Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1933/22.9T8VLG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOÃO RAMOS LOPES
Descritores: NULIDADE DA SENTENÇA
CONTRADIÇÃO ENTRE OS FUNDAMENTOS E A DECISÃO
CONTRATO INVÁLIDO
VIOLAÇÃO DO DEVER DE INFORMAÇÃO
VIOLAÇÃO DO DEVER DE LEALDADE
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
Nº do Documento: RP202407101933/22.9T8VLG.P1
Data do Acordão: 07/10/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Existe contradição entre os fundamentos e a injunção decisória nas situações em que a sentença se mostra afectada por qualquer vício respeitante à compatibilidade lógica entre a argumentação (a fundamentação) e a conclusão (a decisão) – o que não acontece quando a improcedência da acção se apresenta como o corolário lógico de toda a argumentação jurídica expendida.
II - Se não obstante as deficiências, estritamente formais, das alegações for objectivamente possível destrinçar e localizar suficientemente os pontos de facto impugnados, os meios de prova com eles conectados e que justificam a alteração pretendida, bem como, por fim, a resposta alternativa proposta pelo recorrente, em termos da sua segura compreensibilidade pelo julgador quanto ao seu conteúdo e sentido, não será de rejeitar a impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
III - A ‘celebração de contrato inválido ou ineficaz (quando a invocação da invalidade ou ineficácia não seja impedida pelo abuso do direito) que causa danos a uma das partes’ é fonte de responsabilidade para a parte que deu causa à invalidade ou ineficácia ou, ao menos, para a parte que conhecendo tal causa, não a comunicou à contraparte – trata-se de hipóteses em que haverá violação de deveres de lealdade e/ou de informação.
IV - O enriquecimento à custa de outrem significa que, em regra, a vantagem patrimonial alcançada por um sujeito (o enriquecido) resulta no sacrifício económico correspondente suportado por outro (o empobrecido) – a vantagem de um deve resultar do prejuízo do outro, ou este provir daquela.
V - Pressupõe o enriquecimento sem causa a verificação do enriquecimento do obrigado à restituição – a obtenção de vantagem de carácter patrimonial, qualquer que seja a forma que assuma.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação nº 1933/22.9T8VLG.P1

Relator: João Ramos Lopes

Adjuntos: Alexandra Pelayo

                   João Proença

Acordam no Tribunal da Relação do Porto


RELATÓRIO

Apelante: AA (autor).
Apelados: BB e CC (réus).

Juízo local cível de Valongo (lugar de provimento de Juiz 1) – Tribunal Judicial da Comarca do Porto.


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         Intentou o autor a presente acção pedindo:
I. a título principal, a condenação dos réus a pagarem-lhe:

a) a quantia de 3.000,00€ por incumprimento do contrato prometido, acrescida de juros desde Junho de 2021 (data de incumprimento do contrato prometido), até efetivo e integral pagamento,

b) 2.300,00€ pela limpeza do imóvel objecto do litígio, mais juros desde o dia 15 de Maio de 2021 (data da limpeza) até efetivo e integral pagamento, e

c) 99,95€ de juros já vencidos, dos 3.000,00€ na posse do réu desde Junho de 2021 até Abril de 2022, data da devolução do sinal;
II. subsidiariamente, a condenação dos réus a pagarem-lhe:

a) 3.000,00€ por responsabilidade pré-contratual, mais juros desde Junho de 2021 (data de incumprimento do contrato prometido) até efetivo e integral pagamento,

b) 2.300,00€ pela limpeza do imóvel objecto do litígio, mais juros desde o dia 15 de Maio de 2021 (data da limpeza) até efetivo e integral pagamento, e

c) 99,95€ de juros já vencidos, dos 3.000,00€ na posse do réu desde Junho de 2021 até Abril de 2022, data da devolução do sinal.

         Tramitada a causa e realizado o julgamento, foi proferida sentença que julgou totalmente improcedente a acção (assim como a reconvenção), absolvendo os réus dos pedidos.

         Apela o autor, pretendendo se revogue a sentença e se condenem os réus a ‘pagar o benefício’ que tiveram e ainda a ‘ressarcir os danos’ que ‘constam provados’, terminando as alegações formulando as seguintes conclusões:

1ª Entende os Recorrente que face à prova produzida em audiência de discussão e julgamento, deveria ser julgada procedente, por provada a acção declarativa.

