Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
| ||
Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | MARIA ERMELINDA CARNEIRO | ||
Descritores: | PROCESSO PENAL GARANTIAS DE DEFESA DO ARGUIDO NULIDADE DA SENTENÇA DECLARAÇÕES DO ARGUIDO NO 1º INTERROGATÓRIO VALORAÇÃO LEITURA AUDIÇÃO | ||
Nº do Documento: | RP20180627370/16.9PEGDM.P1 | ||
Data do Acordão: | 06/27/2018 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | REC PENAL | ||
Decisão: | PARCIALMENTE PROVIDO | ||
Indicações Eventuais: | 1ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 29/2018, FLS 100-118) | ||
Área Temática: | . | ||
Sumário: | I - As declarações do arguido prestadas no 1.º interrogatório judicial têm que ser lidas ou ouvidas em audiência de julgamento para que possam ser valoradas e utilizadas na formação da convicção do tribunal. II - A valoração de tais declarações, apesar da omissão da sua leitura ou audição, constitui prova proibida, inquinando a sentença, nos termos do artigo 122.º71 C P Penal, por violação dos artigos 355.º e 357.º do mesmo diploma legal. III - Devendo, assim, ser proferida nova sentença, sem que se valore as ditas declarações. | ||
Reclamações: | |||
Decisão Texto Integral: | Processo número 370/16.9PEGDM.P1 Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo Local Criminal de Gondomar – Juiz 1 Acordam em conferência na Primeira Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto: I – Relatório: No processo comum singular supra identificado em que é arguido, B..., após realização da audiência de julgamento, foi proferida sentença, onde se decidiu nos seguintes termos (transcrição parcial): «Pelo exposto, julgo totalmente procedente a acusação pública e, em consequência, condeno o arguido B... pelo cometimento, como autor material, de um crime de violência doméstica, previsto e punível pelo artigo 152º, n.ºs 1, b) e 2 do Código Penal, na pena de 2 anos e 8 meses de prisão, efetiva. Condeno o arguido ao pagamento de uma reparação a C... pelos prejuízos sofridos no montante de € 3.500,00. (…)» Inconformado com a decisão proferida, dela recorreu o arguido nos termos que constam a fls. 772 a 783, finalizando a sua motivação do seguinte modo (transcrição): «Conclusões I. As declarações do arguido prestadas perante magistrado judicial, não foram reproduzidas ou lidas como o n.º 9 do art.356.º do C.P.P. impõe, sob pena de nulidade. II. Também da fundamentação da douta sentença recorrida não resulta que as declarações prestadas pelo arguido perante magistrado judicial tenham sido lidas em audiência de julgamento e que qualquer testemunha tenha sido confrontada com elas. III. Ora, prescreve o art.357.º, n.ºs 1 a 3, do Código de Processo Penal, que a valoração das declarações prestadas pelo arguido devidamente informado nos termos do art.141.º, n.º4, alínea b), do mesmo Código, exige a reprodução ou leitura das mesmas em audiência de julgamento, para cumprimento do contraditório e embora de algum modo limitado, dos princípios da imediação e da oralidade. IV. Aliás o n.º2 do artigo 357.º do CPP consigna mesmo que não valem como confissão nos termos e para os efeitos do disposto do art.344.º, as declarações anteriormente prestadas pelo arguido «reproduzidas ou lidas em audiência» - pois é prova sujeita a livre apreciação em face do disposto no art.141.º, n.º4, alínea b), do mesmo Código. V. Assim, não tendo sido lidas em audiência de julgamento as declarações prestadas pelo arguido no inquérito, a valoração das suas declarações constitui valoração proibida de prova, nos termos do art.355.º do C.P.P. (neste sentido, veja-se por exemplo Acórdão da Relação de Coimbra a 4/02/2015, Processo 211/11.1GACBL.C1, em que foi relator o Sr. Desembargador Dr. Orlando Gonçalves). VI. Tornando assim a douta sentença proferida nula, nos termos do artigo 122º do CPP. VII. Mas ainda que V.Exas assim não entendam não pode o Recorrente conformar-se com o quantum da pena que lhe aplicada. VIII. Sem querermos descurar a gravidade do crime de violência doméstica, a verdade é que o período de convivência entre arguido e ofendida foi bastante curto, pois que a convivência marital durou apenas alguns meses. IX. Por outro lado, a ofendida nunca recorreu