Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | ANA VIEIRA | ||
Descritores: | OPOSIÇÃO À PENHORA BENS RELATIVAMENTE IMPENHORÁVEIS PENHORA DE VEÍCULO AUTOMÓVEL | ||
Nº do Documento: | RP202406202050/22.7T8AGD-A.P1 | ||
Data do Acordão: | 06/20/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | REVOGADA | ||
Indicações Eventuais: | 3ª SECÇÃO | ||
Área Temática: | . | ||
Sumário: | I - São bens relativamente impenhoráveis, entre outros, os instrumentos de trabalhos e os objetos indispensáveis ao exercício da atividade ou formação profissional do eexecutado. II - Cabe ao executado o ónus da prova da impenhorabilidade do bem penhorado. III - o sistema jurídico entende que certos interesses vitais do executado se devem sobrepor aos do exequente, pretendendo-se, assim, evitar que se retirem ao executado os meios necessários para garantir a sua subsistência e a do seu agregado familiar. IV - A isenção de penhora prevista no nº 2 do artigo 737º do Código de Processo Civil visa obstar a que a penhora ponha em risco a situação ou possibilidade de sobrevivência do executado e radica em razões intrinsecamente pessoais. V - De harmonia com o princípio da proporcionalidade que decorre do disposto no artigo 735º, n.º 1 do Código de Processo Civil, não devem ser penhorados mais bens do que os necessários para a satisfação da pretensão exequenda e das despesas previsíveis da execução, devendo tentar-se obter um equilíbrio entre o direito do credor à satisfação do seu crédito e o direito do devedor à preservação do património não essencial ao pagamento da dívida exequenda. | ||
Reclamações: | |||
Decisão Texto Integral: | Processo nº 2050/22.7T8AGD-A.P1
Origem: Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, Águeda - Juízo Execução Relatora: Ana Vieira 1º Adjunto Juiz Desembargador Dr. Paulo Duarte Mesquita Teixeira 2º Adjunto Juiz Desembargador Dr. Aristides Rodrigues de Almeida * Sumário ……………………………… ……………………………… ……………………………… * Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
I- RELATÓRIO
AA, e BB, ambos residentes na Rua ...., nº ..., 2º Esq. Centro, ... Braga, executados, vieram deduzir oposição à penhora, requerendo o levantamento da penhora do veículo, alegando que o veículo sujeito a penhora é indispensável para se deslocar para o seu local de trabalho, atendendo que à hora de prestação do trabalho não existe qualquer transporte público, invocando o artigo 737.º do Código de Processo Civil. Alegam em resumo que os Executados notificados do auto de penhora sobre o veículo automóvel com a chapa de matrícula ..-IP-.., marca Mazda, ligeiro de passageiros, modelo .... E que o executado marido trabalha para a sociedade A..., Lda., com instalações em ..., mais concretamente na Rua ..., Parque Industrial ... 2ª, Braga e inicia as suas funções laborais às 6h00m, todos os dias e que a essa hora não tem transportes públicos que o levem ao seu local de trabalho e que lhe permitam chegar a tempo de cumprir o seu horário. Referem que o único autocarro que efetua o percurso necessário para que o Executado possa chegar ao seu trabalho realiza a primeira viagem às 6h15m. Invocam que a paralisação do seu veículo automóvel implicará a perda do seu trabalho, uma vez que não tem como se apresentar ao serviço e referem que nessa medida o veículo automóvel representa um objeto imprescindível ao exercício do trabalho do Executado, nos termos do artigo 737º do Código de Processo Civil. Mais referem que não poder utilizar o veículo em causa, colocará em causa a subsistência do casal e de todo o agregado familiar, que verá o Executado ficar sem emprego, e que a manutenção do seu trabalho tanto mais é importante porque o casal tem uma filha menor, de dez anos de idade (nascida a ../../2012). Mais referem que o vencimento dos Executados encontra-se penhorado e que se o executado não conseguir deslocar-se para o trabalho irá ficar desempregado, o que se traduzirá numa dificuldade garantidamente acrescida tanto para o exequente (que terá mais dificuldade em cobrar o seu crédito) como para o executado e seu agregado familiar,. A parte contrária, devidamente notificada, não contestou. Estes autos estão apensos aos autos de execução nos quais o exequente : Banco 1..., S.A. junta requerimento executivo invocando em resumo ser dono, possuidor e legítimo portador de uma Livrança, subscrita em 24.07.2018 por AA e BB no montante de € 41.391,71, a qual se venceu em 01.07.2022 e que os executados não pagaram o montante da Livrança, nem na data do respetivo vencimento, nem posteriormente, apesar de terem sido instados para o fazer. Ulteriormente, nos autos de execução foi proferido o seguinte despacho: «.. Face à documentação junta, reconheço legitimidade processual à sociedade “B..., S.A.”, na qualidade de exequente, em substituição do “Banco 1..., S.A.”