2º Ora, só pela matéria dada como provada constante na mui douta sentença de que se recorre, já se exigia uma decisão diversa da proferida, pois existe inclusivamente contradição em a sentença em si.

3º Não podemos concordar que depois de dado como provado que limparam o terreno que tinha mato, o R. não teve qualquer benefício com isto.

4º Com todo o respeito é inaceitável que seja dado como provado que a limpeza geral do terreno, podar, destroçar erva e deitar sulfato e herbicida... (transcrição de sentença da testemunha DD) a lavrar, a escavar e a podar… (transcrição de sentença da testemunha EE)

5º Não tenha beneficiado o R, por um lado e prejudicado o A. por outro

6º É do conhecimento geral e nem necessita de prova que um terreno “abandonado” com mato é muito menos valioso que uma vinha limpa, cuidada.

Neste caso foi feita a podar da Vinha destroçar erva, lavrada e escavada e deitar sulfato e herbicida, trabalhos de que o R e quem compra-se a vinha iria beneficiar tudo no espaço de pelo menos um ano pois é do conhecimento publico que não se fazem mais que uma vez por ano.

7º E Ficou provado que o A gastou 2 078 € (1450+202,5+202,5+202,5+202,5)

8º Resultantes de 1450€ que pagos pelo A a EE; 202,5€ pagos a DD, de quatro dias e meio a 45€ por dia, 4 dias e meio a 45€/dia são 202,5 €; o trabalho de mais 2 pessoas que andaram com este 202,5, 2 pessoas em 4,5 dias são 405 e; ainda os do trabalho do próprio A. 202,5 € (matéria de facto provada da douta sentença)

9º Para além deste valor terá de ser pago o valor de 3000€ peticionados, por responsabilidade pré-contratual por violar os princípios da boa-fé e ter o R. se ter aproveitado do trabalho, suor e com o sinal do A. vender o locus litígios outro.

10º- Nestes termos, é imperioso que, com a constatação do erro do Tribunal a quo, seja proferido acórdão do tribunal ad quem, que revogue a decisão de que se recorre e consequentemente condenar o Recorrido a pagar o benefício que teve e ainda ressarcir os danos que o A. teve e que constam provados.

Não foram apresentadas contra-alegações.


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         Colhidos os vistos, cumpre decidir.

         Da delimitação do objecto do recurso.

Considerando, conjugadamente, a decisão recorrida (que constitui o ponto de partida do recurso) e as conclusões das alegações (por estas se delimita o objecto dos recursos, sem prejuízo do que for de conhecimento oficioso - artigos 608º, nº 2, 5º, nº 3, 635º, nºs 4 e 5 e 639, nº 1, do CPC), identificam-se como questões a apreciar:

- a patologia imputada à sentença (contradição – conclusão 2ª),

- a censura dirigida à decisão da matéria de facto,

- a verificação dos pressupostos para se afirmar o direito indemnizatório do autor, com fundamento na violação, por parte dos réus, de deveres de conduta imanentes ao conceito de boa fé,

- a verificação dos pressupostos para se afirmar o direito do autor a ser ressarcido pelos réus, à luz do instituto do enriquecimento sem causa.


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FUNDAMENTAÇÃO

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            Fundamentação de facto

            A sentença apelada considerou:

Factos provados

            A. No início de Maio de 2021, autor e réu acordaram que o primeiro venderia ao segundo o terreno rústico nomeado ..., com o artigo matricial ...43, sito em ..., pelo preço de 80.000,00€ (oitenta mil euros).

B. Na sequência desse acordo, o réu, no início desse mesmo mês de Maio de 2021, fez uma transferência para o réu no valor de 3.000,00€ (três mil euros).

C. Mais acordaram que o remanescente do preço – 77.000,00€ (setenta e sete mil euros – seria entregue pelo autor ao réu aquando da realização da escritura de compra e venda.

D. Convencido de que iria comprar o terreno em causa, o autor procedeu a trabalhos de limpeza do referido terreno, através do seu trabalho e ainda do trabalho de terceiros, inclusive com máquinas, que contratou.

E. Após interpelação do autor ao réu, datada de 22.02.2022, o réu restituiu ao autor a quantia de 3.000,00 € (três mil euros) que este lhe havia transferido.

