Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3550/20.9T8AVR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ISABEL PEIXOTO PEREIRA
Descritores: RECURSO
ADMISSIBILIDADE
VALOR DA SUCUMBÊNCIA
CRITÉRIO
Nº do Documento: RP202504103550/20.9T8AVR.P1
Data do Acordão: 04/10/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: NEGADO O CONHECIMENTO DO RECURSO
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A sucumbência deve ser perspectivada objectivamente como dano, prejuízo, perda ou resultado final desfavorável da decisão e afere-se pelo contraste entre, por um lado, o conteúdo da decisão e, por outro, os interesses da parte, ou seja, pelo reflexo negativo daquela nestes.
II - A sucumbência relevante para aferir a recorribilidade consiste, portanto, numa diferença entre as situações jurídicas delimitadas pela decisão de que se pretende recorrer (antes e depois dela), ou seja, numa modificação negativa (para pior…) da situação jurídica pré-existente à decisão que se pretende impugnar.
III - O valor da sucumbência é o do prejuízo da decisão para a parte que decaiu, correspectivo do vencimento da parte vencedora; logo, por ele se afere, em regra, a medida do vencimento desta, independentemente do percurso lógico em que se estribe a decisão mesma.
IV - A pretensão deduzida foi a da redução em valor concretamente identificado/materializado/liquidado/computado de liberalidade, o qual se reconduziu afinal a um valor bem abaixo da metade da alçada do tribunal recorrido; donde a sucumbência do Réu é determinável ou quantificável pelo critério aritmético do art. 678º, nº1, do Código de Processo Civil, na medida em que o pedido vai referido a uma quantia em dinheiro a “restituir, pagar ou entregar”.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo 3550/20.9T8AVR.P1
Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro
Juízo Central Cível de Aveiro - Juiz 1

Relatora: Isabel Peixoto Pereira
1º Adjunto: Francisca Micaela Mota Vieira
2º Adjunto: Isabel Rebelo Ferreira
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Acordam os juízes da 3.ª secção do Tribunal da Relação do Porto:
I.
AA, residente na Rua ..., ..., ..., intentou a presente ação, com processo comum, contra BB, residente na Rua ..., ..., ..., ..., pedindo se declare que o A. é o único herdeiro legitimário da falecida CC; a legítima do A. ascende a € 60.623,56, correspondente a 1/2 da herança; o preenchimento da quota disponível do de cujus com o dinheiro da herança supra identificado e quantificado, no valor de € 49.490,00, que o R. tem na posse dele e os bens que lhe foram doados por aquela, no valor de € 35.738,89, que perfazem o total de € 85.228,89, viola a legítima do A. em € 24.605,33. Se decrete, em consequência, a redução, por inoficiosidade, de tais liberalidades, em € 24.605,33 e se condene o R. a reconhecer e a cumprir o declarado e decretado e anteriormente peticionado.
Reconduz-se, para fundamentar as pretensões, à sua qualidade de herdeiro legitimário de CC, a qual, por testamento, instituiu herdeiro da sua quota disponível o ora R. seu sobrinho e afilhado, a quem doou também dois prédios rústicos. Encontra-se a correr termos, no Juízo de Competência Genérica de Albergaria-a-Velha, o processo de inventário nº 392/20.5T8ALB, em que são partes os ora A. e R., sendo que o pedido emerge do valor dos bens doados e daqueles que, da falecida, estão na posse/detenção do Réu, em termos que violam a legítima do Autor.

Teve lugar a audiência de julgamento, finda a qual, foi proferida sentença, a qual julgou (após rectificação/correcção) a presente ação parcialmente procedente e, em consequência, decidiu ser a legítima do A. no valor de € 46.945,52, correspondente a 1/2 da herança; que o preenchimento da quota disponível do de cujus com o dinheiro da herança no montante € 38.600,00 que o R. tem em seu poder, e os bens que lhe foram doados por aquela no valor de € 9.300,00, que perfazem o valor de € 47.900,00, o que viola a legítima do A. em € 954,48. Em consequência, decretou-se a redução, por inoficiosidade, de tais liberalidades, em € 954,48, e condenou-se o R. a restituir ao A. esta quantia.

Desta decisão foi interposto recurso principal pelo Réu e recurso subordinado pelo Autor, ambos admitidos em primeira instância.
