Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
12811/21.9T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ISABEL PEIXOTO PEREIRA
Descritores: NULIDADE DA SENTENÇA
ASSOCIAÇÃO MUTUALISTA
ADESÃO
DEVERES
RISCO
Nº do Documento: RP2024070412811/21.9T8PRT.P1
Data do Acordão: 07/04/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A decisão recorrida, no pressuposto da validade e subsistência da cláusula de exclusão convocada pela Ré, a um tempo, dá como assente a realidade naquela prevista e do ponto de vista jurídico reconduz-se já à exigência de uma alegação que a ultrapasse. Percebe-se, por conseguinte, a equivocidade ou contradição manifesta, em termos de se quedarem ininteligíveis os termos da condenação…A gerar a nulidade da decisão, nos termos e para os efeitos do art. 615º, n.º 1, al. c) do CPC.
II - Admitindo-se que a descrição dos factos que subjazem ao litígio seja feita a partir de pressupostos que valorizam já aspectos de ordem substancial e, assim, a descrição de factos que encerrem conclusões, quando estas comportem um conteúdo material ou correspondam a realidades concretas e perfeitamente apreensíveis por qualquer pessoa, a menção a “induzir em erro na avaliação do risco” comporta ou encerra uma realidade apreensível ao comum das pessoas, para mais no contexto do pedido de associação em apreço nos autos, na medida em que em causa a cobertura do risco da morte ou incapacidade do proponente. Vem a ser ela a da aceitação sem reservas, no confronto já com a não aceitação/exclusão total da cobertura com referência à doença omitida…
III - A previsão do dever do aderente de fazer declarações verdadeiras sobre as circunstâncias que, no âmbito do negócio, sejam suscetíveis de agravar o risco assumido pela Associação Mutualista, é perfeitamente compreensível, à semelhança do que ocorre com os contratos de seguros de saúde ou seguros de vida.
IV - Fazendo apelo às regras gerais, cabe salientar que quem negoceia com outrem para conclusão de um contrato deve, tanto nos preliminares como na formação dele, proceder segundo as regras da boa fé, sob pena de responder pelos danos que culposamente causar à outra parte (artigo 227º n.º 1 do CC).
V - Sobre o aderente/proponente recai, pois, o ónus de, no momento da formação do contrato, comunicar à Mutualista todas as circunstâncias conhecidas que possam influenciar a determinação do risco, que no caso da garantia do risco Vida consistirá essencialmente na informação sobre o estado de saúde da pessoa a garantir. Este ónus resulta, além do mais, do princípio da boa fé, precisamente porque a avaliação do risco depende das informações prestadas pelo aderente no momento da formação do contrato.
VI - No caso da subscrição de modalidades de garantia no âmbito da atividade mutualista (não estando em causa a aplicação do actual Código das Associações Mutualistas, vista a data do pedido de adesão), deve fazer-se apelo ao regime previsto para o erro vício que atinge os motivos determinantes da vontade, designadamente quando se refira ao objecto do negócio, previsto nos já referidos artigos 251º e 247º, ambos do CC, cujos pressupostos são que o subscritor tenha prestado declarações falsas, inexatas ou reticentes, omitindo factos relevantes para a formação da vontade contratual da Associação Mutualista, que estejam em causa declarações referentes a factos conhecidos pelo subscritor no momento da subscrição e que sejam suscetíveis de influenciar na decisão da Associação Mutualista.
VII - Prefigurada a viciação da vontade da AM, que aceitou cobrir o risco de ocorrência de um sinistro com base numa avaliação de circunstâncias que não correspondiam à realidade - no momento da subscrição da proposta de adesão, o falecido proponente marido da A. omitiu factos relacionados com o seu estado de saúde, de que tinha conhecimento pessoal, o que impediu a Ré de analisar adequadamente o risco de garantia, e decidir de forma esclarecida e informada se aceitava ou não a proposta de adesão relativa à modalidade GPE em causa, de molde que, se à AM tivesse sido transmitida a situação real, não teria contratado ou fá-lo-ia em condições diferentes das efectivamente negociadas.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo: 12811/21.9T8PRT. P1

Tribunal Judicial da Comarca do Porto

Juízo Central Cível da Póvoa de Varzim - Juiz 4

Relatora: Isabel Peixoto Pereira

1º Adjunto: Maria Manuela Barroco Machado

2º Adjunto: António Carneiro da Silva


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Acordam os juízes da 3.ª secção do Tribunal da Relação do Porto:

I.

AA, cabeça de casal na herança aberta por óbito de BB, seu marido, com domicílio na Rua ..., ... Póvoa de Varzim, veio intentar a presente ação declarativa de processo comum contra Banco 1..., com sede na Rua ..., ..., Apartado ..., ... Lisboa e Associação Mutualista Banco 1... – Instituição particular de solidariedade Social, com sede na Rua ..., ... Lisboa, pedindo a condenação solidária das rés:

a) a accionar a Garantia de Pagamento de Encargos dos dois empréstimos subscritos, pelo valor existente à data de 16 de setembro de 2019 e demais quantias pagas ou a pagar pela autora a este título na pendência da ação, valor a liquidar em execução de sentença, acrescido dos juros legais desde a citação até efetivo e integral pagamento.

b) a pagar à autora a quantia que se vier a apurar em liquidação de sentença, relativa às prestações, quotas, juros, imposto de selo, taxas e demais encargos pagos pela autora desde o óbito do seu marido às rés para amortização dos empréstimos e seguros, acrescida de juros vencidos e dos que se vencerem desde a data da cobrança até efetivo e integral pagamento, calculados sobre o capital e à taxa legal;

c) a pagar à autora a quantia correspondente ao remanescente do capital em dívida à data do óbito de BB, acrescida dos respetivos juros, calculados à taxa legal desde essa data até efetivo pagamento.

d) a pagar quantia nunca inferior a 10.000,00 € a título de danos morais.

Ambas as rés contestaram, defendendo-se por exceção e por impugnação.

Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença, na qual se decidiu julgar a acção parcialmente procedente por provada e, em consequência, a) condenar a ré “Associação Mutualista” a accionar os dois contratos de “Garantia de Pagamento de Encargos”, entregando à ré “Banco 1...” os valores em dívida relativamente a cada um dos dois contratos de mútuo por esta última celebrados com o falecido marido da autora à data do óbito (41.849,86 € com referência ao empréstimo n.º ... e 12.736,58 € com referência ao empréstimo n.º ...), deduzidos dos valores entretanto pagos à ré “Banco 1...” pela autora;  b) condenar a ré “Associação Mutualista” a pagar à autora as quantias que pela mesma foram pagas, após a data do óbito do seu falecido marido, a título de capital amortizado, juros, imposto de selo e taxas, relativamente a cada um dos dois contratos de mútuo identificados em a), a liquidar em incidente de liquidação, acrescidas de juros contabilizados à taxa legal de juro civil desde as datas das respetivas cobranças e sobre os valores que em cada momento foram cobrados até efetivo e integral pagamento;  c) absolver a ré “Banco 1...” de todos os pedidos contra ela formulados e d) absolver a ré “Associação Mutualista” do demais contra ela peticionado.

Desta sentença foi pela 2ª Ré interposto recurso, no qual conclui pela forma seguinte:
1 - A recorrente vem interpor recurso da sentença proferida em Primeira Instância por considerar que de acordo com a prova produzida e carreada para a sentença outra deveria ser a decisão final.
2 - A sentença padece de uma clara incongruência.
3 - O Tribunal considerou que a ré não alegou as consequências das falsas declarações emitidas pelo falecido marida da autora, não valorando para efeito decisório a prova testemunhal produzida em julgamento, mais concretamente as testemunhas da Ré CC e DD;
4 - Ambas as testemunhas referiram num depoimento claro e verdadeiro, plasmado na sentença que: testemunha CC que de forma clara e explícita diz “….com um AVC, e que não foram referidas na avaliação médica inicial e no questionário. Se o tivessem sido, ou a subscrição não teria sido aceite ou teria sido aceite mas com exclusão dessa patologia. A cobertura não foi aceite porque ocorreu omissão que influenciou a decisão de contratar ou não ou de contratar mas com uma incapacidade maior, bem como da testemunha da Ré DD, médico, que disse e se encontra plasmado na sentença “ caso soubessem de problemas cardiovasculares ou da ocorrência de AVC recente a candidatura teria sido recusada porque existiria risco de vida muito significativo. “ …. “Estes levam a lesões graves das funções cerebrais e podem causar morte súbita. provenientes de Espanha referentes a internamento é mencionada a ocorrência de hemiparesia há 7 anos (está em causa o documento denominado de “Informe médico de sínteses” datado de 15.06.2004). Essa situação esteve na base da proposta de reforma e exigiria a realização de uma RM para que se pudesse aferir da existência de lesões. Neste enquadramento não tem dúvidas de que a proposta do falecido seria recusada.
5 - A sentença igualmente não indica de forma clara e inteligível os meios de prova que se revelarem essenciais na sua decisão, porquanto da prova produzida e plasmada na sentença a decisão teria de ser outra, padecendo assim de uma fundamentação manifestamente insuficiente.
6 - Por um lado, resulta do teor da contestação que a ré alegou factos concludentes de que as falsas declarações implicariam a exclusão da cobertura de risco e anulabilidade do contrato ( art. 26º, 27º e 31º da contestação).
7 - Mesmo que assim não fosse, o que se aceita apenas para mero efeito de raciocínio, deveria ser considerado um facto implícito ou tácito porquanto um dos temas da prova fixados em Despacho Saneador foi no seu ponto 10. “ do relevo para a 2ª ré do conhecimento dessas patologias.
8 - Considerando os temas da prova, à Ré fez prova em desse facto sendo essencial para tanto o depoimento das testemunhas da Ré.
9 - Na sentença, o Tribunal a quo deu como prova irrefutável que o falecido prestou falsas declarações no preenchimento do questionário médico obrigatório, tendo dado como provado que esta resposta induziu em erro os serviços da ré na avaliação do risco – 1.65 factos provados e fê-lo com recurso ao depoimento daquelas testemunhas.
10- Mas não só deste erro padece a sentença.
11- É jurisprudência unânime que a exigência de fundamentar a decisão sobre a matéria de facto não deve ser meramente formal, passando sim pela indicação expressa das razões que levaram à formulação do decidido, embora não se imponha ao tribunal a descrição minuciosa todo o processo de raciocínio, bastando que sejam indicados, de forma clara e inteligível quais os meios de prova e porque os mesmos relevaram ou obtiveram credibilidade no espírito do julgador.
12- Não está aflorado na sentença quais os meios de prova que para o julgador foram essenciais para dar provimento ao pedido, ou a explicação porque não considerou o depoimento das testemunhas da ré relevantes para prova de qual seria a consequência para o contrato se tivessem tido conhecimento das patologias omitidas.
13- Depoimentos esses esclarecedores quanto a este facto e elementares para a justa decisão da causa.
14- Para bem da justiça e da verdade material é agora permitido ao Tribunal nos termos do art. 5º do CPC optar por uma formulação mais genérica, desde que não seja pura matéria de direito em face do caso concreto, tal como existe uma maior liberdade na consideração de factos que não foram alegados mas que resultaram da discussão da causa, nos termos do art. 5º, nº 2, sendo um meio de alcançar a justa composição do litígio, de chegar à verdade material pela aplicação do direito substantivo. Ac. STJ, de 10/09/2015, Proc. 819/11.7TBPRD.P1.S1. 15- Considerando a prova produzida resulta claro a existência de erro vício, ou seja, o erro que traduziu na formação da vontade e no processo de decisão porque existiu uma falsa representação da realidade ou a ignorância de circunstâncias que intervieram nos motivos da declaração negocial.
16- Nos termos do ar. 251º do C.C, existe erro vício, sendo por isso o negócio anulável, se se provar que o declarante se tivesse perfeito conhecimento das circunstâncias falsas ou inexactamente representadas não teria realizado o negócio ou tê-lo-ia realizado em termos diferentes.
17- Outra não pode ser a decisão proferida que não seja a de improceder a pedido contra a ré face à prova produzida e carreada para a sentença.
18- Desta forma a douta sentença violou o disposto nos art. 342º, C.C., 251º C.C e 5º do C.P.C., pelo que deverá ser a mesma substituída por outra que julgue improcedente a acção.

TERMOS EM QUE REQUER A V. EXª SE DIGNE alterar a decisão proferida em primeira instância por outra que absolva a recorrente da totalidade dos pedidos formulados, seguindo-se demais termos até final.

Contra-alegou a Recorrida, concluindo pela improcedência do recurso, reconduzindo-se, desde logo, à circunstância de a recorrente não recorrer da matéria de facto dada como provada e não provada; alegando, apenas, não aceitar a conclusão retirada pelo Tribunal a quo, e que deu provimento à acção. Donde, as alegações ilustram única e exclusivamente o inconformismo da Recorrente face ao teor da decisão. Sempre, considerando-se a prova produzida no seu conjunto, não se vislumbra um qualquer outro desfecho para os autos, que não o verificado. Tanto mais que os elementos probatórios destacados na apelação se revelam escassos para permitir uma alteração daquela e, nessa medida, abalar o juízo (devida e corretamente) formulado em 1.ª Instância.