F. Os réus decidiram vender o terreno acima identificado, designadamente por questões de saúde (doença oncológica) do réu.

G. No dia 14.03.2022, os réus celebraram a respetiva escritura pública de compra e venda do terreno, pelo preço de 75.000,00 € (setenta e cinco mil euros), vendendo-o a um cunhado do ora autor.

H. O autor colheu e apropriou-se dos frutos (uvas) do terreno em causa, que colheu aquando da limpeza do mesmo, em quantidade não concretamente apurada.

Factos não provados

1. O autor pediu ao réu que fosse reduzido a escrito o contrato promessa, ao que o Réu respondeu que a escritura seria feita em breve e que era pessoa de palavra.

2. O réu comprometeu-se a marcar a escritura de compra e venda em prazo inferior a 30 dias.

3. O terreno em questão estava completamente cheio de todo o tipo de ervas daninhas como silvas, ortigas, dente-de-leão junça ou da beldroega, entre outras.

4. Para limpeza do terreno, o autor despendeu a quantia de 1 400,00 €.

5. O trabalho do autor de limpeza do terreno durou cerca de três semanas e representa um custo de 900,00€, correspondente a 60,00€ por cada jornada de 8 horas de trabalho.

6. A contratação de uma empresa de limpeza de terrenos rústicos para um terreno daquelas dimensões (cerca de 1 hectare) e no estado que estava, custaria sempre e no mínimo 4.000,00€ (quatro mil euros).

7. O réu aproveitou-se do facto do terreno ter sido completamente limpo para o vender a terceiro por preço superior.

8. Porquanto o autor não dispunha da totalidade do dinheiro para pagamento do preço, os réus propuseram ao autor a celebração de um contrato promessa de compra e venda e, para o efeito, entregaram ao Autor os seus documentos de identificação (fotocópia do cartão de cidadão) e do prédio.

9. E ficaram a aguardar que o autor lhes comunicasse o dia e hora da formalização do dito contrato promessa.

10. Aproveitando-se do facto de os réus estarem ausentes de ... e o réu marido se debater com uma grave doença oncológica e respetivos tratamentos, o autor intitulou-se, perante terceiros, proprietário do prédio.

11. Logo que os réus tomaram conhecimento desse comportamento, interpelaram o autor para que se retirasse imediatamente do prédio.

12. Consequentemente, o autor nunca mais se disponibilizou para pagar o valor proposto e para a formalização do contrato de compra e venda.

13. Face à desistência do autor no negócio e dada a urgência que os réus tinham em vender o prédio, aceitaram proposta menos vantajosa.

14. Os réus colhiam anualmente uvas no terreno em causa.

15. Nos últimos anos, o referido prédio dos réus produzia cerca de quatro pipas de vinho, ou seja, cerca de 3.000 quilos de uvas anuais.

16. O preço corrente de mercado por cada quilo de uvas é de 0,44€ (quarenta e quatro cêntimos), o que equivale a 330,00€ (trezentos e trinta euros) por cada pipa.


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            Fundamentação jurídica

A. Da nulidade da sentença.

Tão ligeira quanto insubstanciadamente alega o apelante ser a sentença contraditória ‘em si’ (conclusão 2ª).

Não padece a decisão recorrida do vício que o apelante lhe imputada.

A nulidade por oposição entre os fundamentos e a decisão (art. 615º, nº 1, c) do CPC) ocorre nas situações de construção viciosa da sentença, por os fundamentos aduzidos conduzirem necessariamente a decisão de sentido oposto ou, pelo menos, de sentido diferente da proferida[1] – trata-se de patologia que se consubstancia numa ‘contradição lógica: se na fundamentação da sentença o julgador seguir determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão, e, em vez de a tirar, decidir noutro sentido, oposto ou divergente, a oposição será causa de nulidade da sentença’[2]; é vício que se verifica quando a fundamentação exposta é contrariada pelo resultado final, ocorrendo violação do ‘chamado silogismo judiciário, em que as premissas devem condizer com a conclusão’[3].