Em sede de recurso principal, pelo Réu, conclui este pelo modo seguinte:
1ª. O tribunal recorrido errou ao decidir incluir nos bens da Herança da falecida CC a quantia de € 32.000,00, descrita em 15-B) dos Factos Provados, considerando que cumpria ao R. apresentar justificação para tal ter acontecido.
2ª. Aquela factualidade foi alegada pelo Autor no art. 11º da sua PI, constituindo o art. 2º dos temas de prova (“O ora R., entre 2015 e 2018, levantou da conta à ordem titulada pela ora falecida CC, contra a vontade ou desconhecimento desta, a quantia de € 49.490,00, que tem em seu poder.”), pelo que, de acordo com o disposto no nº1, do art. 342º, do C. Civil, era ao A. que cabia demonstrar que o R. fez os aludidos levantamentos “contra a vontade ou desconhecimento” da falecida e que tem o dinheiro em seu poder.
3ª. A referida factualidade, invocada pelo A. e que se considera facto “impeditivo” do seu direito para justificar e pedir a redução das liberalidades, está directamente conexionada com o direito por ele invocado e com a sua pretensão com o presente processo, ou seja: pretende ver reconhecido o direito a um determinado valor, correspondente ao seu quinhão hereditário e a consequente redução das liberalidades recebidas pelo R..
4ª. Assim sendo, aqueles factos, invocados pelo A. (“levantamentos feitos contra a vontade ou desconhecimento da falecida e em poder do R.”), têm igualmente que considerar-se constitutivos do direito invocado.
5ª. Em caso de dúvida, os factos devem ser considerados como constitutivos do direito (cfr. nº3, do citado art. 342º, do C. Civil).
6ª. No julgamento dos referidos factos e na imputação do respectivo ónus de prova ao R., o Tribunal desconsiderou completamente a autorização de movimentação da conta bancária de que o R. estava munido, conforme alegado pelo próprio A. na parte final da al. a), do art. 11º, da PI e resulta expressamente do doc. 10 junto à mesma PI.
7ª. O R., no uso da dita autorização de movimentação da conta bancária da CC, tem, por si só, justificação bastante para fazer os levantamentos descritos nos autos, a menos que o A. viesse demonstrar o contrário, o que não fez.
8ª. Nem o próprio A., quando foi ouvido em declarações de parte, na audiência de julgamento realizada em 06-05-2024 (gravação de 16:09:34 a 16:24:14), se pronunciou sobre aquele tema de prova, restringindo o seu depoimento aos temas de prova 6º, 8º e 9º …
9ª. Sem prejuízo do supra exposto, refuta-se a Douta argumentação usada pelo Tribunal recorrido para inverter o ónus da prova e impor ao R. esse ónus (quanto à justificação para os levantamentos de capital entre 22-08-2018 e 08-11-2018), extravasando completamente aquilo que resulta dos factos provados, ao considerar que a CC “já estava muito doente e debilitada”.
10ª. Além da queda que sofreu e que a levou ao hospital, em momento algum foi sequer ventilado, fosse pelo A., ou por quem quer que fosse, que a CC tenha perdido, ou tenha sequer ficado minimamente fragilizada nas suas capacidades mentais, ou estivesse incapaz de gerir e de administrar todo o seu património, incluindo os valores depositados na sua conta bancária.
11ª. Ao concluir, como fez o Tribunal recorrido, que a CC “estava muito doente e debilitada” é manifestamente abusivo e não resulta, nem dos factos provados, nem de qualquer prova constante dos autos.
12ª. Quanto ao uso e destino que a falecida CC deu ao seu dinheiro, só ela poderia justificar.
13ª. O Tribunal recorrido não aplicou, nem interpretou correctamente, o disposto nos nºs 1 e 3, do art. 342º, do C.Civil e a sua conjugação com a factualidade constante dos autos.
14ª. Errou ainda o Tribunal recorrido na quantificação dos bens da Herança deixada por óbito da CC, uma vez que, face aos Factos Provados descritos nos pontos 12 (Por escritura celebrada a 24/06/2011, no Cartório Notarial da Notária DD, em Aveiro, o ora A. AA e a mulher EE (1ºs outorgantes) declararam vender, pelo preço já recebido de € 10.000,00, a FF, que declarou aceitar a venda, o seguinte prédio: terra de cultura e vinha, sito nas ..., freguesia ... do concelho ..., inscrito na matriz sob o artigo ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de Sever do Vouga sob o nº..., cujo direito de propriedade se encontra ali registado a favor dos vendedores pela Ap. ... de 28/10/1997.), e 20 (O preço do prédio identificado em 12 dos Factos Provados, quando foi adquirido pelo A. foi pago pela CC e pelo A., na proporção de ½ cada um.), o valor de € 5.000,00 despendido pela falecida CC na aquisição do referido prédio a favor do A., constituiu uma liberalidade a favor deste, cujo montante deverá ser levado à Herança para aferir a legítima do A..
