Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2663/22.7T8VNG-D.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOÃO DIOGO RODRIGUES
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA COMO CULPOSA
PRESUNÇÃO DE CULPA
INDEMNIZAÇÃO
Nº do Documento: RP202406182663/22.7T8VNG-D.P1
Data do Acordão: 06/18/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A obrigatoriedade de especificação concreta quer dos pontos de facto, quer dos meios de prova, não se basta com uma mera alegação difusa ou genérica em tais aspetos. É necessário que o impugnante individualize o objeto concreto da sua discordância, motivando-a, criticamente, em razão da prova produzida a esse específico respeito e, se for caso disso, indicando, com exatidão as passagens da gravação em que funda a sua discordância, sem prejuízo da transcrição dos excertos que considere relevantes.
II - A presunção estabelecida no artigo 186.º, n.º 3, do CIRE, é uma presunção relativa de culpa grave e não uma presunção de insolvência culposa.
III - No âmbito do incidente da qualificação da insolvência, a medida da indemnização aos credores deve ser determinada em função da culpa do atingido por essa qualificação.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 2663/22.7T8VNG-D.P1




Relator: João Diogo Rodrigues;
Adjuntos: Rui Moreira;
Fernando Vilares Ferreira.


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Sumário

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Acordam no Tribunal da Relação do Porto,

I - Relatório

1- Declarada a insolvência da sociedade, A..., Ldª, veio a credora, B..., S.A., requerer a qualificação de tal insolvência como culposa defendendo que por essa qualificação deve ser afetado o gerente daquela sociedade, AA.

2- O Ministério Publico e a Administradora de Insolvência nomeada, pronunciaram-se no mesmo sentido.

3- Por sua vez, a Insolvente e o Requerido deduziram oposição, concluindo que a insolvência deve ser declarada como fortuita.

4- Já em resposta, a Requerente e a Administradora de Insolvência reafirmaram as suas posições iniciais.

5- Instruída e discutida a causa, foi, a final, proferida sentença na qual se decidiu o seguinte:

A) Qualificar como culposa a insolvência da sociedade devedora A..., Ldª.

B) Declarar afetado por tal qualificação o requerido, AA.

C) Decretar a inibição de AA, para administrar patrimónios de terceiros por dois anos.

D) Decretar a inibição de AA, para o exercício do comércio, bem como para ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa por dois anos.

E) Determinar a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos por AA e condená-lo na restituição dos bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos.

F) Condenar ainda o requerido AA a pagar aos credores o montante correspondente ao total dos créditos reconhecidos na lista apresentada pela A.I. nos termos do artº 129º do CIRE, que não forem pagos pelo produto da liquidação do ativo.

6- Inconformados com esta sentença, dela recorrem a Insolvente e o Requerido, AA, terminando a respetiva motivação com as seguintes conclusões:

“A. O presente recurso tem por objeto a reapreciação da matéria de facto e de direito no que diz respeito à decisão de qualificar como culposa a insolvência da sociedade A.... Subsidiariamente tem como objeto a apreciação da extensão dos efeitos fixados pela culpa na insolvência, e por último, também de forma subsidiária, a apreciação do requerimento de nulidade em virtude de ilegalidade praticada pela secretaria do tribunal a quo.

B. A questão decidenda prende-se com a consideração de se verificarem preenchidas as presunções estabelecidas em ambas as alíneas do n.º 3 do artigo 186.º do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas.

C. O Requerido deduziu Oposição através da qual se infirmou as imputações que lhe eram atribuídas, estando convicto que, em sede de produção de prova, foram ilididas as presunções do citado normativo legal, mais ficando demonstrado que, ainda que demonstrado o atraso na insolvência, de tal facto não resultou qualquer dano ou prejuízo para a massa insolvente.

D. O tribunal de 1ª instância, considerou se encontrarem verificadas as circunstâncias estabelecidas no referido Art. 186.º n.º 3 do CIRE.

E. Face à prova documental junta e prova testemunhal produzida, se deveria dar como provado que as presunções legais estabelecidas nas citadas disposições legais foram taxativamente ilididas e, mesmo que não o fossem (facto que se concede por mero exercício académico) a verdade é que a extensão dos efeitos da qualificação como culposa, na esfera do Requerido, afiguram-se desproporcionais.

F. Padece a sentença proferida de erro de julgamento e vício de lei.

G. Os factos dados como provados deveriam determinar a procedência da Oposição.

H. O critério subjacente à atribuição das gratificações estava indexado ao facto de a impugnante no 1º semestre de cada ano, ultrapassar, em média, um volume de negócios de 1.000.000,00€ e ter no final de ano resultados positivos.

I. O Tribunal de 1ª Instância reconhece que foi produzida a seguinte prova:

a. Através do depoimento da Sra Administradora de Insolvência, que expressamente refere que, tendo as obras terminado em meados de2019, apenas a partir dessa data é que a sociedade estaria em condições de iniciar a sua actividade, sendo que o Covid é que foi elemento impactante no desenrolar da operação da Insolvente. O Requerido dotou a sociedade de meios financeiros para, já depois do PER, pagar à Autoridade Tributária. A Insolvente, através da pessoa do Requerido, celebrou acordos com a maioria dos seus credores, razão pela qual em 2019 não tinha a sua dívida vencida, razão pela qual, até à declaração da insolvência, nenhum Credor havia interpelado a sociedade para pagar a dívida, ou resolvido os contratos que titulavam as respetivas relações comerciais.

b. O atraso na apresentação das contas resultou de uma divergência criada pelo pedido da Insolvente em deduzir prejuízos em sede de IRC, facto que gerou uma impossibilidade de lançar as contas nos anos seguintes.

c. O Presidente do C... reconheceu que celebrou acordos em 2019 (o que demonstra que a dívida das rendas não estava vencida).

d. O gerente de conta da Banco 1... atestou que a Insolvente apresentou pedidos de financiamento para a aquisição do D....

e. A testemunha BB atestou as diligências da Insolvente e Requerido, assim como as propostas de aquisição por operadores de turismo de grande dimensão, pelos valores consignados nas propostas juntas à Oposição do Requerido. O que por si determinaria a possibilidade de liquidar todas as dívidas da Insolvente.

J. Desta forma, deveria o tribunal ter considerado como provados o alegado nos artigos 23.º, 24.º, 26.º, 27.º, 29.º a 50.º, 54.º a 56.º, 64.º a 129.º, 143.º a 163.º, 169.º a 181.º e 188.º, todos da Oposição apresentada pelo Requerido,

K. Não deveria ainda o tribunal ter dado como provado os factos como assentes nos pontos 15, 16 e 18 a 24.

L. Igual erro de julgamento ocorre na fundamentação apresentada, na medida em que não ficou demonstrado que existiu prejuízo para a massa insolvente no alegado atraso da apresentação das contas ou no alegado atraso da apresentação à insolvência.