. De acordo com o disposto no art. 3.º, n.º 1, do Dec.-Lei n.º 42/2019 de 28/03, fica dispensada a habilitação…». Consigna-se que nos autos executivos consta a realizaçºao de penhora sobre o salário, sobre o veiculo automóvel objecto dos autos e direito de crédito de reembolso de IRS). * I – Relatório Por apenso aos autos, o executado BB deduziu oposição à penhora, requerendo o levantamento da penhora do veículo, alegando que o veículo sujeito a penhora é indispensável para se deslocar para o seu local de trabalho, atendendo que à hora de prestação do trabalho não existe qualquer transporte público, fazendo uma remissão genérica para o art. 737.º do Código de Processo Civil. A parte contrária, devidamente notificada, não contestou. Cumpre apreciar e decidir. *** II – Saneamento O Tribunal é competente em razão da nacionalidade, matéria e hierarquia. Não existem nem foram arguidas nulidades principais. As partes têm personalidade e capacidade judiciária, gozam de legitimidade e o Reclamante encontra-se devidamente representado. Não existem outras exceções ou questões prévias de que cumpra conhecer. III – Factos a considerar a) Em 27-01-2023 foi penhorado o veículo da marca MAZDA, com a matrícula ..-IP-.., da Categoria LIGEIRO de PASSAGEIROS, modelo ..., cor CINZENTO, com o combustível GASOLEO, quadro n.º ..., registo de propriedade n.º ... de 13-02-2016; b) A penhora referida em a) envolve a proibição do veículo circular, e a circulação do veículo com a infração da proibição legal sujeita ao depositário as sanções aplicáveis ao crime de desobediência qualificada; c) O requerente é funcionário da empresa A..., Lda.; d) O seu horário de trabalho da empresa referida em c) é das 06H00 às 16H00; e) Não existe qualquer transporte público que possibilitem o transporte do requerente para o seu local de trabalho. *** IV – Direito Numa primeira fase, importa expor que estão sujeitos à penhora todos os bens do devedor suscetíveis de penhora que, nos termos da lei substantiva, devem responder pela dívida exequenda (art. 735.º, n.º 1 do Código de Processo Civil e ainda art. 601.º do Código Civil). Ainda a este propósito, o n.º 3 do artigo 735.º do Código de Processo Civil, estipula que a penhora se limita aos bens necessários para o pagamento da dívida exequenda bem como das despesas previsíveis da execução. Todavia, o art. 736.º, 737.º, do mesmo diploma, estipulam certos bens absoluta ou totalmente impenhoráveis e bens relativamente impenhoráveis, respetivamente. In casu, se bem se percebe, o requerente alega que o veículo é um bem indispensável para o exercício da sua profissão, sendo esse o único meio de transporte que consegue utilizar para se deslocar para o seu local de trabalho, nos termos do art. 737.º Código de Processo Civil. O art. 737.º, n.º 2 do Código de Processo Civil dispõe que: “Estão também isentos de penhora os instrumentos de trabalhos e os objetos indispensáveis ao exercício da atividade ou formação profissional do executado, salvo se: a) O executado os indicar para penhora; b) A execução se destinar ao pagamento do preço da sua aquisição ou do custo da sua reparação; c) Forem penhorados como elementos corpóreos de um estabelecimento comercial.” (sublinhado nosso). A situação judicanda, encontra-se numa posição de convergência entre as normas que definem o objeto da execução e os bens relativamente impenhoráveis. José Lebre de Freitas (A ação Executiva – À Luz do Código Processo Civil de 2013, p. 246), menciona que a “impenhorabilidade não resulta apenas da indisponibilidade (objetiva ou subjetiva) de certos bens ou de convenções negociais que especificamente a estipula. Resulta também da consideração de certos interesses