a tratamento hospitalar ou médico, nem nunca apresentou qualquer queixa. X. Sendo que no nosso sistema jurídico a pena é encarada enquanto instrumento de prevenção, mas uma prevenção, desde logo, focada no reforço da confiança da comunidade na validade e na força da vigência das suas normas de tutela de bens jurídicos, XI. E, portanto, perspetivada numa vertente positiva – prevenção de integração – visando em última análise a restauração da paz jurídica. XII. Por outro lado, e porque a pena repousa substancialmente num duplo fundamento, a culpa do agente constitui o seu pressuposto necessário e o seu limite inultrapassável. XIII. Por isso mesmo, dispõe o artigo 71.º, nº 1 do Código Penal que “A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”. XIV. Ou seja, dentro dos limites consentidos pela prevenção geral positiva ou de integração, atuam as exigências de prevenção especial, que vão determinar, por fim, a medida da pena. XV. Ora, o critério decisivo das exigências de prevenção especial será a necessidade de socialização do agente, sem que nunca para isso, se ultrapasse o limite da sua culpa. XVI. Como facilmente se conclui da leitura da sentença ora em crise o argumento fundamental para aplicação da pena foi a satisfação de uma das finalidades das penas, qual seja a da prevenção geral. XVII. É um facto que a violência doméstica é um crime muito comum na nossa sociedade e que importa combate-lo fazendo ver aos seus autores que o mesmo não é tolerado pela sociedade. XVIII. O que já não podemos é fazer de uma situação, que salvo o devido respeito não revela a gravidades de tantas outras que vemos chegar aos nossos tribunais (veja-se por exemplo que a ofendida declara que apelidava o arguido de “boi e corno”, bem como tentou acertar-lhe com um tijolo), um exemplo para a sociedade. XIX. Nem muito menos justificar a pena com um juízo de prognose claramente desfavorável ao afirmar que os fatores de risco se mantêm, não quanto à ofendida, mas quanto a hipotéticas vítimas. XX. Salvo o devido respeito, subjaz na decisão recorrida um efeito de defesa social através da segregação do recorrente, como se o julgador procurasse atingir a sua neutralização social duradoura. XXI. A comunidade efetivamente necessita de sentir que este tipo de criminalidade é fortemente punido, porém necessita também de sentir que a pena aplicada é justa, proporcional e adequada ao caso concreto. XXII. Como bem saberão V. Exas., uma conceção negativa da prevenção especial ultrapassa qualquer limite axiológico inerente a um Estado de Direito Democrático, e subverte-o. XXIII. No caso concreto punir o recorrente com uma pena de prisão efetiva, terá um efeito mais nocivo e menos eficiente ao nível das necessidades de prevenção do que se lhe fosse aplicada uma pena inferior e sempre suspensa na sua execução, XXIV. Acreditando que a severa censura do facto e a ameaça da pena de prisão, são mais do que suficientes para afastar o recorrente da criminalidade e continuar plenamente inserido na sociedade de forma útil e produtiva. XXV. Sendo que também o facto de o arguido já ter antecedentes criminais, não pode servir como agravante, uma vez que se trata de crime de natureza diversa. XXVI. Entende o recorrente, por conseguinte, que a decisão recorrida deverá ser revogada no segmento decisório respeitante à pena de 2 anos e 8 meses de prisão, devendo o mesmo ser condenado numa pena mais próxima do seu limite mínimo, suspensa na sua execução, assim se respeitando as normas dos artigos 70.º, 71.º, n.º 1, 50, n.º 1 e 53.º, n.3, todos dos Código Penal. XXVII. Mas ainda que considerem V.Exas não ser de alterar a pena aplicada pelo tribunal a quo sempre se dira que o arguido recorrente está inserido profissionalmente e não há noticia da pratica de qualquer outro crime. XXVIII. São dois os pressupostos para a suspensão da execução da pena de prisão: um de ordem formal e que consiste em a pena de prisão não ser superior a 5 anos; e outro de ordem material, e que consiste em o tribunal concluir que, face à personalidade do arguido, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. XXIX. No caso, verifica-se o pressuposto de ordem formal: o arguido foi condenado numa pena de 2 anos e 8 meses de prisão. XXX. Quanto ao facto de existirem outras condenações, não pode ter como efeito automático o impedimento de uma suspensão. XXXI. Pelo que deverá a pena a aplicar ao arguido ser suspensa na sua execução, ainda que com regime de prova. Princípios e disposições legais violadas ou incorrectamente aplicadas: * Artigos 18.