15ª. Do mesmo modo, atenta a factualidade constante do ponto 30 dos Factos Provados (“A falecida CC mandou transformar um cordão em ouro em três fios em ouro, que doou aos seus netos, filhos do A.”), importará deixar em aberto a averiguação do valor desta liberalidade a favor dos filhos do A. e posteriormente adicioná-lo ao valor total da Herança para efeitos de calcular a legítima daquele.
Conclui pedindo a revogação da sentença recorrida e a sua substituição por outra que elimine dos bens da Herança o montante de € 32.000,00 descrito no ponto 15-B) dos Factos Provados e inclua na mesma Herança o valor de € 5.000,00 que consta dos factos Provados sob os nºs 12 e 20, bem como o valor que vier a averiguar-se correspondente à doação descrita no ponto 30 dos Factos Provados.

Recorreu subordinadamente o Autor, concluindo
I) A douta sentença recorrida, foi corrigida por despacho judicial de 07/10/2024, com a referência 134939343.
II) O objeto do presente recurso assenta do desacordo do autor/apelante com segmento decisório da primeira instância, que julgou a ação parcialmente improcedente e, nessa sequência, absolveu o réu/apelado do restante pedido deduzido por aquele.
III) Pugnando o autor/ apelante pela substituição desta parte decisória, por outra que considere que o montante levantado entre 24/02/2015 e Agosto de 2018, no total de € 10.980,00, faz parte da herança em causa nos autos, o qual, por essa razão, deverá refletir-se em todos os cálculos expandidos na aludida sentença, para apuramento da redução, por inoficiosidade, das liberalidades em causa nos autos.
IV) Devendo, assim, nessa decorrência, condenar-se e absolver-se o réu/apelado, nessa conformidade.
V) A primeira instância fez assentar o segmento decisório aqui posto em crise, no seguinte raciocínio: “Se o R. era autorizado na conta da CC por, obviamente, por assim ter sido decidido por esta. O montante levantado entre 24/02/2015 e agosto de 2018 (durante cerca de três anos e seis meses), data em a CC adoeceu gravemente, é de apenas € 10.980,00. A CC era uma pessoa muito simples, iletrada, que sempre trabalhou nas terras, à jorna, para angariar o seu sustento e manter a sua casa, que recebia uma pensão de, apenas, € 254,79 por mês. Nesta parte parece-nos que era ao A. que cumpria provar que o R. se apropriou da referida quantia contra a vontade ou desconhecimento desta. E o R. não fez essa prova.”
VI) Ora, salvo o elevado respeito, não pode o autor/ apelante concordar com tal posição.
VII) Efetivamente, como resulta dos factos dados como não provados, pela primeira instância sob b), acima transcritos em 8., que aqui se reproduz, para os devidos efeitos legais, sendo certo que o autor/apelante não logrou provar que os referidos levantamentos bancários entre 24/02/2015 e Agosto de 2018, num total € 10.980,00, foram feitos contra a vontade ou desconhecimento da falecida CC e, bem assim, que esse valor se mantem no poder do réu/apelado .
VIII) Não se pode olvidar que estes factos terão que ser conjugados com outros igualmente dados como não provados- os constantes de e) a g) supra descritos em 8.
IX) Ora, tudo isto conjugado com o que consta de 14- e 15- dos factos provados, ou seja, que foi o réu/apelado quem levantou tais montantes da conta apenas titulada pela falecida CC, o facto do autor/apelante não ter provado, como lhe competia, que esses levantamentos foram feitos contra a vontade ou desconhecimento da falecida em questão e, que as respetivas quantias se encontram em poder do réu/apelado, a conclusão a retirar daqui, não pode ser aquela a que a primeira instância chegou – a não inclusão do referido montante -€ 10 980,00 – no somatório dos bens da herança.