gerais, de interesses vitais do executado ou de interesses de terceiro que o sistema jurídico entende deverem-se sobrepor aos do credor exequente”. Especifica ainda que “esta impenhorabilidade e, em alguns casos, absoluta e total (os bens não podem, na sua totalidade, ser penhorados, seja qual for a divida exequenda), enquanto, noutros casos, e relativa (os bens podem ser penhorados apenas em determinadas circunstâncias ou para pagamento de certas dividas) ou parcial (os bens só podem ser penhorados em certa parte)”. Conforme refere, Alberto dos Reis (Processo de Execução, Volume I, pág. 379), a finalidade da Lei “foi obstar a que o executado ficasse privado dos meios indispensáveis para ganhar a vida”. A este propósito, diz-nos o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, processo 275/19.1T8TCS-A.C1, de 09-02-2021, disponível em www.dgsi.pt que: “Em tais termos, pois, mais «verificamos, essencialmente, que no n.º 1 do art. 737.º do NCPC se pretende acima de tudo garantir a realização de fins de utilidade pública, já o seu n.º 2 pretende-se garantir a subsistência do executado através do trabalho que realiza na sua atividade profissional. Portanto, os instrumentos de trabalho e os objetos indispensáveis ao exercício da atividade profissional ou formação profissional do executado por regra não podem ser penhorados, nomeadamente os bens estritamente ligados ao desempenho da sua profissão”. Esclarece ainda, o mesmo Acórdão que: “o termo “profissão” traduz-se como sendo a forma de abranger qualquer tipo de atividade lícita, qualquer ocupação, qualquer ofício por mais rudimentar ou modesto que seja. Nesta linha de pensamento tenta-se proteger o “ganha-pão” das profissões liberais e de qualquer trabalho manual, ou formação”. Neste segmento, atento o caso em concreto, importa, pois, definir o enquadramento de instrumentos de trabalho e os objetos indispensáveis ao exercício da atividade (conforme refere o art. 737.º, n.º 2 do Código de Processo Civil). Seguidamente, devemos verificar se o veículo penhorado – que o executado pretende utilizar para se deslocar para o local de trabalho – enquadra-se nesses instrumentos de trabalho ou num objeto indispensável para o exercício da sua atividade profissional. Ainda Alberto dos Reis, na obra já citada, esclarece que os bens relativamente impenhoráveis, terão que ser “estritamente indispensável ao exercício da função ou profissão”, concluindo, já na página seguinte, que “a isenção só abrange os objetos sem os quais é impossível ao executado exercer a sua atividade habitual” (p. 379 e 380). Adotando uma perspetiva praticista, a indispensabilidade do bem para o exercício da profissão é o caso de instrumentos de um carpinteiro (martelo, serra, etc.); um barco que o executado utilize no exercício da pesca; um trator que o executado utilize na sua profissão de tratorista (crf. a Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 22.3.79, BMJ, 285, p. 250); um veículo utilizado na atividade do construtor civil (mais recente, em Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 05.12.11, relatado por Augusto de Carvalho, www.dgsi.pt., proc. 771-H/2002), ou ainda da biblioteca jurídica dum advogado ou literária dum escritor. O mesmo é dizer, que para o veículo aqui em causa ser considerado impenhorável, era necessário que esse fosse um instrumento do seu próprio trabalho ou então um objeto indispensável para exercer a sua atividade profissional propriamente dita. Na modalidade alegada pelo executado, cremos que não é o caso. Desde logo, ainda que o executado inicie a sua atividade laboral pelas 06H00 e não existam transportes públicos, existem, certamente, outras alternativas que possibilitam que o executado se desloque para o seu local de trabalho. Ou seja, o veículo penhorado não é indispensável, no sentido propriamente dito, para a realização da sua atividade profissional, existindo diversas possibilidades para o executado exercer a sua atividade profissional. Assim, sem mais considerações, por desnecessárias, cremos que não parece que a situação se enquadre neste regime de impenhorabilidade, improcedendo, assim, o alegado pelos executados. *** V – Decisão Pelo exposto, julgo totalmente improcedente o incidente de oposição à penhora, deduzidos por AA e BB contra “B..., S.A.”, não procedendo ao levantamento de qualquer das penhoras realizadas nos autos principais de execução, determinando, assim, a manutenção das mesmas para pagamento da dívida exequenda e das despesas da execução. Custas pelo executado, por ter ficado vencido (cf. art. 527.