Colhidos os vistos legais, cabe decidir.

II. Questões a decidir:

As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação, pese embora quanto a parte das questões suscitadas seja erróneo ou equívoco o enquadramento jurídico das situações ou vícios da sentença caracterizados, que decida as seguintes questões:
i.Da nulidade da sentença por contradição entre os fundamentos e a decisão/ambiguidade entre a decisão de facto e a decisão jurídica;
ii.Da modificabilidade (ampliação/precisão/concretização) da decisão de facto, nos termos e para os efeitos do art. 662º , nº 1 do CPC;
iii.Da verificação de uma situação de declarações inexactas relevantes em sede de prestação de informações pelo candidato a membro da associação mutualista e respectivas consequências.


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Como tem vindo a ser pacificamente entendido e decorre do disposto nos arts.º 635.º n.º 4 e 639.º do CPC são as conclusões apresentadas pelo Recorrente que delimitam o objeto do recurso e fixam a matéria a submeter à apreciação do tribunal, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso, nos termos do art.º 608.º n.º 2 do CPC. Neste sentido, escreve Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, pág. 85: “Salvo quando se trate de matérias de conhecimento oficioso que possam ser decididas com base nos elementos constantes do processo e que, além disso, não se encontrem cobertas pelo caso julgado, as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal.”

O  artigo 640.º do CPC sob a epígrafe «Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto» estabelece os requisitos formais a que deve obedecer a impugnação da matéria de facto, dispondo:   1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:  a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.   2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte: a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;  b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.

Devendo na motivação do recurso o recorrente cumprir o ónus de alegação inserto no artº 640º, nº 1, do Código de Processo Civil; tem sido questão controvertida e debatida na jurisprudência, a de saber quais os elementos que têm de constar não só da motivação do recurso, mas também das conclusões do mesmo, quando o Recorrente pretenda impugnar a decisão sobre a matéria de facto, à luz das exigências previstas pelo legislador no referido normativo: a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a firmar-se no sentido de que a exigência prevista no n.º 2 al. a) do art.º 640.º, relativa à indicação das passagens da gravação em que se funda o recurso quando a prova tenha sido gravada, não tem de ser incluída nas conclusões do recurso,  e mais recentemente no AUJ 12/2023 entendeu-se que mesmo quanto à decisão que o recorrente pretende que seja dada aos pontos de facto impugnados desde que esta seja inequívoca alegada na motivação do recurso deve ser considerado satisfeito o respetivo ónus de alegação.

No entanto, tem sido sufragado pelo Supremo que a admissibilidade do recurso depende de constar das conclusões do recurso pelo menos a exigência prevista na al. a) do n.º 1 deste artigo, ou seja, a indicação dos concretos pontos de facto considerados incorretamente julgados. O Acórdão de 29-10-2015 (LOPES DO REGO) 233/09.4TBVNC.G1.S1, in www.dgsi.pt refere: “Face aos regimes processuais que têm vigorado quanto aos pressupostos do exercício do duplo grau de jurisdição sobre a matéria de facto, é possível distinguir um ónus primário ou fundamental de delimitação do objeto e de fundamentação concludente da impugnação – que tem subsistido sem alterações relevantes e consta atualmente do nº 1, do art.º. 640º, do CPC; e um ónus secundário – tendente, não propriamente a fundamentar e delimitar o recurso, mas a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pela Relação aos meios de prova gravados relevantes, que tem oscilado, no seu conteúdo prático, ao longo dos anos e das várias reformas – indo desde a transcrição obrigatória dos depoimentos até uma mera indicação e localização exata das passagens da gravação relevantes (e que consta atualmente do art. 640º, nº2, al. a) do CPC).”

Neste mesmo sentido, de que pelo menos a indicação dos factos considerados incorretamente julgados tem de constar das conclusões do recurso, pronunciaram-se, entre outros, os Acórdãos do STJ de 12/05/2016 (ANA LUISA GERALDES) 324/20.9TTALM.L1.S1; e de 19/2/2015 (TOMÉ GOMES) 299/05.6TBMGD.P2.S1; de 22/09/2015in www.dgsi.pt.

A necessidade de o Recorrente indicar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, traduz uma opção do legislador que não admite o recurso genérico contra a errada decisão da matéria de facto, mas apenas a possibilidade de revisão de factos individualizados, relativamente aos quais a parte manifesta e concretiza a sua discordância em razão da prova produzida.

“Em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões.” Acrescenta a pág. 129: “Importa observar ainda que as referidas exigências devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor. Trata-se, afinal, de uma decorrência do princípio da autorresponsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo.” Abrantes Geraldes, in ob. cit., pág. 126.

De resto, no recente AUJ nº 12/2023 de  17-10-2023, no processo 8344/17.6T8STB.E1-A.S1, publicado no DR nº 220/2023, de 14-11-2023,   muito embora na concreta questão decidida tenha enunciado que: “Nos termos da alínea c), do n.° 1 do artigo 640.°do Código de Processo Civil, o Recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa pretendida, desde que a mesma resulte, de forma inequívoca, das alegações”, esclareceu no seu relato que: “ Da articulação dos vários elementos interpretativos, com cabimento na letra da lei, resulta que em termos de ónus a cumprir pelo recorrente quando pretende impugnar a decisão sobre a matéria de facto, sempre terá de ser alegada e levada para as conclusões, a indicação dos concretos pontos facto que considera incorretamente julgados, na definição do objeto do recurso.

Quando aos dois outros itens, caso da decisão alternativa proposta, não podendo deixar de ser vertida no corpo das alegações, se o for de forma inequívoca, isto é, de maneira a que não haja dúvidas quanto ao seu sentido, para não ser só exercido cabalmente o contraditório, mas também apreendidos em termos claros pelo julgador, chamando à colação os princípios da proporcionalidade e razoabilidade instrumentais em relação a cada situação concreta, a sua não inclusão nas conclusões não determina a rejeição do recurso , conforme o n.°l, alínea c) do art.° 640 (…)

Sempre as alegações de recurso e as conclusões destas se prefiguram como um acto jurídico não negocial, ao qual, nos termos e para os efeitos do art. 295º do CC, são aplicáveis as regras gerais da interpretação dos negócios jurídicos e, assim, não apenas a teoria da impressão do destinatário, como a possibilidade jurí de recurso ao elemento contextual da declaração.

Outrossim cabe relevar aqui o princípio jurídico estruturante do processo civil português, com expressão no art. 5º, n.º 3 do CPC,  lugar-comum, mas nem por isso menos rigoroso, nos termos do qual, na aplicação do direito e, desde logo, na qualificação jurídica da situação posta à sua consideração, ainda em sede de recurso, é o tribunal livre, não estando sujeito à qualificação ou enquadramento que as partes tenham dado à situação.

Ora, desde logo, temos para nós que não primam pelo rigor ou assertividade técnico-jurídica as alegações e conclusões pela Recorrente, admita-se já que pela peculiaridade da situação em apreço…

Na verdade, lidas as alegações e conclusões, no confronto agora com a decisão recorrida, duas evidências assomam:
A) A de que não está/não pode estar em causa a impugnação de matéria de facto provada, porquanto assentes os factos mesmos que determinam a procedência da excepção aduzida pela Ré/recorrente, nem também não provada, na medida em que esta versa sobre factos favoráveis à A. e/ou irrelevantes à procedência da acção, como decidida… Sempre falecendo nas conclusões as evidências de uma falta de conformação com a matéria de facto pela Recorrente, já que ausentes os requisitos legais de uma tal impugnação.
B) A de que não colhe a argumentação de uma falta de fundamentação da sentença, na parte que seria a interessante à matéria de facto, porquanto adquiridos, nos termos expostos, os factos mesmos alegados pela Ré/recorrente.

Por isso que, mantendo-nos no preciso e delimitado espaço das alegações e conclusões, o que se evidencia é, como adiantado, uma manifesta contradição entre a fundamentação de facto e a fundamentação de direito da sentença, geradora da nulidade, para além do mais por ininteligibilidade da decisão jurídica.

Basta atentar nos factos assentes na sentença recorrida:

1.43. Em anexo aos boletins de “Admissão de Associado” e de “Inscrição – Garantia de Pagamento de Encargos” subscritos pelo falecido marido da autora, constavam o “Regulamento” da modalidade subscrita, os “Estatutos” da 2ª ré e excerto do “Regulamento de Benefícios”, dos quais foram entregues exemplares ao falecido marido da autora.

1.44. Pelas respostas prestadas pelo falecido marido da autora ao “Questionário Médico” a que se alude em 1.15., o médico toma as decisões quanto à necessidade ou não de subscrever determinados exames clínicos, tendo em vista os sintomas e informações por ele prestadas.

1.45. A informação prestada no “Questionário Médico” influencia de forma essencial o diagnóstico do real estado de saúde do subscritor.

1.46. Todo o processo de aprovação do produto subscrito e posterior ativação do mesmo por morte foi feito pela 2ª ré, nenhuma outra intervenção tendo tido a 1ª ré.

1.47. Em 15 de setembro de 2003, o falecido marido da autora candidatou-se a associado da 2ª ré e solicitou a constituição de duas subscrições na modalidade “Garantia de Pagamento de Encargos”, uma com um capital subscrito de 65.000,00 € e outra com um capital subscrito de 20.000,00 €.

1.48. Para essas subscrições foram escolhidas as coberturas de risco de “Invalidez e Morte”.

1.49. Esta modalidade, “Garantia de Pagamento de Encargos” (GPE), destina-se, em caso de ocorrência de uma das coberturas de risco escolhidas, e desde que as mesmas ocorram nas condições previstas no “Regulamento de Benefícios” da 2ª ré, a substituir o associado subscritor no pagamento das prestações que se vencerem e até ao termo de um determinado contrato, ou a proporcionar a entrega de uma determinada quantia aos herdeiros/beneficiários indicados pelo associado.

1.50. Para essa modalidade, para a efetivação da subscrição é necessária uma avaliação médica do associado subscritor, efetuada por médicos indicados pela 2ª ré.

1.51. O falecido marido da autora, para poder efetivar as suas subscrições, preencheu um questionário médico e foi presente a uma consulta médica, realizada no Porto, em 11 de setembro de 2003.

1.52. Após análise do questionário médico preenchido pelo associado e do relatório resultante da consulta médica efetuada ao mesmo, os serviços médicos da 2ª ré emitiram parecer favorável, com restrição, à subscrição da modalidade “GPE”.

1.53. Essa restrição consistiu na atribuição de uma incapacidade de 13%, o que implicava que em caso de ativação da cobertura de risco de invalidez, o associado só poderia solicitar esta ativação com uma incapacidade não inferior a 83% (correspondente aos 70% mínimos definidos no regulamento de benefícios, acrescidos da incapacidade de 13% atribuída pelos serviços médicos da 2ª ré).

1.54. Esta decisão médica foi transmitida ao associado tendo o mesmo aceite a decisão.

1.55. Com esta aceitação por parte do falecido médico da autora, este foi admitido como associado efetivo da 2ª ré e as suas subscrições foram efetivadas, tendo sido enviadas cartas datadas de 25.11.2003 a confirmar a sua admissão e subscrição da modalidade “GPE”, contendo as condições em que as subscrições naquela modalidade foram constituídas.

(…)

1.58. Ao ser analisada essa documentação pelos serviços médicos da 2ª ré, estes verificaram que num desses documentos, denominado “...”, do “Instituto Nacional de La Seguridad Social - Direccion Provincial ...”, em Espanha, datado de 15 de junho de 2004, nos antecedentes pessoais do falecido é referido um episódio de hemiparesia direita, ocorrido sete anos antes (em 1997).

1.59. A hemiparesia é uma doença neurológica que se caracteriza pela paralisia parcial do corpo, podendo ser causada por um acidente vascular cerebral (AVC).

1.60. Esta doença não foi referida pelo falecido em agosto de 2003 quando preencheu o questionário médico, nem ao médico que realizou a consulta presencial em 11 de setembro de 2003.

1.61. A hemiparesia é uma doença grave, podendo constituir uma sequela de um AVC.

(…)

1.64. No “Questionário Médico” a que se alude em 1.15., preenchido pelo falecido marido da autora, consta um campo para preenchimento no qual se pergunta se “Tem ou Teve Alguma das Seguintes Doenças ou Sintomas? (…) Doenças vasculares Cerebrais”, ao que o falecido respondeu, assinalando a quadrícula relativa à resposta “Não”.

1.65. Essa resposta induziu em erro os serviços da 2ª ré na avaliação do risco. (destaque nosso)

1.66. No “Questionário Médico” preenchido pelo falecido marido da autora constava, antes da sua assinatura, a informação de que “A constatação de que a resposta ao presente questionário foi efetuada mediante a prestação de declarações inexatas ou reticentes, ou com a omissão de factos que influenciem a avaliação do estado de saúde do candidato, implica a anulabilidade do contrato estabelecido entre este e o Banco 1...”, que o mesmo assinou.

