Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
5509/18.7T8MTS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PAULO DIAS DA SILVA
Descritores: EXCESSO DE PRONÚNCIA
CONTRATO DE ARRENDAMENTO COMERCIAL
FORMA
NULIDADE DO CONTRATO
RESTITUIÇÃO DO QUE HOUVER SIDO PRESTADO
Nº do Documento: RP202407045509/18.7T8MTS.P1
Data do Acordão: 07/04/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A decisão que ultrapassa o pedido formulado, sem modificação objectiva da instância, passando a abranger matéria distinta, está eivada da nulidade consignada na alínea e), do artigo 615º, do Código de Processo Civil, pois, a sentença não pode ultrapassar, nem em quantidade, nem em qualidade, os limites constantes do pedido, sendo que não havendo coincidência entre o decidido e o pedido, estar-se-á face a uma extra petição, vício que produz a nulidade do aresto.
II - Na década de 1990 a validade formal de um contrato de arrendamento urbano destinado a uma actividade comercial, regia-se pelo disposto no artigo 7º, nº 2, alínea b), do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro, de acordo com o qual deviam ser reduzidos a escritura pública os arrendamentos para o comércio, indústria ou exercício de profissão liberal.
III - Apesar de ter entrado em vigor a simplificação introduzida pelo Decreto Lei n.º 64-A/2000, de 22 de Abril, que dispensou a escritura pública nos contratos de arrendamento urbano para comércio, indústria e exercício de profissão liberal, esta alteração não veio convalidar os contratos de arrendamento anteriormente celebrados sem observância da exigência legal de forma, os quais são nulos.
IV - Tendo o contrato de arrendamento do estabelecimento sito no prédio localizado na Rua ..., em Matosinhos, sido outorgado na década de 1990, em ano não concretamente apurado, e não tendo observado a forma legalmente prescrita (escritura pública), é o mesmo nulo.
V - A nulidade desencadeia os efeitos previstos no artigo 289.º, do Código Civil, o qual dispõe no n.º 1 que deve ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente.
VI - O ordenamento jurídico visa, nestes casos, o regresso ao statu quo ante, reconstituindo-se a situação que existiria se o contrato, se o negócio nulo ou anulável não tivesse sido celebrado e executado.
VII - Há, então, que proceder à chamada “liquidação do contrato inválido”, ou seja, ao cálculo do valor do dever de restituição.
VIII - Nos contratos de execução continuada, em que uma das partes beneficie do gozo da coisa - como no arrendamento - (…) a restituição em espécie não é, evidentemente possível. Nessa altura, haverá que restituir o valor correspondente o qual, por expressa convenção das partes, não poderá deixar de ser o da contraprestação acordada.
IX - De resto, o pagamento da indemnização correspondente às rendas - afinal o valor locatício encontrado por vontade dos contraentes - faz-se, não pelo instituto do enriquecimento sem causa, mas directamente, em virtude da declaração de nulidade do contrato, por apelo à estatuição do citado nº 3, do artigo 289º, do Código Civil, com remissão directa ou analógica para o disposto nos artigos 1269º e ss., relativos aos efeitos da posse de boa-fé e respectivos frutos.
X - Declarada a nulidade do contrato, há, em princípio, lugar à restituição do que tiver sido prestado, mas desde que tal restituição seja pedida.
XI - O que está subjacente à doutrina do Assento nº 4/95, publicado no DR, 1ª Série, de 17.05.1995, é apenas a possibilidade de convolar a causa de pedir que era invocada e de alterar a qualificação da pretensão material deduzida, mas apenas para decretar o efeito prático-jurídico que foi solicitado, ainda que sob diferente qualificação jurídica, e não para o efeito de decretar um efeito que não foi, de todo, solicitado.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso de Apelação - 3ª Secção
ECLI:PT:TRP:2024:5509/18.7T8MTS.P1