X) Com efeito, se o foi o réu/apelado quem levantou essas quantias da conta apenas pertencente a tal falecida (14 e 15 dos factos provados ), se o mesmo não provou, como lhe competia, que as quantias levantadas foram utilizadas para pagamento de qualquer crédito seu sobre a dita falecida (e) dos factos não provados ) ou, para pagamento de quaisquer despesas desta ou em seu proveito pessoal e seguindo a sua vontade e instruções (f) dos factos não provados ) e que esses levantamentos, foram efetuados a pedido e mediante instruções da falecida CC, foram entregues a esta em mão e a mesma deu-lhes o uso e o destino que bem entendeu (g) dos factos não provados), é por demais evidente, que estando ou não tais valores no poder do réu/apelado ou, tendo ou não os mesmos sido levantados contra a vontade ou com conhecimento da dita falecida, as quantias em questão, terão que ser consideradas como parte integrante da herança em questão, por constituírem um crédito da herança sobre o réu/apelado.
XI) De sorte que, haverá, pois, que substituir a parte da sentença aqui impugnada, por outra decisão, que julgue que: a) os levantamentos que o réu/apelado fez da conta titulada pela falecida CC, no período compreendido entre 24/02/2015 e agosto de 2018, no total de € 10 980,00, deverá ser acrescentado à soma dos bens considerada na sentença recorrida e, consequentemente, que os cálculos aí expandidos deverão ser corrigidos, para efeitos de apuramento da redução das liberalidades, por inoficiosidade, nos termos acima expostos em 14. a), que aqui se reproduz, integralmente, para os devidos efeitos legais; b) a ação parcialmente procedente, e, em consequência, se declare que: 1º - a) o A. é o único herdeiro legitimário da falecida CC; b) a legítima do A. ascende a € 52.981,52, correspondente a 1/2 da herança; c) o preenchimento da quota disponível do de cujus com o dinheiro da herança no montante € 49.580,00, que o R. levantou da conta titulada pela falecida CC, e os bens que lhe foram doados por aquela no valor de € 9.300,00, que perfazem o valor de € 58.880,00, viola a legítima do A. em € 5.898,48; 2º se decrete a redução, por inoficiosidade, de tais liberalidades, em € 5.898,48; 3º a) se condene o R. a restituir ao A. esta quantia e, se absolva o R. do restante pedido deduzido; b) se condene, o A. e R. nas custas, na proporção de vencido.

Por decisão singular entendeu-se não poder este tribunal tomar conhecimento dos recursos, por inadmissibilidade legal e caducidade.
Veio o recorrente principal requerer a submissão da questão à conferência, mediante acórdão, aduzindo o seguinte:
- verifica-se um erro manifesto na determinação das normas aplicáveis, a implicar a reforma da Decisão reclamada, o que se requer, na medida em que se fundamenta e remete para os artigos 678º, nº1, 682º, nº5, 678º, nºs 1, 2, 4 e 6, 682º, nº3, 687º, nºs 1 e 4 e ainda 754º, nº2, todos do CPC, os quais não tratam das questões colocadas naquela Douta Decisão;
- sempre o valor da sucumbência ou decaimento do Réu, no caso concreto dos presentes autos, deve aferir-se em função do valor dos bens doados e daqueles que o Tribunal recorrido considerou que se encontravam na posse do Réu, em termos que violam a legítima do Autor, na medida em que o valor da redução, por inoficiosidade, das liberalidades fixado pela Sentença recorrida resulta e emerge directamente dos valores fixados para o cálculo da legítima e dos valores considerados pelo tribunal para preencher a quota disponível do de cujus e considerados em poder do Réu, no que o Réu veio a ser condenado a reconhecer. Para efeitos de determinação do valor da sucumbência, não se podem dissociar os pedidos de condenação e reconhecimento dos valores da legítima e dos valores atendidos para preenchimento da quota disponível (pedidos das alíneas b) e c) da P.I.), com o pedido de redução, por inoficiosidade, das liberalidades (pedido da al. d) da P.I.). Em última instância e, verificando-se a dúvida sobre qual dos valores a atender para efeitos de determinar o valor da sucumbência do Réu (€ 38.600,00 ou € 954,48), teria sempre aplicação o disposto na parte final do nº1, do art. 629º, do CPC, que remete para o valor da causa.
Conclui pela admissão dos recursos.

II.
São as seguintes as questões a decidir, em conferência:
- Da rectificação da decisão por lapso na indicação das normas aplicáveis;
- Da (im)possibilidade de conhecimento dos recursos.
1.