Por seu turno, na motivação da decisão de facto, consignou-se, também sem impugnação, o seguinte, justamente quanto aos factos que vêm de transcrever-se:

“(…)

CC é funcionário da 1ª ré mas cedido à 2ª ré, sendo atualmente responsável pela área de operações. À data de 2003 estava na área de produtos e apoio às vendas.

Explicou que a subscrição dos produtos é feita nos balcões da 1ª ré e que a cobertura do risco de incapacidade é facultativa. A avaliação do risco, referindo-se ao risco de morte e de invalidez, é feita através de avaliação médica, junto do médico do Banco 1.... É preenchido um questionário médico pelo cliente e, dependendo do valor mutuado, pode ser necessário fazer vários exames. Depois há uma avaliação final pelos serviços médicos do Banco 1.... O preenchimento do questionário é muito importante, pois o médico que faz a avaliação orienta-se pelos dados contidos no mesmo. No caso concreto a cobertura de incapacidade foi admitida com restrição, o que foi comunicado a Declarou que em 2019 acompanhou o processo em causa nos autos. Com o pedido de acionamento a autora entregou a habilitação de herdeiros, certidão de óbito e documentação clínica. Aí foi feita uma comparação entre a avaliação inicial e a atual. Isto porque há exclusões de risco. A resposta dos médicos vai depois para a sua área. Em face da mesma constata-se a existência de patologias anteriores à data da subscrição do produto que se prendem com o motivo do óbito, que terá a ver com um AVC, e que não foram referidas na avaliação médica inicial e no questionário. Se o tivessem sido, ou a subscrição não teria sido aceite ou teria sido aceite mas com exclusão dessa patologia. A cobertura não foi aceite porque ocorreu omissão que influenciou a decisão de contratar ou não ou de contratar mas com uma incapacidade maior.

Explicou que no momento da subscrição do produto, que é feita ao balcão, são entregues cópias dos requerimentos subscritos (que são 3) e os documentos nos mesmos referenciados como juntos em anexo, estes no formato de livros, os quais referem as exclusões.

À semelhança do depoimento da anterior testemunha, o seu depoimento revelou-se objetivo e credível, tendo sido integralmente valorado, contribuindo dessa forma para que se considerasse como provada a factualidade contida em 1.37., 1.38., 1.41., 1.42., 1.43., 1.44., 1.45., 1.46., 1.50., 1.51., 1.52., 1.53., 1.54., 1.57., 1.60. e 1.65.

DD é médico, prestando serviços, nessa qualidade, à 2ª ré.

Declarou ter acompanhado, em 2003, a candidatura do falecido marido da autora. Receberam o questionário médico e pediram análises de sangue e urina, RX e eletrocardiograma, o que correspondia ao protocolo de acordo com o montante do empréstimo. Face ao teor dos questionários médicos podem ser pedidos exames adicionais. Na análise efetuada em 2003 não existiam referências a problemas neurológicos. Caso soubessem de problemas cardiovasculares ou da ocorrência de AVC recente a candidatura teria sido recusada porque existiria risco de vida muito significativo. Os elementos clínicos fornecidos em 2019 faziam referência a hemiparesia, o que é um sintoma de AVC. Dos elementos provenientes do Hospital ... resulta a existência de doença vascular cerebral que se agravou com a idade por acidentes sucessivos. Perante tal doença não é normal que a pessoa não se aperceba da mesma. Perante um episódio de hemiparesia a pessoa tem noção de que precisa de tratamento. Presume que a morte tenha sido causada por encefalopatia vascular causada por vários acidentes vasculares. Estes levam a lesões graves das funções cerebrais e podem causar morte súbita. Nos elementos clínicos provenientes de Espanha referentes a internamento é mencionada a ocorrência de hemiparesia há 7 anos (está em causa o documento denominado de “Informe médico de sínteses” datado de 15.06.2004). Essa situação esteve na base da proposta de reforma e exigiria a realização de uma RM para que se pudesse aferir da existência de lesões. Neste enquadramento não tem dúvidas de que a proposta do falecido seria recusada.

O seu depoimento, objetivo e devidamente justificado, contribuiu para que se considerasse como provada a factualidade contida em 1.15., 1.45., 1.50., 1.51., 1.57., 1.58., 1.59., 1.60., 1.61. e 1.65. e como não provada a elencada em 2.3.”

Ora, é já em sede de apreciação jurídica que se detecta a manifesta contradição ou incongruência…

Diz-se ademais na decisão recorrida: «Por outro lado, e tendo em atenção que a ré “Associação Mutualista” alega que “ocorreu omissão de dados suscetíveis de induzir em erro os serviços do Banco 1... na avaliação do risco correspondente”, o artigo 251º do CC (Erro sobre a pessoa ou sobre o objeto do negócio) estabelece que o erro que atinja os motivos determinantes da vontade, quando se refira à pessoa do declaratário ou ao objeto do negócio, torna este anulável nos termos do artigo 247º do CC. E o artigo 247º dispõe que “Quando, em virtude de erro, a vontade declarada não corresponda à vontade real do autor, a declaração negocial é anulável, desde que o declaratário conhecesse ou não devesse ignorar a essencialidade, para o declarante, do elemento sobre que incidiu o erro”.

Ao contrário do que ocorre com o “erro na declaração”, no “erro-motivo” ou “erro-vício”, previsto no artigo 251º do CC, existe conformidade entre a vontade real e a vontade declarada, mas, no entanto, a vontade real foi formada em consequência de erro sofrido pelo declarante, erro esse essencial, na medida em que, se não tivesse ocorrido o declarante não teria querido realizar o negócio, pelo menos nos termos em que o efetuou. A anulabilidade do negócio depende, neste caso, conforme referido e resulta da remissão constante do artigo 251º para o artigo 247º, ambos do CC, da circunstância de o declaratário conhecer, ou não dever ignorar, a essencialidade para o declarante do elemento sobre o qual recaiu o erro.

A propósito do referido artigo 429º do Código Comercial e do contrato de seguro, considerou-se no Acórdão do STJ de 11.11.2020, Processo n.º 3471/17.2T8VNG.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt, que a sanção da anulabilidade do contrato de seguro ai contemplada “constitui um afloramento do erro vício que atinge os motivos determinantes da vontade, quando se refira à pessoa do declaratário ou ao objeto do negócio, previsto nos artigos 251º e 247º, ambos do Código Civil, sendo seus pressupostos de verificação: i) que o segurado tenha prestado declarações inexatas, não conformes com a realidade, ou reticentes, isto é, que omitem factos com interesse para a formação da vontade contratual da outra parte; ii) que essas declarações respeitem a factos ou circunstâncias conhecidas pelo segurado ou por quem fez o seguro no momento da subscrição da proposta de seguro; iii) e sejam suscetíveis de influenciar a seguradora na decisão de contratar”.

A declaração inexata traduz-se num facto impeditivo ou extintivo da validade do contrato, cuja prova compete à seguradora, por força do disposto no artigo 342º n.º 2 do CC, incumbindo também à seguradora a prova de que as declarações contidas nas respostas ao questionário clínico influíram na celebração do contrato de seguro em causa.

Entendemos que no caso da subscrição de modalidades de garantia no âmbito da atividade mutualista (não estando em causa a aplicação do atual Código das Associações Mutualistas), se deve efetivamente fazer apelo ao regime previsto para o erro vício que atinge os motivos determinantes da vontade, designadamente quando se refira ao objeto do negócio, previsto nos já referidos artigos 251º e 247º, ambos do CC, cujos pressupostos são que o subscritor tenha prestado declarações falsas, inexatas ou reticentes, omitindo factos relevantes para a formação da vontade contratual da ré “Associação Mutualista”, que estejam em causa declarações referentes a factos conhecidos pelo subscritor no momento da subscrição e que sejam suscetíveis de influenciar na decisão da ré “Associação Mutualista”. A declaração falsa, inexata ou reticente traduz-se, também aqui, num facto impeditivo ou extintivo da validade da cobertura, cuja prova compete à ré “Associação Mutualista”, bem como a prova de que tais declarações, designadamente quando contidas nas respostas constantes do questionário clínico, influíram na aceitação da Garantia por parte da ré “Associação Mutualista”, em conformidade com o estabelecido no artigo 342º n.º 2 do CC.

Revertendo para a situação dos autos, vemos que nos mesmos resultou provado que o falecido marido da autora subscreveu o produto “Garantia de Pagamento de Encargos”, com as coberturas de “Invalidez e Morte”.

Esta modalidade, “Garantia de Pagamento de Encargos” (GPE), destina-se, em caso de ocorrência de uma das coberturas de risco escolhidas, e desde que as mesmas ocorram nas condições previstas no “Regulamento de Benefícios” da ré “Associação Mutualista”, a substituir o associado subscritor no pagamento das prestações que se vencerem e até ao termo de um determinado contrato, ou a proporcionar a entrega de uma determinada quantia aos herdeiros/beneficiários indicados pelo associado.

Para a efetivação da subscrição nessa modalidade é necessária uma avaliação médica do associado subscritor, efetuada por médicos indicados pela ré “Associação Mutualista”.

Assim, o falecido marido da autora, para poder efetivar a sua subscrição, preencheu um questionário médico e foi presente a uma consulta médica, realizada no Porto, em 11 de setembro de 2003.

Após análise do questionário médico por si preenchido e do relatório resultante da referida consulta médica, os serviços médicos da ré “Associação Mutualista” emitiram parecer favorável, com restrição, à subscrição da modalidade “GPE”. Essa restrição consistiu na atribuição de uma incapacidade de 13%, o que implicava que em caso de ativação da cobertura de risco de invalidez, o associado só poderia solicitar esta ativação com uma incapacidade não inferior a 83% (correspondente aos 70% mínimos definidos no regulamento de benefícios, acrescidos da incapacidade de 13% atribuída pelos serviços médicos da ré “Associação Mutualista”). Essa decisão médica foi transmitida ao associado, o falecido marido da autora, tendo o mesmo aceite a decisão. Com essa aceitação, o falecido marido da autora foi admitido como associado efetivo da ré “Associação Mutualista” e as suas subscrições foram efetivadas, tendo-lhe sido enviadas cartas datadas de 25.11.2003 a confirmar a sua admissão e subscrição da modalidade “GPE”, contendo as condições em que as subscrições naquela modalidade foram constituídas.

Atento o óbito do seu marido, em 26.09.2019 a autora comunicou o facto à ré “Associação Mutualista”, solicitando a ativação das duas subscrições da “Garantia de Pagamento de Encargos”. E, tendo o falecimento ocorrido por doença, foram entregues pela autora relatórios médicos referentes à doença em causa e à evolução da mesma. Ao ser analisada essa documentação pelos serviços médicos da ré “Associação Mutualista”, estes verificaram que num desses documentos, denominado “...”, do “Instituto Nacional de La Seguridad Social - Direccion Provincial ...”, em Espanha, datado de 15 de junho de 2004, nos antecedentes pessoais do falecido é referido um episódio de hemiparesia direita, ocorrido sete anos antes (em 1997). A hemiparesia é uma doença neurológica que se caracteriza pela paralisia parcial do corpo, podendo ser causada por um acidente vascular cerebral (AVC). A ocorrência dessa hemiparesia direita não foi referida pelo falecido em agosto de 2003, quando preencheu o questionário médico, nem foi comunicada ao médico que realizou a consulta presencial em 11 de setembro de 2003.

A hemiparesia é uma doença grave, podendo constituir uma sequela de um AVC.

Em 31 de maio de 2017, o falecido compareceu numa consulta de psiquiatria no Hospital 1..., tendo a médica no relatório descrito que se tratava de “um homem de 59 anos com antecedentes de AVC há 15 anos com sequelas cognitivas, na linguagem e na mobilidade. Apresenta ainda frequentes desequilíbrios com quedas, tremor dos membros e incontinência urinária.

Em 13 de julho de 2016, numa consulta de neurologia no Hospital ..., consta do relatório médico: “Doente de 58 anos, com doença vascular cerebral grave com múltiplos enfartes, com síndroma demencial vascular e parkinsonismo vascular, com desequilíbrio importante e quedas frequentes.

No “Questionário Médico” preenchido pelo falecido marido da autora, consta um campo para preenchimento no qual se pergunta se “Tem ou Teve Alguma das Seguintes Doenças ou Sintomas? (…) Doenças vasculares Cerebrais”, ao que o falecido respondeu, assinalando a quadrícula relativa à resposta “Não”.

Essa resposta induziu em erro os serviços da ré “Associação Mutualista” na avaliação do risco.

Provou-se igualmente que perante as respostas dadas ao “Questionário Médico” o médico toma as decisões quanto à necessidade ou não de subscrever determinados exames clínicos, tendo em vista os sintomas e informações nele prestadas. A informação prestada no “Questionário Médico” influencia de forma essencial o diagnóstico do real estado de saúde do subscritor.