Caso não se venha a ser procedente a revogação da Sentença, nos termos supra requeridos, sempre se diga subsidiariamente que,

M. Estamos em crer que, ainda que se venha a manter como Culposa a insolvência, deverá ser reconsiderada a extensão dos efeitos de tal determinação.

N. Com efeito, resulta de todo o supra exposto que o Requerido cumpriu os seus deveres de cuidado, revelando a disponibilidade, a competência técnica e o conhecimento da atividade da empresa adequados às suas funções e de um gestor criterioso e ordenado.

O. Mais demonstrou cumpridos os deveres de lealdade, no interesse da empresa, atendendo aos interesses de longo prazo dos sócios e ponderando os interesses dos outros sujeitos relevantes para a sustentabilidade da empresa, tais como os seus trabalhadores, clientes e credores

P. Consideramos manifestamente desproporcional afectar a liberdade do Requerido em exercer cargos de gestão, assim como, principalmente, afectar todo o seu património para pagamento dos créditos da Insolvente.

Q. Sem prejuízo, a afectação da liberdade do Requerido em exercer cargos de Administração ou similares, em pessoas colectivas, conjugada com a afectação do seu património, tal facto determinará inevitavelmente a insolvência do Requerido, facto que determinará a impossibilidade de este solver com os seus encargos diários para a sua própria subsistência, assim como para a dívida que ora se lhe pretende imputar.

R. O Requerido dotou a sociedade dos meios financeiros para exercer a sua actividade, injectando na mesma mais de 750.000.00€.

S. Em sede de PER, continuou do seu bolso (via suprimentos) a efectuar pagamentos à Autoridade Tributária.

T. Em sede de apresentação do Plano de Revitalização e em Plano de Insolvência obrigou-se a dotar a sociedade dos meios financeiros para viabilizar o plano e, consequentemente, permitir à sociedade pagar as suas dívidas.

U. Conforme resulta do relatório da Sra Administradora e dos esclarecimentos por esta prestado, é patente que o Covid veio a impactar de forma determinante nos planos da sociedade.

V. Ainda assim o Requerido tudo fez para viabilizar a sociedade.

W. Mesmo que se considere que haja um atraso na apresentação, em momento algum ficou demonstrado que o mesmo causou prejuízo.

X. No que concerne à divida perante o Estado, dúvidas não hajam que, existindo responsabilidade do Requerido no seu pagamento, esta há de ser efectuada por via da reversão.

Y. Contudo, parece-nos que a extensão dos efeitos da qualificação insolvência como culposa na esfera do Requerido AA se afiguram como excessivos e desproporcionais.

Z. Estamos em crer que é evidente o empenho pessoal e financeiro que o Requerido aportou à sociedade.

AA. Não nos parece razoável que, depois de todo o sacrifício do Requerido, hoje com 59 anos de idade, depois de ver um projecto ao qual se dedicou durante anos, que ruiu por circunstâncias que lhe são alheias, ver no final de tudo liquidadas todas as hipóteses de que ainda dispunha para continuar a sua vida pessoal.

BB. Face ao exposto, e vindo-se a considerar como culposa a insolvência da A..., não deverá ser afectado por tal qualificação o Requerido AA.

Sem prejuízo, e por dever de patrocínio incumbe ao Requerido invocar Nulidade nos termos infra

CC. A Audiência Final dos presentes autos foi iniciada no dia 30 de Outubro de 2023 e teve a sua continuação no dia 8 de Novembro de 2023.

DD. Conforme resulta das respectivas actas, foram ouvidas as seguintes testemunhas:

a. Administradora da Insolvência: CC (ficando expressamente consignado que: “O seu depoimento foi gravado no sistema multimédia em uso neste Tribunal o H@bilus Media Studio tendo-se iniciado pelas 09 horas e46 minutos e o seu termo pelas 10 horas e 44 minutos.”).

Testemunha arrolada pela ai comum ao M.P e Requerido:

b. DD (ficando expressamente consignado que: “O seu depoimento foi gravado no sistema multimédia em uso neste Tribunal o H@bilus Media Studio tendo-se iniciado pelas 10 horas e 45 minutos e o seu termo pelas 11 horas e 25 minutos.”).

Testemunhas arroladas pelo Requerente:

c. EE (ficando expressamente consignado que: “O seu depoimento foi gravado no sistema multimédia em uso neste Tribunal o H@bilus Media Studio tendo-se iniciado pelas 11 horas e 26 minutos e o seu termo pelas 11horas e 51 minutos.”). Testemunhas arroladas pelo Requerido:

d. FF- videoconferência com Lisboa (ficando expressamente consignado que: “O seu depoimento foi gravado no sistema multimédia em uso neste Tribunal o H@bilus Media Studio tendo-se iniciado pelas 11 horas e 52 minutos e o seu termo pelas 12 horas e 28 minutos.”).

e. Luís Machado (ficando expressamente consignado que: “O seu depoimento foi gravado no sistema multimédia em uso neste Tribunal o H@bilus Media Studio tendo-se iniciado pelas 13 horas e 45 minutos e o seu termo pelas 13horas e 58 minutos.”).

f. BB (ficando expressamente consignado que: “O seu depoimento foi gravado no sistema multimédia em uso neste Tribunal o H@bilus Media Studio tendo-se iniciado pelas 13 horas e 59 minutos e o seu termo pelas 14horas e 34 minutos.”).

g. Foram ainda produzidas Declarações de Parte do Requerido, AA (ficando expressamente consignado que: “O seu depoimento foi gravado no sistema multimédia em uso neste Tribunal o H@bilus Media Studio tendo iniciado pelas 09 horas e 50 minutos e o seu fim pelas 11horas e 05 minutos.”).

EE. Pese embora se encontrar lançada no menu Histórico de actos processuais da plataforma citius a “Disponibilização de registos de gravação de sessão” das audiências dos dias 31.10.2023 e 8.11.2023, a verdade é que no campo da respectiva consulta era referido que a mesma carecia de autorização pela secretaria.

FF. Visto não ser possível a sua consulta, esta foi requerida à secretaria do Tribunal no passado dia 19 de Dezembro, tendo a secretaria efectivamente disponibilizado a consulta das respectivas gravações no passado dia 20 de Dezembro, conforme despacho que ora se junta como documento n.º 1.

GG. Após consulta das gravações disponibilizadas, cujo print ora se junta como documento n.º 2, constata-se que:

a. Não se encontra disponível a gravação da única testemunha arrolada pela Requerente, designadamente, da inquirição da Testemunha EE;

b. A gravação disponibilizada da inquirição da Testemunha do M.ºP.º e do Requerido, designadamente, a Testemunha DD, tem uma duração efectiva de 1 segundo, apesar de ter sido ouvida durante cerca de 40 min, conforme cópia de áudio que ora se junta como doc. 3.

c. A gravação disponibilizada da inquirição da Testemunha FF apesar de ter sido gravada na sua totalidade, a qualidade do seu registo torna o depoimento da testemunha totalmente imperceptível.