º e 32.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa; * Artigos 410.º, n.º 1 e 2, alínea a) e c), 412.º, n.º 3 e 4 do CPP; * Artigos 40.º, 50.º, 52.º, 53.º, 54.º, 70.º, 71.º, 72.º, 73.º e 77.ºdo Código Penal.». Admitido o recurso, o Ministério Público junto da primeira instância apresentou fundamentada resposta (fls. 705 a 709), na qual sustentou a manutenção do decidido. Nesta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu o douto parecer constante de fls. 716 a 717 no qual, considerando a existência da nulidade invocada pelo recorrente, pugnou pela parcial procedência do recurso. Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código Processo Penal nada foi acrescentado nos autos. Colhidos os vistos legais foram os autos submetidos a conferência. *** II – Fundamentação:Constitui jurisprudência pacífica dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na motivação apresentada (artigo 412º nº 1, in fine, do Código de Processo Penal), sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410.º, n.º 2, do mesmo diploma, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (Ac. do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R. I – A Série, de 28/12/1995). Vistas as conclusões do recurso, são as seguintes as questões colocadas: 1. nulidade da sentença; 2. medida da pena; 3. suspensão da sua execução * Cumpre apreciar e decidir:Vejamos, antes de mais, o que da sentença recorrida consta quanto aos factos provados e não provados, respetiva motivação e enquadramento jurídico-penal (transcrição): «Apreciada a prova e discutida a causa, resultaram provados os seguintes factos: C... manteve um relacionamento amoroso com o arguido B..., vivendo em comunhão de cama, mesa e habitação, como se de marido e mulher se tratassem, no período entre agosto de 2014 e outubro de 2015. Desse relacionamento resultou o nascimento de uma filha, D..., em 16-08-2015. C... tem ainda um outro filho, E..., nascido em 19-11-2008, fruto de uma anterior relação. O casal fixou residência na ..., ..., .º, em .... Desde o início do relacionamento que B... se revelou agressivo para com C..., agravado com o facto de consumir estupefacientes, designadamente “haxixe”. Passados cerca de dois meses de estarem juntos, em data não concretamente apurada, durante a tarde, quando ambos estavam sozinhos no quarto do casal, deitados na cama, começaram a discutir pelo facto de C..., naquele momento, não pretender ter relações sexuais com B.... Foi aí que, a dado momento, B... desferiu um pontapé em C..., atingindo-a nas costas, fazendo com que a mesma caísse da cama e, quando ela se levantou, desferiu-lhe várias bofetadas, atingindo-a na cara e puxou-lhe os cabelos. Seguidamente, B... derrubou-a da cama novamente e colocou-se em cima da mesma, com um joelho apoiado no pescoço daquela. Na sequência dessa agressão, C... ficou com um olho inchado e o pescoço vermelho, mas não recebeu tratamento médico e não apresentou queixa. No dia seguinte, C... decidiu abandonar a residência e foi residir com o seu filho E... para casa de uma amiga, sita no Bairro ..., em Vila Nova de Gaia, onde permaneceu até Janeiro de 2015. Nessa altura, C... descobriu que estava grávida e, após uma semana, depois de ter comunicado tal facto a B..., reconciliaram-se e voltaram a viver juntos na zona de ..., onde permaneceram cerca de um mês. Durante este período, quando ambos estavam sozinhos em casa ou nas imediações da mesma, em datas não concretamente apuradas, com uma frequência semanal, B... continuou a maltratar C..., por razões fúteis, nomeadamente por não estar de acordo com os alimentos que a declarante escolhia para confecionar ou porque um objeto estava fora do sítio. Com efeito, nessas ocasiões, B... apelidava-a de “puta, vaca, filha puta, és uma merda, não prestas”, ameaçava-a que lhe “ia dar na cara”, que lhe “ia foder os cornos” e desferia-lhe estalos, atingindo-a na cara, e murros, atingindo-a na cabeça. Nessas situações, com o objetivo de se defender, C... ripostava e tentava também agredir B..., mas raramente o conseguia fazer, devido à maior força física dele. Apesar do comportamento agressivo do companheiro, C... nunca recorreu a tratamento médico ou hospitalar, nem apresentou queixa. Após, C... voltou a separar-se de B... e foi residir para casa da sua mãe, sita na ..., ..., .