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

1. Relatório
AA, residente na Travessa ..., ..., instaurou acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra José Correia ..., Ld.ª, com sede na Rua ..., ..., Matosinhos, onde concluiu pedindo a condenação da ré no pagamento da quantia de € 19.004,10, a título de rendas em atraso, bem como a indemnização de 50% sobre essas rendas vencidas.
Alega, em síntese, que é proprietária de um quarto indiviso de dois imóveis que identifica no artigo 1º da petição inicial, um sito em ..., outro em Matosinhos, por os ter adquirido, por adjudicação, na partilha de património comum conjugal, feita na sequência do seu divórcio por mútuo consentimento de BB, por escritura pública outorgada no dia 25 de setembro de 2017, no Cartório Notarial do Porto, do Dr. CC.
Alega, ainda, que a ré é uma sociedade comercial por quotas, cujo objecto social é afecto ao comércio por grosso de peixe e o respectivo capital social, no valor de € 249.398,95, encontra-se dividido em 5 quotas, sendo duas da autora (€ 29.927,87 cada), uma de DD (€ 59.855,75), uma de EE (€ 69.831,75) e outra FF (€ 59.855,75).
Refere que, mediante contrato de arrendamento de 01/01/1988 os então proprietários cederam à ré o gozo temporário do prédio sito em ..., com destino a armazém, mediante uma contrapartida pecuniária a pagar mensalmente no 1º dia útil do mês a que respeitar.
Acrescenta que, este contrato mantém-se actualmente em vigor, sendo a renda mensal, mercê das actualizações a que foi sujeita, de € 2.832,80, desde janeiro de 2017, renda que é paga directamente pela ré a cada comproprietário, fraccionadamente, na proporção das respectivas quotas.
Alega, ainda, que mediante contrato de arrendamento de 01/01/1993 os então proprietários cederam à ré o gozo temporário do prédio sito em Matosinhos, com destino a estabelecimento comercial, mediante uma contrapartida pecuniária a pagar mensalmente no 1º dia útil do mês a que respeitar.
Este contrato mantém-se actualmente em vigor, sendo a renda mensal, mercê das actualizações a que foi sujeita, em € 1.065,60, desde janeiro de 2017, sendo que esta renda é paga directamente pela ré a cada comproprietário, fraccionadamente, na proporção das respectivas quotas.
Mais alega, que a autora comunicou à ré a aquisição de quota parte desses prédios, na pessoa dos seus gerentes, em outubro de 2017, pelo que a ré lhe deveria ter começado a pagar a parte das rendas a que tem direito, o que não aconteceu até ao presente.
Assim, entende a autora estar a ré em dívida para consigo, no montante peticionado, que constitui o somatório das rendas devidas desde o mês de Outubro de 2017 até à data da propositura da acção, relativas aos dois prédios.
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Citada, a Ré apresentou contestação, a qual foi entendida por irregular, por ter sido subscrita por mandatária cujos poderes forenses lhe foram atribuídos por sócios gerentes que já não exerciam as referidas funções, pelo que foi nomeada uma curadora ad litem, representando a ré em Juízo.
Cessadas as funções da curadora ad litem, foi concedida à ré nova oportunidade de apresentar contestação, o que fez.
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Antecipadamente a essa contestação, a autora apresentou requerimento de ampliação do pedido, alegando que a ré continuou a não pagar as rendas entretanto vencidas, encontrando-se, assim, em dívida os valores referentes aos meses de novembro de 2018 até março de 2022, perfazendo o valor acrescido de € 29.036,20 para o prédio de ... e € 10.922,40 referente ao prédio de Matosinhos, a que acresce a indemnização correspondente ao valor de 50% das rendas.
Assim, peticiona a ampliação do pedido no montante de € 49.199,84, a acrescer ao valor inicialmente pedido.
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A ré apresentou contestação, por impugnação.
Alega que não se recorda da celebração de qualquer contrato de arrendamento referente aos dois bens imóveis em causa, sendo que as alegadas rendas pagas aos sócios visaram apenas a repartição dos rendimentos gerados pela sociedade.
Refere que com a insolvência de BB, este e a autora venderam-lhe a sua parte nos imóveis, cujo preço lhes foi pago, negócio esse que veio a ser resolvido pelo administrador de insolvência, ficando a ré desapossada do valor que pagou.
Assim, a autora deveria ter restituído à ré as quotas partes dos prédios, nunca tendo devolvido o valor que esta pagou por essa compra, não restando à ré alternativa senão propor uma ação com vista a obter esse pagamento ou a restituição das quotas partes indivisas dos prédios.
Assim, entende a ré que a autora não pode arrogar-se a um direito que não lhe foi transmitido na sequência da partilha devendo improceder a ação.
Por fim, deduz oposição à ampliação do pedido, por a entender prejudicada face à falta de fundamento para o pedido inicial.
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Findos os articulados, foi proferido despacho saneador, onde se admitiu a ampliação do pedido e procedeu à identificação do litígio e identificação dos temas da prova.
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Procedeu-se a audiência final, que decorreu com observância das formalidades legais.
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Após a audiência de julgamento foi, a 17.10.2023, proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente nos seguintes termos:
a) condeno a ré a pagar à autora a quantia de € 63.888,18.
b) absolvo a ré do demais peticionado contra si.
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Interposto recurso de apelação por ambas as partes, em sede de alegações de recurso foram, designadamente, invocadas nulidades da sentença, bem como requerida a sua reforma, pelo que os autos foram devolvidos à 1ª Instância para sua prévia apreciação.
*
Em consequência, a 14.03.2024 foi proferido despacho de rectificação da sentença, nos seguintes termos:
“Tomei conhecimento da douta decisão sumária proferida pelo Venerando Tribunal da Relação do Porto.
Em obediência à mesma, cumpre analisar as nulidades apontadas pela autora nas suas alegações de recurso, nos termos do art. 617º do Código de Processo Civil.
Invoca a autora/recorrente a nulidade da sentença e requer ainda a reforma da mesma.
Para o efeito alega, em síntese, que a sentença (i) padece de nulidade por omissão de pronúncia, nos termos do disposto na al. d) do nº 1 do art. 615º do Código de Processo Civil e (ii) deve ser reformada, pois dá indevidamente como provados factos contra meios de prova que, por si só, implicam decisão diversa, violando o disposto no art. 371º do Código Civil.
A parte contrária, nas suas contra alegações pronunciou-se dizendo que não ocorrem as nulidades apontadas, por o Tribunal se ter pronunciado sobre as questões suscitadas pela autora/recorrente, nomeadamente porquanto a mesma não formulou pedido de restituição do imóvel e relativamente ao imóvel que na sentença não se considerou provada a existência de contrato de arrendamento, apenas podia a recorrente reclamar o pagamento de uma compensação pela ocupação e não o montante de uma renda.
Como tal, nunca podia a recorrida ser condenada ao pagamento de qualquer multa, como se pode fazer pela mora no pagamento das rendas, quando esta se verifica.
Cumpre decidir.
1. Quanto à nulidade da sentença.
«A) - Não conhecimento do pedido de condenação da ré/apelada no pagamento de rendas vencidas e vincendas, em indemnização por utilização e na entrega do locado/imóvel
1 - A autora/apelante em 08.11.2018 intentou a presente ação peticionando a condenação da ré/apelada no pagamento da quantia de € 19.004,10, a título de rendas vencidas entre Outubro de 2017 a Outubro de 2018 e indemnização de 50% sobre essas rendas.
2 - Em 21.03.2022 a Apelante requereu a ampliação do pedido, para que a Apelada fosse condenada, para além do montante peticionado na p.i., a pagar-lhe:
a) - a quantia de € 49.119,84, correspondente às rendas dos meses de Novembro de 2018 a Março de 2022, e respetiva indemnização por mora; e,
b) - as rendas mensais que se vencerem desde Abril de 2022, inclusive, em diante, e correspondente indemnização por mora, até efetivo e integral regularização das rendas em dívida, enquanto subsistir a obrigação de pagamento das rendas, à razão de € 708,20 e € 266,40, devidas pelo gozo dos prédios descritos nas verbas um e dois do artigo 1º da p.i., respetivamente.
3 - Esta ampliação do pedido foi admitida no douto despacho saneador, nos precisos termos formulados.
4 - Relativamente a estas questões, exarou-se na douta sentença, na sua
“Fundamentação de Direito”, quanto ao prédio identificado na verba 1, o seguinte:
“A questão seguinte que se coloca ao Tribunal é aferir do alegado incumprimento por parte da ré, quanto ao pagamento das rendas à autora.
Este não pagamento das rendas, que já dura desde Outubro de 2017 e se mantém até ao presente foi aceite pela ré, desde a sua contestação, pelo que o essencial do litígio não passa por este aspeto.
Cabe ao arrendatário a obrigação de pagamento das rendas, sabendo-se que a ré incumpriu com essa obrigação, a partir do mês de Outubro de 2017 até à entrega da fração.
(…)
Pelo que se reconhece razão à autora no pedido de pagamento das rendas em atraso, relativamente à verba 1, sita em ..., no valor de 708,00 euros (2.832,80 € : 4 = 708,20 €) mensais.
Aqui está já o Tribunal a incluir os valores pedidos a título de ampliação do pedido, ao qual igualmente se reconhece razão à autora.”.
E,
5 - Quanto ao prédio identificado na verba 2, sito na Rua ..., em Matosinhos, referiu-se na sentença o seguinte:
“Termos em que, declaro nulo o contrato de arrendamento incidente sobre o prédio sito na Rua ..., por inobservância de forma.
Consequentemente, deverá a ré restituir o locado / imóvel aos proprietários.
(…)
A Ré utilizou e ainda utiliza atualmente um imóvel sem pagar a uma das suas proprietárias uma contraprestação.
(…)
Pelo que se reconhece o direito da autora em receber o mesmo montante que cada um dos restantes três proprietários recebe pela utilização deste imóvel, no valor peticionado.
Ou seja, 1.065,60 €:4 = 266,40 euros mensais, perfazendo o valor peticionado, seja no pedido inicial, seja na ampliação do pedido.”
Porém,
6 - Apesar do assim exarado na fundamentação da sentença, o Tribunal não se pronunciou na sua parte decisória, sobre essas questões.
7 - Não condenou, ou absolveu, a Apelada no pagamento das rendas (quanto ao prédio da verba um) e contraprestações a título de indemnização (quanto ao prédio da verba 2), vencidas e vincendas desde Abril de 2022, até efetiva regularização enquanto subsistir o gozo dos prédios pela ré/Apelada.
8 - Não condenou, ou absolveu, a ré/Apelada a entregar o imóvel descrito na verba 2 aos proprietários, o que deveria ter feito em consequência obrigatória da declaração oficiosa da nulidade do contrato de arrendamento por vício de forma.
B) - Não conhecimento do pedido de condenação da ré/Apelada como litigante de má fé
9 - Por requerimento apresentado em 12 de Setembro de 2023 (referência CITIUS 46474966) a Apelante pediu a condenação da Apelada como litigante de má fé em multa e em indemnização em quantia não inferior a € 3.000,00.
10 - Contudo, a sentença não se pronunciou sobre este pedido, como deveria ter feito.
11 - Por esta ordem de razões, a sentença enferma da nulidade referida na al. d) do artigo 615º do CPC, por se ter abstido de conhecer e decidir de questões de que deveria ter conhecido e decidido, pelo que há omissão de pronúncia, nulidade que se invoca e se argui.
12 - Face ao exposto, tem de ser reconhecida a nulidade da sentença agora alegada e arguida, e suprir-se a nulidade apontada, completando-se a condenação da ré/Apelada no sentido de:
- pagar à autora/Apelante as rendas e a indemnização por mora, devidas pelo gozo do prédio identificado em 1 dos factos provados, e as prestações mensais a título de indemnização pela utilização do prédio descrito em 2 dos factos provados, desde Abril de 2022, inclusive, em diante, e enquanto subsistir a utilização dos imóveis, à razão de € 708,20 e € 266,40 por mês, respetivamente;
- a restituir o prédio descrito em 2 dos factos provados;
- pagar multa e indemnização como litigante de má fé».
Analisando.
»» Quanto à não condenação da ré a pagar à autora as rendas e a indemnização por mora, devidas pelo gozo do prédio identificado em 1 dos factos provados, e as prestações mensais a título de indemnização pela utilização do prédio descrito em 2 dos factos provados, desde abril de 2022, inclusive, em diante, e enquanto subsistir a utilização dos imóveis, à razão de € 708,20 e € 266,40 por mês, respetivamente.
Nesta parte, assiste razão à autora/recorrente, pois o Tribunal esqueceu-se de pronunciar-se na sentença relativamente a este pedido.
Ou seja, não nos pronunciamos sobre o pedido formulado na al. b) da ampliação do pedido.
Omissão que importa sanar.
Assim, no seguimento da mesma fundamentação que consta da sentença, o Tribunal tem que reconhecer razão à autora em exigir da ré as rendas vincendas do prédio 1 e a contrapartidas vincendas do prédio 2, enquanto durar o gozo dos imóveis.
Os valores da renda relativos ao prédio 1 são claramente devidos também desde abril de 2022, acrescidos da indemnização pela mora, à razão de 708,20 euros, até à efetiva entrega do imóvel.
Relativamente ao prédio 2, tendo-se concluído pela nulidade do contrato, reconhece-se à autora/apelante o direito a receber, a título do instituto do enriquecimento sem causa que se invocou na sentença, o valor de 266,40 euros mensais até à efetiva entrega do imóvel.
Nesta parte (prédio 2) improcede, pelas razões apontadas na sentença, o direito a receber uma indemnização pela mora.
Termos em que procede parcialmente esta nulidade invocada pela autora.
Pelo que infra se determinará o seu aditamento à sentença.
»» Quanto à restituição do prédio descrito em 2 dos factos provados.
Nesta parte, efetivamente o Tribunal também não se pronunciou.
Contudo, esta omissão foi intencional, porquanto em momento algum a autora formulou este pedido.
O Tribunal não pode condenar em pedido não formulado, em obediência ao disposto no art.º. 609º nº 1 do Código de Processo Civil.
Termos em que improcede esta nulidade invocada pela autora.
»» Quanto à condenação da ré no pagamento à autora de multa e indemnização como litigante de má fé.
Efetivamente a autora/recorrente suscitou este incidente num requerimento autónomo, datado de 12 de setembro de 2023 (ref. 36612293), o qual visou exercer o contraditório ao requerimento e documentos apresentados em 01-09-2023 pela ré.
Pediu a autora a condenação da ré como litigante de má fé em multa e em indemnização em quantia não inferior a € 3.000,00.
Alega a autora/recorrente que a ré:
«… 14 - Desta ata nº ... constata-se que os então sócios da Ré, GG, HH, FF, DD e II deliberaram, por unanimidade, “Atribuir poderes aos sócios gerentes Srs. GG e HH, para outorgarem e assinarem a escritura de contrato de arrendamento, na qual a sociedade vai ser arrendatária da Fração Autónoma designada pela letra “A”, que corresponde a um armazém amplo e casa de banho, na Rua ..., freguesia ..., cidade de Matosinhos, pelo valor mensal de cem mil escudos.” - cfr. Doc. n.º 2.
15 - O sócio DD identificado nesta ata nº ..., é o DD
que, na qualidade de atual sócio e gerente da Ré, subscreveu a procuração forense junta aos autos pela Ré em 22-11-2022 (referência 43959270).
16 - E, foi ele que representou a Ré na outorga da aludida escritura realizada em 19.10.2012.
17 – Este DD e a sua mulher JJ, são os legais representantes da Ré.
18 - Não podia, pois, a Ré ignorar a existência da ata nº ... de 31.03.1988 e da celebração do contrato de arrendamento em causa, e que a Autora não outorgou a escritura de 19.10.2012.
19 - No artigo 542º n.º 2 do CPC, concretizam-se como consubstanciando a litigância de má-fé os comportamentos susceptíveis de infringir os deveres de boa-fé processual e de cooperação, genericamente previstos no art. 8º do CPC, especificando que se considera agir como litigante de má-fé “(…) quem, com dolo ou negligência grave:
a) tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d) tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, seu fundamento sério, o trânsito em julgado da sentença.”
20 - Por seu turno no art. 8º do CPC consagrou-se o dever de boa-fé processual, estipulando-se que as partes devem agir de boa-fé e observar os deveres de cooperação.
21 - No caso dos autos, a Ré nega a existência de qualquer contrato de arrendamento, alega que a escritura de compra e venda outorgada entre si e o BB também foi outorgada pela Autora, não podendo deixar de saber que tais factos não são verdadeiros e que deduzia oposição sem fundamento. Acresce que,
22 - Recusou-se a juntar aos autos documentos essenciais para a descoberta da verdade e que estão em seu poder.
23 - Atua com dolo, pelo que a sua conduta é subsumível na previsão do art. 542º n.º 1 e 2, alíneas a), b) e c) do Código de Processo Civil».
A ré respondeu a esta questão, mediante requerimento datado de 25 de setembro de 2023, pugnando pela sua improcedência.
Alegou, em síntese, que não juntou o contrato de arrendamento por não dispor desse documento nos seus arquivos e não haver um conhecimento acerca da formalização de qualquer contrato e ainda que os atuais sócios e gerentes da ré não tinham acesso ao livro de atas manuscritas e não tinham memória do que aconteceu em 1988.
O Tribunal não atendeu a este pedido de litigância de má fé, não o apreciando em sede de sentença.
Omissão que cumpre sanar.
Cumpre decidir.
Nos termos do art. 542º nº 2 do Código de Processo Civil, “diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave: a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar; b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa; c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação; d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão”.
Verificando-se que a parte litigou de má-fé, é a mesma “condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta a pedir” (art. 542º nº 1 do Código de Processo Civil).
Para aferir da conduta das partes como integradoras da litigância de má fé, importa analisar a factualidade dada como provada, sede de sentença.
Ora, dessa factualidade dada como provada não se pode retirar que a ré tenha atuado em contrário com os ditames da boa fé e/ou tenha incorrido em falta de cooperação para com o Tribunal ou a parte contrária.
Acresce que o Tribunal não incluiu na matéria do litígio esta alegada falta de cooperação da ré porquanto não se tratava do essencial do litígio, não competindo estar a discutir-se em julgamento todas as questões colaterais suscitadas pelas partes, sob pena de aumento da litigiosidade e desvio da atenção do essencial a apurar (porquanto também a autora logrou juntar os documentos, a quem competia o ónus da sua junção).
Pelo que, por falta de factualidade que permita afirmar uma conduta que viole a boa fé processual, resta absolver a ré do pedido de condenação como litigante de má fé.
Decisão que infra se determinará como parte integrante da sentença.
2. Quanto à reforma da sentença.
Nesta parte a autora/recorrente alegou que:
«1 - Em 27 dos Factos Provados deu-se como provado que “Na sequência da insolvência de BB, este e a autora venderam à ré a sua parte nos imóveis.”.
2 - Porém, certamente por lapso, este facto não tem em conta a escritura pública de compra e venda junta pela autora/Apelante com o seu requerimento de 12.09.2023.
3 - Este documento autêntico, que não foi impugnado pela Apelada, faz prova plena dos factos que nele são atestados - art.º. 371º do Cód. Civil.
4 - E os factos provados por ele atestados são, além do mais, que foi o BB, divorciado, que, sozinho, vendeu à Apelada a sua parte nos prédios descritos em 1 e 2 dos factos provados, de que ele, e só ele, era proprietário, não tendo a Apelante tido qualquer intervenção nessa compra e venda.
5 - Nos termos da al. b) do n.º 2 do art. 616º do CPC, este documento implica necessariamente que o facto dado como provado no aludido ponto 27, tem de ser alterado no sentido de que dele passe a constar que “Em 19 de Outubro de 2012 o
BB vendeu à ré a sua parte dos imóveis.”, o que se requer».
A ré não se pronunciou especificamente quanto a esta questão.
Cumpre decidir.
Efetivamente o Tribunal deu como provado o facto 27, com o seguinte teor:
27. Na sequência da insolvência de BB, este e a autora venderam à ré a sua parte nos imóveis.
Para prova deste facto, o Tribunal atendeu ao alegado pelo administrador de insolvência, KK, conforme decorre da motivação da sentença.
Não atendeu o Tribunal ao teor da escritura em causa, efetivamente não impugnada pela ré.
Ora, tal documento, de natureza autêntica, tem força probatória plena quanto ao nele exarado, nos termos do art. 371º do Código Civil.
De tal documento consta a venda ali referida, mas apenas com a intervenção do BB e não da autora.
Assim, tal circunstância leva necessariamente a uma diferente redação do facto 27 dado como provado, dele devendo ser excluída a autora.
Assim, é de atender à requerida reforma da sentença, alterando-se a redação do facto 27 em conformidade.
Consigna-se que se altera tal facto em função do teor da escritura junta pela autora em 12 de setembro de 2023.
Termos em que, com base no atrás exposto, procedem parcialmente as nulidades e a reforma da sentença requeridas pela autora/recorrente.
*
Consequentemente, decido alterar/aditar a sentença proferida, nos seguintes termos:
- O facto 27 dos factos provados passa a ter a seguinte redação: “Na sequência da insolvência de BB, este vendeu à ré a sua parte nos imóveis”.
- acrescenta-se na motivação, relativamente a tal facto, que se atendeu ao teor da escritura pública junta pela autora com o seu requerimento datado de 12/09/2023, documento de natureza autêntica e não impugnado pela ré.
- A decisão final da sentença passará a ter a seguinte redação:
Termos em que julgo a presente ação parcialmente procedente por parcialmente provada e, em consequência:
a) condeno a ré a pagar à autora a quantia de 63.888,18€ (sessenta e três mil e oitocentos e oitenta e oito euros e dezoito cêntimos).
b) relativamente ao prédio 1 condeno a ré a pagar à autora a quantia de 708,20 euros desde abril de 2022, acrescida da indemnização pela mora, até à efetiva entrega do imóvel.
c) relativamente ao prédio 2, condeno a ré a pagar à autora a quantia 266,40 euros mensais até à efetiva entrega do imóvel.
d) absolvo a ré do demais pedido formulado contra si.
e) julgo improcedente o pedido de condenação como litigante de má fé, dele absolvendo a ré.
Consigno que a presente decisão integra/complementa a sentença proferida nos autos.
Notifique.
Após trânsito, abra novamente conclusão a fim de determinar a nova subida ao Venerando Tribunal da Relação do Porto, para apreciação dos recursos que se mantiverem.”
*
Após a realização da audiência, a Sr.ª Juiz a quo, por sentença proferida em 17.20.2023, completada/integrada com o despacho proferido em 17.03.2024, decidiu:
i - condenar a Apelada a pagar à Apelante:
a) a quantia de 63.888,18 euros;
b) relativamente ao prédio 1, a pagar a quantia de € 708,20 mensais desde abril de 2022, acrescida da indemnização pela mora, até à efectiva entrega do imóvel;
c) relativamente ao prédio 2, a pagar a quantia de € 266,40 mensais desde abril de 2022 até à efetiva entrega do imóvel; e,
ii - absolver a Apelada:
a) do demais pedido formulado contra si;
b) do pedido de condenação como litigante de má fé.
*
Convidadas as partes a reformularem as suas alegações em sintonia com o atrás decidido, corresponderam ao convite.
*
Assim,
Não se conformando com a sentença proferida na parte a si desfavorável, a recorrente José Correia ..., Ld.ª, veio apresentar alegações rectificada onde conclui da seguinte forma:
I.Vem o presente recurso interposto da sentença proferida nestes autos que; que julga a ação parcialmente procedente, por provada e consequentemente:
a) condeno a ré a pagar à autora a quantia de 63.888,18€ (sessenta e três mil e oitocentos e oitenta e oito euros e dezoito cêntimos).
b) relativamente ao prédio 1 condeno a ré a pagar à autora a quantia de 708,20 euros desde abril de 2022, acrescida da indemnização pela mora, até à efetiva entrega do imóvel.
c) relativamente ao prédio 2, condeno a ré a pagar à autora a quantia 266,40 euros mensais até à efetiva entrega do imóvel.
d) Condena autora e ré nas custas da ação, na proporção dos respetivos decaimentos (art. 527º nº 1 e nº 2 do Código de Processo Civil).