HH. Com efeito, estabelecem o n.º 1 e 4 do Art. 155.º do Código de Processo Civil que a falta ou deficiência da gravação deve ser invocada, no prazo de 10 dias a contar do momento em que a gravação é disponibilizada.

II. Ora, a omissão ou deficiência de uma parte significativa de depoimentos de testemunhas de manifesta relevância, deixa de dispor de todos os elementos para poder apreciar da bondade da decisão recorrida no segmento da matéria de facto.

JJ. Conforme resulta da sentença ora recorrida, os esclarecimentos prestados pela A.I. e os depoimentos das testemunhas apresentadas, foram determinantes para se dar como assente a factualidade ínsita nos factos assentes.

KK. Há uma parte significativa dos depoimentos prestados por essas testemunhas que não é inteligível nem se afigura recuperável.

LL. E mesmo que sejam recuperáveis, não se encontram a esta data disponíveis para consulta e, por isso, configuram uma limitação ao pleno exercício dos direitos do Requerido.

MM. A falta, deficiência ou a falha na gravação da prova constitui nulidade processual, nos termos definidos pelo art.º 195º, n.º1, do CPC, dado estar-se perante uma irregularidade susceptível de influir no exame e decisão da causa, desde logo, porque não permite ao tribunal de recurso reapreciar a matéria de facto.

NN. No caso em apreço, as deficiências supra indicadas impedem, ainda que de forma parcial, o Recorrente de impugnar plenamente a decisão já que é nos depoimentos que não se encontram gravados, ou gravados de forma deficiente, que o Tribunal a quo fundamenta para dar como provados os factos que conduziram à qualificação da insolvência e à determinação dos seus efeitos.

OO. Existem elementos dos depoimentos cujas gravações foram deficientemente executadas, que são essenciais para o apuramento dos factos e que, com todo e devido respeito que a Mm.ª Juiz do Tribunal a quo nos merece, não foram considerados.

PP. Pelo que se requer a declaração da nulidade, nos termos supra expostos, e consequentemente, que se determine a anulação do julgamento para que se procedesse à gravação dos depoimentos cuja audição se mostra essencial para o conhecimento da impugnação da matéria de facto e que se mostram em parte imperceptíveis, a fim de permitir a reapreciação pelo Tribunal de 2ª instância da matéria de facto.”

Terminam pedindo que se conceda provimento ao presente recurso.

7- Na mesma data em que interpuseram tal recurso (02/01/2024), os Apelantes requereram igualmente ao Tribunal recorrido que declarasse a referida nulidade, bem como determinasse a anulação do julgamento nos termos antes referenciados [Conc. al. PP)].

8- A Requerente deste incidente opôs-se a essa pretensão.

9- Posteriormente, a mesma Requerente e o Ministério Público responderam ao recurso pugnando pela confirmação do julgado, por não se verificarem os fundamentos alegados pelos Recorrentes para a alteração do decidido da sentença recorrida.

10- Nesta sequência, foi proferido despacho, no dia 09/03/2024, que, debruçando-se sobre a nulidade arguida, atinente à falta e deficiência da gravação, entendeu que a mesma não se verifica.

11- Em simultâneo, no mesmo despacho, foi admitido o recurso já indicado, como sendo de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.

12- Os Recorrentes, todavia, reclamaram deste despacho pedindo para que a tal recurso seja atribuído efeito suspensivo. Isto porque, em suma, o n.º 6 do artigo 14.º, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE) estabelece exceções não só quanto ao regime de subida dos recursos aí indicados, mas também quanto ao seu efeito que, sustentam, deve ser suspensivo, à semelhança do que sucede na hipótese prevista na al.a), do n.º 3, do artigo 647.º, do Código de Processo Civil (CPC). Até porque a manter-se o efeito devolutivo, isso implicará a insolvência do Recorrente.

13- Recebido o recurso nesta instância e preparada que está a deliberação, importa tomá-la:


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II- Questões prévias

1- Efeito do recurso:

Como vimos, os Apelantes pretendem que se atribua efeito suspensivo a este recurso; ou melhor, efeito suspensivo da sentença recorrida. É isso que verdadeiramente se depreende da sua argumentação, antes resumida.

Mas, não pode ser assim.

Na verdade, o artigo 14.º, n.º 5, do CIRE, estabelece a regra geral para o efeito dos recursos interpostos no processo de insolvência. Como aí se dispõe, esses recursos têm, em regra, efeito meramente devolutivo. Isto é, em regra, não suspendem a tramitação do processo, nem a execução (provisória) da decisão recorrida. Só assim não será quando a lei o determinar. É o caso, por exemplo,  da venda de bens do devedor, que, salvo casos excecionais, não pode iniciar-se senão depois do trânsito em julgado da sentença declaratória da insolvência (artigos 40.º, n.º 3, e 158.º, n.º 1, do CIRE) ou do levantamento das quantias depositadas para pagamento aos credores, que não pode ser feito senão depois de ser definitiva a decisão do recurso da sentença proferida no apenso de verificação e graduação de créditos ou na ação pendentes que tenha dado origem a protesto (artigo 180.º, n.ºs 1 e 2, do CIRE).

Mas, ressalvadas estas e outras hipóteses em que a lei determine o contrário, a regra é a que começámos por enunciar[1].

Ora, no caso, não há qualquer exceção contemplada na lei que permita atribuir efeito suspensivo a este recurso. Nem sequer por analogia com o que se dispõe no artigo 647.º, n.º 3, al. a), do CPC, pois que, além de nessa hipótese estar em causa “decisão que ponha termo ao processo em ações sobre o estado das pessoas”, o que manifestamente não se confunde com a situação presente, nem com ela se assemelha, (pois que aqui apenas está em causa a qualificação da insolvência e os seus efeitos inibitórios e patrimoniais), também não há qualquer lacuna na lei que necessite de ser preenchida por esse método.

Assim, pois, em resumo, indefere-se o requerido pelos Apelantes e mantém-se o efeito devolutivo atribuído a este recurso.

2- Nulidade decorrente da alegada falta/deficiência da gravação:

Quanto a este aspeto, os Apelantes, de facto, suscitam-no no recurso [cls.CC) a PP]. Todavia, em simultâneo, aliás, no mesmo dia (02/01/2024), suscitaram também a mesma nulidade perante o Tribunal recorrido, que a decidiu, sem que aqueles tenham impugnado, oportunamente, essa decisão.

Deste modo, pois, porque a questão é a mesma e foi suscitada com os mesmos fundamentos nesta causa, formou-se em torno daquela decisão caso julgado que nos impede de aqui a reapreciar (artigos 620.º, n.º 1, 628.º, do CPC. Daí que sobre ela não se emita qualquer pronúncia.

