejou prestar declarações na audiência de julgamento, confessando na íntegra todos os factos pelos quais se encontra acusado.
Mais relatou o seu percurso de vida e as suas condições sócio-económicas, as quais foram valoradas positivamente pelo tribunal, tanto mais que inexistem nos autos elementos que as infirmem.
No que respeita à ausência de antecedentes criminais do arguido tal resultou da análise do certificado do registo criminal junto aos autos.»
B – Fundamentação de direito
É pacífico o entendimento de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extraiu das respetivas motivações, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.
No caso em análise a única questão suscitada pelo recorrente prende-se com o segmento da decisão que o condena a pagar ao Estado a quantia de 19 322,26 € correspondente à perda da vantagem patrimonial obtida pela prática do crime de abuso de confiança à Segurança Social.
Vejamos a fundamentação da decisão recorrida quanto a esta questão:
«§ 3. O Ministério Público veio requerer a perda da vantagem patrimonial, no valor de €19.322,26, quantia que alega ser devida à Segurança Social e de que esta ficou desapossada pelo crime cometido pelo arguido de abuso de confiança contra a Segurança Social p. e p. pelo artigo 107.°, n.º l, do Regime Geral das Infrações Tributárias.
O arguido não se pronunciou.
O artigo 110.º, do Código Penal que:
“1 - São declarados perdidos a favor do Estado:
a) Os produtos de facto ilícito típico, considerando-se como tal todos os objetos que tiverem sido produzidos pela sua prática; e
b) As vantagens de facto ilícito típico, considerando-se como tal todas as coisas, direitos ou vantagens que constituam vantagem económica, direta ou indiretamente resultante desse facto, para o agente ou para outrem.
2 - O disposto na alínea b) do número anterior abrange a recompensa dada ou prometida aos agentes de um facto ilícito típico, já cometido ou a cometer, para eles ou para outrem.
3 - A perda dos produtos e das vantagens referidos nos números anteriores tem lugar ainda que os mesmos tenham sido objeto de eventual transformação ou reinvestimento posterior, abrangendo igualmente quaisquer ganhos quantificáveis que daí tenham resultado.
4 - Se os produtos ou vantagens referidos nos números anteriores não puderem ser apropriados em espécie, a perda é substituída pelo pagamento ao Estado do respetivo valor, podendo essa substituição operar a todo o tempo, mesmo em fase executiva, com os limites previstos no artigo 112.º-A.
5 - O disposto nos números anteriores tem lugar ainda que nenhuma pessoa determinada possa ser punida pelo facto, incluindo em caso de morte do agente ou quando o agente tenha sido declarado contumaz.
6 - O disposto no presente artigo não prejudica os direitos do ofendido.”
O mecanismo da perda de vantagens previsto do artigo 110.º do Código Penal, visa eliminar quaisquer benefícios económicos advindos da prática de ilícitos típicos fazendo, deste modo, com que o crime não compense. Trata-se de um mecanismo sancionatório que prossegue esta concreta finalidade de política criminal.
Ora, como é sabido a perda de vantagens é exclusivamente determinada por necessidades de prevenção.
Como refere Paulo Pinto de Albuquerque, não se trata de uma pena acessória, porque não tem relação com a culpa do agente, nem de um efeito da condenação, porque também não depende uma condenação. Trata-se de uma medida sancionatória análoga à medida de segurança, pois baseia-se na necessidade de prevenção do perigo da prática de crimes, "mostrando ao agente e à generalidade que) em caso de prática de um facto ilícito típico) é sempre e em qualquer caso instaurada uma ordenação dos bens adequada ao direito decorrente do ofendido”.
O facto de o Instituto da Segurança Social ter ao seu dispor meios legais para ser ressarcido das quantias devidas não deverá ser obstáculo à declaração de perda da vantagem patrimonial, perante a autonomia entre a responsabilidade do devedor perante aquele organismo e a responsabilidade civil obrigatória originária na prática do crime.
Esta última assume natureza penal e é gerada pelos factos ilícitos, culposos, tipificados como crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, causadores de um dano a esta entidade.
Subsistindo o dano que consiste na referida vantagem indevidamente obtida, então subsiste a obrigação de restituição através da declaração de perda de vantagem patrimonial que se insere na reação jurídico-penal a que a prática do crime dá lugar.
De salientar que, caso alguma quantia já tenha sido cobrada em sede de processo de execução, de reversão ou de insolvência, subsistirá somente o dever de restituir o remanescente da vantagem patrimonial, não havendo lugar a um duplo ressarcimento da mesma quantia em dívida.
Face ao exposto, deve ser decretada a obrigação de entrega ao Estado pelo arguido do montante de €19.322,26, correspondentes à perda da vantagem patrimonial obtida mediante a prática do crime pelo qual vai condenado.»
Recapitulemos então os factos provados:
A gerência da sociedade “A... Lda.” esteve, desde 23.04.2010 entregue ao arguido AA, o qual enquanto sócio-gerente, da referida sociedade, na qualidade de seu legal representante atuou sempre em nome e no interesse da mesma e exerceu de facto todas as funções de gestão e administração da “A... Lda.” até à data do cancelamento da sua matrícula ocorrida em 21.11.2022.
Nessa sequência, era o arguido quem dava as ordens, decidia o giro económico e de afetação das receitas às despesas, tomava as decisões, vinculava a empresa, assinava contratos, contratava pessoal e procedia ao pagamento dos salários e recebia os pagamentos dos clientes.