Assiste, desde logo, inteira razão ao reclamante quanto ao lapso na invocação de disposições totalmente inaplicáveis à situação decidenda, uma vez que respeitantes ao recurso perante o STJ…
Assim, as disposições a convocar vêm a ser antes as dos artigos 629º, n.ºs 2 e 3, 637º, 652º, n.º 1, al. b) e 633º do CPC, com idêntico sentido ou resultado.
Corrigida, pois, a referência às disposições legais que justificaram os termos da decisão, substituindo-se aquelas outras que, por lapso, se citaram, em lugar próprio, i.é., infra.
2.
Sobre a caracterização do critério legal da sucumbência, no confronto já com o do valor da acção, temos para nós ser elucidativa a exposição do Acórdão do STJ de 14-05-2015, AUJ, DR, I SÉRIE, 123, 26.06.2015, P. 4483 – 4493, que passaremos a seguir de muito perto.
Desde logo: «A medida (valor) em que uma decisão é desfavorável corresponde à sucumbência. Normalmente, só é possível recorrer para um tribunal superior quando a decisão a impugnar seja desfavorável ao recorrente em valor superior a metade da alçada do tribunal de que se recorre (cfr. segunda parte do n.º 1 do artigo 629.º do Código de Processo Civil).
O art. 678.º, n.º 1, do CPC (tal como o actual art. 629.º, n.º 1, do NCPC), prescrevia que só é admissível recurso ordinário nas causas de valor superior à alçada do tribunal de que se recorre desde que as decisões impugnadas sejam desfavoráveis para o recorrente em valor também superior a metade da alçada desse tribunal; em caso, porém, de dúvida fundada acerca do valor da sucumbência, atender-se-á somente ao valor da causa.
Esta redacção foi introduzida no CPC pelo DL n.º 242/85, de 9 de Julho.
Até aí, a questão da admissibilidade dos recursos resolvia-se, em princípio, à luz do valor da causa, princípio este que o DL n.º 242/85 citado considerou simplista e unilateral e, por isso, “por mais equilibrado e por melhor se coadunar com as exigências da actual situação judiciária, passou a atender-se também ao critério da sucumbência, já antigo no direito processual alemão,…”, como se escreveu no seu Preâmbulo.
A este respeito, LEBRE DE FREITAS e ARMINDO RIBEIRO MENDES (ob. cit. pág. 15) observam que: “Confessadamente inspirada no direito alemão, a regra da sucumbência (…) visa fundamentalmente descongestionar os tribunais e desencorajar as tentativas da parte vencida de prolongar a duração do processo através da interposição de sucessivos recursos, nomeadamente quando estes tenham eficácia suspensiva da exequibilidade da decisão impugnada.”.
A redacção assim introduzida manteve-se incólume – não obstante as alterações efectuadas no domínio do Processo Civil pelos DLs n.ºs 239-A/95 de 12 de Dezembro, 180/96 de 25 de Setembro, 38/2003 de 8 de Março e 303/2007 de 24 de Agosto – e passou para o actual NCPC, aprovado pela Lei n.º 41/2013 de 26 de Junho, integrando o respectivo art. 629.º, n.º 1.
A exigência de uma sucumbência ou decaimento mínimo, como pressuposto da admissibilidade do recurso, mais não é do que uma intervenção “cirúrgica” – como lhe chamou o Cons. CARDONA FERREIRA (cfr. “Guia de Recursos em Processo Civil”, 2010, Coimbra pág. 120, nota 99) – no regime dos recursos em Processo Civil com vista a restringir e filtrar as questões que devem ser consideradas merecedoras de serem submetidas à apreciação dos tribunais superiores, impedindo que sucumbências insignificantes (ou, como tal, consideradas pela lei) facultassem a interposição de recurso, porque - e só porque - o valor da causa excedia o valor da alçada do tribunal a quo.
Em síntese, podemos, com Abrantes Geraldes (“Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina, 2013, pág. 37) afirmar que “A necessidade de concentrar energias naquilo que é mais importante, a premência na erradicação de instrumentos potenciadores da morosidade da resposta judiciária ou o interesse em dignificar a actividade dos tribunais superiores convergiram no sentido de fazer dependera recorribilidade também da proporção do decaimento”.