Esclarecidos estes aspetos, vejamos, agora, o mérito do recurso.


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III- Mérito do recurso

A- Definição do seu objeto

Tendo em consideração o anteriormente decidido e inexistindo, no caso presente, questões de conhecimento oficioso, o objeto deste recurso, delimitado, como é regra, pelas conclusões das alegações dos recorrentes [artigos 608º, nº 2, “in fine”, 635º, nº 4, e 639º, nº 1, todos do CPC, “ex vi” artigo 17.º do CIRE], resume-se a saber se:

a) Deve haver lugar à requerida modificação da matéria de facto;

b) A insolvência deve ser qualificada como fortuita;

c) Sendo a insolvência qualificada como culposa, devem os respetivos efeitos ser os indicados pelos Apelantes;


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B- Fundamentação

B.1- Na instância recorrida julgaram-se provados os seguintes factos:

1) “A..., Ldª”, sociedade comercial por quotas com o NIPC ...68, e sede social sita na Rua ..., ..., freguesia ..., concelho do Porto, foi constituída em 02.08.2013, cujo objeto social consiste na gestão e exploração de empreendimentos turísticos e gerência exercida por AA.

2- Explorava a unidade hoteleira D..., em ..., ..., que está encerrado.

3- Em 18.02.2021 a ora requerente B..., S.A. já havia requerido a declaração de insolvência da “A..., Ldª”, processo que foi suspenso e depois extinto, devido à instauração de um PER pela devedora.

4- A “A..., Ldª”, apresentou-se a PER em 13.04.2021, o qual encerrou sem que tenha sido aprovado o plano de recuperação apresentado pela devedora, na sequência do que, o processo foi remetido à distribuição como processo de insolvência em 01.04.2022.

5- Em 13.05.2022 foi proferida sentença a declarar a insolvência da sociedade “A..., Ldª”, nomeado A.I. e designada data para realização da assembleia de credores.

6- Realizada assembleia de credores em 07.07.2022, foi deliberado a não apresentação de plano de recuperação pela devedora e prosseguimento do processo para liquidação.

7- Por despacho de 18.11.2022 foi declarado o encerramento do processo por insuficiência da massa.

8- Em 21.07.2022 o credor B..., S.A. veio requerer a abertura do incidente de qualificação de insolvência e a qualificação como culposa, cfr. artº 186º, n.º 3 als. a) e b) do CIRE.

9- Por despacho proferido em 14.10.2022, foi ordenada a abertura do incidente de qualificação de insolvência.

10 - Em 07.11.2022, foi junto o parecer da A.I. que concluiu pela qualificação como culposa, cfr. artº 186º, n.º 3 als. a) e b) do CIRE.

11- O MºPº juntou o seu parecer em 09.11.2022, concluindo pela qualificação com culposa por violação dos deveres constantes do artº 186º, n.º 3, als. a) e b) do CIRE e a afetar o gerente AA.

12- Citados a devedora e o requerido/afetado AA, vieram deduziu oposição, concluindo pela qualificação da insolvência como fortuita.

13- No PER o passivo global da devedora ascendia a 4.554.680,24€.

14- Foram reconhecidos pela A.I. créditos reclamados e/ou reconhecidos no PER no montante global de 5.595.923,67€, cfr. lista junta em 24.03.2023 ao apenso B.

15- O incumprimento da sociedade Insolvente perante o Instituto da Segurança Social, I.P., iniciou-se em 20 de Setembro de 2017 (relativa a contribuição referente ao mês de Agosto de 2017), verificando-se que, até ao mês de Maio de 2021 se venceram sucessivamente novas contribuições que não foram pagas (cfr. Doc. 16 junto com o Parecer da Sr.ª Administradora da Insolvência).

16- O incumprimento perante a Autoridade Tributária remonta a 20/04/2018 (cfr. Doc. 14 junto com o Parecer da Sr.ª Administradora da Insolvência).

17- O prédio urbano descrito na CRP sob o n.º ...1, encontra-se registado desde 14.12.2010 a favor do Fundo Imobiliário de Apoio às Empresas, gerido pelo C..., S.A., imóvel objeto do contrato de arrendamento celebrado em 28.05.2015 entre a C... e a insolvente, sendo aí explorada a unidade hoteleira D..., encerrado desde Outubro de 2020, cfr. doc. 13 junto ao parecer da A.I.

18- Resulta do artigo 13.º da reclamação de créditos apresentada pelo Fundo Imobiliário Especial de Apoio às Empresas (FIEAE), representado pelo C..., S.A. que a sociedade Insolvente “(…) deixou de cumprir com a obrigação pecuniária do pagamento pontual das rendas nos termos assumidos no referido contrato, não tendo procedido – para além de um valor residual proveniente do mês de janeiro de 2018 – à liquidação das rendas vencidas a partir do mês de setembro de 2018 (…)” – cfr. Doc. 15 junto com o Parecer da Sr.ª Administradora da Insolvência .

19- Da reclamação de créditos apresentada pelo FIEAE resulta que, com exceção de dois montantes pagos, respetivamente, em Janeiro de 2019 e Maio de 2019, a sociedade Insolvente nada mais pagou a título de rendas a partir do mês de Junho de 2019 (cfr. artº 14º).

20- Em Março de 2018 já se verificava o incumprimento generalizado, nos últimos seis meses, de contribuições para a Segurança Social – dívida que, perante essa entidade e nessa data, ascendia já a, pelo menos, 31.261,53€ (cfr. Doc. 16 junto com o Parecer da Sr.ª Administradora da Insolvência).

21- Verificou-se também o incumprimento da obrigação de prestação de contas e respetivo depósito junto da conservatória do registo comercial desde o ano de 2017.

22 - As contas relativas aos anos de 2017 e 2018 apenas foram depositadas em 02/03/2021 (cfr. Doc. 6 do requerimento inicial).

23- As IES relativas aos exercícios de 2017 e 2018 foram entregues, respetivamente, em 24/02/2021 e 26/02/2021 e a IES relativa ao exercício de 2019 foi entregue em 13/04/2021, ou seja, na data em que a sociedade Devedora se apresentou a PER (cfr. Doc. 7 do requerimento inicial).


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B.2- Análise dos fundamentos do recurso

Está nele em causa, em primeiro lugar, a questão de saber se deve haver lugar à requerida modificação da matéria de facto.

Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto - estabelece o artigo 640.º, n.º 1, do CPC -, “deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas”.

E, quando as provas tenham sido gravadas, tem ainda o ónus de indicar com exatidão as passagens da gravação em que funda a sua discordância, sem prejuízo de pode proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes (artigo 640º, nº 2, al. a), do CPC).