º, em ..., onde permaneceu durante cerca de quatro meses. Durante esse período, quase todas as semanas, em datas não concretamente apuradas, B... enviava-lhe mensagens para telemóvel no âmbito das quais a ameaçava que a “ia agredir quando a encontrasse, que ia ver com quem andava, que ia para a porta do trabalho”, bem como a insultava de “puta, vaca, filha puta”. Posteriormente, acreditando nas promessas de B... de que iria alterar o seu comportamento e deixar de fumar “haxixe”, C... reconciliou-se mais uma vez com o mesmo, voltando a residir juntos em casa da mãe de C... até Outubro de 2015, altura em que foi expulso pela mãe de C... por insultos frequentes à companheira. No dia 26 de março de 2016, pelas 18:50 horas, C... encontrava-se no interior da residência juntamente com a sua filha e B... deslocou-se ali para visitar a filha que estava com gripe, dizendo a C... que a queria levar a passear. De imediato C... opôs-se e B... começou a falar mais alto e insultou-a chamando-a de “puta” e dizendo-lhe “és uma vaca”, após o que a empurrou contra a janela da sala com ambas as mãos, ao mesmo tempo que dizia “eu gosto muito de ti!”. Com receio das atitudes do mesmo e para se defender, C... empurrou-o para que ele saísse de sua casa. Na sequência dessas agressões C... ficou com as costas vermelhas mas não recebeu qualquer tratamento. Desde então, o arguido passou a rondar a casa de C... e a dirigir-lhe ameaças e insultos frequentes, chamando-lhe “puta e vaca” e dizendo-lhe “que ia acabar com a sua vida, que ia fazer tudo para lhe tirar a menina filha dos dois”. No dia 18 de outubro de 2016, pelas 11H55, nas instalações do Tribunal de Gondomar, após ser atendido pelo Senhor Procurador da República de turno na Secção de Coordenador das Secções de Gondomar do DIAP do Porto, B..., no hall de saída do tribunal, arremessou uma mesa metálica que se encontrava na entrada do Tribunal, dizendo em voz alta “que ia fazer diligências, que ninguém fazia nada e que a matava”, dirigindo-se a C.... Ao agir do modo acabado de descrever B... previu e quis agredir física e psicologicamente C..., tratando-a de modo desumano, maldoso e humilhante, de forma reiterada e habitual, sem existir motivo para tal, o que fez. Agiu o denunciado de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e penalmente punidas. Apesar de convocatórias escritas, deslocações das técnicas à residência e tentativas de contacto telefónico, mostrou-se inviável elaborar relatório social do arguido que sempre se manteve incontactável na morada do TIR. O arguido foi já condenado: • No âmbito do processo comum colectivo n.º 297/09.0GCOVR do juízo de instância criminal de Ovar-J2, por acórdão proferido em 08-10-2010 e transitado em julgado em 08-11-2010, na pena única de 2 anos e 10 meses de prisão suspensa na sua execução com regime de prova pela prática, em 31-05-2009, de um crime de furto simples e um crime de furto qualificado, pena entretanto extinta pelo decurso do prazo da suspensão sem motivos para a sua revogação; • No âmbito do processo comum colectivo n.º 2181/09.9PIPRT do 1º juízo criminal da Maia, por acórdão proferido em 21-06-2011 e transitado em julgado em 12-07-2011, na pena única de 3 anos e 4 meses de prisão efetiva pela prática, em 2009, de um crime de furto simples e dois crimes de furto qualificado; • No âmbito do processo comum singular n.