II. A sentença padece do vicio de nulidade nos termos do disposto no artº 615º nº 1 alª d) do CPC.

III. Na petição inicial e no pedido de ampliação do pedido que a recorrida formulou, não peticiona a restituição do imóvel nem o pagamento até efetiva entrega.
Limita-se a peticionar o pagamento de rendas e a indemnização;

IV. Na sentença recorrida decide condenar a ré a pagar à autora a quantia de 63.888,18€ (sessenta e três mil e oitocentos e oitenta e oito euros e dezoito cêntimos); relativamente ao prédio 1 a ré a pagar à autora a quantia de 708,20 euros desde abril de 2022, acrescida da indemnização pela mora, até à efetiva entrega do imóvel.
relativamente ao prédio 2, condeno a ré a pagar à autora a quantia 266,40 euros mensais até à efetiva entrega do imóvel.

V. O excesso de pronúncia ocorre quando se procede ao conhecimento de questões não suscitadas pelas partes ou que sejam de conhecimento oficioso, por força do disposto na 2ª parte da alínea d) do nº 1 do artigo 615º do Código de Processo Civil (ex vi artigo 666º, nº 1, do mesmo diploma).

VI. Ao pronunciar a sentença “até à efetiva entrega do imóvel” pronuncia além do pedido que foi formulado pela autora, como tal, padece a sentença do vicio de nulidade.

VII. No presente recurso procede-se à impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto com reapreciação da prova gravada;

VIII. Em conformidade com o disposto nos nºs 1 e 2 do artº 640º do C.P. Civil, especificam-se; a) Quais os concretos pontos de facto que se consideram incorretamente julgados; b) Quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunha decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

IX. Em cumprimento do disposto na referida disposição legal, a Ré considera incorretamente julgado os factos julgados como não provados correspondentes à alíneas b), c), d), f), g) e h), que infra se reproduzem;
“b) - Não houve uma deliberação válida tomada pela ré para a aquisição referida em 27 dos factos provados”
“c)- Não houve uma assembleia geral validamente convocada ou reunião, em que tivessem participado todos os sócios, com a intenção de deliberarem sobre a venda referida em 27. “
“d) A sócia EE não assinou qualquer ata correspondente à deliberação dos sócios da ré.”
(…)
“f) O BB não restituiu à ré o montante que tinha pago pela venda.“
“g) Quando se operou a resolução da venda referida em 27, não foi declarado que aquele beneficiava de qualquer renda. “
“h) A intenção no pagamento das rendas sempre foi favorecer os sócios e gerentes da ré, como forma de os recompensar pelo trabalho desenvolvido, visando menores efeitos tributários e fiscais.”

X. Quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunha decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
- Depoimento da testemunha LL – contabilista, cujo depoimento encontra-se gravado em suporte sonoro de 11:21:51 a 11:55:41, conforme consta da ata de audiência de julgamento realizada no dia 10-10-2023; - Depoimento da testemunha FF cujo depoimento encontra- se gravado em suporte sonoro de 11:21:51 a 11:55:41, conforme consta da ata de audiência de julgamento realizada no dia 10-10-2023; e - Depoimento da testemunha Dr. KK, advogado, administrador de insolvência, cujo depoimento ficou gravado em suporte sonoro de 12:01:24 a 12:15:50, conforme consta da ata de audiência de julgamento realizada no dia 10-10-2023, indicando-se supra as respetivas passagens dos registos dos depoimentos que se consideram relevantes para apreciação da alteração da matéria de facto, que aqui se dão por integralmente reproduzidas por economia processual.

XI. A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. Face à ponderação e análise critica da prova testemunhal e documental produzida nestes autos, a decisão proferida sobre os factos impugnados e considerados na sentença como não provada nas alíneas b), c), d), f), g) e h) devem passar a contar da matéria de facto provada.

XII. Fundamenta-se a alteração da matéria de factos objeto de impugnação com reapreciação da prova gravada nos depoimentos atrás indicados conjugadamente com os documentos juntos aos autos, designadamente a certidão permanente da sociedade que permite provar os elementos da matricula da sociedade Ré e os seus órgãos (sócios e gerentes)M;

XIII. A testemunha Drª LL confirmou que os imóveis identificados nestes autos desde sempre foram ocupados pela sociedade Ré, não sabendo precisar o tempo em que tal ocorre; As importâncias eram pagas a título de rendas por ser mais vantajosa a foram de retirar vantagens dos rendimentos da sociedade, paga menos impostos e não paga segurança social; Não consegue dividir as denominadas rendas pelos dois imóveis, por ser paga numa única importância; Também referiu que com a venda da quota parte nos imóveis que era detida pelo BB, a sociedade deixou de pagar renda, uma vez que, passou a ser proprietária;
Revelou ter conhecimento que ocorreu resolução a favor da massa insolvente e que em 2017 as quotas partes nos imóveis passaram a ser detidas por outro titular; sendo certo que na sociedade mantém em aberto o valor pago a BB e que nunca foi restituído à sociedade;

XIV. A testemunha FF, que é sócio da Ré e foi seu gerente até 2022 não tinha ideia da celebração da escritura de arrendamento que lhe foi exibida;
Disse que não teve qualquer participação acerca da forma como a sociedade efetua os pagamentos a cada um dos seus sócios; Afirmou que em divida de seu pai – GG era este que tomava todas as decisões sem que fosse contestado;
Também não se recorda de ter participado em alguma deliberação para a compra pela sociedade Ré das quotas partes que pertenceram ao seu irmão BB.

XV. Por fim, a testemunha Dr. KK, no essencial afirmou que, quando decidiu a resolução a favor da massa não tinha conhecimento que os imóveis se encontrassem arrendados. Tendo tomado conhecimento da existência de um arrendamento quando foi efetuada a avaliação dos imóveis. Como foi celebrado um acordo com o insolvente e a sua esposa, nunca deu relevância ao arrendamento. Pelo que, quando se operou a resolução da venda referida em 27 dos factos considerados provados, não foi declarado que beneficiava de qualquer renda.

XVI. No que respeita à alínea g) dos factos provados, quer a testemunha Dr.ª LL quer FF também corroboram que, quando da resolução da venda não foi declarado que beneficiava de qualquer renda.

XVII. No que respeita à factualidade que consta das alíneas b), c), d), f) e h), deve a decisão sobre esta factualidade ser alterada, passando ser considerada provada, por não ter sido demonstrado que houve uma deliberação válida tomada pela ré para a aquisição referida em 27, nomeadamente que a assembleia geral foi validamente convocada em que tivessem participado todos os sócios com a intenção de deliberarem sobre a venda referida em 27.

XVIII. Saliente-se que a testemunha FF, sócio e gerente da sociedade Ré à data dos aludidos factos, não tem memória que tenha havido alguma deliberação.
Como tal, também a sócia EE não assinou qualquer ata correspondente à deliberação dos sócios da ré. Esta mesma testemunha referiu que o valor que é pago pela sociedade se manteve inalterado ao longo dos anos, por se dos próprios sócios.

XIX. Estamos assim perante erro manifesto e notório da decisão proferida pelo Tribunal recorrido sobre a matéria de facto colocada em crise neste recurso.

XX. Por conseguinte, contrariamente ao que consta da sentença recorrida a autora não provou o facto constitutivo do seu direito - artº 342º do CC; Sendo certo que, face à forma como a presente ação se encontra delimitada pela autora e a posição que a Ré sobre a mesma toma, não permite que estes autos sejam decididos apenas tendo por consideração a presunção prevista no artº 516º do Código Civil.

XXI. Não se suscitam quaisquer dúvidas que, a contrapartida que é paga aos sócios da Ré não têm uma relação direta com a ocupação dos imóveis. O que encontra sustentação no facto de não ser paga uma renda por cada imóvel mas, um montante global. Situação que se mantém sem alterações, por decisão do falecido GG com a intenção de permitir retirar da sociedade, com menos encargos (impostos e contribuições) o rendimento que gera.