São conhecidas as razões destas exigências: por um lado, pretende-se facultar à parte contrária o pleno exercício do direito ao contraditório; e, por outro, identificar com rigor o âmbito do recurso, pois que, por regra, o tribunal a quem o mesmo é dirigido não pode conhecer nem das pretensões de outros sujeitos processuais que não os recorrentes, nem pode também conhecer de questões que estes últimos não lhe colocaram e que não sejam de conhecimento oficioso. E isso também no plano da matéria de facto, embora aqui, depois de assegurado o referido pressuposto, a Relação deva “alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa” (artigo 662.º, n.º 1, do CPC). Mas esta intervenção oficiosa não invalida a regra que começámos por enunciar e que é a de que o tribunal de recurso não deve, em princípio, conhecer de questões que não lhe sejam colocadas, mesmo no plano da matéria de facto, sob pena de violação do princípio do dispositivo[2].

Mas não só por respeito a este princípio se exige o cumprimento dos apontados ónus. É também em nome do princípio da cooperação.

Com efeito, estando “os magistrados, os mandatários judiciais e as próprias partes, todos, obrigados a “cooperar entre si, concorrendo para se obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio” (artigo 7.º, n.º 1, do CPC), mal se perceberia que, neste domínio, algum desses intervenientes ficasse dispensado de semelhante dever. Tal como seria incompreensível que o mesmo dever fosse entendido, a este respeito, em termos estritamente formais.

De resto, no que às partes concerne, não se trata só de um dever. As partes têm a obrigação, mas, simultaneamente, o direito de concorrer ativamente para a resolução das causas judiciais em que estão envolvidas, de modo juridicamente válido e justo. O que implica o livre, mas ao mesmo tempo responsável, exercício desse direito. E, assim, se está vedado ao juiz limitar ou excluir esse direito a pretexto de interpretações meramente formais, também às partes está vedado exercê-lo em termos juridicamente desconformes. Também aqui se exige, no fundo, que as partes atuem de boa-fé, tanto perante o tribunal, como perante a parte contrária, permitindo a esta um contraditório pleno e sem ambiguidades. O que pode ser posto em causa sem a observância dos citados ónus.

Assim, a obrigatoriedade de especificação concreta quer dos pontos de facto, quer dos meios de prova, não se basta com uma mera alegação difusa ou genérica, em tais aspetos. É necessário que o impugnante individualize o objeto concreto da sua discordância, motivando-a, criticamente, em razão da prova produzida a esse específico respeito e, se for caso disso, indicando, com exatidão as passagens da gravação em que funda a sua discordância, sem prejuízo da transcrição dos excertos que considere relevantes.

Ora, tendo presentes estas exigências, o que verificamos, no caso presente, é que os Apelantes não lhes deram integral cumprimento.

Assim, por exemplo, especificaram nas conclusões do recurso os concretos pontos de facto que consideram incorretamente julgados [cls. J) e K)], mas já não fizeram essa especificação no que aos artigos da sua oposição diz respeito, na motivação do recurso.

Por outro lado, a motivação que apresentaram para a alteração daquela matéria de facto nas suas conclusões foi aquela que foi indicada pelo Tribunal recorrido [al. I)] e não, como era suposto, a sua, apta a pôr em causa a primeira.

Acresce que o único meio de prova que especificaram na sua motivação do recurso, com respeito pelas regras antes transcritas, foi o depoimento da Administradora de Insolvência, cuja transcrição parcial realizaram. Nenhum outro depoimento vem enquadrado por tal transcrição ou indicação da exata passagem das gravações em que fundam o respetivo recurso. É certo que os Apelantes se queixam da deficiência da gravação. Porém, como decidiu, e bem, o Tribunal recorrido, não arguiram essa falta na altura própria, sendo certo que aquele mesmo Tribunal refere que “as gravações encontram-se disponíveis e são inteligíveis”. Assim, pois, não se podem considerar dispensados os Apelantes dos aludidos ónus. Até porque, num outro plano, que é o da prova documental, nenhum concreto documento referenciaram em abono da sua tese, no sentido de ver modificada a matéria de facto, a não ser, genericamente, o parecer da Administradora de Insolvência. Limitaram-se, em tudo o mais, a alegar que os documentos juntos aos autos ou a prova documental produzida deveria ter conduzido a um distinto resultado probatório.

Ora, como vimos, o impugnante da matéria de facto não pode limitar-se a generalidades, mesmo em relação aos meios de prova. Tem o ónus de especificar, em relação a cada facto, ou pelo menos a cada temática, qual ou quais os meios de prova concretos que confirmam o erro de julgamento e a necessidade de o eliminar com outra solução específica.

Deste modo, pois, não tendo os Apelantes cumprido tal ónus, já tenderíamos a concluir, como concluímos, que a modificação da matéria de facto pelos mesmos requerida não pode ter lugar.

De qualquer maneira, mesmo que assim não fosse, certo é que o resultado alcançado a partir da análise dos elementos de prova concretizados pelos Apelantes é o mesmo; ou seja, é inviável a alteração dessa matéria de facto a partir, apenas, do testemunho da Administradora de Insolvência, CC, e do parecer pela mesma emitido.

Senão vejamos:

Baseando-nos na concretização inserta nas als. J) e K), das conclusões do recurso, verificamos que estão em causa os factos elencados nos artigos 23.º, 24.º, 26.º, 27.º, 29.º a 50.º, 54.º a 56.º, 64.º a 129.º, 143.º a 163.º, 169.º a 181.º e 188.º, todos da Oposição apresentada pelos Apelantes, que estes querem ver julgados demonstrados. Por contraposição, pretendem que sejam julgados não provados os factos constantes dos pontos 15, 16 e 18 a 24, do capítulo dos factos provados.

Ou seja, em relação àqueles primeiros factos, os Apelantes, na síntese por eles realizada, sustentam que:

“a) [O Requerido] Tentou concluir as obras no hotel e abrir a exploração do hotel - que ocorreu em Junho de 2019;

b) Não logrou licenciar as instalações, por manifesta falta de colaboração da Requerida[3];

c) No único período em que esteve a trabalhar com alguma normalidade, a Insolvente teve um resultado líquido positivo;

d) A pandemia Covid-19 veio a tornar mais complexa a execução do plano inicialmente delineado e supra exposto;

e) A Gerência logrou obter propostas concretas que visam concluir o plano por si delineado;

f) Facto que não se concretizou pois a decisão de liquidação da sociedade ditou esta impossibilidade jurídica;

g) Em sede de plano de Insolvência a Insolvente propôs-se a adquirir o imóvel para executar o plano por si delineado.

h) Para este efeito, a Gerência reiterou o seu compromisso de dotar a sociedade dos meios financeiros para a execução do plano de Insolvência apresentado em Assembleia de credores.

i) Até â declaração de Insolvência, a Insolvente celebrou acordos com os seus credores, tendo, nesse âmbito, cumprido os acordos celebrados com a Autoridade Tributária.

j) As contas não foram apresentadas em momento anterior apenas porque, em 2018 existiu uma desconformidade que determinou esse impedimento, cuja resolução não estava no seu poder, mas sim da Autoridade Tributária.

k) Quando logrou obter uma resolução da desconformidade, apresentou as IES em falta.

l) Pese embora todas as dificuldades, desde o ano de 2018 que não se verifica uma deterioração da situação da Insolvente.

m) A insolvente teve actividade, foi efectuando pagamentos, não se verificando uma falta de pagamentos generalizada, até ao momento da sua apresentação a um Processo Especial de Revitalização.

n) Os sócios da Insolvente (que se interligam com a Gerência) procuraram sempre dotar a sociedade dos meios financeiros para executar o seu plano e liquidar as suas dívidas” (artigo 188.º da oposição).