º 8/09.0GAAMT do juízo criminal de Amarante, por sentença proferida em 20-03-2014 e transitada em julgado em 16-12-2014, na pena de 300 dias de multa à taxa diária de € 5,00 pela prática, em 12-05-2009, de um crime de furto simples. * Não resultou provado que desde que se separaram pela última vez o arguido B... passou a dizer mal de C... na rede social “facebook”, onde colocou uma fotografia da filha e dizia que C... “era uma má mãe, que lhe ia tirar a filha e ia para a televisão”. Outros factos por provar: não há. * MotivaçãoO Tribunal formou a sua convicção na apreciação crítica do conjunto da prova produzida em julgamento e constante dos autos. O arguido não compareceu à audiência de julgamento. Mas em inquérito, ouvido perante magistrado judicial e advertido de que as suas declarações poderiam ser posteriormente valoradas (cfr. fls. 218-219), admitiu ter agredido duas vezes a companheira: na primeira (pouco após o início do relacionamento) teria discutido com C..., dando-lhe um empurrão, e porque ela queira sair de casa sem arrumá-la, o arguido ter-lhe-ia desferido uma bofetada; na segunda, em ..., numa discussão, porque C... teria pegado num tijolo e lho teria atirado, o arguido, com medo de que ela o matasse, ter-lhe-ia desferido uma ou duas bofetadas. De todas as vezes que C... saiu de casa, quis o arguido fazer crer que foi por meros desentendimentos verbais, pese embora tenha assumido que a insultou de “puta” e “vaca” “uma vez ou duas” (sic). E negou alguma vez tê-la perseguido, só a procurou para saber da filha; negou também dizer mal dela no facebook. Contudo, não foi de todo este o cenário que resultou da demais prova. C... prestou um depoimento sério e credível, confirmando de forma segura as moradas conjugais, o período de relacionamento e as separações, o consumo de estupefacientes por parte do arguido nessa altura, a pouca influência que tal consumo tinha nas suas explosões de violência, os insultos de que era apelidada, as ameaças que lhe eram dirigidas, as agressões de que foi vítima, a frequência dessas situações, nos termos dados como provados. O depoimento de C... foi minucioso, recordava-se de cada um dos episódios acusados e não tentou de modo algum falsear a realidade que viveu, pois admitiu que ripostava ao arguido sempre que ele a insultava, chamando-lhe “boi” e “corno”, tal como admitiu uma vez ter tentado acertar-lhe com um tijolo numa dessas discussões. E esse depoimentos foi reforçado pelo da sua mãe, F..., que chegou a acolher a filha grávida da D... e com um hematoma na cabeça, queixando-se de ter sido agredida pelo arguido, e que quando o casal viveu em sua casa ouvia-o chamar a C... “vaca, filha da puta, não prestas”, frequentemente, de tal forma que o expulsou de sua casa. Assim, não foi uma ou duas vezes como pretendeu fazer crer o arguido; foram muitas, quer a sós com C..., quer perante terceiros. G..., atual companheiro de C..., chegou a ouvir, no início do seu relacionamento, insultos e ameaças dirigidos pelo arguido a C... via telefone, como “filha da puta, puta, vaca, vou-te matar, quando te apanhar na rua vou-te fazer pior do que já fiz”, bem como assistiu às constantes presenças do arguido à porta da casa da mãe de C..., insultando e ameaçando esta. E frisou, assim como C..., que esta situação só cessou porque o arguido deixou de conhecer o paradeiro e contacto dela desde que C... deixou ... em outubro de 2016. Assim, pese embora não haja registos clínicos de qualquer assistência hospitalar a C..., o seu testemunho é preciso, perfeitamente credível e reforçado pelo que foi presenciado, na mesma linha de comportamento do arguido, pela mãe e pelo atual companheiro. Aliás, o temperamento descontrolado do arguido revelava-se também nas deslocações que fazia à CPCJ de Gondomar ou ao tribunal: H..., técnica superior na CPCJ, relatou que, em processo de promoção e protecção instaurado a D..., o arguido não respondia a convocatórias mas aparecia quando entendia, a chorar, insistindo que a filha fosse retirada a C..., a quem se referia como “puta” e “vaca”, insistências que só aconteceram desde que C... passou a relacionar-se com G.... E no dia 18-10-2016 o comportamento provado e descontrolado do arguido no tribunal foi presenciado pelos funcionários I... (ver sua informação de fls. 183) e J..., tendo a segurança de serviço, K... ouvido a ameaça de morte a C.... Atento todo este quadro factual descrito pela ofendida e corroborado pelas testemunhas inquiridas, bem diverso do cenário de legítima defesa que o arguido quis pintar e que não se coaduna com toda a sua postura ofensiva presenciada