º, n.ºs 1 e 2, Código de Processo Civil), sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia. Registe e notifique e dê conhecimento à Agente de Execução. ..»(sic). * Inconformados com tal decisão, vieram os executados interpor o presente recurso, o qual foi admitido como apelação, a subir de imediato, nos autos e com efeito meramente devolutivo. Os executados com o requerimento de interposição do recurso apresentou alegações, formulando, a final, as seguintes conclusões: «… CONCLUSÕES: 1. Os Recorrentes, não se conformando com a decisão proferida pelo Tribunal a quo, que declara que o veículo automóvel em causa não é bem imprescindível e, como tal impenhorável nos termos do artigo 737º do CPC, vêm dela interpor recurso. 2. Diga-se, desde logo, que a sentença proferida viola o disposto no artigo 607º, nº 4 do CPC por da mesma não constarem os factos provados e não provados. 3. Contudo, e caso se entenda que os factos a considerar são os factos tidos como provados pelo Tribunal a quo, então existe contradição entre os factos provados e a decisão proferida. 4. Notificados da penhora que incidia sobre o veículo automóvel com a chapa de matrícula ..-IP-.., marca Mazda, modelo ..., cor cinza, os Recorrentes deduziram oposição a essa mesma penhora alegando (e juntando documentos) que demonstravam que o Recorrente marido inicia a sua jornada laboral às 06h00 e finda-a às 16h00m. 5. Mais considerou o Tribunal a quo que, efetivamente, não existem transportes públicos, antes das 06h00, entre a morada do recorrente e o seu local de trabalho. 6. Ora, entende o Tribunal que, não obstante reconhecer que não existem meios de transporte públicos para a deslocação, outras soluções existirão… 7. Os Recorrentes desconhecem quais… nem a sentença o refere… 8. Não tem o Recorrente marido nenhum colega de trabalho que resida próximo; 9. Não tem outro meio de transporte pessoal (do processo executivo consta essa mesma informação); 10. Ambos os Recorrentes têm os seus salários penhorados e uma filha menor a cargo, não podendo despender de mais verbas para que a deslocação seja feita de táxi ou TVDE. 11. Atentas as conclusões do tribunal a quo, não se vislumbra como o veículo penhorado não seja bem imprescindível para a prestação do trabalho do Recorrente marido. 12. Se não tiver meios de se deslocar para o trabalho, irá, certamente, ficar desempregado. 13. Com o Recorrente marido no desemprego, a Recorrente mulher com salário penhorado, filha menor a cargo, mais todas as despesas inerentes ao dia-a-dia do casal, incluindo pagamento de renda, significa tal um atentado contra a subsistência desta família. 14. Conforme referido pela sentença proferida, e referindo-se à questão da impenhorabilidade dos bens “(…) a finalidade da Lei foi obstar a que o executado ficasse privado dos meios indispensáveis para ganhar a vida” – sublinhado nosso. 15. Mais refere tal decisão que “José Lebre de Freitas (…) menciona que a impenhorabilidade não resulta apenas da indisponibilidade (objetiva ou subjetiva) de certos bens ou de convenções negociais que especificamente a estipula. Resulta também da consideração de certos interesses gerais, de interesses vitais do executado ou de interesses de terceiro que o sistema jurídico entende deverem-se sobrepor aos do credor exequente.” 16. Ora, e tendo em conta o direito aplicado e os factos a considerar (entenda-se factos provados), ao decidir pela improcedência da oposição à penhora, mantendo a penhora com a apreensão da viatura em causa, o Tribunal a quo decidiu em contradição com os factos provados, o que se invoca para todos os efeitos legais. 17. Assim, deverá a sentença proferida ser revogada, com as demais consequências legais. TERMOS EM QUE, Deverá a sentença proferida ser revogada, substituindo-se por outra que declare o veículo em causa como bem relativamente impenhorável nos termos do artigo 737º do CPC, fazendo-se assim a habitual e sã justiça!..»(sic).