Perante a factualidade que acima ficou descrita, temos por seguro que o falecido marido da autora, no questionário médico que preencheu, prestou falsas declarações. Efetivamente, pelo mesmo foi declarado nunca ter tido doença vascular cerebral ou sintomas da mesma, quando já havia sofrido um episódio de hemiparesia direita. Note-se que, se por hipótese o autor não soubesse que a hemiparesia é uma doença vascular cerebral, poderia ter feito referência à mesma no espaço do “Questionário Médico” que preencheu destinado à indicação de “Outras Doenças”, espaço ao qual respondeu com um “Não”. E nem se diga que o falecido marido da autora desconhecia esse episódio de hemiparesia direita porquanto, implicando o mesmo uma paralisia parcial de uma parte do corpo, é impossível que não se tenha apercebido da mesma e da sua gravidade.

No entanto, pese embora tenhamos concluído que o falecido marido da autora prestou declarações falsas quanto ao seu estado de saúde, a verdade é que não foi alegado que essas declarações eram suscetíveis de influenciar a decisão da ré “Associação Mutualista” de aceitar a proposta de subscrição do falecido marido da autora no que se refere à cobertura do risco de morte, designadamente, de a levarem a decidir não aceitar essa cobertura. Efetivamente, a ré “Associação Mutualista” apenas alega, e prova, que a resposta do falecido marido da autora a induziu em erro na avaliação do risco. A mesma ré nada alega quanto à decisão que tomaria em face da avaliação do risco efetuada com base no conhecimento do referido episódio de hemiparesia.

Perante este enquadramento não poderemos concluir por uma situação de erro tal como previsto no art.º 251º do CC, improcedendo assim a defesa da ré “Associação Mutualista”, o que significa que a mesma terá de ser condenada a acionar os dois contratos de “Garantia de Pagamento de Encargos” por si outorgados com o falecido marido da autora.»

A decisão recorrida, no pressuposto da validade e subsistência da cláusula de exclusão convocada pela Ré, a um tempo, dá como assente a realidade naquela prevista e do ponto de vista jurídico reconduz-se já à exigência de uma alegação que a ultrapasse (?!!!). Percebe-se, por conseguinte, a equivocidade ou contradição manifesta, em termos de se quedarem ininteligíveis os termos da condenação…A gerar a nulidade da decisão, nos termos e para os efeitos do art. 615º, n.º 1, al. c) do CPC.

Sempre possível, agora, nos termos e para os efeitos do art. 665º do mesmo código, perante os próprios termos da decisão recorrida, conhecer do objecto da apelação…

Assim é que, ainda quando se reconheça que a excepção convocada pela Ré se reconduziu aos termos mesmos da cláusula contratual, cujos contornos se apresentam como conclusivos, certo é que o tribunal não deixou de admitir a prova directa daquele facto tal qual alegado… Assim sob o ponto 1.65 dos factos assentes.

Desde logo, não se afigura que aquela alegação como pura matéria de direito…Ao longo do tempo e, decisivamente, após  a reforma mais recente do processo civil português passou a admitir-se com mais naturalidade no domínio da alegação e prova de factos asserções que, não correspondendo no contexto concreto da acção, a puras “questões de direito”, são algo mais que puras “questões de facto”, no sentido tradicional.

Sempre difícil e discutível o estabelecimento de uma linha de demarcação rigorosa entre o que constitui matéria de facto e matéria de direito, temos para nós ser de defender [mormente num sistema que determina que a produção da prova em audiência tenha por objecto “temas da prova” – art. 596º do CPC, ao invés de incidir sobre factos sincopados e em que a decisão da matéria de facto se integra já na própria sentença – art. 607º, n.º 3 -, juntamente com a respectiva integração jurídica, segundo o método pendular que implica a ponderação conjugada de elementos de facto e questões de direito] uma maior liberdade no que importa à descrição da realidade em apreciação, a qual não deve ser complicada de forma desproporcionada por juízos lógico-formais em torno do que seja matéria de direito ou matéria conclusiva…decisivamente quando provoque um desajustamento entre a decisão final e a justiça material do caso decidendo.

Sufraga-se, pois, o abandono de um critério formal pretensamente assente numa demarcação rígida entre o que constitui matéria de facto e matéria de direito, admitindo-se que a descrição dos factos que subjazem ao litígio seja feita a partir de pressupostos que valorizam já aspectos de ordem substancial e, assim, a descrição de factos que encerrem conclusões, quando estas comportem um conteúdo material ou correspondam a realidades concretas e perfeitamente apreensíveis por qualquer pessoa…

Ora, a menção a “induzir em erro na avaliação do risco” comporta ou encerra uma realidade apreensível ao comum das pessoas, para mais no contexto do pedido de associação em apreço nos autos, na medida em que, nos termos da demais matéria provada, em causa a cobertura do risco da morte ou incapacidade do proponente…

Vem a ser ela, desde logo, a da aceitação sem reservas no confronto já com a não aceitação/exclusão total da cobertura com referência à doença omitida… De resto, o que atestaram as testemunhas a que a 1ª instância atribuiu credibilidade para a aquisição do facto conclusivo processualmente adquirido…

E é aqui que reside o cerne da contradição existente na sentença recorrida… Ou se teve por “vazia” a alegação da Ré excepcionante (e não se percebe então a consideração em sede de temas da prova sem um convite ao aperfeiçoamento) ou, sem fundamento, desconsiderou-se o sentido útil e comum do facto a que corresponde: o da aceitação ao invés da recusa ou da aceitação limitada e com condições distintas ou ainda o da aceitação apenas após a realização de exames, de resto passível de menção explicativa no facto demonstrado/tido como provado… Esse o “erro na avaliação do risco”, como se infere da própria motivação de facto da sentença recorrida…

Não pode é, a um tempo, ter-se como demonstrada a omissão da declaração de uma doença preexistente  e a sua interferência na avaliação do risco pela Ré Recorrente [de resto, quando se considerem os depoimentos testemunhais alvitrados, mas ainda as regras da normalidade e experiência comum, atenta ademais a concreta situação em causa (uma hemiparesia consequente a AVC), atestada uma situação de recusa de cobertura de sinistro conexo com AVC…], após, em sede de saneamento, se ter elencado aquela questão e a sua consequência como Tema da prova (atribuindo-lhe, pois, suficiência) e concluir-se ou sufragar-se que a Ré não alegou cabalmente  a alteração ou interferência na sua “vontade” negocial determinada pela omissão ou declaração inexacta pelo aderente…

A interferência na avaliação do risco não é, nem pode ser, outra coisa que não a aceitação pura e simples da adesão em caso de morte numa situação em que, conhecida a realidade, seria negada esta ao menos no caso de morte consequente a AVC (como atestado pelas testemunhas da Ré).

Manifesta a contradição, assim, na fundamentação da sentença, cabe corrigi-la ou integrá-la, uma vez que possível[1].

Tal correcção, para que dúvidas não subsistam, sê-lo-á mediante o aditamento, rectius, concretização factual, à la mode de uma “resposta explicativa” ao facto já havido como provado sob 1.65, dele passando a constar bem assim o seguinte segmento: sendo que se os serviços da Ré tivessem tido conhecimento, à data da prestação de informações sobre o seu estado de saúde pelo requerente da adesão e da consulta médica a que foi sujeito,de que padecia de hemiparesia[2]  consequente ou secundária a AVC sofrido em 1997 não teria sido aceite a adesão correspondente à cobertura do risco morte consequente a AVC ou a acidentes isquémicos.

 Sempre se impõe ampliar a matéria de facto, por ter sido bem assim omitida matéria de facto oportunamente alegada e quanto à qual, de resto, resulta da decisão recorrida, a aquisição probatória respectiva, muito embora a opção pela redacção do facto relevante contra o ónus da prova respectivo e em termos de ser imprestável.

Assim é que, tendo a Ré Recorrente alegado no art. 22º da sua contestação que o aderente estava ciente do problema de saúde omitido e da sua causa, a sentença recorrida, não obstante na motivação da decisão de facto se reportar ao conhecimento necessário daquele à data da prestação das informações de saúde e consulta, o que tem é como não provado que o desconhecesse…

Sabido que é que da falta de prova de um facto se não infere a prova do facto contrário, revela-se uma situação que exige, como se adiantou, a ampliação da matéria de facto, por ser determinante a aquisição probatória do facto daquele conhecimento pelo aderente e declarante/respondente ao questionário de saúde da doença pré-existente e causa desta, na medida em que, oportunamente alegado, se revela essencial para a resolução do litígio.

Trata-se outrossim de uma faculdade que nem sequer está dependente da iniciativa do Recorrente, bastando que nos confrontemos, como sucede, com uma omissão objectiva de factos relevantes[3].

Nos termos e para os efeitos, pois, do art. 662º, n.º 1 do CPC, mais se adita à matéria provada sob 1.51´ o seguinte facto: Nas ocasiões referidas no número que antecede 1.51 e em 1.60 o falecido marido da Autora estava ciente de que padecia de hemiparesia consequente ou secundária a AVC sofrido em 1997 e mais sabia que o facto de ter tido um AVC era significativo para a aceitação pela 2ª Ré da proposta de adesão e cobertura do risco da morte em razão de AVC ou acidente isquémico.

Nessa parte, cabe remeter-nos, desde logo, à fundamentação/motivação da sentença mesma, ao salientar aspectos decisivos do depoimento da testemunha da Ré, DD, médico, o qual, não obstante prestar serviços à Ré, esclareceu de forma perfeitamente conforme a juízos de normalidade e regras da experiência, a natureza da afectação sofrida pelo falecido e requerente da adesão…, em termos de não poder deixar de ser conhecida… De resto, não é a mesma coisa ser vítima de um AVC que não deixa sequelas ou sê-lo de um evento que determina Síndrome piramidal residual hemicorporal direito secundário a AVC, com enfarte isquémico e encefalopatia subsequente, ainda quando sem deterioração cognitiva ou volitiva, nos termos do documento junto aos autos, denominado de “Informe médico de sínteses”, datado de 15.06.2004… Assim é que a sequela da qual ficou o marido da Autora a padecer não lhe permitia “esquecer” o evento isquémico, ainda quando longínquo no tempo… Como, de resto, já se chamou à colação, o documento mesmo que atesta essa sequela[4] insere-se no quadro da apreciação de um pedido de reconhecimento de incapacidade  absoluta para o trabalho habitual, ), sendo que o pedido daquele reconhecimento da incapacidade o é no mês mesmo do preenchimento do questionário clínico em causa (a 01.09.2003)…, com o que em causa uma afectação grave e determinante de limitações relevantes ou sensíveis à vida profissional do marido da A. e já à data…em termos de necessariamente conhecidas. Até por via destas se impõe inferir a consciência pelo aderente da relevância de tal antecedente clínico para a adesão que pediu…

De igual modo se impõe agora clarificar/objectivar o facto havido como demonstrado sob 1.61, em termos de se alcançar o relevo para a situação decidenda.

Convenhamos que o facto se reporta à alegação da parte mesma, mas não à realidade que interessa e que lhe está subjacente, já que o que releva não é uma causa possível ou hipotética em termos de etiologia médica para a hemiparesia, mas a concreta e efectiva causa da padecida pelo marido da Autora… Ora, a totalidade dos registos clínicos juntos aos autos quanto à evolução da situação do marido da A., como referidos na decisão recorrida e no depoimento do médico já aludido, caracterizam/justificam a aquisição probatória de estar em causa uma consequência sequelar a AVC/acidente isquémico, os quais continuaram a assolar o requerente da adesão, em termos de terem sido mesmo a causa da sua morte.

O facto ali provado passará, pois, a ter a seguinte redação:

A hemiparesia da qual padecida o requerente da adesão era uma sequela de um AVC padecido anteriormente.

Os factos provados a atender são, visto o que antecede, os seguintes:

1.1. A autora foi casada com BB desde 07.03.2007.

1.2. BB acabou por falecer em 16 de setembro de 2019.

1.3. A autora é herdeira e cabeça de casal da herança aberta por óbito de BB.

1.4. O falecido, por testamento outorgado a 27.12.2006, declarou que “lega, a AA, (…) a fração autónoma designada pelas letras “BS”, destinada a habitação, correspondente ao terceiro andar esquerdo, trás, do tipo T-dois, com um compartimento no sótão, para arrumos e um de aparcamento, no logradouro, identificado pelo número quinze, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na Rua ..., da freguesia e concelho da Póvoa de Varzim, descrito na Conservatória do Registo Predial da Póvoa de Varzim sob o número ... da freguesia da Póvoa de Varzim e artigo ..., da matriz urbana respetiva.

1.5. O falecido marido da autora, cliente n.º ..., tinha junto da 1ª ré uma conta de depósitos à ordem com o n.º ... e uma conta ordenado com o n.º ....