pelas testemunhas, entendeu o Tribunal mostrar-se provado o tipo e a continuidade da atuação do arguido para com a companheira nos termos trazidos por esta, sendo do conhecimento geral a proibição que impende sobre esse tipo de conduta. Baseou-se ainda o Tribunal no CRC do arguido de fls. 612-616 e na informação da DGRSP de fls. 600 quanto à impossibilidade de realização de relatório social, e ainda na certidão de nascimento da menor de fls. 14. Quanto ao facto não provado, não foi junta qualquer imagem/impressão, como se entende que se exigia.» Considera o recorrente que as declarações por si prestadas no primeiro interrogatório judicial tinham de ser lidas e examinadas na audiência de discussão e julgamento (ficando tal a constar da ata respetiva) e, não o tendo sido, não podiam ser valoradas pelo tribunal, como foram, o que acarreta a nulidade da sentença. Atenhamo-nos, antes de mais, a esta suscitada questão. Estabelece o artigo 32.º, n.º 5, da nossa Lei Fundamental que “o processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os atos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório.” A estrutura acusatória do processo contida na primeira parte do preceito como sublinham Gomes Canotilho e Vital Moreira in Constituição da República Portuguesa anotada «(…) é um dos princípios estruturantes da constituição processual penal. Essencialmente, ele significa que só se pode ser julgado por um crime precedendo acusação por esse crime por parte de um órgão distinto do julgador, sendo a acusação condição e limite do julgamento. Trata-se de uma garantia essencial do julgamento independente e imparcial. Cabe ao tribunal julgar os factos constantes da acusação e não conduzir oficiosamente a investigação da responsabilidade penal do arguido (princípio do inquisitório). A «densificação» semântica da estrutura acusatória faz-se através da articulação de uma dimensão material (fases do processo) com uma dimensão orgânico-subjectiva (entidades competentes). Estrutura acusatória significa, no plano material, a distinção entre instrução, acusação e julgamento; no plano subjectivo, significa a diferenciação entre juiz de instrução (órgão de instrução) e juiz julgador (órgão julgador) e entre ambos e órgão acusador.». Da estrutura acusatória do processo penal deriva o princípio do contraditório, o qual beneficia de tutela constitucional expressa para o julgamento, o que significa, fundamentalmente, que nenhuma prova deve ser aceite em audiência, nem nenhuma decisão deve aí ser tomada pelo tribunal, sem que previamente tenha sido dada uma ampla e efetiva possibilidade ao sujeito processual contra o qual ela é dirigida de a discutir, de a contestar e de a valorar. Visa-se, desse modo, um processo justo e equitativo com plena observância das garantias necessárias para uma defesa eficaz. Como decorrência da consagração constitucional a lei processual penal estabelece, como regra geral, não valerem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência – nº 1 do artigo 355º do Código Processo Penal. Ressalvam-se as provas contidas em atos processuais cuja leitura, visualização ou audição em audiência sejam permitidas nos termos dos artigos subsequentes – nº 2 do mesmo normativo. Entre as exceções previstas pelo nº 2 do artigo 355º encontra-se a admissão de possibilidade de serem valoradas as declarações anteriormente prestadas pelo arguido perante autoridade judiciária nos termos estatuídos nos artigos 356º e 357º do Código Processo Penal. A Lei nº 20/2013, de 21 de fevereiro, veio introduzir alterações ao Código Processo Penal designadamente, no que concerne à utilização em sede de audiência de julgamento, das declarações prestadas pelo arguido ao abrigo do disposto nos artigos 141.º, n.º 4, al. b) e 357.º, al. b), do Código de Processo Penal. Com tal alteração pretendeu o legislador conciliar a garantia dos direitos de defesa, por um lado e, por outro, as necessidades de celeridade e eficácia no combate ao crime e defesa da sociedade. A “Exposição de motivos” da Proposta de Lei n.