O propósito legislativo era, portanto, afastar dos tribunais superiores os processos em que se debatiam questões de menor importância, as chamadas bagatelas jurídicas (entendendo-se como tais aquelas cujo valor máximo fosse o correspondente a metade do valor da alçada do tribunal que proferiu a decisão) que enxameavam os tribunais e que comprometiam a eficácia e celeridade da resposta dos tribunais superiores, permitindo, simultaneamente, reservar os meios destes para os processos que tivessem real importância e relevância económica.
Aqui chegados, ficamos a saber que, subjacente ao pensamento legislativo, está a propositada inviabilização da apreciação, pelos tribunais superiores de decisões judiciais, em que se discutam litígios de valor igual ou inferior a metade do valor da alçada do tribunal que as proferiu, vedando-se claramente (isto é, quando o valor da sucumbência não oferece dúvidas…) o acesso de tais questões a esses tribunais, por expressamente se lhes não reconhecer dignidade para tal, pelo menos pela via do recurso independente e principal.
A nossa lei consagra, assim, um regime híbrido ou misto quanto à admissibilidade de recurso, pois que esta depende, cumulativa e simultaneamente, do valor da causa (alçada) e do valor da sucumbência (differendum), relevando, no entanto, apenas aquele, em caso de fundada dúvida sobre este.
Parafraseando Carnelutti (cfr. “Instituciones del Proceso Civil”, vol II, Buenos Aires, 1959, pág. 193), poderemos dizer que a limitação da recorribilidade da decisão em função do valor da sucumbência equivalente a metade da alçada do tribunal que a proferiu é o limite máximo da “tolerabilidade da injustiça” da decisão que não justifica os custos do recurso que a reparação de tal injustiça exigiria
E, continuando com a mesma decisão: «A sucumbência (ou decaimento) é o prejuízo ou desvantagem que a decisão implica para a parte e que, por isso, se designa parte vencida; esta é, portanto, aquela a quem a decisão prejudica, que com ela sofreu gravame ou a quem ela foi desfavorável, em suma, quem perdeu…
Recordemos o Prof. Manuel de Andrade: “(...) Parte vencida é aquela que decaiu no pleito – aquela a quem a sentença seja desfavorável, por não ter acolhido a sua pretensão, já negando-lhe o direito que deduziu em juízo ou não chegando a apreciar a sua existência (art. 288.º), já reconhecendo o direito deduzido pela outra parte. A sucumbência equivale, portanto, ao insucesso na lide – insucesso que não deixa de existir quanto ao Réu pelo facto de ele não ter contestado (...)”.
E, mais adiante, continua: “(...) Para a apreciação da sucumbência só interessa conhecer o preceito da sentença confrontado com a posição de cada um dos litigantes – isto é, o resultado do processo para cada um deles. A sentença não deixa de ser desfavorável a certa parte pelo facto de não ter atendido a todas as razões do adversário (...)” (“Noções Elementares de Processo Civil”, 1976, Coimbra, pág. 343).
Por sua vez, o Prof. Castro Mendes, depois de esclarecer que vencido significa “afectado objectivamente pela decisão”, continua, analisando cada um dos termos desta afirmação; e, a propósito do termo “afectado”, esclarece-o como significando que “(...) não obteve a decisão mais favorável possível aos seus interesses (...)”, o que pode acontecer quando a sentença proferida é desfavorável ou parcialmente favorável e também quando, “(...) sendo a sentença favorável, se não for a mais favorável possível em face das circunstâncias (...)” (v. ob. cit., pág. 15; assim também ABRANTES GERALDES, ”Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina, pág. 63 e ARMINDO RIBEIRO MENDES, “Recursos em Processo Civil”, Coimbra, pág. 162).
Aliás, já a redacção do art. 678.º, n.º 1, do CPC, na Reforma projectada no DL n.º 224/82, de 8 de Junho (que nunca chegou a entrar em vigor), previa o requisito da sucumbência mínima quando excluía da recorribilidade ordinária as decisões – proferidas em causas de valor superior à alçada do tribunal de que se recorre – que forem “desfavoráveis para o vencido ou prejudicado em valor manifestamente igual ou inferior à alçada desse tribunal”.
Sendo a decisão desfavorável, logo implicando perda ou prejuízo para uma das partes (ou para ambas), abre-se a via da respectiva impugnação perante o tribunal superior desde que a medida desse desfavor seja superior a metade da alçada do tribunal que a proferiu (e também desde que, obviamente, o valor da acção exceda o da alçada de tal tribunal).