1.6. Mediante escritura pública de “Compra e Venda e Mútuo com Hipoteca” celebrada em 20.11.2003, junta com a petição como doc. 6, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, EE e mulher (primeiros outorgantes) declararam vender ao falecido marido da autora (segundo outorgante), que declarou aceitar a venda, pelo preço de 65.000,00 €, “a fração autónoma designada pelas letras “BS”, correspondente ao terceiro andar esquerdo, trás, para habitação, do tipo “T-dois”, bloco ..., com entrada pelo número oitocentos e trinta e quatro, da Rua ..., um compartimento no sótão, para arrumos, (…) e um de aparcamento, identificado pelo número quinze, no logradouro, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito na Rua ... (…) e na Rua ..., ..., da freguesia e concelho da Póvoa de Varzim, descrito na Conservatória do Registo Predial respetiva sob o número ..., da freguesia da Póvoa de Varzim (…) artigo ... da matriz urbana respetiva (…).”.

1.7. Nessa mesma escritura, o falecido marido da autora (segundo outorgante) e a 1ª ré (terceira outorgante) declararam “Que é celebrado o presente contrato de mútuo com garantia hipotecária, nos termos das cláusulas constantes do documento complementar anexo, que expressamente declaram conhecer e aceitar e que faz parte integrante da presente escritura, e ainda das seguintes cláusulas:

Cláusula Primeira

1 - O segundo outorgante confessa-se devedor à Banco 1..., da quantia de sessenta e cinco mil euros, que neste acto dela recebe a título de empréstimo para aquisição do imóvel adiante hipotecado, que se destina à sua habitação própria permanente.

2 - O presente contrato é celebrado tendo em consideração um regime de prestações de amortização de capital e juros calculados segundo um método misto nos termos do qual nos primeiros oito anos de vida do contrato as prestações são calculadas segundo um método crescente e no remanescente período segundo um método constante.

3 - Para efeitos do presente contrato, o cálculo das prestações crescente é efetuado com base numa taxa de crescimento anual de dois virgula zero zero por cento.

4 - A partir do segundo ano de vida do contrato, a taxa de crescimento indicada no número anterior será anualmente reduzida de zero virgula vinte e cinco pontos percentuais até ao final do período de cálculo das prestações segundo um método crescente.

Cláusula Segunda

1 - O capital mutuado vence juros, durante o primeiro trimestre, à taxa anual de três virgula oito mil quarenta e oito por cento (taxa contratual determinada com base na taxa nominal anual de três virgula sete mil e quatrocentos por cento) a qual é calculada, aplicada e revista trimestralmente, nos termos da cláusula segunda do documento complementar anexo (…).

Cláusula Terceira

1- Para garantia do integral cumprimento das obrigações assumidas no presente contrato a parte devedora constitui a favor da Banco 1..., Hipoteca voluntária sobre a fração autónoma designada pelas letras “BS”, por ela ora adquirida. (…).

1.8. Consta do “Documento Complementar” – “(Banco 1...-Euribor Habitação Própria Permanente / Aquisição / Prestações Mistas)” anexo à escritura identificada em 1.6. e 1.7.:

“(…)

Cláusula Nona

(Autorização de débitos)

(…)

2. A Banco 1... fica desde já autorizada a debitar da citada conta de depósito à ordem as quantias correspondentes às prestações mensais referidas na cláusula relativa ao reembolso, as quantias necessárias ao pagamento do Plano Garantia de Pagamento de Encargos (PGPE) e dos prémios de seguro (Multi-riscos e/ou Plano Proteção ao Crédito à Habitação (PPCH) e, ainda, de quaisquer outras despesas decorrentes deste contrato, bem como as importâncias destinadas ao pagamento de quaisquer créditos da Banco 1... sobre a Parte Devedora. (…)

Cláusula décima

(Obrigações relativas aos imóveis)

1. A Parte Devedora obriga-se a:  

d) Efetuar o respetivo seguro Multi-Riscos Habitação, em companhia seguradora aceite pela Banco 1... (…).

e) A subscrever um GPE – Plano de Garantia de Pagamento de Encargos da Associação Mutualista do Banco 1... ou, em alternativa um PPCH - Plano de Proteção ao Crédito à Habitação (seguro de vida), salvo se a idade ou estado de saúde dos mutuários o não permitirem. Esta garantia tem por finalidade a liquidação do capital em dívida, se outro não for indicado, logo que ocorra a morte ou invalidez absoluta e definitiva de um dos mutuários intervenientes na subscrição desta garantia. O montante a subscrever será indicado pela Banco 1..., em poder de quem ficará a documentação e na qual será averbada o seu interesse como credora hipotecária (…).

2. Quaisquer indemnizações devidas no âmbito da alínea d), e) e f) só poderão ser fixadas com intervenção da Banco 1..., a favor de quem reverterá o produto respetivo até ao limite do seu crédito (…).

1.9. No dia 20.11.2003 o falecido marido da autora celebrou com a ré 1ª ré dois contratos de empréstimo:

a) empréstimo n.º ..., no valor de 65.000,00 €, ao qual se alude em 1.7. e 1.8.

b) empréstimo n.º ..., no valor de 20.000,00 €.

1.10. Na mesma data de 20.11.2003, o falecido marido da autora subscreveu na qualidade de “Segurado” o “Certificado de Seguro de Incêndio e Multirriscos” da “A... – Companhia de Seguros, S.A.”, junto com a petição como doc. 7, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, no qual a Banco 1... figura na qualidade de “Tomador de Seguro”.

1.11. A 1º ré foi sempre cobrando as prestações relativas aos dois empréstimos identificados em 1.9., as quais incluíam capital e juros, bem como o imposto de selo e comissões de gestão.

1.12. A 2º ré cobrava as quotas e demais taxas.

1.13. As prestações referidas em 1.11. sempre foram pagas mediante desconto direto na conta do falecido marido da autora e, após o óbito deste, a autora passou a fazer mensalmente depósitos de aproximadamente 500,00 €, com vista ao pagamento das prestações dos empréstimos.

1.14. O falecido marido da autora associou-se à 2ª ré e optou por subscrever o produto “Garantia de Pagamento de Encargos”, um para cada um dos dois empréstimos identificados em 1.9., sendo que relativamente ao primeiro desses dois empréstimos o fez em cumprimento da cláusula décima, n.º 1, e), a que se alude em 1.8.

1.15. Para o efeito, o falecido marido da autora preencheu um “Questionário Médico” e efetuou os exames que foram considerados necessários pela 2ª ré.

1.16. O falecido marido da autora era o associado da 2ª ré n.º E 322.180-0.

1.17. Como associado da 2ª ré, o falecido marido da autora pagou uma prestação única a título de joia no valor de 9,00 € e pagava uma quota associativa mensal no valor de 1,00 €.

1.18. Com referência ao produto “Garantia de Pagamento de Encargos” relativo ao “capital subscrito” de 65.000,00 €, pelo prazo de 30 anos, o falecido marido da autora pagava uma quota mensal de 27,73 €.

1.19. O risco coberto pelo produto identificado em 1.18. era o de “Invalidez e Morte” do subscritor.

1.20. Com referência ao produto “Garantia de Pagamento de Encargos” relativo ao “capital subscrito” de 20.000,00 €, pelo prazo de 30 anos, o falecido marido da autora pagava uma quota mensal de 8,53 €.

1.21. O risco coberto pelo produto identificado em 1.20. era o de “Invalidez e Morte” do subscritor.

1.22. Com referência ao seguro a que se alude em 1.10., o falecido marido da autora cumpriu com o pagamento dos prémios de seguro cobrados.

1.23. A autora comunicou à 2ª ré o óbito do seu marido, com vista a acionar a “Garantia de Pagamento de Encargos”.

1.24. A 2ª ré, por carta com data de 8 de novembro de 2019, junta com a petição como doc. 39, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, comunicou à autora que os Serviços Médicos do Banco 1... foram de parecer que “Com base na documentação recebida, conclui-se que à data da subscrição, havia patologia prévia que foi omitida no questionário e ao médico inspetor, nomeadamente em setembro de 2003, data em que foi observado em Espanha e fez exames complementares, e em 1997.

Por este motivo, a inscrição acima referida fica abrangida pelo Art.º 9º. Ponto 1. das Disposições Gerais do Regulamento de Benefícios do Banco 1... – Associação Mutualista, do qual transcrevemos a parte aplicável:

“O Risco Invalidez ou o Risco Morte não se consideram cobertos quando se provar que o Subscritor ou os Beneficiários produziram declarações falsas, apresentaram falsos documentos ou omitiram factos suscetíveis de induzir em erro os serviços do Banco 1... – Associação Mutualista na avaliação do risco correspondente, (…)”.

Em face do atrás exposto, informamos que não podemos assumir o pagamento do benefício requerido”.

1.25. Recebida a carta, e após deslocações ao balcão da 1ª e 2ª rés sito na Praça ..., na Póvoa de Varzim, com vista a tentar perceber qual seria a patologia prévia omitida tanto no questionário como ao médico inspetor, a autora não obteve esclarecimentos adicionais.

1.26. A autora, através da sua mandatária, enviou carta registada com aviso de receção à 2ª ré, datada de 20 de novembro de 2019 e recebida em 22 de novembro de 2019, junta com a petição como doc. 40, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, referindo que “É falsa a afirmação de que à data da subscrição, havia patologia prévia omitida no questionário e ao médico-inspetor, sendo de rechaçar ter havido prestação de falsas declarações ou omissão de factos suscetíveis de induzir em erro os serviços do Banco 1....

Neste ser assim, aproveita ainda para solicitar a 2º via: a) dos documentos de abertura do contrato, suas condições gerais e especiais b) e das Condições gerais e especiais do Seguro Multirriscos”.

1.27. Por carta datada de 30 de novembro de 2019, junta aos autos com a petição como doc. 41, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, a 2ª ré diz, designadamente, “que procedemos nesta data ao envio da documentação solicitada por V. Exa., bem como esclarecimento adicional ao parecer médico emitido, para a Sra. D. AA”.

1.28. A autora, por meio da sua mandatária, enviou nova carta à 2ª ré, datada de 8 de janeiro de 2020, junta com a petição como doc. 42, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, renovando o pedido de envio de documentos.

1.29. Em 20 de maio de 2020, a autora, por meio da sua mandatária, junto do balcão da 2ª ré na Praça ... – Póvoa de Varzim, pediu novamente os documentos, bem como o regulamento de benefícios da Associação Mutualista MG em vigor à data da subscrição e respetiva ficha técnica, sendo que apenas lhe foi facultada a Ficha técnica com produção de 27 de abril de 2020 junta com a petição como doc. 43, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

1.30. A 6 de janeiro de 2021, a mandatária da autora, junto do balcão da 2º ré, apresentou o requerimento junto com a petição como doc. 44, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, reiterando que lhe fossem facultados os documentos que antes solicitara.

1.31. Por sua vez, a autora, mediante carta registada com aviso de receção datada de 14.05.2021, junta com a petição como doc. 45, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, solicitou à 2ª ré o questionário médico, o relatório médico e o regulamento de benefícios – Banco 1... associação Mutualista em vigor à época da subscrição.

1.32. A autora é trabalhadora de limpeza, auferindo o valor líquido de 871,71 €.

1.33. A autora paga um seguro de proteção ao condomínio no valor de 66,74 €.

1.34. A 2ª ré enviou à autora o “Regulamento de Benefícios do Banco 1... - Associação Mutualista” de 01.09.1992, válido para as subscrições efetuadas até 30.06.2007.

1.35. A autora, desde o óbito do seu marido até à presente, tem vindo a suportar o pagamento das prestações mensais a título de amortização, juros e encargos dos empréstimos identificados em 1.9., as despesas de manutenção inerentes à conta bancária associada aos empréstimos, bem como as quotas mensais e seguro.

1.36. A autora e o seu falecido marido, em virtude das responsabilidades financeiras, sempre se privaram de gozar férias, fins-de-semana e de passear, gastando o mínimo em géneros alimentícios, vestuário e calçado, sempre com o recurso à ajuda de amigos e familiares, o que lhe acarreta tristeza, preocupação e amargura.

1.37. O falecido marido da autora não interveio na elaboração do clausulado relativo ao produto subscrito “Garantia de Pagamento de Encargos”, limitando-se a aderir ao mesmo.

1.38. Aquando da subscrição a que se alude em 1.14. não foi explicado ao falecido marido da autora o teor das cláusulas de exclusão da responsabilidade da 2ª ré em caso de morte e quais as patologias.

1.39. O beneficiário da subscrição pelo marido da autora do produto a que se alude em 1.14. foi a 1ª ré.

1.40. A autora sofreu incómodos e inquietude com a situação a que se alude em 1.24.

1.41. A subscrição do produto “Garantia de Pagamento de Encargos” ocorreu num balcão da 1ª ré, sito na Póvoa de Varzim.

1.42. A 1ª ré, na sua qualidade de intermediária financeira, coloca aos seus clientes, entre outros, também os produtos da associação mutualista.

1.43. Em anexo aos boletins de “Admissão de Associado” e de “Inscrição – Garantia de Pagamento de Encargos” subscritos pelo falecido marido da autora, constavam o “Regulamento” da modalidade subscrita, os “Estatutos” da 2ª ré e excerto do “Regulamento de Benefícios”, dos quais foram entregues exemplares ao falecido marido da autora.