Vício distinto do erro de julgamento, que ocorre quando o juiz decide contrariamente aos factos apurados ou contra norma jurídica que impõe solução jurídica diferente[4] – encontramo-nos perante erro de julgamento e não perante vício subsumível à alínea c) do no nº 1 do art. 615º do CPC nas situações de erro na subsunção dos factos à norma ou de erro na interpretação desta: ‘quando, embora mal, o juiz entende que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação, ou dela decorre, encontramo-nos perante erro de julgamento’; já quando ‘o raciocínio expresso na fundamentação aponta para determinada consequência jurídica e na conclusão é tirada outra consequência, ainda que esta seja a juridicamente correta, a nulidade verifica-se.’[5]

A contradição lógica susceptível de inquinar a decisão à luz do art. 615º, nº 1, c) do CPC (o erro lógico traduzido numa conclusão inesperada e adversa ao raciocínio adoptado na argumentação jurídica expendida para estribar aquela – a explicação anunciada induz logicamente a desfecho oposto ou pelo menos diferente do reconhecido) é a que se verifica entre a fundamentação de direito e a decisão final, não a contradição entre os factos julgados provados e o direito tido por aplicável.

Não ocorre nos autos qualquer contradição entre os fundamentos e a injunção decisória, pois não se mostra a sentença afectada por qualquer vício respeitante à compatibilidade lógica entre a argumentação (a fundamentação) e a conclusão (a decisão) – a improcedência da acção apresenta-se como o corolário lógico de toda a argumentação jurídica expendida, pois considerou o tribunal a quo não existir fundamento, à luz da responsabilidade contratual, da responsabilidade pré-contratual e/ou do enriquecimento sem causa, para conceder ao autor a tutela indemnizatória peticionada.

Não padece, pois, a sentença do imputado vício (art. 615º, nº 1, c) do CPC).

            B. Da censura dirigida à decisão sobre a matéria de facto.

B.1. Do cumprimento dos ónus prescritos no art. 640º do CPC e da delimitação do objecto da impugnação.
Por mais críticas que possam apontar-se à qualidade técnica do desempenho do apelante no segmento em que censura a decisão relativa à matéria de facto, não pode recusar-se que a pretende impugnar e que cumpriu os ónus de impugnação para tanto prescritos no art. 640º do CPC – o incumprimento das exigências estabelecidas no preceito (matéria de oficioso conhecimento), que constituem verdadeiros ónus, é cominado com a rejeição do recurso no segmento relativo à impugnação da matéria de facto e, dentro deste segmento, quanto aos pontos relativamente aos quais tenham sido desrespeitadas as referidas regras[6].

O ponto fundamental a assegurar pelo recorrente relaciona-se ‘com a definição clara do objecto da impugnação (que se satisfaz seguramente com a clara enunciação dos pontos de facto em causa), com a seriedade da impugnação (sustentada em meios de prova que são indicados ou em meios de prova oralmente produzidos que são explicitados) e com a assunção clara do resultado pretendido’[7], sendo de exigir, sempre, que o apelante satisfaça os necessários requisitos para não obrigar o tribunal ad quem a substituir-se-lhe na concretização do objecto do recurso (especialmente no que concerne aos requisitos estabelecidos nas alíneas a) e c) do nº 1 do art. 640º do CPC)[8].

Consagra o regime legal um ónus primário fundamental de delimitação do objecto do recurso e de fundamentação concludente da impugnação e um ónus secundário, tendente a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado aos meios de prova gravados relevantes para a apreciação da impugnação deduzida – quanto ao primeiro (que inclui os requisitos enunciados nas alíneas do nº 1 do art. 640º do CPC), o seu incumprimento determina a imediata rejeição do recurso na parte afectada, sendo que relativamente ao segundo (que inclui a identificação das passagens da gravação dos depoimentos que fundamentam a impugnação, estabelecido no nº 2 do art. 640º do CPC), o seu incumprimento só implica a rejeição nos casos em que a falta ou inexactidão dificulte, gravemente, o exercício do contraditório pela parte contrária e/ou o exame pelo tribunal de recurso[9].