º 77/XII que deu lugar à citada Lei expressa a preocupação mencionada, expendendo o seguinte: «(…) De maior relevância é a modificação introduzida quanto à possibilidade de utilização das declarações prestadas pelo arguido, na fase de inquérito e de instrução, em sede de audiência de julgamento. A quase total indisponibilidade de utilização superveniente das declarações prestadas pelo arguido nas fases anteriores ao julgamento tem conduzido, em muitos casos, a situações geradoras de indignação social e incompreensão dos cidadãos quanto ao sistema de justiça. Impunha-se, portanto, uma alteração ao nível da disponibilidade, para utilização superveniente, das declarações prestadas pelo arguido nas fases anteriores ao julgamento, devidamente acompanhadas de um reforço das garantias processuais. Assim, esta disponibilidade de utilização, para além de só ser possível quanto a declarações prestadas perante autoridade judiciária, é acompanhada da correspondente consolidação das garantias de defesa do arguido enquanto sujeito processual, designadamente quanto aos procedimentos de interrogatório, por forma a assegurar o efetivo exercício desses direitos, maxime o direito ao silêncio. (…).Por outro lado, exige-se a assistência de defensor sempre que as declarações sejam susceptíveis de posterior utilização, e exige-se a expressa advertência do arguido de que, se não exercer o seu direito ao silêncio, as declarações que prestar podem ser futuramente utilizadas no processo embora sujeitas ao princípio da livre apreciação da prova. A falta de assistência por defensor, bem como a omissão ou violação deste dever de informação determinam a impossibilidade de as declarações serem utilizadas, assegurando uma decisão esclarecida do arguido quanto a uma posterior utilização das declarações que, livremente, decide prestar. Preserva-se, assim, a liberdade de declaração do arguido que, apenas, voluntariamente pode prescindir do direito ao silêncio e, também, apenas voluntariamente, prescinde do seu controlo sobre o que disse. As declarações que, nos termos legais, possam e venham a ser utilizadas em julgamento, estão sujeitas à livre apreciação da prova, assim se autonomizando da figura da confissão prevista no artigo 344.º. A fiabilidade que devem merecer tais declarações, enquanto suscetíveis de serem utilizadas como prova em fase de julgamento, impõe que sejam documentadas através de registo áudio visual ou áudio, só sendo permitida a documentação por outra forma quando aqueles meios não estiverem disponíveis.». Na redação dada pela Lei n.º 20/2013, de 21 de Fevereiro, preceitua o nº 1 do artigo 357º do Código Processo Penal que: “A reprodução ou leitura de declarações anteriormente feitas pelo arguido só é permitida: (…)b) Quando tenham sido feitas perante autoridade judiciária com assistência de defensor e o arguido tenha sido informado nos termos e para os efeitos do disposto na alínea b) do nº 4 do artigo 141º”. Por seu lado o artigo 141.º, na sua atual redação dispõe, designadamente que: “1 - O arguido detido que não deva ser de imediato julgado é interrogado pelo juiz de instrução, no prazo máximo de quarenta e oito horas após a detenção, logo que lhe for presente com a indicação circunstanciada dos motivos da detenção e das provas que a fundamentam 2 - O interrogatório é feito exclusivamente pelo juiz, com assistência do Ministério Público e do defensor e estando presente o funcionário de justiça. Não é admitida a presença de qualquer outra pessoa, a não ser que, por motivo de segurança, o detido deva ser guardado à vista. 3 - O arguido é perguntado pelo seu nome, filiação, freguesia e concelho de naturalidade, data de nascimento, estado civil, profissão, residência, local de trabalho, sendo-lhe exigida, se necessário, a exibição de documento oficial bastante de identificação. Deve ser advertido de que a falta de resposta a estas perguntas ou a falsidade das respostas o pode fazer incorrer em responsabilidade penal. 4 - Seguidamente, o juiz informa o arguido: a) Dos direitos referidos no n.º 1 do artigo 61.