XXII. Não se pode aceitar que estamos perante uma verdadeira relação jurídico contratual de arrendamentos que beneficie a Autora;

XXIII. Por um lado, porque essa nunca foi a intenção do autor de apenas um dos documentos que se intitulam contratam de arrendamento - José Correia ...; Salientando que, no que respeita ao outro imóvel não existe sequer contrato com semelhantes características;

XXIV. Depois, o direito transmitido à Autora pela massa insolvente não integrou o direito ao arrendamento. Pelo que, não é admissível fazer nascer um direito de forma espontânea, que carece de intervenção conjunta de todos os interessados, quer comproprietários quer sócios da Ré.

XXV. Nenhum incumprimento contratual pode ser imputado à Ré;

XXVI. Padece assim de erro a subsunção jurídica que consta da sentença recorrida.

XXVII. A sentença recorrida faz errada interpretação e aplicação do R.A.U. e do regime do arrendamento urbano anterior a este regime. Nomeadamente no que respeita à exigibilidade de forma para os contratos de arrendamento.

XXVIII. Fazendo-se ainda na sentença recorrida errada interpretação e aplicação do disposto no artº 473º do Código Civil.

XXIX. O enriquecimento sem causa constitui, no nosso ordenamento jurídico, uma fonte autónoma de obrigações e assenta na ideia de que pessoa alguma deve locupletar-se à custa alheia.

XXX. A obrigação de restituir/indemnizar fundada no instituto do enriquecimento sem causa pressupõe a verificação cumulativa dos quatro seguintes requisitos: a) a existência de um enriquecimento; b) que ele careça de causa justificativa; c) que o mesmo tenha sido obtido à custa do empobrecimento daquele que pede a restituição; d) que a lei não faculte ao empobrecido outro meio de ser restituído/indemnizado;

XXXI. O enriquecimento carecerá de causa justificativa sempre que o direito não o aprove ou consinta, dado não existir uma relação ou um facto que, de acordo com as regras ou os princípios do nosso sistema jurídico, justifique a deslocação patrimonial ocorrida, isto é, que legitime o enriquecimento.

XXXII. Considerando que a lei não define tal conceito e dada a natureza diversa da fonte de que pode emergir, tal significa que o enriquecimento injusto terá sempre que ser apreciado e aferido casuisticamente, interpretando e integrando a lei à luz dos factos apurados.

XXXIII. Naquilo que tem sido entendido como uma ampliação ao 3º requisito acima enunciado, a obrigação de restituir pressupõe ainda que o enriquecimento tenha sido obtido imediatamente à custa daquele que se arroga ao direito à restituição, por forma a não dever haver de permeio, entre o acto gerador do prejuízo dele e a vantagem alcançada pelo enriquecido, um outro qualquer acto jurídico – carácter imediato da deslocação patrimonial.

XXXIV. Porém, tal exigência não deverá assumir um carácter absoluto, por forma a deixar-se ao julgador campo de manobra suficiente de modo a poder aferir se a mesma aplicada a uma situação em concreto se mostra excessiva e evitar, nesse caso, que ela conduza a uma solução que choque com o comum sentimento de justiça.

XXXV. As ações baseadas nas regras do instituto do enriquecimento sem causa têm natureza subsidiária, só podendo a elas recorrer-se quando a lei não faculte ao empobrecido outros meios de reação.

XXXVI. Por tudo o que atrás se conclui não subsiste fundamento para que a Ré tenha de pagar à Autora as peticionadas rendas;

XXXVII. Designadamente não existe fundamento para aplicação do instituto do enriquecimento sem causa.

XXXVIII. A ser aplicado tal instituto, é no sentido inverso, uma vez que, a Autora é titular de quotas partes de imóveis que a sociedade Ré pagou e que por força da aplicação da resolução a favor da massa insolvente, acabou por beneficiar aquela no âmbito da partilha por divórcio.

XXXIX. Encontrando-se a sociedade Ré sem imóveis e sem dinheiro. A que acresce
complicada situação contabilísticas, tributária e fiscal.

XL. Assim sendo, a sentença aqui colocada em crise deve ser revogada e substituída por outra que julgue a presente ação totalmente procedente, por provada.
*
Não se conformando com a decisão proferida na parte que não condena a Apelada relativamente ao prédio identificado em 2 dos factos provados, sito na Rua ..., ..., a restitui-lo à Autora/Apelante e como litigante de má-fé, a recorrente AA veio também apresentar alegações retificadas onde conclui da seguinte forma:

I.O presente recurso é interposto da parte da douta sentença recorrida, completada com o despacho de retificação proferido em 17.03.2024, que não condenou a ré/Apelada:
- a restituir à Apelante o prédio indicado em 2 dos factos provados, sito na Rua ..., ..., na cidade de Matosinhos;
- como litigante de má fé.

II. Recorre-se, por se entender, salvo o muito respeito devido, que a sentença:
- absolve indevidamente a Apelada da obrigação de restituição desse prédio, violando o disposto no art. 289º, n.º 1 do Código Civil.
- absolve indevidamente a Apelada do pedido de condenação como litigante de má fé, violando o artigo 542º, ns. 1 e 2, als. a), b) e c) do CPC.

Assim:
III. A Apelante intentou a presente ação alegando que o prédio descrito em 2 dos factos provados, sito na Rua ..., ..., Matosinhos, se encontrava arrendado à ré/Apelada.

IV. Porém, relativamente a este prédio deu-se como provado que, embora tal prédio se encontre arrendado à Apelada, não existe qualquer documento que titule esse contrato.

V. Por tal, a M.ma Juiz “a quo” decidiu, pelas razões por si proficuamente aduzidas que “(…) não tendo o contrato de arrendamento, celebrado entre ré e senhorios, observado a forma legalmente prescrita (escritura pública), é o mesmo nulo.”, declarando, consequentemente “(…) nulo o contrato de arrendamento incidente sobre o prédio sito na Rua ..., por inobservância de forma”, nulidade que é invocável a todo o tempo por qualquer interessado e pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal, de acordo com o disposto nos arts. 220º e 286º do Código Civil.

VI. Nos termos do disposto no artigo 289º, n.º 1 do Código Civil, decorre diretamente
da declaração de nulidade a obrigação de restituir tudo quanto foi prestado, pelo que, neste entendimento incensurável, declara-se na “Fundamentação de Direito” da sentença recorrida, que “Consequentemente, deverá a ré restituir o local/imóvel, aos proprietários”.

VII. Contudo, censura-se a sentença, por não condenar a Apelada a restituir o prédio
descrito em 2 dos factos provados.

VIII. Para tanto, refere-se no referido despacho proferido em 17.03.2024, integrante da sentença recorrida, que o Tribunal “a quo” não se pronunciou intencionalmente sobre essa questão, porquanto em momento algum a autora/Apelante formulou pedido de restituição do prédio, não podendo condenar em pedido não formulado, em obediência ao disposto no artigo 609º, n.º 1 do Código de Processo Civil.

IX. Não podemos, com o muito respeito devido, concordar com este entendimento.

X. É certo que a necessidade de formulação de um pedido pelo interessado na resolução de um conflito está fixada no artigo 609º do Código de Processo Civil.

XI. Porém, no caso dos autos, deve aplicar-se a doutrina do Assento n.º 4/95, de 17.05.1995 que firmou que: “Quando o Tribunal conhecer oficiosamente da nulidade do negócio jurídico invocado no pressuposto da sua validade, e se na ação tiverem sido fixados os necessários factos materiais, deve a parte ser condenada na restituição do recebido, com fundamento no n.º 1 do artigo 289º do Código Civil.”.

XII. Esta decisão resulta da incumbência que cabe aos tribunais da qualificação jurídica da situação concreta e julgar com base em fundamento jurídico diferente do enunciado pela respetiva parte.

XIII. Evita-se assim à Apelante o ónus de propor nova ação com fundamento na nulidade do contrato de arrendamento (já declarada nos presentes autos) para obter a restituição.

XIV. Deste modo, como consequência da declaração de nulidade do contrato de arrendamento, deverá ser a Apelada condenada a restituir o prédio descrito em 2 dos factos provados, sito na Rua ..., ..., na cidade de Matosinhos, nos termos do disposto no artigo 289º, n.º 1 do Código Civil.

XV. A Apelada negou a existência de qualquer contrato de arrendamento e alega que a escritura de compra e venda outorgada entre si e o BB também foi outorgado pela Apelante, como vendedora, não podendo deixar de saber que tais factos não são verdadeiros e que deduzia oposição sem fundamento.

Acresce que,
XVI. Recusou juntar documentos essenciais para a descoberta da verdade e que tinha em seu poder.

XVII. Deverá, pois, ser a Apelada condenada como litigante de má fé em multa e indemnização à Apelante em quantia não inferior a € 3.000,00, ao abrigo do disposto no artigo 542º, n.º 1 e 2, als. a), b) e c) do CPC.