Ora, a perda ou desvantagem do vencido é susceptível de uma dupla perspectiva:
– subjectiva, como frustração de expectativa (sucumbência formal, adjectiva ou processual);
– objectiva, como resultado efectivo da decisão (sucumbência material ou substantiva).
Na perspectiva subjectiva (frustração de expectativas), há sucumbência quando o conteúdo da parte dispositiva da decisão judicial diverge do que foi requerido pela parte no processo ou recurso, quando se verificar desconformidade entre o que foi pedido (na acção ou no recurso) e o que foi concedido na decisão, em suma, quando esta não satisfizer (totalmente ou não) o pedido.
Nesta hipótese, a medida do dano ou do prejuízo da sucumbência será a da pretensão não atendida, como diferença entre o valor do pedido (ou do recurso) e o valor da decisão (sucumbência meramente formal ou processual). (…)
Na perspectiva objectiva – que atende ao resultado efectivo da decisão – há sucumbência quando, independentemente das pretensões deduzidas e das posições adoptadas pela parte no processo ou recurso, a decisão judicial a colocar em situação jurídica pior do que aquela que tinha antes da decisão de que pretende recorrer, isto é, quando a decisão produzir efeitos desfavoráveis ou quando o resultado do processo for inferior ao que, virtualmente, dele poderia ter sido obtido.
A este propósito, o Prof. Alberto dos Reis, louvando-se em Carnelutti e depois de definir parte vencida como aquela a quem a decisão causa prejuízo, escreve: “(...) Poderia pensar-se que parte vencida é aquela cujo pedido, pretensão ou requerimento foi desatendido, mas tal conceito é acanhado, porque não abrangeria o caso de a decisão prejudicar parte que estava em situação de revelia e que, por isso, não formulara pedido algum (...)” (“Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, Coimbra, pág. 265).
Quer dizer: a sucumbência, como prejuízo causado pela decisão no processo ou recurso é independente e abstrai da posição (activa ou passiva) da parte que o sofra e da respectiva atitude (intervindo ou não) no processo: o réu que não contesta e o recorrido que não contra-alega, se perderem ou forem condenados, também sucumbem…
E porque a sucumbência abstrai da posição (activa ou passiva) da parte no processo ou recurso, é que ela deve ser perspectivada objectivamente como dano, prejuízo, perda ou resultado final desfavorável da decisão; sucumbe a parte cujos interesses sofram dano ou prejuízo por serem afectados desfavoravelmente pela decisão (seja porque lhe nega aquilo a que se arroga com direito, seja porque lhe impõe obrigações a que sustenta não estar vinculado).
A sucumbência afere-se, por conseguinte, pelo contraste entre, por um lado, o conteúdo da decisão e, por outro, os interesses da parte, ou seja, pelo reflexo negativo daquela nestes.
Ora, como é sabido, o recurso visa eliminar o dano que esse prejuízo ou gravame, causado pela decisão recorrida, importa para a parte vencida; por outras palavras, o recurso é o meio processualmente adequado para a remoção da sucumbência e, por isso, é que, por via de regra, só podem ser interpostos pela parte vencida (art. 631.º, n.º 1, do NCPC).
Nisto consiste a utilidade económica do recurso ou, noutros termos, o interesse em agir da parte vencida (recorrendo…) para eliminar o resultado desfavorável que a decisão traz ao seu interesse, pois é sabido que sem interesse não há prejuízo e sem prejuízo nada se pode reclamar dos Tribunais…
O interesse em recorrer é, pois, o interesse na remoção e eliminação (ou redução) desse dano em que consiste a sucumbência (é especialmente notória, no processo penal, a interconexão entre o interesse em agir e o recurso – v. n.º 2 do artigo 401.º do Código de Processo Penal –) e o titular da respectiva legitimidade é, naturalmente, a parte que o sofreu (parte vencida) (assim ABRANTES GERALDES, loc. cit., e, além do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8 de Abril de 2003 por ele citado, v. o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2 de Outubro de 1997, relatado pelo Cons. Lúcio Teixeira no processo n.º 759/96 - 2.ª Secção).
A sucumbência relevante para aferir a recorribilidade consiste, portanto, numa diferença entre as situações jurídicas delimitadas pela decisão de que se pretende recorrer (antes e depois dela), ou seja, numa modificação negativa (para pior…) da situação jurídica pré-existente à decisão que se pretende impugnar.