1.44. Pelas respostas prestadas pelo falecido marido da autora ao “Questionário Médico” a que se alude em 1.15., o médico toma as decisões quanto à necessidade ou não de subscrever determinados exames clínicos, tendo em vista os sintomas e informações por ele prestadas.

1.45. A informação prestada no “Questionário Médico” influencia de forma essencial o diagnóstico do real estado de saúde do subscritor.

1.46. Todo o processo de aprovação do produto subscrito e posterior ativação do mesmo por morte foi feito pela 2ª ré, nenhuma outra intervenção tendo tido a 1ª ré.

1.47. Em 15 de setembro de 2003, o falecido marido da autora candidatou-se a associado da 2ª ré e solicitou a constituição de duas subscrições na modalidade “Garantia de Pagamento de Encargos”, uma com um capital subscrito de 65.000,00 € e outra com um capital subscrito de 20.000,00 €.

1.48. Para essas subscrições foram escolhidas as coberturas de risco de “Invalidez e Morte”.

1.49. Esta modalidade, “Garantia de Pagamento de Encargos” (GPE), destina-se, em caso de ocorrência de uma das coberturas de risco escolhidas, e desde que as mesmas ocorram nas condições previstas no “Regulamento de Benefícios” da 2ª ré, a substituir o associado subscritor no pagamento das prestações que se vencerem e até ao termo de um determinado contrato, ou a proporcionar a entrega de uma determinada quantia aos herdeiros/beneficiários indicados pelo associado.

1.50. Para essa modalidade, para a efetivação da subscrição é necessária uma avaliação médica do associado subscritor, efetuada por médicos indicados pela 2ª ré.

1.51. O falecido marido da autora, para poder efetivar as suas subscrições, preencheu um questionário médico e foi presente a uma consulta médica, realizada no Porto, em 11 de setembro de 2003.

1.51`. Nas ocasiões referidas no número que antecede 1.51 e em 1.60 o falecido marido da Autora estava ciente de que padecia de hemiparesia consequente ou secundária a AVC sofrido em 1997 e mais sabia que o facto de ter tido um AVC era significativo para a aceitação pela 2ª Ré da proposta de adesão e cobertura do risco da morte em razão de AVC ou acidente isquémico.

1.52. Após análise do questionário médico preenchido pelo associado e do relatório resultante da consulta médica efetuada ao mesmo, os serviços médicos da 2ª ré emitiram parecer favorável, com restrição, à subscrição da modalidade “GPE”.

1.53. Essa restrição consistiu na atribuição de uma incapacidade de 13%, o que implicava que em caso de ativação da cobertura de risco de invalidez, o associado só poderia solicitar esta ativação com uma incapacidade não inferior a 83% (correspondente aos 70% mínimos definidos no regulamento de benefícios, acrescidos da incapacidade de 13% atribuída pelos serviços médicos da 2ª ré).

1.54. Esta decisão médica foi transmitida ao associado tendo o mesmo aceite a decisão.

1.55. Com esta aceitação por parte do falecido médico da autora, este foi admitido como associado efetivo da 2ª ré e as suas subscrições foram efetivadas, tendo sido enviadas cartas datadas de 25.11.2003 a confirmar a sua admissão e subscrição da modalidade “GPE”, contendo as condições em que as subscrições naquela modalidade foram constituídas.

1.56. A autora efetuou a comunicação a que se alude em 1.23.

1.57. Tendo o falecimento do associado ocorrido por doença, foram entregues pela autora relatórios médicos referentes à doença em causa e à evolução da mesma.

1.58. Ao ser analisada essa documentação pelos serviços médicos da 2ª ré, estes verificaram que num desses documentos, denominado “...”, do “Instituto Nacional de La Seguridad Social - Direccion Provincial ...”, em Espanha, datado de 15 de junho de 2004, nos antecedentes pessoais do falecido é referido um episódio de hemiparesia direita, ocorrido sete anos antes (em 1997).

1.59. A hemiparesia é uma doença neurológica que se caracteriza pela paralisia parcial do corpo, podendo ser causada por um acidente vascular cerebral (AVC).

1.60. Esta doença não foi referida pelo falecido em agosto de 2003 quando preencheu o questionário médico, nem ao médico que realizou a consulta presencial em 11 de setembro de 2003.

1.61. A hemiparesia da qual padecida o requerente da adesão era uma sequela de um AVC padecido anteriormente.

1.62. Em 31 de maio de 2017, o falecido compareceu numa consulta de psiquiatria no Hospital 1..., tendo a médica no relatório descrito que se tratava de “um homem de 59 anos com antecedentes de AVC há 15 anos com sequelas cognitivas, na linguagem e na mobilidade. Apresenta ainda frequentes desequilíbrios com quedas, tremor dos membros e incontinência urinária.

1.63. Em 13 de julho de 2016, numa consulta de neurologia no Hospital ..., consta do relatório médico: “Doente de 58 anos, com doença vascular cerebral grave com múltiplos enfartes, com síndroma demencial vascular e parkinsonismo vascular, com desequilíbrio importante e quedas frequentes.

1.64. No “Questionário Médico” a que se alude em 1.15., preenchido pelo falecido marido da autora, consta um campo para preenchimento no qual se pergunta se “Tem ou Teve Alguma das Seguintes Doenças ou Sintomas? (…) Doenças vasculares Cerebrais”, ao que o falecido respondeu, assinalando a quadrícula relativa à resposta “Não”.

1.65. Essa resposta induziu em erro os serviços da 2ª ré na avaliação do risco; sendo que se os serviços da Ré tivessem tido conhecimento, à data da prestação de informações sobre o seu estado de saúde pelo requerente da adesão e da consulta médica a que foi sujeito, de que padecia de hemiparesia consequente ou secundária a AVC sofrido em 1997 não teria sido aceite a adesão correspondente à cobertura do risco morte consequente a AVC ou a acidentes isquémicos.

1.66. No “Questionário Médico” preenchido pelo falecido marido da autora constava, antes da sua assinatura, a informação de que “A constatação de que a resposta ao presente questionário foi efetuada mediante a prestação de declarações inexatas ou reticentes, ou com a omissão de factos que influenciem a avaliação do estado de saúde do candidato, implica a anulabilidade do contrato estabelecido entre este e o Banco 1...”, que o mesmo assinou.

1.67. À data de 16.09.2019, com referência ao empréstimo n.º ..., encontrava-se em dívida o valor de 41.849,86 €.

1.68. Desde essa data até 20.01.2022 foi paga pela autora, com referência a esse empréstimo, a quantia de 6.400,05 €.

1.69. À data de 16.09.2019, com referência ao empréstimo n.º ..., encontrava-se em dívida o valor de 12.736,58 €.

1.70. Desde essa data até 20.01.2022 foi paga pela autora, com referência a esse empréstimo, a quantia de 2.279,44 €.

Mantém-se, sem alteração, a matéria havida como não provada na sentença.

Estes os factos,

assente-se em que, havendo um regime jurídico próprio e específico para as Associações Mutualistas, bem como uma regulamentação específica para os GPE, não há lugar a qualquer aplicação analógica do regime legal aplicável aos seguros.

Neste sentido o Acórdão da Relação de Lisboa, de 18/10/11, disponível in www.dgsi.pt, que se debruçou sobre uma acção de condenação contra uma AM, onde se pedia a condenação desta a acionar a Garantia de Pagamento de Encargos (GPE) dos empréstimos subscritos pelo autor. Considerou-se, nesse acórdão, que «Ainda que existam alguns pontos de contacto entre a concreta situação dos autos (transferência de risco no âmbito de uma relação de mutualismo, pagamento de uma contrapartida e ocorrência de um sinistro) e o contrato de seguro, não é correcto afirmar a existência de um contrato deste tipo ou recorrer ao seu regime jurídico. Na falta de disposições especiais, o litígio deve ser integrado nas regras gerais e nas cláusulas negociais, ainda que com a natureza de cláusulas gerais. (…) nenhum contrato de seguro foi outorgado entre o A. e R., não exercendo esta a actividade seguradora, inscrevendo-se no âmbito da actividade das associações mutualistas».

E, na verdade, assim é. A actividade mutualista é, na situação decidenda, especificamente regulada pelo Código das Associações Mutualistas, aprovado pelo DL nº72/90, de 3/3. Inaplicável o actual Código das Associações Mutualistas (Decreto-lei n.º 59/2018, de 02.08), mormente artigo 37º, nos termos do qual  é nula a subscrição nas modalidades que viole a lei, os estatutos ou o regulamento de benefícios da associação, bem como a que se fundamente em falsas declarações; determinando a nulidade da subscrição imputável a título de dolo aos associados a restituição dos benefícios indevidamente recebidos, sem direito a reembolso das quotas pagas.

O anterior Código das Associações Mutualistas (aprovado, como se adiantou, pelo Decreto-Lei n.º 72/90), aplicável no caso sub judice, não continha, contudo, norma idêntica pelo que a solução (da possibilidade de anulação) deve ser encontrada nas regras gerais e nas cláusulas negociais.

A natureza e fins em geral daquelas Associações é definida no art.1º, do citado Código, nos termos do qual «As associações mutualistas são instituições particulares de solidariedade social com um número limitado de associados, capital indeterminado e duração indefinida que, essencialmente através da quotização dos seus associados, praticam, no interesse destes e de suas famílias, fins de auxílio recíproco, nos termos previstos neste diploma».

Já os fins em especial constam, designadamente, do nº1, do art.2º, do mesmo Código, onde se refere que «Constituem fins fundamentais das associações mutualistas a concessão de benefícios de segurança social e de saúde destinados a reparar as consequências da verificação de factos contingentes relativos à vida dos associados e seus familiares e a prevenir, na medida do possível, a verificação desses factos».

Estabelece o art.26º, nº1, ainda do mesmo Código, que «A inscrição nas modalidades que exijam avaliação da situação clínica do candidato é condicionada, nos termos dos estatutos ou dos regulamentos de benefícios, a parecer médico, por exame directo ou através do preenchimento de questionário clínico».

Sendo que, em correspondência com esta disposição legal, o art.2º, nº1, do RBMGAM, estabelece que «A aprovação médica é condicionada pela análise das respostas a questionário clínico ou pelos resultados de exames complementares de diagnóstico ou de exame médico presencial».

Acrescentando o nº2, do mesmo artigo, que «A análise do questionário clínico e dos exames complementares, bem como o exame médico presencial são efectuados por médicos designados pelo M»

Note-se que, nos termos do art.1º, nº1, da Secção IX, do capítulo III, daquele Regulamento de Benefícios, «A Garantia de Pagamento de Encargos destina-se, em caso de falecimento e ou invalidez permanente do subscritor, a substitui-lo no pagamento das prestações que se vencerem e até ao termo de um determinado contrato ou a proporcionar a entrega de determinada quantia aos beneficiários indicados».

Acrescentando o nº4, do mesmo artigo, que «A garantia de pagamento de encargos pode ser subscrita por qualquer associado que, à data da subscrição, tenha idade superior a 13 anos e inferior a 66 anos e tenha aprovação médica, mediante exame presencial e sem agravamento de idade».

Não se trata, reitera-se, de um contrato de seguro, pois que a recorrente “Banco 1... – Associação Mutualista” não é uma entidade seguradora, tratando-se, antes, de um contrato denominado de “Garantia de Pagamento de Encargos” que, no essencial, assegura a mesma função que um seguro de vida, ou seja, em caso de invalidez ou morte da pessoa segura, procedia ao pagamento do montante que se encontrava em dívida à recorrente mutuante “Banco 1...”.

Sobre este tipo de contratos pronunciou-se já, por exemplo, o Acórdão do S.T.J. de 10/1/2017 (acessível em www.dgsi.pt): “Tratou-se de uma subscrição junto de uma associação mutualista, ao abrigo do regime mutualista. Nos termos do DL nº 72/90, as associações mutualistas são instituições particulares de solidariedade social que se suportam essencialmente na quotização dos seus associados, e que praticam, no interesse destes e de suas famílias, fins de auxílio recíproco (artº 1º). Constituem fins fundamentais das associações mutualistas a concessão de benefícios de segurança social e de saúde destinados a reparar as consequências da verificação de factos contingentes relativos à vida e à saúde dos associados e seus familiares e a prevenir, na medida do possível, a verificação desses factos (artº 2º). Para a concretização dos seus fins de segurança social, as associações mutualistas podem prosseguir, designadamente, a modalidade de “Capitais pagáveis por morte ou no termo de prazos determinados” (artº 3º). A regulamentação dos benefícios prosseguidos pelas associações mutualistas deve constar de instrumento próprio, denominado regulamento de benefícios, que conterá, nomeadamente, as condições de atribuição dos benefícios (artº 19º). Os associados podem subscrever quaisquer modalidades de benefícios nos termos regulamentares, sendo que por cada inscrição numa modalidade de benefícios é devida uma quota cujo montante é definido nos termos regulamentares (artºs. 31º e 32º). As prestações pecuniárias devidas pelas associações mutualistas aos associados e a outros beneficiários não podem ser cedidas a terceiros nem penhoradas e prescrevem a favor das mesmas associações (artº 36º)”.