XVIII. A douta sentença recorrida violou as normas dos artigos 289º n.º 1 do Código Civil e 542º do CPC.
*
2. Factos
2.1 Factos provados
O Tribunal a quo considerou provados os seguintes factos:
1. Mostra-se registada em nome da autora, na proporção de ¼ indiviso, a fração autónoma designada pela letra “A”, composta por armazém, com acesso pela Rua ..., afeta ao prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito na Rua ..., ..., união de freguesias ... e ..., concelho de Matosinhos, inscrito na respetiva matriz sob o art.º. ..., e descrito na Conservatória do Registo Predial de Matosinhos sob o nº .../..., conforme documentos 1 e 2, juntos com a petição inicial.
2. Mostra-se registado em nome da autora, na proporção de ¼ indiviso, o prédio urbano composto por casa de dois pavimentos e pátio, sito na Rua ..., ..., união de freguesias ... e ..., concelho de Matosinhos, inscrito na respetiva matriz sob o artigo ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de Matosinhos como parte do n.º .../Matosinhos, conforme documentos 3 e 4, juntos com a petição inicial.
3. Conforme certidão da Conservatória do Registo Predial, a titularidade desses prédios adveio à autora por adjudicação, na partilha de património comum conjugal, feita na sequência do seu divórcio por mútuo consentimento de BB por escritura pública outorgada no dia 25 de setembro de 2017 no Cartório Notarial do Porto do Notário Dr. CC, exarada de fls. 113 a 115 do Livro ...-M deste Cartório, conforme documentos 1, 2, 3, 4 e 5 juntos com a petição inicial.
4. Os referidos direitos indivisos sobre os indicados prédios encontram-se definitivamente inscritos a favor da autora, pela inscrição Ap. ... de 2017/20, conforme documentos 1 e 2 juntos com a petição inicial.
5. A ré é uma sociedade comercial por quotas que tem como objeto social o comércio por grosso de peixe, crustáceos e moluscos, assim como a industria de preparação de produtos da pesca e da aquicultura, a armazenagem de produtos alimentares congelados, o comércio a retalho de peixe, crustáceos e moluscos congelados, o comércio por grosso de produtos alimentares congelados e o comércio a retalho de outros produtos alimentares congelados, conforme documento nº 6 junto com a petição inicial.
6. O seu capital social de 249.398,95 euros, encontra-se dividido em 5 quotas, sendo:
a) duas quotas, cada uma no valor nominal de 29.927,87€, pertencentes à autora;
b) uma quota no valor nominal de 59.855,75€, pertencente a DD;
c) uma quota no valor nominal de 69.831,75€, pertencente a EE;
d) uma quota no valor nominal de 59.855,75€, pertencente a FF, conforme documento nº 6 junto com a petição inicial.
7. A sociedade ré obriga-se pela assinatura conjunta de dois gerentes, conforme documento nº 6 junto com a petição inicial.
8. Os atuais gerentes da ré são DD e JJ, conforme certidão da Conservatória do Registo Comercial junta aos autos.
9. Por contrato de arrendamento de 04/04/1988, celebrado por escritura pública outorgada no Cartório Notarial de Matosinhos, os então proprietários cederam à ré, que aceitou, o gozo temporário do prédio urbano descrito em 1, com destino a armazém, mediante uma contrapartida pecuniária, a pagar mensalmente no domicílio de cada um dos senhorios, no primeiro dia útil do mês a que respeitar, conforme documento junto com o requerimento datado de 14/01/2020.
10. Este contrato mantém-se em vigor, sendo que a respetiva renda mensal, mercê das atualizações legais a que foi sendo sujeita, cifra-se atualmente, desde a que se venceu no mês de janeiro de 2017, em 2.832,80€.
11. Esta renda mensal, desde o início do contrato de arrendamento, é paga diretamente pela ré a cada um dos comproprietários/senhorios, fracionadamente na proporção das respetivas quotas, no primeiro dia útil do mês a que respeita.
12. Por contrato de arrendamento com data não apurada, mas que terá ocorrido em data posterior a 1990, os então proprietários cederam à ré, que aceitou, o gozo temporário do prédio urbano descrito em 2, para estabelecimento comercial, mediante uma contrapartida monetária, a pagar mensalmente no domicílio de cada um dos senhorios, no primeiro dia útil do mês a que respeitar.
13. Este contrato mantém-se em vigor, sendo que a respetiva renda mensal, mercê das atualizações legais a que foi sendo sujeita, cifra-se atualmente, desde a que se venceu no primeiro dia útil de janeiro de 2017, em 1.065,60 €.
14. Esta renda mensal, desde o início do contrato de arrendamento, é paga diretamente pela ré a cada um dos comproprietários/senhorios, fracionadamente na proporção das respetivas quotas, no primeiro dia útil do mês a que respeita.
15. No início do mês de outubro de 2017 a autora comunicou à ré, na pessoa dos seus gerentes, que havia adquirido esta quota parte dos prédios que lhe estavam arrendados.
16. E que a ré, daí em diante, lhe devia passar a pagar as rendas mensais, na parte a que tinha direito, por transferência bancária ou depósito bancário na sua conta com o IBAN: ....
17. A ré não pagou à autora a parte da renda mensal que se venceu no mês de outubro de 2017, devida pelo gozo do prédio descrito em 1, no valor de € 708,20 = (€ 2.832,80 : 4), nem as demais posteriores que se foram vencendo.
18. A ré não pagou à autora a parte da renda mensal que se venceu no mês de outubro de 2017, devida pelo gozo do prédio descrito em 2, no valor de € 266,40 = (€ 1.065,60: 4), nem as demais posteriores que se foram vencendo.
19. Por carta registada com aviso de receção de 08/02/2018, que a ré recebeu em 14.02.2018, o mandatário da autora interpelou a ré para, além do mais:
“(…)
a) no prazo máximo de 10 dias a contar da data da presente carta, pagarem à m/Constituinte a quantia de € 6.822,20, eventualmente deduzida da retenção na fonte de IRS se procederem a essa retenção, correspondente ao valor das rendas mensais dos meses de Outubro de 2017 a Fevereiro de 2018, ambos inclusive, a que tem direito;
b) doravante, em cada mês, a partir das rendas que se vencem no próximo mês de Março de 2018, passarem a pagar à m/Constituinte o valor que lhe pertence nas rendas;
c) a quantia de € 6.822,20 supra referida na alínea a) e as quantias a que se alude na anterior alínea b) deverão ser pagas por transferência bancária para a conta da m/Constituinte, com o IBAN: ...
(…)”, conforme documento 7 junto com a petição inicial.
20. A ré não pagou à autora a parte da renda mensal que se venceu no mês de Novembro de 2018, devida pelo gozo do prédio descrito em 1 no valor de € 708,20 = (€ 2.832,40 : 4), nem as demais posteriores que se foram vencendo (ampliação do pedido).
21. Não foram pagas, e relativamente ao prédio descrito naquela verba um, as rendas correspondentes aos meses de Novembro de 2018 a Março de 2022, ambas inclusive, no montante global de € 29.036,20 (€ 708,20 x 4 meses).
22. A ré não pagou à autora a parte da renda mensal que se venceu no mês de Novembro de 2018, devida pelo gozo do prédio descrito em 2, no valor de € 266,40 = (€ 1.065,60 : 4), nem as demais posteriores que se foram vencendo.
23. Não foram pagas, relativamente ao prédio descrito naquela verba dois, as rendas correspondentes aos meses de Novembro de 2018 a Março de 2022, ambas inclusive, no montante global de € 10.922,40 (€ 266,40 x 41 meses).
24. Atualmente a quota que pertencia a EE, foi transmitida a JJ.
25. Os contratos de arrendamento referidos em 9 e 12 foram decididos pelo sócio fundador MM, falecido, visando repartir rendimentos entre os sócios da sociedade ré, através do pagamento de rendas.
26. FF é sócio da ré e foi gerente desde a fundação até ao ano de 2022.
27. Em 19 de Outubro de 2012 o BB vendeu à ré a sua parte dos imóveis.
28. No âmbito do processo de insolvência de BB foi proferida decisão de resolução dos negócios celebrados por este, pelo que reverteu a favor da massa insolvente a quota parte dos imóveis em causa.
29. A massa insolvente nunca reclamou nem recebeu qualquer renda da ré..
*
2.2. Factos não provados
O Tribunal a quo considerou não provados os seguintes factos:
a) A autora e BB nunca deixaram de viver em comum como marido e mulher e já voltaram a formalizar o casamento.
b) Não houve uma deliberação válida tomada pela ré para a aquisição referida em 27 dos factos provados.
c) Não houve uma assembleia geral validamente convocada ou reunião, em que tivessem participado todos os sócios, com a intenção de deliberarem sobre a venda referida em 27.
d) A sócia EE não assinou qualquer ata correspondente à deliberação dos sócios da ré.
e) O marido da autora manteve sempre, de facto, a gestão da ré, até à constituição de uma sociedade concorrente denominada A..., Lda.
f) O BB não restituiu à ré o montante que tinha pago pela venda.
g) Quando se operou a resolução da venda referida em 27, não foi declarado que aquele beneficiava de qualquer renda.
h) A intenção no pagamento das rendas sempre foi favorecer os sócios e gerentes da ré, como forma de os recompensar pelo trabalho desenvolvido, visando menores efeitos tributários e fiscais.
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Foram apresentadas contra-alegações.
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Colhidos que se mostram os vistos legais e nada obstando ao conhecimento do recurso, cumpre decidir.

3. Delimitação do objecto do recurso; questões a apreciar:
Das conclusões formuladas pelas recorrentes as quais delimitam o objecto do recurso, tem-se que as questões a resolver prendem-se com saber:
3.1 Do recurso interposto pela Ré
- Da nulidade da decisão;
- Da impugnação da matéria de facto;
- Do mérito da decisão.

3.2 Do recurso interposto pela A.
- Da não condenação na restituição do prédio descrito no ponto 2 dos factos provados;
- Da litigância de má fé.