         Rejeição do recurso na vertente da impugnação da decisão de facto, ao abrigo do art. 640º, nº do CPC, que ‘só deve ocorrer quando dos termos em que a pretensão recursória vem formulada não resulte a identificação dos juízos probatórios visados, o sentido da pretendida decisão a proferir sobre eles nem a indicação dos concretos meios de prova para tal convocados.’[10]

         Dito doutra forma: as alegações cumprirão o ónus primário fundamental de delimitação do objecto do recurso se, ‘numa perspectiva equilibrada, razoável e proporcionada, de teor substancialista, permitem explicitar e isolar o preciso objecto do recurso e proporcionam às demais partes visualizar os termos em que poderão exercer o contraditório e ao julgador proceder ao seu juízo factual próprio de segundo grau de jurisdição (art. 662º, n.os 1 e 2, do CPC), sem se substituir ou fazer seu o ónus que cabe ao recorrente na concretização do objecto do recurso, não se reconduzindo a impugnação feita a uma afirmação genérica, exemplificativa ou meramente subjectiva de inconformismo perante o decidido em 1ª instância’[11]; se não obstante as deficiências, estritamente formais, das alegações for ‘objectivamente possível destrinçar e localizar suficientemente os pontos de facto impugnados, os meios de prova com eles conectados e que justificam a alteração pretendida, bem como, por fim, a resposta alternativa proposta pelo recorrente, em termos da sua segura compreensibilidade pelo julgador quanto ao seu conteúdo e sentido’, será de admitir (e não rejeitar) a impugnação[12].

Na situação dos autos, privilegiando análise que permite extrair das alegações (e conclusões) o que ‘verdadeiramente importa para a aferição da existência ou não de algum erro de julgamento da matéria de facto’ (sendo certo que para tal peça não está prevista uma estrutura rígida)[13], identifica-se, sem violação dos princípios do dispositivo e da auto-responsabilidade (vejam-se as conclusões 4ª a 8ª), a matéria impugnada pelo apelante, o concreto julgamento pelo mesmo para ela propugnada e, bem assim, os elementos de prova em que o funda a sua discordância – como base nos depoimentos das testemunhas DD e EE entende o apelante dever julgar-se provado que nos trabalhos de limpeza geral do terreno, poda, destroçar e lavrar, gastou 2.078,00€ (1450€ pagos a EE, 202,5€ pagos a DD, 405,00e pagos a duas pessoas que trabalharam como o DD e, ainda, o valor de 202,5€ relativo ao trabalho do próprio autor), matéria que encontra correspondência naquela que a decisão apelada julgou não provada nos factos 4 e 5 da matéria não provada (esta, julgada não provada, concernente à alegada nos artigos 7 e 9 na petição inicial – e não inteiramente coincidente com aquela que o apelante agora pretende ver provada).

         A reapreciação dos elementos probatórios produzidos nos autos em vista de formar convicção autónoma[14] conduz-nos a conclusão idêntica à da sentença apelada relativamente à matéria impugnada.

         Estando em causa nos autos – ponderando o alegado pelo autor na petição (vejam-se os artigos 6 a 11 da petição) e bem assim a conformação objectiva trazida à lide pelos termos em que o pedido (tanto o principal como o subsidiário) é formulado –apenas os trabalhos de limpeza levados a efeito no terreno objecto do processo, todos os demais trabalhos pelo apelante eventualmente realizados serão irrelevantes (por não respeitarem ao objecto do processo traçado pelo autor) e, assim, por indiferentes, não terão de ser considerados nem ponderados.

          As testemunhas DD e EE, referiram ter sido contratadas pelo autor para realizar trabalhos que não se circunscreveram à limpeza do terreno (o primeiro referiu ter sido contratado pelo autor para lavrar, escavar e podar e o segundo afirmou ter feito a limpeza geral do terreno, andando também a lavrar), não logrando identificar e isolar (com a segurança mínima para sustentar o juízo de probabilidade bastante, face às circunstâncias do caso e às regras da experiência da vida) os valores que receberam pela limpeza do terreno, pois que o valor recebido respeitava também outros trabalhos (o EE referiu ter recebido mais de 1.400,00€ pelos vários trabalhos que realizou no terreno, mas questionado pela Exma. Juíza para que esclarecesse os valores recebidos a propósito de cada um dos trabalhos não conseguiu explicar, congruentemente, os valores que afirmava – os valores diários que referiu não se harmonizam integralmente com os valores globais parciais que referia terem sido pagos pelo autor: referiu ter andado a trabalhar no terreno oito ou nove dias, recebendo por uns trabalhos 50€ por dia, noutros recebendo valor à hora, v. g. para lavrar, sendo certo que o depoimento não era corroborado com pela aritmética; por sua vez, o DD, afirmou ter recebido 45€ por cada um dos quatro dias e meio que andou a lavrar, escavar e podar no terreno). 