º, explicando-lhos se isso for necessário; b) De que não exercendo o direito ao silêncio as declarações que prestar poderão ser utilizadas no processo, mesmo que seja julgado na ausência, ou não preste declarações em audiência de julgamento, estando sujeitas à livre apreciação da prova; (…)». Por último o nº 9 do artigo 356ºdo Código Processo Penal, para o qual remete o artigo 357º nº 3 do mesmo diploma legal, refere que “A permissão de uma leitura, visualização ou audição e a sua justificação legal ficam a constar da ata, sob pena de nulidade” Da conjugação dos preceitos legais referidos e embora não desconhecendo as razões e pertinência de posições divergentes (v.g. Ac. RP de 14/09/2016, no proc. nº.2087/14.0JAPRT e Ac. RE de 07/02/2017, no proc. nº 341/15.2JAFAR.E1, disponíveis in www.dgsi.pt), sufragamos o entendimento que as declarações do arguido prestadas no primeiro interrogatório judicial têm que ser lidas ou ouvidas na audiência de julgamento para que possam ser valoradas e utilizadas na formação da convicção do Tribunal. Neste mesmo sentido se pronunciaram, entre outros, os Acs. RC de 04/02/2015, no proc. nº 212/11.1GACLB.C1; RP de 12/10/2016, no proc. nº.101/13.5JAAVR.P1; Ac. RL de 18/10/2017, todos disponíveis in www.dgsi.pt e Ac. RC de 31/08/2016, no proc. nº 225/13.9JACBR.C1 in CJ nº 273, 2016, Tomo IV, pág 44. Essa garantia dos direitos de defesa e o exercício efetivo do princípio do contraditório apenas será totalmente exercido mediante a leitura ou audição em audiência das declarações prestadas pelo arguido, pois só desse modo é dado conhecimento aos sujeitos processuais dos meios de prova elegíveis para a formação da convicção do tribunal e possibilita o debate e a confrontação indispensáveis à apresentação de meios de defesa. In casu ressalta da leitura da motivação da sentença em crise ter o tribunal a quo, para a formação da sua convicção sobre a matéria de facto, utilizado e valorado também o teor de declarações prestadas pelo arguido no primeiro interrogatório judicial. Nesse primeiro interrogatório judicial, o arguido, acompanhado do seu defensor, depois de expressamente informado de que as declarações que prestar poderão ser utilizadas no processo, mesmo que seja julgado na ausência, ou mesmo que não preste declarações em audiência de discussão e julgamento, decidiu prestar declarações, confessando alguns dos factos e esclarecendo os motivos por que os praticou. Porém, vista a ata da audiência de julgamento, constata-se que aí não consta que se tenha procedido à leitura ou audição das declarações prestadas pelo arguido no interrogatório judicial. Nestes termos, a omissão de indicação expressa do teor das declarações anteriores como meio de prova a utilizar na decisão da matéria de facto e a omissão de leitura pública traduz uma compressão injustificada do contraditório e das garantias de defesa do arguido. Recorde-se, ademais, que a audiência se realizou na ausência do arguido podendo o mesmo, caso tivesse conhecimento da utilização das declarações anteriormente prestadas, requerer a sua audição nos termos consentidos no artigo 333º, nº 2 do Código Processo Penal. Destarte, não tendo sido lidas em audiência de julgamento as declarações prestadas pelo arguido no inquérito, entendemos que a valoração das suas declarações constitui valoração proibida de prova, nos termos do artigo 355.º, nº 1, do Código Processo Penal, inquinando a sentença do vício que lhe é assacado pelo recorrente. Em consequência, declara-se nula a sentença proferida nos termos do artigo 122.º, n.º1 do Código Processo Penal, por violação do disposto nos artigos 355.º e 357.º do mesmo diploma legal, determinando-se a remessa dos autos à 1ª Instância para prolação de nova sentença, sem que na mesma sejam incluídas e valoradas as declarações do arguido que não foram lidas em audiência, mostrando-se prejudicada a apreciação das restantes questões suscitadas no recurso. *** III – DecisãoAcordam em conferência na Primeira Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto, em julgar parcialmente procedente o recurso interposto pelo arguido, B... declarando-se nula a douta sentença recorrida, devendo em seu lugar ser proferida nova sentença que exclua como meio de prova as declarações prestadas pelo recorrente perante o Exmº Magistrado Judicial durante o inquérito. Sem tributação. Porto, 27 de junho de 2018 (elaborado pela relatora e revisto por ambos os subscritores – artigo 94 nº2 do Código Processo Penal) Maria Ermelinda Carneiro Raúl Esteves |