Estão, assim, em causa factos relativos à vida societária da insolvente antes de entrar em estado de insolvência e factos posteriores até à declaração judicial desse estado.

Acontece que a Administradora de Insolvência só entrou em funções depois desta última declaração. E tudo o que referiu a esse propósito foi o que colheu da documentação que consultou e do juízo que a esse propósito formou. Nessa medida, o seu testemunho a respeito da vida desta sociedade até à declaração de insolvência é um conhecimento indireto sem grande relevo para a demonstração dos factos alegados pelos Apelantes, a esse propósito.

Acresce que o Apelante apenas foi afetado pela qualificação desta insolvência, não por a ter criado, ou seja, por ter gerado a situação de insolvência da sociedade por si gerida, mas por ter retardado a apresentação da mesma em juízo para essa finalidade.

Assim, pois, toda a factualidade atinente à gestão da insolvente até a mesma entrar nesse estado é totalmente irrelevante para a decisão a tomar neste incidente.

Relevante seria a factualidade relativa ao atraso da apresentação da A..., Ldª, à insolvência. Designadamente, os acordos que os Apelantes referem terem sido celebrados com vista a mitigar os efeitos das dívidas já vencidas, por exemplo, ao Estado.

A esse respeito, porém, a Administradora de Insolvência, embora tivesse aludido a esses acordos (superficialmente), disse claramente que não sabia se os mesmos tinham sido cumpridos. O que se reconduz, no fundo, à ignorância a respeito dos principais efeitos desses acordos, que aqui poderiam relevar.

Neste contexto, assim, e não tendo sido, como vimos, especificada qualquer outra prova para a demonstração de tais factos, os mesmos nunca poderiam ser julgados demonstrados. Tal como nenhuma outra prova especifica foi invocada para julgar não provados os factos constantes da sentença recorrida, que foram impugnados.

Quer isto dizer, em resumo, que não há razões para modificar a matéria de facto estabelecida nessa sentença.

Esclarecida esta questão, é altura, então, de decidir se esta insolvência deve ser qualificada como fortuita e, na negativa, sendo qualificada como culposa, quais as consequências jurídicas e patrimoniais daí decorrentes.

Comecemos por analisar a primeira problemática.

Depois de estabelecer que “a insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da atuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência” (n.º 1), prescreve o artigo 186.º, n.º 3, do CIRE, o seguinte:

“Presume-se a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular tenham incumprido:

a) O dever de requerer a declaração de insolvência;

b) A obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submetê-las à devida fiscalização ou de as depositar na conservatória do registo comercial”.

Se atentarmos na letra da lei, que constitui o ponto de partida e, em simultâneo, o limite da interpretação[4], facilmente verificamos que na mesma não se refere que, com as condutas assinaladas, se presume a insolvência culposa, mas “a existência de culpa grave”.

Por conseguinte, é desta última realidade e não da primeira que se trata.

Efetivamente, decorre do disposto no artigo 349.º do Código Civil que as “presunções são ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido”.

Traduzem-se, portanto, numa correlação entre dois factos em que um (o conhecido) serve de meio para a demonstração do outro (o desconhecido).

Trata-se, porém, sempre de factos; ou seja, de realidades empíricas apreensíveis pelos sentidos[5]

Ora, a considerar-se que a referida presunção seria de insolvência, o que se estaria a relacionar não seriam dois factos, mas um facto/omissão e uma situação normativamente definida e qualificada (a insolvência culposa). O que não tem apoio legal.

Aliás, mesmo em relação ao n.º 2 do artigo 186.º do CIRE, há quem duvide que estejamos perante verdadeiras presunções. “Na verdade, o que o legislador faz corresponder à prova da ocorrência de determinados factos não é a ilação de que um outro facto (fenómeno ou acontecimento da realidade empírico-sensível) ocorreu, mas a valoração normativa da conduta que esses factos integram. Neste sentido, mais do que perante presunções inilidíveis, estaríamos perante a enunciação legal (não importa aqui averiguar se mediante enunciação taxativa ou concretizações exemplificativas) de situações típicas de insolvência culposa”.

“De todo o modo, numa ou noutra perspectiva (presunção inilidível de culpa, factos-índice ou tipos secundários de insolvência culposa), o legislador prescinde de uma autónoma apreciação judicial acerca da existência de culpa como requisito da adopção das medidas restritivas previstas no artigo 189.º do CIRE contra os administradores julgados responsáveis pela insolvência. Independentemente da opção por um ou outro entendimento, a verdade é que, no caso das várias alíneas deste nº 2, uma vez demonstrado o facto nelas enunciado, fica, desde logo, estabelecido o juízo normativo de culpa do administrador, sem necessidade de demonstração do nexo causal entre a omissão dos deveres constantes das diversas alíneas do n.º 2 e a situação de insolvência ou o seu agravamento”[6].

Mas, já não assim no preceito que estamos a analisar (n.º 3 do artigo 186.º, do CIRE). Nele são contempladas omissões que conduzem à presunção de culpa grave do administrador ou gerente que incumpriu algum dos deveres aí estabelecidos; ou seja, como vimos, o dever de requerer a declaração de insolvência e a obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submetê-las à devida fiscalização ou de as depositar na conservatória do registo comercial. Trata-se, portanto, de presunções juris tantum, ilidíveis por prova contrária (artigo 350.º, n.º 2, do Código Civil). Ou seja, uma vez verificada a omissão de algum dos citados deveres, a lei faz presumir a culpa grave do administrador ou gerente. Mas porque a culpa grave, assim presumida, por si só, não é suficiente para qualificar a insolvência como culposa, por faltar um dos requisitos previstos no nº 1 do citado artigo 186º, necessário se torna ainda demonstrar o nexo de causalidade entre a dita omissão culposa e a criação ou o agravamento da situação de insolvência. Esta é a orientação dominante na doutrina e jurisprudência[7].