         Depoimentos (e sendo certo que nenhum outro depoimento ou qualquer outro elemento de prova foi produzido a propósito) insuficientes, pois, para demonstrar, com o alto grau de probabilidade suficiente para as necessidades práticas da vida (certeza histórico-empírica)[15], os valores concretos despendidos pelo autor com os (exclusivamente) trabalhos de limpeza geral do terreno (apenas estes interessam, em razão da delimitação do objecto do processo feita pelo autor).

Improcede, pois, a censura dirigida pelo apelante à decisão da matéria de facto.

C. Do mérito da causa.

C.1. Do mérito da causa – da verificação dos pressupostos para se afirmar o direito indemnizatório do autor, com fundamento na violação, por parte dos réus, de deveres de conduta imanentes ao conceito de boa fé.

Pretende o autor apelante haver dos réus apelados indemnização no valor de três mil euros, por responsabilidade fundada na violação dos princípios da boa fé.

Temos por indiscutível que a ‘celebração de contrato inválido ou ineficaz (quando a invocação da invalidade ou ineficácia não seja impedida pelo abuso do direito) que causa danos a uma das partes’ é fonte de responsabilidade para a parte que deu causa à invalidade ou ineficácia ou, ao menos, para a parte que conhecendo tal causa, não a comunicou à contraparte - em tais hipóteses ‘haverá violação de deveres de lealdade e/ou de informação’[16].

Trata-se de responsabilidade estribada na violação de deveres de conduta imanentes ao conceito de boa fé – que não directamente na infracção de qualquer eventual dever primário de prestar.

Responsabilidade que convoca o conceito da boa fé objectiva (não a boa fé reconduzida ao puro conhecimento psicológico de determinado facto – conceito a que lei se refere, v. g., a propósito do possuidor de boa fé, a propósito do instituo da impugnação pauliana ou a propósito da inoponibilidade da nulidade e anulação do negócio jurídico aos terceiros de boa fé), que enforma e atravessa todo o direito das obrigações (se bem que a tal ramo se não confine – basta atentar no instituto do abuso de direito) com a sua nítida e marcante nota eticizante.

Reporta-se a princípio normativo que exige e demanda das partes conduta honesta, correcta e leal, sendo que numa primeira aproximação (e não sendo possível encerrar o significado da boa fé num conceito preciso e rigoroso) o seu sentido nuclear pode ser caracterizado do seguinte modo: o princípio da boa fé significa que todos devem guardar «fidelidade» à palavra dada e não frustrar ou abusar daquela confiança que constitui a base imprescindível das relações humanas, exigindo assim procedimentos conformes aos esperados de qualquer pessoa que participe honesta e correctamente no quadro de uma vinculação jurídica especial[17].

A boa fé constitui, no dizer de Diez-Picaso[18], um arquétipo de conduta social: a lealdade nas relações, o proceder honesto, esmerado, diligente.

A ponderação de ordem ética convocada pelo conceito normativo da boa fé concretiza-se em dois sentidos básicos: um sentido negativo, em que se visa impedir a ocorrência de comportamentos desleais (obrigação de lealdade) e um sentido positivo, de espírito mais moderno e exigente, em que se intenta promover a cooperação entre os sujeitos (obrigação de cooperação). Enquanto a obrigação de lealdade (fides) impõe a abstenção de todo o comportamento que possa tornar a posição da contraparte mais difícil ou onerosa (e em especial proíbe que uma parte se aparte do valor da significação que à própria conduta pode ser atribuído pela outra parte), a obrigação de cooperação, de intensidade variável consoante o grau de vinculação (ou envolvimento) pessoal, traduz-se, além do mais, na obrigação de informação (relativa a elementos do objecto pressuposto pela vinculação)[19] – e informação correcta e fiel.