4. Conhecendo do mérito dos recursos:
4.1 Do recurso interposto pela Ré
4.1.1 Da nulidade da decisão
Invoca, desde logo, a Ré/recorrente que a sentença padece do vício de nulidade nos termos do disposto no artigo 615º, nº 1, alª d) do Código de Processo Civil.
Alega para tanto, que na petição inicial e no pedido de ampliação do pedido que a autora/recorrida formulou, não peticionou a restituição do imóvel, nem o pagamento até efectiva entrega, limitando-se a peticionar o pagamento de rendas e a indemnização.
Acrescenta, todavia, que na sentença recorrida decide-se condenar a ré a pagar à autora a quantia de € 63.888,18, e ainda: relativamente ao prédio 1 a quantia de 708,20 euros desde abril de 2022, acrescida da indemnização pela mora, até à efectiva entrega do imóvel e relativamente ao prédio 2 a quantia 266,40 euros mensais até à efectiva entrega do imóvel.
Assevera, por isso, que ao dizer a sentença “até à efetiva entrega do imóvel” pronuncia-se além do pedido que foi formulado pela autora, como tal, padecendo do vício de nulidade.
Vejamos então.
O Código Processo Civil enumera, imperativamente, no n.º 1, do seu artigo 615º, aplicável ex vi artigo 666º do mesmo diploma, as causas de nulidade da sentença.
Como é sabido, os vícios da nulidade da sentença correspondem aos casos de irregularidades que põem em causa a sua autenticidade (falta de assinatura do juiz), ou a ininteligibilidade do discurso decisório por ausência total de explicação da razão por que decide de determinada maneira (falta de fundamentação), quer porque essa explicação conduz, logicamente, a resultado oposto do adoptado (contradição entre os fundamentos e a decisão), ou ocorra alguma ambiguidade, permitindo duas ou mais interpretações (ambiguidade), ou quando não é possível saber com certeza, qual o pensamento exposto na sentença (obscuridade), quer pelo uso ilegítimo do poder jurisdicional em virtude de pretender conhecer questões de que não podia conhecer, condenando em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido (excesso de pronúncia) ou não tratar de questões de que deveria conhecer (omissão de pronúncia).
Considerando o objecto do recurso, devemos adiantar que nos termos da lei adjectiva civil (art.º 615º do Código de Processo Civil) é nula a sentença quando o Tribunal condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido (n.º 1, alínea e) in fine, do art.º 615º do Código de Processo Civil).
A propósito, o nosso direito adjectivo civil determina que o Tribunal está impedido de condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que for pedido (art.º 609º, n.º 1 do Código de Processo Civil), pelo que, o Tribunal não só, não pode conhecer, por regra, senão das questões que lhe tenham sido apresentadas pelas partes, como também não pode proferir decisão que ultrapasse os limites do pedido formulado, nomeadamente, no que respeita ao seu próprio objecto, sob pena de o aresto a proferir ficar afectado de nulidade.
Como sustenta, Teixeira de Sousa, in Estudos sobre o Novo Processo Civil, página 362, “um limite máximo ao conhecimento do tribunal é estabelecido pela proibição de apreciação de questões que não tenham sido suscitadas pelas partes, salvo se forem de conhecimento oficioso (art.º. 660º, nº 2, 2.ª parte), e pela impossibilidade de condenação em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido (art.º. 661º, n.º 1). A violação deste limite determina a nulidade da sentença por excesso de pronúncia (art. 668°, n° 1, al. d) 2.ª parte) ou por conhecimento de um pedido diferente do formulado (art. 668°, n° 1, al. e))”.
De resto, a nulidade da sentença quando o Tribunal condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido colhe o seu fundamento no princípio dispositivo que atribui às partes, a iniciativa e o impulso processual, e no princípio do contraditório, segundo o qual o Tribunal não pode resolver o conflito de interesses, que a demanda pressupõe, sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes e a outra seja chamada para se opor.
Assim, a decisão que ultrapassa o pedido formulado, sem modificação objectiva da instância, passando a abranger matéria distinta, está eivada de nulidade prevista na consignada alínea e) do art.º 615º do Código de Processo Civil, pois, a sentença não pode conhecer de objecto diverso do pedido, o que significa que o Tribunal não pode conhecer, em regra, senão das questões suscitadas pelas partes, não podendo ultrapassar, nem em quantidade, nem em qualidade, os limites constantes do pedido, sendo que não havendo coincidência entre o decidido e o pedido, estar-se-á face a uma extra petição, vício que produz nulidade do aresto.
Ou seja, o vício da nulidade da sentença, nos termos enunciados, encerra um desvalor que excede o erro de julgamento, por isso, inutiliza o julgado na parte afectada.
Ora, no caso vertente verifica-se que a autora formulou o pedido que a seguir se transcreve:
“AA, instaurou acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra B..., Ld.ª, onde concluiu pedindo a condenação da ré no pagamento da quantia de € 19.004,10, a título de rendas em atraso e indemnização de 50% sobre essas rendas vencidas.
Ulteriormente, a autora apresentou requerimento de ampliação do pedido, alegando que a ré continuou a não pagar as rendas entretanto vencidas, encontrando-se, por isso, também em dívida os valores referentes aos meses de Novembro de 2018 até Março de 2022, perfazendo o valor acrescido de € 29.036,20 para o prédio de ... e de € € 10.922,40 referente ao prédio de Matosinhos, a que, ainda, acresce a indemnização correspondente ao valor de 50% das rendas.
Assim, concluiu pedindo a ampliação do pedido no montante de € 49.199,84, a acrescer ao valor inicial.”
Como se constata, a autora formula, com toda a clareza e simplicidade, um pedido muito concreto, que posteriormente amplia, que é o da condenação da ré no pagamento da quantia certa, no período temporal por si delimitado, ou seja, até Março de 2022.
Sucede que na decisão recorrida condenou-se a R. a pagar à A. as quantias aí definidas, sob as alíneas b) e c), desde Abril de 2022 até à efectiva entrega do imóvel, sendo que nessa parte não foi formulado pedido de ampliação do pedido nos referidos termos.
Verifica-se, assim, que a 1.ª instância, proferiu, nesse segmento da sentença (alíneas b) e c)) uma decisão ultra petitum, posto que condenou a Ré, aqui Apelante, para além do pedido formulado pela Autora/aqui Apelada.
E assim sendo tem de concluir-se que a sentença sindicada nesse segmento enferma de nulidade por condenação em quantia superior do pedido na acção, pelo que o recurso da Ré/Apelante merece, nesta parte, provimento.
Em conformidade com os fundamentos expostos, concede-se, nesta parte, provimento à apelação da Ré, expurgando da sentença os segmentos onde se condena a A.:
(…)
“b) relativamente ao prédio 1, a pagar a quantia de € 708,20 mensais desde abril de 2022, acrescida da indemnização pela mora, até à efectiva entrega do imóvel;
c) relativamente ao prédio 2, a pagar a quantia de € 266,40 mensais desde abril de 2022 até à efetiva entrega do imóvel;”.
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4.1.2 Da impugnação da matéria de facto
A ré/apelante, em sede recursiva, manifesta-se, ainda, discordante da decisão que apreciou a matéria de facto.
Considera incorrectamente julgados como não provados os factos correspondentes às alíneas b), c), d), f), g) e h), que infra se reproduzem;
“b) Não houve uma deliberação válida tomada pela ré para a aquisição referida em 27 dos factos provados”
“c) Não houve uma assembleia geral validamente convocada ou reunião, em que tivessem participado todos os sócios, com a intenção de deliberarem sobre a venda referida em 27. “
“d) A sócia EE não assinou qualquer ata correspondente à deliberação dos sócios da ré.”
(…)
“f) O BB não restituiu à ré o montante que tinha pago pela venda.”
“g) Quando se operou a resolução da venda referida em 27, não foi declarado que aquele beneficiava de qualquer renda. “
“h) A intenção no pagamento das rendas sempre foi favorecer os sócios e gerentes da ré, como forma de os recompensar pelo trabalho desenvolvido, visando menores efeitos tributários e fiscais.”
Vejamos, então.
No caso vertente, mostram-se minimamente cumpridos os requisitos da impugnação da decisão sobre a matéria de facto previstos no artigo 640.º do Código de Processo Civil, nada obstando a que se conheça da mesma.
Entende-se actualmente, de uma forma que se vinha já generalizando nos tribunais superiores, hoje largamente acolhida no artigo 662.º do Código de Processo Civil, que no seu julgamento, a Relação, enquanto tribunal de instância, usa do princípio da livre apreciação da prova com a mesma amplitude de poderes que tem a 1ª instância (artigo 655.º do anterior Código de Processo Civil e artigo 607.º, n.º 5, do actual Código de Processo Civil), em ordem ao controlo efectivo da decisão recorrida, devendo sindicar a formação da convicção do juiz, ou seja, o processo lógico da decisão, recorrendo com a mesma amplitude de poderes às regras de experiência e da lógica jurídica na análise das provas, como garantia efectiva de um segundo grau de jurisdição em matéria de facto; porém, sem prejuízo do reconhecimento da vantagem em que se encontra o julgador na 1ª instância em razão da imediação da prova e da observação de sinais diversos e comportamentos que só a imagem fornece.
Como refere A. Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, Almedina, págs. 224 e 225, “a Relação deve alterar a decisão da matéria de facto sempre que, no seu juízo autónomo, os elementos de prova que se mostrem acessíveis determinem uma solução diversa, designadamente em resultado da reponderação dos documentos, depoimentos e relatórios periciais, complementados ou não pelas regras de experiência”.
Importa, pois, por regra, reexaminar as provas indicadas pela Ré/Recorrente e, se necessário, outras provas, máxime as referenciadas na fundamentação da decisão em matéria de facto e que, deste modo, serviram para formar a convicção do Julgador, em ordem a manter ou a alterar a referida materialidade, exercendo-se um controlo efectivo dessa decisão e evitando, na medida do possível, a anulação do julgamento, antes corrigindo, por substituição, a decisão em matéria de facto.
Tendo presentes os elementos probatórios, vejamos então se, na parte colocada em crise, a análise crítica referida corresponde à realidade dos factos ou se a matéria em questão merece, e em que medida, a alteração pretendida pela apelante.
Como é sabido, a actividade dos Juízes, como julgadores, não pode ser a de meros espectadores, receptores de depoimentos. A sua actividade judicatória há-de ter, necessariamente, um sentido crítico. Para se considerarem provados factos não basta que as testemunhas chamadas a depor se pronunciem sobre as questões num determinado sentido, para que o Juiz necessariamente aceite esse sentido ou essa versão. Os Juízes têm necessariamente de fazer uma análise crítica e integrada dos depoimentos com os documentos e outros meios de prova que lhes sejam oferecidos.
Deve ter-se em conta que o acto de julgar parte de uma operação lógico-dedutiva, a partir de dados objectivos (a experiência pessoal, as regras da experiência da vida) e dados intuitivos (a forma como o depoente expõe, as reacções públicas e emocionais, a racionalidade e razoabilidade das respostas).
Destarte, a prova testemunhal não dispensa um tratamento a nível cognitivo por parte do julgador, mediante operações de cotejo com os restantes meios de prova, sendo que a mesma, tal como a prova indiciária de qualquer outra natureza, pode ser objecto de formulação de deduções e induções, os quais partindo da inteligência, hão-de basear-se na correcção de raciocínio, mediante a utilização das regras da experiência.
E sempre se deve ter presente a globalidade dos depoimentos e não apenas as partes que alegadamente conviriam à Apelante.
Conforme atrás referimos, pretende a Apelante que os factos constantes das alíneas b), c), d), f), g) e h) dos factos não provados sejam considerados provados.
Invoca para tanto que os depoimentos das testemunhas LL, FF e Dr. KK, concatenados com os documentos juntos aos autos, designadamente a certidão permanente da sociedade, assim o impõem.
Adiantamos, porém, também à luz da nossa análise crítica, que não lhe assiste razão.
Como a este propósito se refere na sentença em crise “Quanto à factualidade considerada não provada, o Tribunal entende que não foi feita prova suficiente e/ou inequívoca nesse sentido. Tratam-se de factos um pouco vagos, genéricos e conclusivos, que ninguém revelou conhecimento ou atestou de forma convincente. Pelo que deles o Tribunal não se convenceu.”.
De resto, nem mesmo na análise literal dos depoimentos das atrás referidas testemunhas, estes poderiam suportar a alteração pretendida pela ré/apelante, sendo, ainda, certo que os documentos juntos aos autos igualmente não a suportam.
Com efeito, as referidas testemunhas nada referem de concreto quanto aos factos constantes das referidas alíneas b), c), d), f), g) e h), factos, aliás, que, alegados pela recorrente a ela competia provar.
Com efeito, da análise crítica dos referidos depoimentos em sintonia com as regras da lógica e da experiência comum resulta o uso temporário dos bens imóveis pela recorrente, mediante o pagamento de uma contrapartida aos comproprietários.
Além disso, do extracto do depoimento da testemunha FF segundo o qual não se recorda de ter participado em alguma deliberação, não se pode concluir que não houve deliberação.
De resto, a referida testemunha também não se recordava da celebração da escritura de arrendamento junta aos autos, sendo certo que a mesma realmente existe.
Ademais, quando se operou a resolução da venda referida em 27, não foi declarado que aquele não beneficiava de qualquer renda.
Além disso, o conhecimento da existência dos contratos de arrendamento pelo Sr. Administrador de Insolvência KK, bem como o facto de não ter exigido o pagamento de rendas à recorrida está claramente explicado no seu depoimento, do qual resulta completamente infirmada a conclusão que a recorrida dele pretende extrair.
Ademais, a testemunha LL apenas referiu que foi o Sr. José Correia ... que decidiu os contratos de arrendamento em causa nos autos, o que também é confirmado pela testemunha FF.