Não ignoramos que este entendimento não é uniforme[8]. Mas, tendo em conta as razões já afloradas, cremos que é o correto. Por isso, também neste caso o adotaremos.

Está em causa, então, a questão de saber se, na situação em apreço, o gerente da insolvente, AA, incumpriu os deveres previstos no artigo 186.º, n.º 3, do CIRE, e se, com isso, criou ou agravou a situação de insolvência.

Comecemos pela violação do dever de apresentação tempestiva à insolvência.

O devedor, prescreve o artigo 18.º, n.º 1, do CIRE, tem a obrigação de “requerer a declaração da sua insolvência dentro dos 30 dias seguintes à data do conhecimento da situação de insolvência”, tal qual ela é legalmente descrita; ou seja, quando se encontrar impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas (artigo 3.º), ou à data em que devesse conhecer essa situação. Sendo que, “[q]uando o devedor seja titular de uma empresa, presume-se de forma inilidível o conhecimento da situação de insolvência decorridos pelo menos três meses sobre o incumprimento generalizado de obrigações de algum dos tipos referidos na alínea g) do n.º 1 do artigo 20.º” (n.º 3). Isto é, “Incumprimento generalizado, nos últimos seis meses, de dívidas de algum dos seguintes tipos: i) Tributárias; ii) De contribuições e quotizações para a segurança social; iii) Dívidas emergentes de contrato de trabalho, ou da violação ou cessação deste contrato; iv) Rendas de qualquer tipo de locação, incluindo financeira, prestações do preço da compra ou de empréstimo garantido pela respectiva hipoteca, relativamente a local em que o devedor realize a sua actividade ou tenha a sua sede ou residência”.

Ora, no caso, está provado que “[e]m Março de 2018 já se verificava o incumprimento generalizado, nos últimos seis meses, de contribuições para a Segurança Social”. Aliás, como também se provou, o incumprimento perante a Autoridade Tributária remonta também a 20/04/2018. E, quanto às rendas do imóvel em que desenvolvia a sua atividade (a unidade hoteleira D...), alegou o respetivo senhorio que a Insolvente não procedeu – para além de um valor residual proveniente do mês de janeiro de 2018 – à liquidação das rendas vencidas a partir do mês de setembro de 2018, bem como, com exceção dos montantes pagos, respetivamente, em Janeiro de 2019 e Maio de 2019, nada mais pagou, a título de rendas, a partir do mês de Junho de 2019, sendo que tal unidade hoteleira está encerrada desde outubro de 2020.

Por outro lado, igualmente se provou que o incumprimento da sociedade Insolvente perante o Instituto da Segurança Social, I.P., se iniciou em 20/09/2017 (relativa a contribuição referente ao mês de Agosto de 2017), mas, depois disso e até ao mês de Maio de 2021, venceram, sucessivamente, novas contribuições que não foram pagas. Isto para além do restante passivo. Passivo esse que, ao todo, no PER, foi quantificado, em créditos reconhecidos, num valor de 5.595.923,67€.

Assim, pois, é inevitável a conclusão de que não só o gerente da insolvente, AA, quando foi requerido o PER (13/04/2021), há muito tinha conhecimento da situação de insolvência da sociedade, A..., Ldª, como este atraso agravou essa situação. Tanto mais que, repetimos, a unidade hoteleira onde a insolvente desenvolvia a sua atividade está encerrada desde Outubro de 2020.

Daí que esta insolvência não possa deixar de ser qualificada como culposa, nesta base.

Passemos à falta de depósito das contas.

Já vimos que a infração desse dever, quando originador da situação de insolvência ou do agravamento de tal situação, constitui presunção de culpa grave e, nessa medida, é suscetível de contribuir para a qualificação da insolvência.

Por outro lado, também sabemos que as sociedades comerciais - como é o caso da insolvente - estão obrigadas não só a elaborar contas, como a prestá-las e registá-las (artigos 18°,4° § e 29° do Código Comercial, artigo 65° do Código das Sociedades Comerciais, artigos 3°, nº 1, al. n), e 15°, nº 1, do Código de Registo Comercial).

Trata-se de obrigações que servem os interesses dessas sociedades, mas, em simultâneo, protegem os interesses dos seus credores, do Estado e do público em geral. Por isso, pelo menos nalguma medida, são também razões de ordem pública que justificam semelhantes obrigações[9]. E daí a relevância da sua infração no regime insolvencial.

Mas, não basta que essa infração se concretize. É necessário ainda que ela seja causal da insolvência ou do seu agravamento, para ter relevância na punição dos legais representantes das sociedades.

Ora, o que verificamos, no caso presente, é que não é possível estabelecer essa ligação. Isto porque não se provou qualquer nexo de imputação objetiva entre a oportuna falta de elaboração e depósito das contas pela devedora e o estado de insolvência a que a mesma chegou.

Daí que a qualificação desta insolvência não possa ser obtida por esta via.

Resta, então, determinar quais as consequências devidas pela qualificação da insolvência como culposa, em resultado da não apresentação da devedora à insolvência, em tempo oportuno.

Neste aspeto, a sentença recorrida considerou afetado pela referida qualificação o gerente da insolvente, AA, e inibiu-o de administrar patrimónios de terceiros, do exercício do comércio, bem como de ocupar qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa, pelo período de dois anos.

Por outro lado, determinou ainda a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente por ele detidos, condenando-o a restituir os bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos.

E, por fim, condenou-o igualmente “a pagar aos credores o montante correspondente ao total dos créditos reconhecidos na lista apresentada pela A.I. nos termos do artº 129º do CIRE, que não forem pagos pelo produto da liquidação do activo”.

Ora, se as medidas inibitórias referenciadas não podem ser alteradas, por se situarem no seu limite mínimo e serem uma consequência inevitável da aludida qualificação, o mesmo se passando com a referida perda e restituição de bens e direitos (artigo 189.º, n.º 2, als. b), c) e d), do n.º 2, do CIRE), já não podemos acompanhar a sentença recorrida na parte em que condenou o Requerido, AA, a pagar aos credores o montante correspondente ao total dos créditos reconhecidos na lista apresentada pela Administradora da Insolvência, que não forem pagos pelo produto da liquidação do ativo.

Efetivamente, resulta hoje da lei que essa condenação não pode ser acrítica e definida apenas em função dos créditos não satisfeitos. O juiz, na verdade, deve “condenar as pessoas afetadas a indemnizarem os credores do devedor declarado insolvente até ao montante máximo dos créditos não satisfeitos, considerando as forças dos respetivos patrimónios”, mas, ao aplicar essa injunção, deve também “fixar o valor das indemnizações devidas ou, caso tal não seja possível em virtude de o tribunal não dispor dos elementos necessários para calcular o montante dos prejuízos sofridos, os critérios a utilizar para a sua quantificação, a efetuar em liquidação de sentença” – artigo 189.º, n.º 2 al. e) e n.º 4, do CIRE, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 9/2022, de 11/01.