O conceito da boa fé vem assim a traduzir-se numa ampla teia de deveres (num filtro axiológico cujo finalidade última vem a ser, por força da eticização que pretende aportar, a prossecução da Justiça e do Direito também no âmbito do comércio jurídico e das relações jurídicas entre os particulares), de maior ou menor relevo, como sejam os deveres de fidelidade e lealdade, de aviso, informação e esclarecimento, de cuidado e protecção da pessoa e património da outra parte, de cooperação; neles está indelevelmente presente a ideia de confiança – a conduta da parte torna-se fiável e, por isso, suporte de decisões da outra parte.

A matéria provada não permite imputar aos réus a violação de qualquer dever de lealdade e/ou de informação a propósito da celebração do contrato promessa inválido (por falta de forma) – a espartaneidade da matéria apurada não permite imputar aos réus a causa para a não observância de forma (vejam-se os factos não provados 1 e 2), designadamente que se hajam desviado à palavra dada, observando qualquer comportamento desleal ou mesmo que tenham omitido qualquer dever de informação e/ou esclarecimento: tão só resulta provada a celebração do contrato promessa e, bem assim, que os réus, acolhendo solicitação do autor para tanto, lhe restituíram o valor que, na sequência da celebração do acordo, o mesmo lhes havia entregue.

Provado, tão só, pois, que as partes celebraram um contrato promessa nulo por falta de forma – sem que se possa afirmar que qualquer delas (no que releva, os réus) tenha violado deveres de lealdade e/ou informação (ou outros deveres laterais de conduta que o relacionamento negocial encetado impusesse, à luz da boa fé).

De afastar, pois, a verificação dos pressupostos para se afirmar o direito indemnizatório do autor, com fundamento na violação, por parte dos réus, de deveres de conduta imanentes ao conceito de boa fé.

C.2. Do mérito da causa – da verificação dos pressupostos para se afirmar o direito do autor a ser ressarcido pelos réus à luz do instituto do enriquecimento sem causa.

Manifestamente improcedente a pretensão indemnizatória do apelante fundada no instituto do enriquecimento sem causa.

O enriquecimento sem causa (enriquecimento injusto ou locupletamento à custa alheia), enquanto fonte de obrigação (a par dos contratos, dos negócios unilaterais, da gestão de negócios e da responsabilidade civil extracontratual), tem por finalidade remover o enriquecimento do património do enriquecido, transferindo-o ou deslocando-o para o património do empobrecido[20].

Instituto fortemente marcado pelo propósito de pôr cobro ao desequilíbrio patrimonial injusto e injustificado, não merecedor de tutela do direito. Mais acertadamente, por mais próximo da ideia de Direito que emana do instituto – reposição de equilíbrio imposta pelo direito, pois que a obrigação de restituir aquilo que foi adquirido sem causa corresponde a necessidade moral e social, visando o restabelecimento do equilíbrio injustamente quebrado entre patrimónios que, de outro modo, não se obteria[21].

Obrigação de restituir, fundada no injusto locupletamento à custa alheia, que pressupõe a verificação cumulativa de três requisitos (art. 473º, nº 1 do CC): i) que haja um enriquecimento de alguém, ii) que o enriquecimento careça de causa justificativa, e iii) que ele tenha sido obtido à custa de quem requer a restituição[22].

O enriquecimento traduz-se na obtenção de vantagem de carácter patrimonial, seja qual seja a forma que revista – aumento do activo patrimonial, diminuição do passivo, uso ou consumo de coisa alheia ou exercício de direito alheio (quando tais actos sejam susceptíveis de avaliação pecuniária) ou até poupança de despesas[23].

O enriquecimento à custa de outrem (a expensas dessa pessoa – a danno di un’altra persona) significa que, em regra, a vantagem patrimonial alcançada por um sujeito (o enriquecido) resulta no sacrifício económico correspondente suportado por outro (o empobrecido) – a vantagem de um deve resultar do prejuízo do outro, ou este provir daquela[24].

Pressupõe, pois, a verificação do enriquecimento do obrigado à restituição – a obtenção de vantagem de carácter patrimonial, qualquer que seja a forma que assuma.

Enriquecimento (obtenção de vantagem patrimonial) dos réus apelados que no caso não está demonstrado – como bem assinala a decisão apelada, para lá de se não poder concluir que a limpeza do terreno feita pelo autor (a suas expensas) consubstancia uma beneficiação permanente do imóvel (porque a vegetação tem crescimento contínuo, a necessidade de limpar os terrenos renova-se com o passar das estações), também se não pode concluir que ela tenha significado um aumento do valor do imóvel.