“De acordo com o que vem provado, estatui o Regulamento de Benefícios do Banco 1... – Associação Mutualista, que a modalidade “Capitais de Reforma ou Complemento de Rendimento”, a modalidade que a Inventariada subscreveu, “consiste na entrega de determinadas quotas que serão geridas e capitalizadas pelo Banco 1... e transformadas numa pensão, quando o subscritor o desejar”, sendo que o subscritor tem a possibilidade de, a qualquer momento, se fazer reembolsar, total ou parcialmente, nas condições estabelecidas no Regulamento, do capital acumulado (este corresponde ao somatório das quotas entregues com o rendimento que lhes seja atribuído, deduzido de eventuais reembolsos). O Regulamento estatui ainda, em cumprimento da lei, que o subscritor deve designar os beneficiários e a forma de distribuição do capital acumulado, em caso de morte; nesta hipótese de morte do subscritor, o capital acumulado até à data em que a morte se verificou será integralmente entregue pelo Banco 1... aos beneficiários designados”. (...)

“Conquanto no contexto específico do mutualismo e em vista dos seus fins idiossincráticos de protecção ou segurança social (complementaridade), afigura-se-nos que as operações mutualistas como aquelas de que aqui tratamos se resolvem numa realidade jurídica que, no essencial, se identifica bastante com outras hipóteses negociais que têm subjacentes subscrições ou investimentos de capital a fim de, rentabilizado este, ser entregue um quantum final ao próprio subscritor ou a terceiros por ele indicados (nomeadamente em caso de morte). Referimo-nos, mais concretamente, ao seguro de vida de capitalização ou seguro ligado a fundos de investimento (figura esta não coincidente com o tradicional seguro de vida risco tout court, mas a que se aplica basicamente – como decorre do Regime Jurídico do contrato de Seguro aprovado pelo DL nº 72/2008 (v. o respectivo artº 184º nº 2) – o regime comum do seguro de vida). Entretanto, anote-se que a actividade seguradora pode também ser exercida pelas chamadas mútuas de seguros (v. a propósito os artºs. 3º e 58º do regime jurídico do acesso exercício da actividade seguradora e resseguradora, aprovado pela Lei nº 147/2015), e estas de igual forma visam ao mutualismo previdencial”.

(...) “Aliás, verifica -se uma clara identidade entre as finalidades subjacentes ao seguro de vida em benefício de terceiro (o “fomento da previdência”, o “espírito de previdência e poupança”, nas palavras de Moitinho de Almeida, O Contrato de Seguro, pp. 368 e 361) e as finalidades mutualistas, tal como acima descritas. Dentro desta ideia, aduz José Vasques (Contrato de Seguro, pp. 88 e 89) que “Regendo-se por princípios diferentes dos da actividade seguradora, os organismos mutualistas acabam por desempenhar um papel em tudo semelhante aos das seguradoras. A própria lei prevê a existência de mútuas de seguros (...)”. De resto, e como resulta do artº 84º da Lei de Bases da Segurança Social, as modalidades mutualistas são vistas pela lei em paridade com os seguros de vida e de capitalização em termos de complementaridade previdencial”.

15)

Sempre os termos do contrato que se encontra(m) em causa (o “Regulamento de Benefícios”, os “Estatutos do Banco 1... Associação Mutualista” e a “Garantia de Pagamento de Encargos”) têm que ser integrados nas regras gerais e nas cláusulas negociais, ainda que com a natureza de cláusulas gerais.

Assim é que, desde logo, é a uma destas cláusulas de exclusão que se reconduziu a Recorrente, em sede excepcional.

Com efeito, o aludido Regulamento é composto por cláusulas gerais, tal como as define o Decreto­-Lei nº 446/85, de 25/10 (LCCG). De algum modo as partes estão de acordo que no caso em apreço se está perante um contrato de adesão, porquanto um dos contraentes (o marido da A.) não teve qualquer participação na preparação e elaboração do contrato e respectivas cláusulas, apenas se limitando a aceitar o teor do contrato que o outro contraente lhe ofereceu, contrato esse que é igual, isto é, “standartizado”, ao que é oferecido a todos os outros interessados. Ao falar de cláusulas contratuais gerais têm-se em vista, em princípio, as cláusulas elaboradas, sem prévia negociação individual, como elemento de um projecto de contrato de adesão, destinadas a tornar-se vinculativas quando proponentes ou destinatários indeterminados se limitem a subscrever ou aceitar esse projecto.

As cláusulas contratuais gerais são um conjunto de proposições pré-elaboradas que proponentes ou destinatários indeterminados se limitam a propor ou aceitar (cf. Menezes Cordeiro, in Manual de Direito Bancário, pg. 413).

“A noção básica pode ser decomposta em vários elementos esclarecedores. Assim, (i) as cláusulas contratuais gerais destinam-se ou a ser propostas a destinatários indeterminados ou a ser subscritas por proponentes indeterminados ;  no primeiro caso, certos utilizadores propõem a uma generalidade de pessoas certos negócios, mediante a simples adesão ;  no segundo, certos utilizadores declaram aceitar apenas propostas que lhes sejam dirigidas nos moldes das cláusulas contratuais pré-elaboradas ;  podem, naturalmente, todos os intervenientes ser indeterminados, sobretudo quando as cláusulas sejam recomendadas por terceiros (generalidade) ;  (ii) as cláusulas contratuais gerais devem ser recebidas em bloco por quem as subscreve ou aceite ; os intervenientes não têm a possibilidade de modelar o seu conteúdo, introduzindo, nelas, alterações (rigidez)” (cf. Menezes Cordeiro, loc. cit., pgs. 413 e 414).

Deste modo, as cláusulas contratuais gerais, que se encontram submetidas ao regime fixado pelo Decreto-Lei nº 446/85, de 25/10 (Lei das Cláusulas Contratuais Gerais – LCCG) “consistem em situações típicas do tráfego negocial de massas em que as declarações negociais de uma das partes se caracterizam pela pré-elaboração, generalidade e rigidez.  Efectivamente, está-se nesses casos perante situações em que uma das partes elabora a sua declaração negocial previamente à entrada em negociações (pré-elaboração), a qual aplica genericamente a todos os seus contraentes (generalidade), sem que a estes seja concedida outra possibilidade que não seja a da sua aceitação ou rejeição, estando-lhes por isso vedada a possibilidade de discutir o conteúdo do contrato (rigidez)” (cf. Luís Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Vol. I, 8ª ed., pg. 32).

Para além disso, as cláusulas contratuais gerais costumam caracterizar-se pela desigualdade entre as partes, pela complexidade e pela natureza formulária, ainda que estas características não sejam de verificação necessária.

“Efectivamente, costuma caracterizar as cláusulas contratuais gerais o facto de uma das partes ter uma posição social ou económica mais relevante, que lhe serve de justificação para impor a situação à outra parte.  Para além disso, as cláusulas contratuais são normalmente completas e exaustivas, regulando todas as questões de verificação entre as partes, a um nível jurídico, não acessível a leigos.  Finalmente as cláusulas contratuais gerais constam normalmente de formulários, de letra reduzida e leitura difícil, que o aderente não examina detalhadamente, limitando-se a neles incluir os seus elementos de identificação” (cf. Menezes Cordeiro, loc. cit., pg. 414).

Como é sabido, a impossibilidade fáctica de uma das partes exercer a sua liberdade de estipulação, que assim fica apenas na mão da outra parte, pode conduzir a efeitos perversos.  “Um deles é a circunstância de o contrato poder ser celebrado sem que uma das suas partes se possa aperceber do seu conteúdo, só sendo confrontada com o regime contratual que aceitou no momento em que surge um litígio, quando naturalmente é demasiado tarde para reagir.  O outro é a possibilidade fáctica de serem introduzidas no contrato cláusulas iníquas ou abusivas, em benefício de um dos contraentes, que qualquer contraente normal tenderia a rejeitar, se pudesse discutir as condições do contrato” (cf. Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Vol. I, 8ª ed., pg. 33).

Para evitar estes efeitos perversos, que podem ocorrer em relação a uma generalidade de contraentes, a lei tem que intervir no sentido de restringir a liberdade de estipulação, procurando, por um lado, evitar a introdução no contrato de cláusulas de que o outro contraente se não apercebeu e visando, por outro, impedir o surgimento de cláusulas iníquas.

Relativamente ao primeiro vector, ele é concretizado pela referência de que as cláusulas contratuais gerais se incluem nos contratos mediante a sua aceitação (artº 4º da LCCG).

Esclarecida a necessidade de aceitação, ficam naturalmente excluídas do contrato as cláusulas contratuais gerais não aceites especificamente por um contraente, ainda que sejam habitualmente usadas pela outra parte relativamente a todos os seus contraentes.  Por outro lado, a exigência de aceitação determina a aplicação às cláusulas contratuais gerais das regras sobre a perfeição da declaração negocial, designadamente em caso de falta de consciência da declaração, erro ou incapacidade.

Mas, para além disso, mesmo que ocorra a aceitação, a lei impõe o cumprimento de certas exigências específicas para permitir a inclusão das cláusulas contratuais gerais no contrato singular.  Essas exigências constam dos artºs. 5º a 7º da LCCG, reconduzindo-se à: comunicação das cláusulas contratuais gerais à outra parte (artº 5º); prestação de informação sobre aspectos obscuros nelas compreendidos (artº 6º); inexistência de estipulações específicas de conteúdo distinto (artº 7º).

Como resulta ademais do artº 1º nº 2 da LCCG, o regime consagrado na lei também se aplica às cláusulas inseridas em contratos individualizados, mas cujo conteúdo, previamente elaborado, os destinatários não podem influenciar.

Assim, relativamente à comunicação à outra parte, especifica a lei que mesma deve ser integral (artº 5º nº 1 da LCCG) e ser realizada de modo adequado e com a antecedência necessária, para que, tendo em conta a importância do contrato e a extensão e complexidade das cláusulas, se torne possível o seu conhecimento efectivo por quem use de comum diligência (artº 5º nº 2 da LCCG).

O grau de diligência postulado por parte do aderente, e que releva para efeitos de calcular o esforço posto na comunicação, é o comum (artº 5º nº 2 da LCCG). Deve ser apreciado “in abstracto”, mas de acordo com as circunstâncias típicas de cada caso, como é usual no Direito Civil.

O ónus da prova da comunicação adequada e efectiva cabe à parte que utilize as cláusulas contratuais gerais (artº 5º nº 3 da LCCG). Deste modo, o utilizador que alegue contratos celebrados na base de cláusulas contratuais gerais deve provar, para além da adesão em si, o efectivo cumprimento do dever de comunicar (cf. artº 342º nº 1 do Código Civil), sendo que, caso esta exigência de comunicação não seja cumprida, as cláusulas contratuais gerais consideram-se excluídas do contrato singular (artº 8º al. a) da LCCG), considerando ainda a lei não terem sido adequada e efectivamente comunicadas as cláusulas que, pelo contexto em que surjam, pela epígrafe que as precede ou pela apresentação gráfica, passem despercebidas a um contratante normal, colocado na posição do contratante real (artº 8º al. c) da LCCG) e as cláusulas inseridas em formulários, depois da assinatura de uma das partes (artº 8º al. d) da LCCG).

Para além da exigência de comunicação adequada e efectiva, surge ainda a exigência de informar a outra parte, de acordo com as circunstâncias, de todos os aspectos compreendidos nas cláusulas contratuais gerais cuja aclaração se justifique (artº 6º nº 1 da LCCG) e de prestar todos os esclarecimentos razoáveis solicitados (artº 6º nº 2 da LCCG).

Com efeito, “a conclusão esclarecida do contrato, base de uma efectiva autodeterminação, não se contenta com a comunicação das cláusulas.  Estas devem ser efectivamente entendidas.  Para o efeito, a LCCG prevê um dever de informação.  O utilizador das cláusulas contratuais gerais deve conceder a informação necessária ao aderido, prestando-lhe todos os esclarecimentos solicitados, desde que razoáveis” (cf. Menezes Cordeiro, in “Manual de Direito Bancário”, pg. 429).

Caso não tenha sido cumprida a exigência de informação, em termos de não ser de esperar o conhecimento efectivo pelo aderente, as cláusulas contratuais gerais consideram-se excluídas dos contratos singulares (artº 8º al. b) da LCCG).

É o que se nos afigura suceder com a convocada pela Recorrente cláusula contratual do Regulamento que estatui o regime aplicável às declarações reticentes em sede de declaração do risco.

Na medida do facto não provado sob 2.2, aquela não pode se não haver-se por excluída do quadro da vinculação negocial/contratual.