Sinal, portanto, de que os créditos não satisfeitos não é o único critério a observar.

Como defende Catarina Serra[10], depois desta alteração legislativa, “o montante dos créditos não satisfeitos é só o montante máximo da indemnização, nos termos da al. e) do n.º 2, do art. 189.º. A preposição “até”, como qualquer outra preposição essencial, é uma unidade linguística dependente de outra e serve, justamente, para estabelecer, de forma explicita ou implícita, uma ligação entre dois termos.

O montante dos créditos não satisfeitos deixa de poder ser utilizado como ponto de partida ou como padrão para o cálculo da indemnização e o (novo) critério disponibilizado no art. 189.º, n.º 4, passa a ser o montante dos prejuízos sofridos.

Ao montante dos créditos não satisfeitos resta imputar uma única função: a de limitar o montante da indemnização, o que significa que em nenhum caso (seja qual for o montante dos danos) a indemnização poderá ser superior àquele montante.

Com isto o regime da responsabilidade por insolvência culposa perde grande parte da sua dimensão punitiva ou sancionatória (em que havia um espaço de responsabilidade sem causalidade) e (re)aproxima-se do regime geral da responsabilidade civil, com um desvio, atendendo à fixação de um (do tal) máximo. Traduz-se isto, em suma, na máxima de que devem ser indemnizados (só) os danos (art.483.º do CC) mas não necessariamente todos os danos”. Ou seja – acrescenta a mesma Autora mais adiante[11] – “[o] fator que pode e deve ser ponderado e tem efeitos sensíveis na modelação do valor da indemnização, imprimindo-lhe proporcionalidade, é um único: a contribuição causal de cada sujeito para a ocorrência dos danos/medida da participação efetiva de cada um”.

Ora, revertendo com estas noções para o caso presente e sabendo nós que esta insolvência, como vimos, só foi qualificada como culposa por o Requerido não ter apresentado, oportunamente, a devedora à insolvência, só a partir desse retardamento o mesmo poderia ser responsabilizado pelos créditos posteriormente vencidos e não todos os outros. Mas porque também, como vimos, só os factos passados nos três anteriores ao início do processo de insolvência (que se iniciou com o PER, instaurado no dia 13/04/2021) relevam para a qualificação da mesma como culposa, a responsabilidade do Requerido, neste caso concreto, não pode exceder os créditos vencidos antes do dia 13/04/2018. Isto, embora já antes, em Março do mesmo ano, a insolvente se encontrasse numa situação de incumprimento generalizado das contribuições para a Segurança Social.

Em resumo, portanto, a sentença recorrida é de confirmar, exceto quanto a este aspeto, devendo o Requerido ser condenado a pagar aos credores da insolvente o montante correspondente ao total dos créditos vencidos após o dia 13/04/2018 e reconhecidos na lista apresentada pela Administradora de Insolvência, que não forem pagos pelo produto da liquidação do ativo. Neste segmento, procede a Apelação, mas, improcede em tudo o mais.


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IV - Dispositivo

Pelas razões expostas:
a) Concede-se parcial provimento ao presente recurso e, consequentemente, revogando parcialmente a sentença recorrida, condena-se o Requerido, AA, a pagar aos credores da insolvente o montante correspondente ao total dos créditos vencidos após o dia 13/04/2018 e reconhecidos na lista apresentada pela Administradora de Insolvência, que não forem pagos pelo produto da liquidação do ativo.
b) Quanto ao mais, nega-se provimento ao presente recurso e confirma-se o decidido na sentença recorrida.


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- Em função deste resultado, as custas deste recurso serão suportadas pelos Apelantes e Apelada/Requerente deste incidente, na proporção do respetivo decaimento – artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC.


Porto , 18/6/2024
João Diogo Rodrigues;
Rui Moreira;
Fernando Vilares Ferreira.

____________________________
[1] Neste sentido, Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2ª edição, Quid Juris, pág.131 e, na jurisprudência, por exemplo, Ac. RC de 27/07/2010, Processo n.º 255/10.2T2AVR-B.C1, consultável em www.dgsi.pt.
[2] Como se concluiu no sumário do Ac. STJ de 19/02/2015, Proc. 299/05.6TBMGD.P2.S1, consultável em www.dgsi.pt., “A exigência da especificação dos concretos pontos de facto que se pretendem impugnar com as conclusões sobre a decisão a proferir nesse domínio tem por função delimitar o objeto do recurso sobre a impugnação da decisão de facto”.
[3] Cremos que há lapso, pois os Apelantes parecem querer imputar responsabilidades à Requerente deste incidente.
[4] Cfr. Neste sentido, Tatiana Guerra de Almeida, Comentário ao Código Civil, Parte Geral, UCP, pág. 48.
[5] Tais como “os fenómenos da natureza, as manifestações concretas dos seres vivos, incluindo as atuações dos seres humanos, sem excluir as do foro interno” - Ac. STJ de 23/04/2009, Processo n.º 674/04.3TBCMN.S1, consultável em www.dgsi.pt.
[6] Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 570/2008, Processo n.º 217/08, de 26/11/2008, consultável em www.tribunalconstitucional.pt.
[7] Neste sentido, Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2ª Edição, Quid Juris, págs. 719 e 720, Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito da Insolvência, 2013, 5ª edição, Almedina, pág. 248, Alexandre Soveral Martins, Um Curso de Direito da Insolvência, Vol. I, 3ª edição revista e atualizada, Almedina, pág. 517, e, na jurisprudência, entre muitos outros, Ac. STJ de 06/10/2011, Processo n.º 46/07.8TBSVC-0.L1.S1, Ac. STJ de 07/06/2022, Processo n.º 4825/20.2T8CBR-A.C1.S1, Ac. RP de 05/06/2012, Processo n.º 363/10.0TYVNG-A.P1, Ac. RLx de 18/04/2013, Processo n.º 1027/10.0TYLSB-A.L1-2, Ac. RG de 02/11/2017, Processo n.º 32/14.1TBVMS-A.G1, Ac. RG de 11/05/2023, Processo n.º 870/22.1T8GMR-A.G1, consultáveis em www.dgsi.pt.
[8] Neste sentido Ac. RC de 22/05/2012, Processo n.º 1053/10.9TJCBR-K.C1, consultável em www.dgsi.pt e citado em nota de rodapé, do texto escrito por José Manuel Branco (evolução da figura), consultável na Revista de Direito da Insolvência, n.º 0, 2016, Almedina, pág.16.
[9] Cfr. sobre esta matéria, por exemplo, António Menezes Cordeiro, Direito Comercial, 4ª edição, 2016, Almedina, págs. 405 e segts.
[10] Revista Julgar, 48, setembro-dezembro de 2022, Almedina, pág. 26 a 28.
[11] Pág. 29.