De recusar, assim, a verificação do enriquecimento dos réus, pressuposto necessário para afirmar o direito do autor ao ressarcimento com fundamento no enriquecimento sem causa.

D. Síntese conclusiva.

Do exposto resulta a improcedência da apelação, podendo sintetizar-se a argumentação decisória (nº 7 do art. 663º do CPC) nas seguintes proposições:

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DECISÃO

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Pelo exposto, acordam os juízes desta secção cível em julgar improcedente a apelação e, em consequência, manter a sentença apelada.

Custas pelo apelante.


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Porto, 10/07/2024

(por opção exclusiva do relator, o presente texto não obedece às regras do novo acordo ortográfico, salvo quanto às transcrições/citações, que mantêm a ortografia de origem)
João Ramos Lopes
Alexandra Pelayo
João Proença


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[1] Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 9ª Edição, p. 56.
[2] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2º, 4ª edição, p. 736.
[3] Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Volume I, 2018, pp. 737/738.
[4] Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, Código (…), p. 738.
[5] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código (…), pp. 736/737.
[6] Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª Edição, 2018, p. 176.
[7] Abrantes Geraldes, Recursos (…), p. 175.
[8] Acórdão do STJ de 16/05/2018 (Ribeiro Cardoso), no sítio www.dgsi.pt.
[9] Acórdãos do STJ de 29/10/2015 (Lopes do Rego), de 3/10/2019 (Rosa Tching), de 27/10/2022 (Ana Paula Lobo) e de 13/10/2022 (Maria da Graça Trigo), todos no sítio www.dgsi.pt.
[10] Citado acórdão do STJ de 27/10/2022 (Ana Paula Lobo).
[11] Acórdão do STJ de 5/04/2022 (Ricardo Costa), no sítio www.dgsi.pt.
[12] Acórdão do STJ de 14/05/2024 (Luís Espirito Santo), no sítio www.dgsi.pt.
[13] Abrantes Geraldes, Recursos (…), pp. 173 e 174.
[14] Ao actuar os poderes que lhe são atribuídos enquanto tribunal de segunda instância que garante um duplo grau de jurisdição em matéria de facto, deve a Relação proceder a uma autónoma apreciação crítica das provas produzidas (em vista de, a partir delas, expressar a sua convicção com total autonomia, de formar uma convicção autónoma), alterando ou corroborando a decisão em conformidade a convicção que adquira com essa autónoma apreciação dos elementos probatórios a que deve proceder - Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª Edição, pp. 298 a 303 (maxime 302 e 303) e os acórdãos do STJ de 8/01/2019 (Ana Paula Boularot), de 25/09/2019 (Ribeiro Cardoso), de 16/12/2020 (Tomé Gomes), de 1/07/2021 (Rosa Tching) e de 29/03/2022 (Pedro de Lima Gonçalves), no sítio www.dgsi.pt.
[15] Manuel de Andrade, Noções (…), pp. 191/192.
[16] Maria da Graça Trigo, in Comentário ao Código Civil, Parte Geral, Universidade Católica Portuguesa (coordenação de Luís Carvalho Fernandes e José Brandão Proença), p. 513 (nota V ao artigo 227º).
[17] Direito das Obrigações (texto elaborado pelos Drs. J. Sousa Ribeiro, J. Sinde Monteiro, Almeno Sá e J. C. Proença, com base nas lições do Prof. Dr. Rui de Alarcão ao 3º Ano Jurídico), Coimbra, 1981, p. 110
[18]  Apud A. Varela, Das Obrigações em Geral, II Vol. 4ª Edição, p. 13.
[19] Direito das Obrigações ((…) lições do Prof. Dr. Rui de Alarcão ao 3º Ano Jurídico), Coimbra, 1981, pp. 115 a 117.
[20] Pereira Coelho, O Enriquecimento e o Dano, 2ª reimpressão, 2003, p. 36.
[21] Menezes Cordeiro, Direito das Obrigações, 2º, 2001, p. 45.
[22] Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. I, 10ª edição, revista e actualizada (7ª reimpressão), pp. 480/481.
[23] Antunes Varela, Das Obrigações (…), p. 481.
[24] Antunes Varela, Das Obrigações (…), pp. 488/489, citando Enneccerus-Lehmann.