Concretizando o que viemos de expor, temos que um dos vectores da operação aritmética tendente a apurar a medida dessa diferença, é, necessariamente, a situação jurídica criada por essa decisão (proferida pela 1ª instância ou pela Relação). Esta é a decisão que vai ser objecto de impugnação se se verificarem os requisitos da recorribilidade. (…)
Sempre que uma decisão judicial colocar a parte em situação mais desvantajosa e desfavorável (pior…) que a que tinha antes, há sucumbência cuja medida é, portanto, o valor da perda que tal decisão acarrete relativamente à situação precedente.
Resume, assim, Abrantes Geraldes: “(...) O vencimento ou o decaimento devem ser aferidos em face da pretensão formulada ou da posição assumida pela parte relativamente à questão que tenha sido objecto de decisão. É parte vencida aquela que é objectivamente afectada pela decisão, ou seja, a que não tenha obtido a decisão mais favorável aos seus interesses. O autor é parte vencida se a sua pretensão foi recusada, no todo ou em parte, por razões de forma ou de fundo; o réu quando, no todo ou em parte, seja prejudicado pela decisão.
Nessa medida, o que sobreleva é o resultado final e não tanto o percurso trilhado pelo tribunal para o atingir (...)” (cfr. ob e loc. cit).
O valor da sucumbência é, portanto e em suma, o do prejuízo da decisão para a parte que decaiu, correspectivo do vencimento da parte vencedora; logo, por ele se afere, em regra, a medida do vencimento desta.» .). (sublinhados e destacados nossos)
Ora, como se aduziu na decisão submetida à conferência, objectivamente, a pretensão deduzida foi a da redução em valor concretamente identificado/materializado/liquidado/computado de liberalidade, o qual se reconduziu afinal a um valor bem abaixo da metade da alçada do tribunal recorrido.
Quanto ao recurso interposto pelo Réu (recurso principal ou independente), o mesmo não é admissível segundo a regra geral, dado que a sua sucumbência não excede metade da alçada da Relação. Considere-se já a parte decisória da sentença, em que o valor do decaimento, pese embora os demais alcançados (que o foram como pressuposto da decisão ou cálculo que se constituía como a pretensão mesma), se reconduz afinal ao da redução por inoficiosidade das doações/disponibilidades, € 954,48.
Assim é que a sucumbência do Réu é determinável ou quantificável pelo critério aritmético do art. 678º, nº1, do Código de Processo Civil, na medida em que o pedido vai referido a uma quantia em dinheiro a “restituir, pagar ou entregar”, por via da redução de liberalidade(s) inoficiosa(s).
Uma vez que se pode determinar com exactidão o valor da sucumbência, atenta a natureza dos pedidos e os efeitos jurídicos que o Autor pretendia extrair da acção, não se apresenta um caso de dúvida acerca do decaimento, situação em que deve ser admitido o recurso, atendendo-se apenas ao valor da causa – parte final do citado art. 678º, nº1, do Código de Processo Civil.
E sendo assim, segundo a regra geral, a decisão recorrida não era passível de recurso ordinário.
Certo, porém, que aquela regra geral comporta algumas excepções, nenhuma delas se vislumbra, nem vem também convocada/invocada. É que, quando o recurso tenha por fundamento algum dos fundamentos referidos nos n.º 2 e 3 do art. 629.º, o recorrente é obrigado a indicar o fundamento do recurso no respectivo requerimento de interposição. Tal imposição resulta, hoje, claramente, da lei, mais concretamente do disposto no n.º 2 do art.º 637.º do CPC.
Ora, como já ficou referido, segundo a regra geral, a decisão não era passível de recurso.
Apesar disso o recurso foi admitido.
Todavia, isso não obsta a que este tribunal decida não tomar conhecimento do recurso interposto pelo Réu, pois, como é sabido, o despacho que admite o recurso não vincula o tribunal superior (art. 652º, n.º 1, al. b) e 655º do CPC).
Concluindo, diremos que não se pode tomar conhecimento do recurso interposto pelo Réu, o que implica que também não se tome conhecimento do recurso subordinado do Autor, dado que os recursos subordinados caducam quando o primeiro recorrente desistir do recurso ou este ficar sem efeito ou o tribunal não tomar conhecimento dele (art. 633.º do CPC, no seu n.º 3).

III.
Nos termos expostos, decide-se não tomar conhecimento dos recursos.
Custas pelo Réu.
Notifique.

Porto, 10 de Abril de 2025
Isabel Peixoto Pereira
Francisca Mota Vieira
Isabel Ferreira