Era o arguido, quem em nome, no interesse e em representação da referida sociedade pagava, também, aos respetivos membros dos órgãos estatutários as devidas remunerações, descontando e retendo sobre as mesmas a percentagem relativa às contribuições devidas à Segurança Social.
Foi o arguido quem, no período compreendido entre março de 2016 a janeiro de 2020, em nome, no interesse e em representação da referida sociedade deduziu e reteve das remunerações pagas pela sociedade, à taxa de 11%, a parte das contribuições devidas pelos trabalhadores e membros dos órgãos estatutários.
Neste período, apesar das deduções e retenções efetuadas, arguido, em nome, no interesse e em representação da referida sociedade não remeteu, nem fez remeter tais montantes, mensalmente descontados, à Segurança Social.
O arguido, em nome, no interesse e em representação da referida sociedade integrou, assim, no património da mesma, o montante global de €19.322,26 (dezanove mil trezentos e vinte e dois euros e vinte e seis cêntimos), respeitante às contribuições dos trabalhadores e dos membros dos órgãos estatutários da dita sociedade relativas aos meses supra indicados.
Ao atuar da forma descrita, o arguido agiu de forma livre e consciente, em nome e no interesse da referida sociedade, com o propósito concretizado de não entregar aos cofres do Estado Português os montantes referentes às cotizações à Segurança Social acima discriminados, que foram deduzidos às remunerações pagas aos seus trabalhadores e dessa forma, integrá-los no património da referida sociedade fazendo uso deles no giro comercial desta, bem sabendo que estas quantias não lhe pertenciam, não obstante agiu conforme o descrito.
O arguido atuou de forma livre, voluntária e consciente em representação legal da sociedade “A... Lda.” enquanto sócio e gerente, com o propósito concretizado de obter benefícios patrimoniais que não lhe eram devidos, pois pertenciam ao Estado Português, decorrentes da não entrega dos montantes referentes às cotizações à Segurança Social deduzidas dos salários pagos que reteve e ciente de que essa sua conduta era suscetível de diminuir as receitas tributárias, não obstante agiu conforme o descrito, o que quis e conseguiu.
Agiu o arguido de forma livre, voluntária e consciente, sempre na qualidade de gerente de facto e direito da sociedade “A... Lda.”, em nome e no interesse desta, sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal.
Aqui chegados temos que a conduta do arguido, como único representante da sociedade por quotas que vinha gerindo, é geradora de responsabilidade penal para ele e para a referida sociedade, atento o disposto no art. 6 do RGIT, sob a epígrafe “Actuação em nome de outrem”:
«1 - Quem agir voluntariamente como titular de um órgão, membro ou representante de uma pessoa colectiva, sociedade, ainda que irregularmente constituída, ou de mera associação de facto, ou ainda em representação legal ou voluntária de outrem, será punido mesmo quando o tipo legal de crime exija:
a) Determinados elementos pessoais e estes só se verifiquem na pessoa do representado;
b) Que o agente pratique o facto no seu próprio interesse e o representante actue no interesse do representado.
2 - O disposto no número anterior vale ainda que seja ineficaz o acto jurídico fonte dos respectivos poderes.»
A perda de vantagens do crime é uma medida sancionatória análoga às medidas de segurança com vista ao restabelecimento da ordem económica e tem o propósito de incrementar socialmente a noção de que o crime não compensa.
Na declaração de perda deve ser incluído tudo o que signifique aumento patrimonial para o visado.
Os pressupostos da declaração de perda são a existência de um facto ilícito e a obtenção de proveitos. A vantagem patrimonial surge, pois, na sequência da prática da infração penal.
Sobre este ponto veja-se o Acórdão desta Relação de 13/09/2017, relatado por Ermelinda Carneiro e disponível em www.dgsi.pt.
No caso concreto era o arguido que decidia sobre a gestão financeira da sociedade como sobejamente ficou demonstrado nos factos provados.
Assim sendo, a decisão de não entregar as quantias retidas à Segurança Social foi tomada pelo arguido, assim como também foi por ele decidido o destino a dar a tais quantias, por isso, é o arguido que se apropria das quantias em causa, em representação da sociedade, da qual é gestor.
Para ser declarada a perda de vantagens, demonstrada que está a responsabilidade criminal, não obsta a que o beneficiário desse proveito económico tenha sido terceira pessoa, - neste caso a sociedade comercial representada -, como claramente resulta do disposto no art. 110 nº1 al b) do CP que determina a perda, e considera vantagens : «todas as coisas, direitos ou vantagens que constituam vantagem económica, direta ou indiretamente resultante desse facto, para o agente ou para outrem.»
No sentido por nós defendido veja-se também o Ac. desta Relação de 8/05/2024, relatado por Luísa Arantes, também subscrito pela relatora e publicado in www.dgsi.pt.
Concluímos pelo exposto, que a sentença recorrida não violou o art. 110 do CP e que nada há a censurar relativamente à declaração de perda das vantagens.



3 - Decisão:

Tudo visto e ponderado, acordam os juízes neste Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso interposto por AA.

O recorrente suportará as custas do processo fixando-se a taxa de justiça em 3 Ucs.






Porto, 19/6/2024.
Relatora: Paula Guerreiro
1º Adjunto: Nuno Salpico
2ª Adjunta: Lígia Trovão