De resto, da análise crítica dos referidos depoimentos o Tribunal a quo firmou a convicção da factualidade que resulta consagrada e bem no ponto 25 dos factos provados:
“Os contratos de arrendamento referidos em 9 e 12 foram decididos pelo sócio fundador MM, falecido, visando repartir rendimentos entre os sócios da sociedade ré, através do pagamento das rendas.”.
Porém, não nos permitem dar como provado o facto julgado não provado na alínea h).
Afigura-se-nos, por isso, não existirem motivos que justifiquem a alteração, devendo manter-se as respostas dadas aos referidos pontos da matéria de facto não provada.
Em face do que vem de ser exposto, improcede o recurso sobre a decisão da matéria de facto.
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4.3.3. Do mérito da decisão
A ré apelante clama, ainda, pela revogação da sentença de que recorre nos segmentos que aponta.
Mantendo-se, todavia, inalterada a decisão relativa à matéria de facto, em consequência da ausência do recurso impugnativo da mesma, temos de concluir que resulta dos autos que a autora é proprietária dos prédios a que se arroga, na proporção que indica (1/4).
Resulta, ainda, da factualidade provada que entre a ré/Apelante e os proprietários do prédio referido em 1 foi celebrado um contrato de arrendamento urbano, para fins de armazém, pelo prazo de um ano, observando a forma escrita (escritura pública).
Ora, de acordo com o disposto no artigo 1022º do Código Civil, “locação é o contrato pelo qual uma das partes se obriga a proporcionar à outra o gozo temporário de uma coisa, mediante retribuição”.
Assim, o contrato de arrendamento visa proporcionar a outrem o gozo de uma coisa corpórea e imóvel, temporariamente, mediante o pagamento de uma retribuição.
No caso vertente, a Ré/aqui Apelante celebrou um contrato de arrendamento, através do qual tomou de arrendamento aos proprietários o imóvel referido em 1, todos da família ..., tendo sido convencionado o pagamento de uma renda mensal no valor que actualmente se cifra em € 2.832,80, a efectuar por transferência bancária.
Assim, é inequívoco a existência de um contrato de arrendamento, para fins não habitacionais, entre a ré e os donos do prédio, pelo prazo de um ano, renovável.
De resto, a Ré, aqui Apelante, tem vindo a pagar aos proprietários das restantes três partes a sua parte das rendas, com excepção da autora.
Assim, à luz da factualidade provada constata-se que este não pagamento das rendas, dura desde o mês de Outubro de 2017, pelo que a Autora tem direito ao pagamento das rendas em atraso, relativamente à verba 1, sita em ..., no valor de 708,20 euros (2.832,80€:4=708,20€) mensais, dentro do período temporal delimitado pelos pedidos formulados, ou seja, as rendas referentes aos meses de outubro de 2017 até março de 2022, bem como ao montante correspondente aos 50% do valor de cada renda não paga.
Na verdade, estabelece o artigo 805º nº 1 do Código Civil que “o devedor só fica constituído em mora depois de ter sido judicial ou extrajudicialmente interpelado para cumprir”.
Contudo, o mesmo artigo, no seu nº 2, prevê exceções a esta regra: “há, porém, mora do devedor, independentemente de interpelação: a) Se a obrigação tiver prazo certo (…)”
Portanto, quando a obrigação tem prazo certo, o devedor constitui-se em mora se não efetuar o pagamento no prazo estipulado para o efeito.
No caso vertente, a Ré/Apelante encontrava-se obrigada a proceder ao pagamento da renda mensal no primeiro dia útil do mês a que respeita, pelo que a indemnização era devida, considerando a data da outorga da escritura pública (ano de 1988), conforme bem se sustenta na sentença recorrida (Cfr. o regime transitório consagrado pela Lei nº 6/2006, sob a epígrafe “Contratos habitacionais celebrados antes da vigência do RAU e contratos não habitacionais celebrados antes do Decreto-Lei n.º 257/95, de 30 de setembro”).
Com efeito, no âmbito da regulamentação do contrato de arrendamento, dispõe o artigo 1041º, nº 1 do Código Civil que “constituindo-se o locatário em mora, o locador tem o direito de exigir, além das rendas ou alugueres em atraso, uma indemnização igual a 50% do que for devido, salvo se o contrato foi resolvido com base na falta de pagamento”.
Por seu lado, o nº 2, do mesmo artigo, estabelece que “cessa o direito à indemnização ou à resolução do contrato, se o locatário fizer cessar a mora no prazo de oito dias a contar do seu começo”, o que não sucedeu.
Em relação ao prédio identificado na verba 2, sito em Matosinhos, na Rua ..., resulta da factualidade provada que o contrato de arrendamento foi outorgado na década de 1990, em ano não concretamente apurado, não tendo sido outorgada escritura pública.
Conforme Acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 01/10/2013, acessível em www.dgsi.pt, na década de 1990 “(…) a validade formal de um contrato de arrendamento urbano destinado a uma atividade comercial, regia-se pelo disposto no art. 7º nº 2 al. b), do Regime do Arrendamento Urbano (RAU), aprovado pelo DL n.º 321-B/90, de 15 de outubro, de acordo com o qual deviam ser reduzidos a escritura pública os arrendamentos para o comércio, indústria ou exercício de profissão liberal”.
E acrescenta tal aresto: “apesar de entretanto ter entrado em vigor a simplificação introduzida pelo DL n.º 64-A/2000, de 22-04, após cuja entrada em vigor a escritura pública foi dispensada nos contratos de arrendamento urbano para comércio, indústria e exercício de profissão liberal, esta alteração não veio convalidar os contratos de arrendamento anteriormente celebrados sem observância da exigência legal de forma, os quais são nulos”.
Deveria, pois, este contrato de arrendamento ter sido celebrado por escritura pública, nos termos do artigo 7º, nº 2, al. b) da Lei do Arrendamento Urbano vigente à data.
Ora, não estando provado que o tenha sido, impõe-se analisar as consequências para a falta de observância da forma legalmente exigida.
De acordo com o disposto no artigo 220º do Código Civil, “a declaração negocial que careça de forma legalmente prescrita é nula, quando outra não seja a sanção especialmente prevista na lei”.
Por outro lado, dispõe o artigo 286º do Código Civil que “a nulidade é invocável a todo o tempo por qualquer interessado e pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal”.
Desta forma, não tendo o referido contrato de arrendamento, celebrado entre ré e senhorios, observado a forma legalmente prescrita (escritura pública), é o mesmo nulo.
Por seu lado, a nulidade pode ser invocada a todo o tempo, por qualquer interessado, constituindo mesmo uma questão da qual o tribunal pode conhecer oficiosamente.
Como se sabe, a nulidade desencadeia os efeitos previstos no artigo 289.º do Código Civil.
Dispõe-se no n.º 1 desta norma que deve ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente.
O ordenamento jurídico visa, nestes casos, o regresso ao statu quo ante, reconstituindo-se a situação que existiria se o contrato, se o negócio nulo ou anulável não tivesse sido celebrado e executado.
Há, então, que proceder à chamada “liquidação do contrato inválido”, ou seja, ao cálculo do valor do dever de restituição.
Sucede que o gozo da coisa é um dos casos em que a restituição em espécie não é viável. Como se procederia à restituição do gozo da coisa?
Sobre estes casos pronuncia-se António Menezes Cordeiro, dizendo que “nos contratos de execução continuada, em que uma das partes beneficie do gozo da coisa - como no arrendamento - (…) a restituição em espécie não é, evidentemente possível. Nessa altura, haverá que restituir o valor correspondente o qual, por expressa convenção das partes, não poderá deixar de ser o da contraprestação acordada. Isto é: sendo um arrendamento declarado nulo, deve o 'senhorio' restituir as rendas recebidas e o 'inquilino' o valor relativo ao gozo que desfrutou e que equivale, precisamente, às rendas. Ambas as prestações restitutórias se extinguem, então, por compensação, tudo funcionando, afinal, como se não houvesse eficácia retroactiva, nestes casos” - Cfr. António Menezes Cordeiro, in: António Menezes Cordeiro (coord.), Tratado de Direito Civil, II – Parte Geral, Coimbra, Almedina, 2014 (4.ª edição), p. 936, e in: António Menezes Cordeiro (coord.), Código Civil Comentado, I – Parte Geral, Coimbra, Almedina, 2020, p. 855.
É importante salientar o papel da vontade das partes na conformação os efeitos da declaração de nulidade e, em particular, dos deveres de restituição.
Convocando de novo António Menezes Cordeiro, pode dizer-se que “o ato inválido vai produzir alguns efeitos, variáveis consoante as circunstâncias. Tais efeitos são imputáveis à lei. Todavia, devemos estar prevenidos para o facto de eles dependerem, primacialmente, da vontade das partes (…). Ela condiciona, também, os próprios deveres de restituição, resultantes, no essencial, da conformação do contrato viciado” - Cfr. António Menezes Cordeiro, in: António Menezes Cordeiro (coord.), Tratado de Direito Civil, II – Parte Geral, cit., pág. 936.
Em sentido convergente, Maria Clara Sottomayor afirma que “mesmo reconhecendo que os efeitos do negócio nulo são imputáveis à lei, a vontade das partes condiciona os deveres de restituição cujo conteúdo resulta, no essencial, da estipulação das partes no contrato inválido” - Cfr. Maria Clara Sottomayor, in: AAVV, Comentário ao Código Civil – Parte Geral, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2014, pág. 717.
Concretizando, diz a autora adiante: “em regra, o critério para calcular o gozo da coisa (…) será aquele que foi adoptado no próprio contrato inválido que fixou o valor da contraprestação, o que tem por consequência que cada uma das partes retém a prestação recebida, equivalendo, na prática, a liquidação do contrato inválido à execução do mesmo” – Cfr. Maria Clara Sottomayor, in: AAVV, Comentário ao Código Civil - Parte Geral, cit., pág. 718.
Aplicando os critérios e as orientações acima referidas, conclui-se que à Autora, aqui Apelada assiste o direito de exigir à ré as rendas devidas e ainda não pagas.
Isto porque existe uma equivalência económica entre o valor do gozo e o valor das rendas acordadas. Dito de outro modo, as rendas devidas à autora correspondem ao valor económico do gozo do locado usufruído pela ré durante certo período.
Deve, portanto, manter-se a condenação da ré no pagamento da quantia global peticionada mas apenas no período temporal em causa
Quer dizer: apesar de, na liquidação do contrato inválido, se valorizar a vontade das partes, não é possível aplicarem-se normas cuja aplicabilidade pressupõe uma relação contratual arrendatícia validamente constituída.
Este é o caso do artigo 1045.º do CC, que constitui o locatário no dever de indemnização (pagamento da renda em singelo e, porventura, em dobro) em caso de atraso na restituição do locado.
Este é um dever de indemnização em sentido próprio e um dever de indemnização que, como dizem Pires de Lima e Antunes Varela, tem “natureza claramente contratual” - Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume I, Coimbra, Coimbra Editora, 1986, p. 406., não se confundindo, portanto, com os deveres de restituição ou outros.
O apuramento cálculo do valor do dever de restituição esbarra na restituição do gozo pois não se detecta como se pode restituir o gozo já efectivado de uma coisa.
De resto, o n.º 3, do artigo 289.º, do Código Civil, dispõe que é aplicável em qualquer dos casos previstos nos números anteriores, directamente ou por analogia, o disposto nos artigos 1269.º e seguintes, ou seja, o regime relativo aos efeitos da posse.
Ora, nos termos do artigo 1270.º, n.º 1, do Código Civil, o possuidor de boa fé tem direito aos frutos civis até ao dia em que souber que está a lesar com a sua posse o direito de outrem.
Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, III, página 33 mencionam que «a repartição dos frutos civis pro rata temporis dá ao possuidor, não só o direito de reter como suas as rendas correspondentes ao período da sua posse de boa fé, mas também o poder de exigir de terceiros (arrendatários) as rendas que ainda não tenham sido pagas, contanto que respeitem a esse período.».
Ora, se o possuidor em nome alheio de boa fé goza de tal direito, resultante da declaração de nulidade, ex vi n.º 3, do citado artigo 289.º, há que entender, por identidade de razão, que o mesmo direito assistirá ao senhorio como titular do direito de propriedade inscrito no registo, possuidor em nome próprio, de fazer seus os frutos civis (rendas) que a coisa produziu em consequência da relação jurídica.
Deste modo, afigura-se-nos que o pagamento da indemnização correspondente às rendas - afinal o valor locatício encontrado por vontade dos contraentes - faz-se, não pelo instituto do enriquecimento sem causa, mas directamente, em virtude da declaração de nulidade do contrato, por apelo à estatuição do citado nº 3 do artigo 289º do Código Civil, com remissão direta ou analógica para o disposto nos artigos 1269º e ss., relativos aos efeitos da posse de boa-fé e respectivos frutos – Cfr. Acórdão da Relação de Lisboa de 30/09/1999, rel. Arlindo Rocha, publicado na base de dados da dgsi.
O senhorio, como possuidor em nome próprio, tem assim direito a receber o valor equivalente às rendas que a coisa produziu e a mantê-las consigo dentro do período temporal definido pelos pedidos da autora.
Refira-se, ainda, que não se encontra alegada factualidade que alicerce o abuso de direito invocado pela Ré nas suas contra-alegações na modalidade de venire contra factum proprium.
De tudo o exposto, resulta que o recurso da Ré/aqui Apelante merece parcial provimento relativamente ao segmento do decisório em que a ré foi condenada no pagamento das quantias referidas nas alíneas b) e c), mantendo-se no demais o decidido, embora por fundamentos não inteiramente coincidentes.
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4.2 Do recurso interposto pela A.
4.2.1 Da não condenação na restituição do prédio descrito em 2 dos factos provados
Na sua apelação, pugna a A./Apelante pela condenação da ré na restituição do prédio descrito em 2 dos factos provados.
Vejamos, então.