Não se segue, todavia, que não exista, na impossibilidade de consideração do teor daquela cláusula, em virtude do regime das CCG e por falta de cumprimento dos deveres de comunicação/esclarecimento, o dever jurídico pelo falecido marido da Autora de responder com verdade ao questionário clínico e de prestar informação completa ao médico sobre as patologias que o afectavam…

Assim é que a previsão do dever do aderente de fazer declarações verdadeiras sobre as circunstâncias que, no âmbito do negócio, sejam suscetíveis de agravar o risco assumido pela Associação Mutualista, é perfeitamente compreensível, à semelhança do que ocorre com os contratos de seguros de saúde ou seguros de vida.

Desde logo, fazendo apelo às regras gerais, cabe salientar que quem negoceia com outrem para conclusão de um contrato deve, tanto nos preliminares como na formação dele, proceder segundo as regras da boa fé, sob pena de responder pelos danos que culposamente causar à outra parte (artigo 227º n.º 1 do CC).

Sobre o aderente/proponente recai, pois, o ónus de, no momento da formação do contrato, comunicar à Mutualista todas as circunstâncias conhecidas que possam influenciar a determinação do risco, que no caso da garantia do risco Vida consistirá essencialmente na informação sobre o estado de saúde da pessoa a garantir. Este ónus resulta, além do mais, do princípio da boa fé, precisamente porque a avaliação do risco depende das informações prestadas pelo aderente no momento da formação do contrato.

Por outro lado, o artigo 251º do CC (Erro sobre a pessoa ou sobre o objeto do negócio) estabelece que o erro que atinja os motivos determinantes da vontade, quando se refira à pessoa do declaratário ou ao objeto do negócio, torna este anulável nos termos do artigo 247º. E o artigo 247º dispõe que“[Q]uando, em virtude de erro, a vontade declarada não corresponda à vontade real do autor, a declaração negocial é anulável, desde que o declaratário conhecesse ou não devesse ignorar a essencialidade, para o declarante, do elemento sobre que incidiu o erro”.

Ao contrário do que ocorre com o “erro na declaração”, no “erro-motivo” ou “erro-vício”, previsto no artigo 251º do CC, existe conformidade entre a vontade real e a vontade declarada, mas, no entanto, a vontade real foi formada em consequência de erro sofrido pelo declarante, erro esse essencial, na medida em que, se não tivesse ocorrido o declarante não teria querido realizar o negócio, pelo menos nos termos em que o efetuou.

A anulabilidade do negócio depende neste caso, conforme referido e resulta da remissão constante do artigo 251º para o artigo 247º, ambos do CC, da circunstância de o declaratário conhecer, ou não dever ignorar, a essencialidade para o declarante do elemento sobre o qual recaiu o erro.

A propósito já  do artigo 429º do Código Comercial e do contrato de seguro, considerou-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11/11/2020 (Processo n.º 3471/17...., Relatora Conselheira Rosa Tching) que a sanção da anulabilidade do contrato de seguro aí contemplada “constitui um afloramento do erro vício que atinge os motivos determinantes da vontade, quando se refira à pessoa do declaratário ou ao objeto do negócio, previsto nos artigos 251º e 247º, ambos do Código Civil, sendo seus pressupostos de verificação: i) que o segurado tenha prestado declarações inexatas, não conformes com a realidade, ou reticentes, isto é, que omitem factos com interesse para a formação da vontade contratual da outra parte; ii) que essas declarações respeitem a factos ou circunstâncias conhecidas pelo segurado ou por quem fez o seguro no momento da subscrição da proposta de seguro; iii) e sejam suscetíveis de influenciar a seguradora na decisão de contratar”.

Bem assim no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça 19/06/2019, ainda a propósito do contrato de seguro (de vida) se afirma que é anulável quando o segurado tenha prestado falsas declarações quanto às suas condições de saúde no questionário clínico facilitado pela seguradora: “o segurado está obrigado, antes da celebração do contrato, a declarar com exatidão todas as circunstâncias que conheça e razoavelmente deva ter por significativas para a apreciação do risco pelo segurador. O elemento decisivo para a celebração do contrato é o questionário apresentado ao segurado, na medida em que se presume não serem aí feitas perguntas inúteis e, através dele, é o próprio segurador que indica ao tomador quais as circunstâncias que julga terem influência no contrato. Com efeito, uma falsa declaração concernente ao risco pode influir na balança de ambas as prestações, levando à fixação de um prémio inferior ao que seria estabelecido conhecida a realidade, ou mesmo determinando a aceitação pelo segurador de um contrato que, de modo algum não aceitaria” (Processo 4702/15.9T8MTS.P1.S1, Relator Ilídio Sacarrão Martins, ambos disponíveis em www.dgsi.pt).

Aí se considera também que a declaração inexata se traduz num facto impeditivo ou extintivo da validade do contrato, cuja prova compete à seguradora, por força do disposto no artigo 342º n.º 2 do CC, incumbindo também à seguradora a prova de que as declarações contidas nas respostas ao questionário clínico influíram na celebração do contrato de seguro em causa.

Temos para nós que bem assim no caso da subscrição de modalidades de garantia no âmbito da atividade mutualista (não estando em causa a aplicação do actual Código das Associações Mutualistas), se deve efetivamente fazer apelo ao regime previsto para o erro vício que atinge os motivos determinantes da vontade, designadamente quando se refira ao objecto do negócio, previsto nos já referidos artigos 251º e 247º, ambos do CC, cujos pressupostos são que o subscritor tenha prestado declarações falsas, inexatas ou reticentes, omitindo factos relevantes para a formação da vontade contratual da Associação Mutualista, que estejam em causa declarações referentes a factos conhecidos pelo subscritor no momento da subscrição e que sejam suscetíveis de influenciar na decisão da Associação Mutualista.

A declaração falsa, inexata ou reticente traduz-se, também aqui, num facto impeditivo ou extintivo da validade da cobertura, cuja prova compete à Associação Mutualista, bem como a prova de que tais declarações, designadamente quando contidas nas respostas constantes do questionário clínico, influíram na aceitação da Garantia por parte da Associação Mutualista, em conformidade com o estabelecido no artigo 342º n.º 2 do CC.

Ora, quando se considere a matéria de facto provada, impõe-se ter por caracterizados todos os pressupostos da anulabilidade da subscrição pelo marido da A. da modalidade de garantia no âmbito da atividade mutualista (GPE) que concerne ao risco morte, por verificação de uma hipótese de erro vício que atinge os motivos determinantes da vontade, com referência ao objecto do negócio, previsto nos já referidos artigos 251º e 247º, ambos do CC.

Assim, provado que o subscritor prestou declarações falsas, inexatas ou reticentes, omitindo factos ( cfr. pontos 1.44 e 1.45, 1.60 e 1.61) relevantes para a formação da vontade contratual da Associação Mutualista, estando em causa declarações referentes a factos conhecidos pelo subscritor no momento da subscrição e que suscetíveis de influenciar na decisão da Associação Mutualista, nos termos dos factos sob 1.47 a 1.51`. e 1.64.

Em causa, desde logo, as respostas a um “questionário”, por parte da pessoa que requer a adesão, declarações em que a associação mutualista deve confiar e em função das quais aceita ou não o contrato e fixa as respectivas condições. É através do “questionário” que a AM faz saber ao candidato as circunstâncias concretas em que se baseia para assumir o risco - era exigível responder sem omissões e com rigor e objectividade, tendo presente que as respostas iam servir, como serviram, de base à apreciação da aceitação e condições do contrato, condicionando, desde logo, a dispensa ou a realização de exames médicos, sabendo-se que a AM os não exigiu em virtude das ditas respostas negativas.

Prefigurada a viciação da vontade da AM, que aceitou cobrir o risco de ocorrência de um sinistro com base numa avaliação de circunstâncias que não correspondiam à realidade - no momento da subscrição da proposta de adesão, o falecido proponente marido da A. omitiu factos relacionados com o seu estado de saúde, de que tinha conhecimento pessoal, o que impediu a Ré de analisar adequadamente o risco de garantia, e decidir de forma esclarecida e informada se aceitava ou não a proposta de adesão relativa à modalidade GPE em causa, de molde que, se à AM tivesse sido transmitida a situação real, não teria contratado ou fá-lo-ia em condições diferentes das efectivamente negociadas.

Assim sendo, a Ré AM nunca chegou a formar uma vontade de aceitação do contrato, pois que não teve oportunidade de nela considerar, emitindo a correspondente declaração negocial, os factos que lhe foram omitidos.

Cf., designadamente, se entendeu a propósito da situação paralela do contrato de seguro, nos acórdãos do STJ de 17.10.2006 -processo 06A2852 e de de 06.7.2011 -processo 2617/03.2TBAVR.C1.S1, publicados no “site” da dgsi: o questionário traduz-se numa facilitação concedida pelo segurador ao segurado através do qual lhe indica as circunstâncias concretas em que se baseia para assumir o risco. Como assim, é irrelevante saber do nexo causal entre as declarações inexactas e o sinistro: o que pesa na apreciação da Seguradora é a base circunstancial necessária e decisiva à celebração do contrato nas condições pactuadas.

Não é/era exigível à Ré a aceitação de um tal negócio, porquanto a natureza e gravidade dos factos omitidos aumentava inevitavelmente o risco a avaliar pela Ré, sendo que a natureza do contrato não prescinde da análise e avaliação do concreto risco envolvido.

Preenchidos, pois, os pressupostos da invalidade do contrato, por via da invocada anulabilidade, com os efeitos legais daí decorrentes (cf. o art.ºs 289º do CC).

Sempre impondo idêntico resultado a mera consideração de um julgamento erróneo dos requisitos do erro sobre o objecto do negócio, na sentença recorrida.

Ali se pressupondo que aplicação do instituto do erro [artigos 252º e 247º do CC] pressupunha, no caso, a demonstração da não celebração do contrato caso tivesse sido revelado o facto omitido [a exemplo da solução do artigo 26º do actual regime do contrato de seguro].

Ora, temos para nós que basta que exista a demonstração de erro quanto ao objecto do negócio, assim, a existência de um determinado risco, associado a um determinado estado de saúde do beneficiário no momento da outorga do contrato; a essencialidade desse elemento para a emissão da vontade de contratar e a obrigação de o declaratário conhecer essa natureza essencial, para o declarante, do elemento sobre que incidiu o erro.

A situação de erro da 2ª ré claramente decorre dos pontos 1.44, 1.45, 1.50 a 1.52 e 1.58 a 1.65 da matéria de facto provada, sendo que a «essencialidade» para a 2ª ré do elemento sobre que incidiu o erro razoavelmente decorre da consideração dos interesses subjacentes a este tipo de negócios - em determinadas condições transferir/assumir o risco de verificação de um evento futuro e incerto, de maneira que o risco assumido é diferente consoante seja diversa a saúde do beneficiário no momento da contratação.

Nessa medida, o tribunal recorrido, ainda quando em face da matéria por si mesma adquirida, deveria ter alcançado conclusão jurídica distinta, como antecede, a da improcedência da acção.

Donde, cabe, na procedência da apelação, julgar a acção improcedente.

III.

Pelo exposto, decide-se, da nulidade por contradição da sentença recorrida; alterar a matéria de facto nos termos supra expostos e, concedendo-se provimento ao recurso, julga-se a acção improcedente, absolvendo-se a Ré recorrente da totalidade das pretensões contra si deduzidas.

Custas da acção e do recurso pela A., vencida.

Notifique.


Porto, 04 de Julho de 2024
Isabel Peixoto Pereira
Manuela Machado
António Carneiro da Silva
_________________
[1] No já longínquo Ac. do Tribunal Constitucional de 08.07.2009 (DR II Série de 18.08.09) concluiu-se pela não inconstitucionalidade da norma do CPC então vigente que permitia que a Relação procedesse oficiosamente à alteração da matéria de facto, com fundamento em deficiência, obscuridade ou contradição, quando constassem dos autos todos os elementos de prova…
[2] Síndrome piramidal residual hemicorporal direito secundário a AVC, com enfarte isquémico e encefalopatia subsequente, sem deterioração cognitiva ou volitiva, nos termos do documento junto aos autos, denominado de “Informe médico de sínteses”, datado de 15.06.2004… Sem que se esqueça ter sido essa a situação que esteve na base da proposta de reforma ao falecido marido da Autora e aderente, cujo pedido (o de reforma) foi, nos termos do mesmo documento, apresentado em Setembro de 2003, no exacto mês do pedido de adesão ao sistema mutualista de cobertura, com o que reforçada a prova do facto referido na fundamentação de que o aderente tinha consciência da existência de sequelas do AVC de que tinha sofrido 7 anos antes.
[3] Neste sentido, António dos Santos Geraldes, Recursos em Processo Civil, Almedina, 7ª edição actualizada, p. 357.
[4] Proveniente de autoridade de saúde espanhola, no quadro de avaliação com vista à reforma por incapacidade/invalidez para o trabalho habitual do requerente da adesão, concedida em data próxima ao pedido de adesão em causa nestes autos (Setembro e outubro de 2023 – ocasião do preenchimento do questionário médico e consulta e 27.07.2004, data da atribuição da incapacidade/reforma em Espanha, nos termos da documentação já aludida).