Um dos princípios estruturantes do direito processual civil é o princípio do dispositivo, a que alude o artigo 264º, nº 1 do Código de Processo Civil, segundo o qual “às partes cabe alegar os factos que integram a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções” e o artigo 660º, n.º 2 do mesmo Código de Processo Civil, que diz que “o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outra. Não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras”.
Conforme este princípio, cabe às partes alegar os factos que integram o direito que pretendem ver salvaguardado, impondo ao juiz o dever de fundamentar a sua decisão nesses factos e de resolver todas as questões por aquelas suscitadas, não podendo, por regra, ocupar-se de outras questões.
Segundo Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil anotado, V, 51 “o princípio do dispositivo é, substancialmente, a projecção, no campo processual, daquela autonomia privada que, dentro dos limites marcados pela lei, encontra a sua afirmação mais enérgica na figura tradicional do direito subjectivo; até onde a lei substancial reconhecer tal autonomia, mesmo para a coordenar melhor com os fins colectivos, o princípio dispositivo deverá ser coerentemente mantido no processo civil, como expressão irrefragável do poder atribuído aos particulares, de dispor da sua esfera jurídica própria.
Conservaram-se, por isso, no Código (arts. ...), como afirmações de princípio, os aforismos da sabedoria antiga: ne procedat judex ex officio, ne eat judex ultra petita partium, judex secundum allegata et prabata decidere debet.
Suprimir estes princípios equivaleria a reformar, mais do que o processo, o próprio direito privado; dar ao juiz o poder de iniciar ex officio um pleito que os interessados querem evitar, ou de conhecer de factos que as partes não alegaram, significaria cercear, no campo do direito processual, aquela autonomia individual que, no campo do direito substancial, a lei vigente reconhece e garante”.
Na observância deste princípio, no processo civil comum, o tribunal está também impedido de condenar em quantia superior ou em objecto diverso do que for pedido (art. 666.º, n.º 1 do Código de Processo Civil).
Deste modo, o juiz não só não pode conhecer, por regra, senão das questões que lhe tenham sido apresentadas pelas partes, como também não pode proferir decisão que ultrapasse os limites do pedido formulado, quer no tocante à quantidade quer no que respeita ao seu próprio objecto.
No caso vertente, a Sr.ª Juiz a quo decidiu, e bem, que “(…) não tendo o contrato de arrendamento aqui em causa, celebrado entre ré e senhorios, observado a forma legalmente prescrita (escritura pública), é o mesmo nulo.”.
Pelo que, declara a Sr.ª Juiz a quo “(…) nulo o contrato de arrendamento incidente sobre o prédio sito na Rua ..., por inobservância de forma.”.
Além disso, não condenou e bem, ao inverso do defendido pela Autora/aqui Apelante, a Ré/ aqui Apelada a restituir o prédio, porquanto em momento algum a autora formulou este pedido, em obediência ao disposto no artigo 609º, n.º 1 do Código do Processo Civil.
Neste sentido, embora tratando-se de um caso diverso, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de Novembro de 2009 (Lopes do Rego), no processo n.º 308/1999.C1.S1 (in www. dgsi. pt.), ao referir que «…tendo-se o autor limitado a formular um pedido de anulação de certo negócio jurídico, não é lícito ao tribunal proferir sentença de condenação na restituição ou entrega dos bens, consequente ao decretamento da invalidade - ou da ineficácia do negócio - por tal implicar violação do disposto no art.661º, nº1, do CPC».
No mesmo sentido, temos o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20 de Maio de 2003, (com referência ao documento n.º SJ200305200014026, in www.dgsi.pt), quando se ponderou que «Declarada a nulidade do contrato, há, em princípio, lugar à restituição do que tiver sido prestado, mas desde que tal restituição seja pedida».
Além disso, atenta a especificidade do caso vertente, o Assento n.º 4/95, publicado no DR, 1ª Série, de 17.05.1995, citado pela apelante, não nos leva a concluir em sentido diverso.
Com efeito, o que está subjacente à doutrina do Assento nº 4/95 é apenas a possibilidade de convolar a causa de pedir que era invocada e de alterar a qualificação da pretensão material deduzida, mas apenas para decretar o efeito prático-jurídico que foi solicitado, ainda que sob diferente qualificação jurídica, e não para o efeito de decretar um efeito que não foi, de todo, solicitado – Cfr.. neste sentido, os Acórdãos do STJ de 20/05/2003 e de 05/11/2009, proferidos nos processos nºs 03A1402 e 308/1999.C1.S1, respectivamente, ambos disponíveis em http://www.dgsi.pt., atrás citados.
Ou seja, o que aquele Assento consente é uma aplicação menos rígida e menos formal do artigo 609º do Código de Processo Civil, ao admitir que o Tribunal possa decretar uma determinada pretensão que não coincidia rigorosamente com o pedido que havia sido formulado, porque tal pretensão - embora coincidindo, nos seus efeitos práticos, com o pedido - baseia-se em causa de pedir diversa da que havia sido invocada, correspondendo, no rigor dos princípios, a uma pretensão diferente. O aludido Assento não terá pretendido, todavia, fazer “letra morta” do disposto no artigo 609º do Código de Processo Civil e contrariar um dos princípios fundamentais que regem o nosso sistema processual civil de acordo com o qual - e sem prejuízo das excepções consagradas na lei - a parte tem o ónus de formular um pedido, não podendo o juiz sobrepor-se à vontade das partes para efeito de decretar uma pretensão que não lhe foi solicitada.
Assim, sendo formulado uma determinada pretensão cuja causa de pedir radica num determinado negócio e tendo como pressuposto a sua validade e concluindo-se que esse negócio é nulo, o Tribunal, na medida em que pode e deve declarar a nulidade - apesar de tal não lhe ter sido solicitado - poderá também, com base nessa nulidade, satisfazer a pretensão que lhe havia solicitada, sendo que, ao actuar nesses termos - como é admitido pelo aludido Assento - o Tribunal limita-se decretar o efeito prático que lhe foi solicitado (ainda que com base em diferente causa de pedir e com diferente qualificação jurídica). Todavia, se a parte não formulou qualquer pedido onde se possa considerar incluído (ainda que com uma interpretação menos rígida) o efeito decorrente da nulidade, o Tribunal, não obstante poder e dever declarar a nulidade, está impedido, sob pena de violação directa e frontal do artigo 609º do CPC, de decretar os seus efeitos e condenar as partes (ou uma delas) na restituição a que haja lugar.
Afigura-se-nos, portanto, que a doutrina do aludido Assento não poderá ser invocada para o efeito de condenar a aqui Ré/Apelada a restituir à A./Apelante o referido prédio.
Com efeito, a Autora/Apelante, comproprietária do bem imóvel (1/4) apenas pediu a condenação da A. a proceder ao pagamento das rendas em atraso e da indemnização devida (quota respectiva).
Além disso, a Apelante é apenas uma das comproprietárias do bem imóvel em causa, sendo que os restantes comproprietários não pretendem a restituição.
Assim, não poderia, por si só, pedir a referida restituição.
Destarte, não deverá ser a aqui Apelada condenada a restituir à aqui Apelante o prédio urbano descrito em 2 dos factos provados.
Impõe-se, por isso, o não provimento da apelação da A./Apelante neste segmento.
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4.2.2 Da litigância de má-fé
A Autora/Recorrente pede, ainda, a condenação da Ré como litigante de má-fé.
Vejamos, então.
O artigo 8.º do Código de Processo Civil consagra o chamado "dever de boa-fé ou de probidade processual".
Ora, a mais grave violação desses deveres constitui justamente a litigância de má fé, cujos contornos se acham definidos no artigo 542.º daquela lei adjectiva civil.
Nos termos do disposto no n.º 2, do artigo 542.º, do Código de Processo Civil, diz-se “litigante de má fé quem, com dolo ou negligência grave:
a) tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d) tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão".
O dever de litigar de boa fé, isto é, com respeito pela verdade, mostra-se como um corolário do princípio do dever de probidade e de cooperação, fixados nos artigos 7º, e 8º, do Código de Processo Civil, para além dos deveres que lhe são inerentes, imposto sempre às respectivas partes.
Se a parte, com propósito malicioso, ou seja, com má fé material, pretender convencer o tribunal de um facto ou de uma pretensão que sabe ser ilegítima, distorcendo a realidade por si conhecida, ou se, voluntariamente, fizer do processo um uso reprovável ou deduzir oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar - má fé instrumental -, deve ser condenada como litigante de má fé.
Mas tem-se entendido que tal sanção apenas pode e deve ser aplicada aos casos em que se demonstre, pela conduta da parte, que ela quis, conscientemente, litigar de modo desconforme ao respeito devido não só ao tribunal, cujo fim último é a busca em descobrir a verdade e cumprir a justiça, como também ao seu antagonista no processo.
E esta actuação da parte, conforme se vinha entendendo na doutrina e Jurisprudência (cf. Manuel de Andrade, in Noções Elementares de Processo Civil, pág. 343 e Alberto dos Reis, in Código Proc. Civil Anotado, II, pág. 259 e Acórdão da Relação de Lisboa de 09.01.97, in Col. Jur., Ano XXII, Tomo I, pág. 88), exige que haja dolo ou negligência grave do actuante.
Verifica-se a negligência grave naquelas situações resultantes da falta de precauções exigidas pela mais elementar prudência ou das aconselhadas pela previsão mais elementar que devem ser observadas nos usos correntes da vida (cf. Maia Gonçalves, Código Penal Português, 4ª edição, pág. 48).
Na redacção dada ao artigo 456º do Código de Processo Civil, antes da revisão operada pelo Decreto-Lei nºs. 329-A/95 de 12/12 e 180/96 de 25/09, exigia-se uma intenção maliciosa (má fé em sentido psicológico) e não apenas leviandade ou imprudência (má fé em sentido ético).
Não bastava a imprudência, o erro, a falta de justa causa. Era necessário o querer e o saber que se está a actuar contra a verdade ou com propósitos ilegais.
No dolo substancial deduz-se pretensão ou oposição cuja improcedência não poderia ser desconhecida - dolo directo - ou altera-se a verdade dos factos, ou omite-se um elemento essencial - dolo indirecto; no dolo instrumental faz-se, dos meios e poderes processuais, um uso manifestamente reprovável - cf. Menezes Cordeiro, in “Da Boa Fé no Direito Civil”, I, Almedina, 1984, pág. 380.
No Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 24/04/1991, in A.J., 18º/28, afirma-se: “Os factos a que se refere o art.º. 456º, nº 2, do Código de Processo Civil, e cuja alteração consciente constitui litigância de má fé, são os factos que as partes alegam nos articulados para fundamentar o pedido e a oposição (...)".
O actual regime traduz uma substancial ampliação do dever de boa fé processual, alargando-se o tipo de comportamentos que podem integrar má fé processual, quer substancial, quer instrumental, tanto na vertente subjectiva como na objectiva. A condenação por litigância de má fé pode fundar-se, além de numa situação de dolo, em erro grosseiro ou culpa grave.
No entanto, esta concepção explícita agora de litigância de má-fé não se pode confundir com erro grosseiro, com lide meramente temerária ou ousada, com pretensão de dedução ou oposição cujo decaimento sobreveio por mera fragilidade da sua prova e de não ter logrado convencer da realidade por si trazida a julgamento, na eventual dificuldade de apurar os factos e de os interpretar, ou com discordância na interpretação e aplicação da lei aos factos, na diversidade de versões sobre certos e determinados factos ou até na defesa convicta e séria de uma posição, sem contudo a lograr convencer.
Mesmo que se esteja entre uma lide dolosa e uma lide temerária, mas não sendo seguros os elementos para se concluir pela existência de dolo, a condenação como litigante de má fé não se deve operar, entendimento que pressupõe prudência e cuidado do julgador e para existir condenação como litigante de má fé que se esteja perante uma situação donde não possam surgir dúvidas sobre a actuação dolosa ou gravemente negligente da parte (cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20.06.90, citado por Abílio Neto, anotações ao então artigo 456º).
Note-se que para que o tribunal possa fundamentar validamente uma condenação como litigante de má fé, pode e deve não só ater-se aos factos alegados e não provados, como também àqueles documentos não impugnados e que denunciam estar-se perante um facto ou uma situação completa e totalmente contrária ao constante do articulado do litigante em causa, devendo tomar em consideração, quer os factos admitidos por acordo, quer os documentos - artigo 607.º, n.º 3, do Código de Processo Civil.
No caso vertente, resulta dos autos que a Autora/aqui recorrente pretende a definição do seu direito, o que se mostra muito debatido nos autos, como é visível dos articulados e das alegações de recurso, não se podendo concluir, assim, pela actuação de má fé de qualquer dos litigantes, nomeadamente da Ré, apesar da maior ou menor razão reconhecida pelo Tribunal às pretensões formuladas.
Impõe-se, por isso, o não provimento da apelação da autora.
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Sumariando em jeito de síntese conclusiva:
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5. Decisão
Nos termos supra expostos, acorda-se neste Tribunal da Relação do Porto em:

- conceder o provimento parcial ao recurso de apelação da ré, revogando a condenação da apelante sob as alíneas b) e c), improcedendo o recurso no demais;

- negar provimento ao recurso de apelação da autora.
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As custas da apelação da ré são a cargo de autora e ré, na proporção de 2/6 e de 4/6, respectivamente.
As custas da apelação da autora são a cargo da autora.
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Notifique.

Porto, 04 de Julho de 2024
Paulo Dias da Silva
Judite Pires
Ernesto Nascimento

(a presente peça processual foi produzida com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas e por opção exclusiva do relator, o presente texto não obedece às regras do novo acordo ortográfico, salvo quanto às transcrições/citações, que mantêm a ortografia de origem)