A exequente não juntou contra-alegações. * Após os vistos legais e nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre decidir. *** II- DO MÉRITO DO RECURSO 1. Definição do objecto do recurso
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. arts. 635º, nº 4, 637º, nº 2, 1ª parte e 639º, nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil[1]. Porque assim, atendendo á estrutura das conclusões das alegações apresentadas pela apelante, resulta que em resumo a recorrente indica os seguintes pontos a analisar: *** III- FUNDAMENTOS DE FACTO
Visando analisar o objecto do recurso, cumpre enunciar os factos provados pelo tribunal a quo: «… III – Factos a considerar a) Em 27-01-2023 foi penhorado o veículo da marca MAZDA, com a matrícula ..-IP-.., da Categoria LIGEIRO de PASSAGEIROS, modelo ..., cor CINZENTO, com o combustível GASOLEO, quadro n.º ..., registo de propriedade n.º ... de 13-02-2016; b) A penhora referida em a) envolve a proibição do veículo circular, e a circulação do veículo com a infração da proibição legal sujeita ao depositário as sanções aplicáveis ao crime de desobediência qualificada; c) O requerente é funcionário da empresa A..., Lda.; d) O seu horário de trabalho da empresa referida em c) é das 06H00 às 16H00; e) Não existe qualquer transporte público que possibilitem o transporte do requerente para o seu local de trabalho…». *** IV - FUNDAMENTOS DE DIREITO +
Nas alegações de recurso os recorrentes invocam que a decisão proferida, no entender dos Recorrentes, viola o disposto no artigo 607º, do CPC e/ou enferma de nulidade nos termos do preceituado no artigo 615º, nº 1, b) e c) do CPC. Neste segmento invocam os recorrentes, que deduziram oposição à penhora efetuada sobre o seu veículo automóvel e requereram o levantamento da referida penhora, alegando que o referido veículo é imprescindível para que o Executado marido possa desenvolver a sua atividade profissional e prover ao sustento do seu agregado familiar. E que a sentença agora em causa não indica quais os factos considerados provados e não provados, limitando-se a referir os factos a considerar. Referem que por tal motivo, consideram que referida decisão viola o disposto no artigo 607º, nº 4 do CPC. Por outro lado, alegam que caso assim não se entenda, e se se entender que os “factos a considerar ”são os factos tidos como provados pelo Tribunal a quo, então, e salvo devido respeito, está a decisão proferida em contradição com os mesmos. Isto porque o Tribunal a quo entende provado que não existe qualquer transporte público que possibilite o transporte do Requerente para o seu local de trabalho, para depois decidir que o veículo em causa não é bem imprescindível para o desempenho da sua atividade laboral. * Nos termos do artigo 615 do CPcivil, a sentença é nula, quando: a) Não contenha a assinatura do juiz; b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão; c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível; d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento; e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido. Desde logo verifica-se que não existe nenhuma nulidade por falta de indicação dos factos provados porque a decisão fixou uma dada factualidade e fez se um dado enquadramento jurídico não existindo nenhum vicio formal e estrutural que implique a sua nulidade. Na sentença consta expressamente os factos tidos por provados e nessa medida não existe nenhuma nulidade nos termos do artigo 615 alínea b) do CPCivil. Igualmente não existe nenhuma contradição ou a invocada nulidade nos termos da alínea c) do artigo 615 do CPcivil porque na sentença recorrida o tribunal fixou os factos e fez o seu enquadramento jurídico tido por conveniente não existindo nenhuma oposição ou contradição manifesta (a questão de saber se a decisão de mérito deverá ou não ser mantida, não contende com a análise de nenhuma nulidade mas sim com determinação do enquadramento jurídico da própria decisão final). Assim, improcede neste segmento o recurso, dado que a sentença não é nula. * B-Alteração da sentença quanto à decisão de mérito. No caso dos autos verifica-se em resumo que os executados deduziram oposição á penhora do veiculo automóvel descrito nos autos invocando em resumo que sem o seu veículo não existe forma do recorrente se deslocar para o seu trabalho, porque inexistem meios de o fazer chegar ao local de trabalho, e consideram que então o veículo em causa é um bem imprescindível ao exercício da sua profissão. Mais referem que tem os salários penhorados nos presentes autos e uma filha menor, o que diminui bastante os meios de subsistência de todo o agregado, e se o executado não puder se apresentar ao trabalho, vai ficar desempregado e, com isso, agravar a falta de meios da sua subsistência e a da sua família. Concluem, que o veículo automóvel deve ser considerado um instrumento indispensável e, como tal, impenhorável, nos termos do preceituado no artigo 737º do CPC. * Estabelece o artigo 784º, do C.P.C., que sendo penhorados bens pertencentes ao executado, pode este opor-se à penhora com algum dos seguintes fundamentos: a) Inadmissibilidade da penhora dos bens concretamente apreendidos ou da extensão com que ela foi realizada; b) Imediata penhora de bens que só subsidiariamente respondam pela dívida exequenda; c) Incidência da penhora sobre bens que, não respondendo, nos termos do direito substantivo, pela dívida exequenda, não deviam ter sido atingidos pela diligência. Conforme refere Rui Pinto (in “A Ação Executiva”, 2018, pág. 536) o princípio da proporcionalidade ou princípio da suficiência, consagrado no Art. 752.º 2 do C.P.C., é um limite à penhora de bens indicados pelo exequente e tem raiz constitucional no direito de propriedade privada (Art. 62.º da C.R.P.) que torna excecional qualquer oneração ou perda forçada de situações jurídicas ativas privadas. A natureza gravosa da penhora deve assim limitar-se ao que seja necessário para a satisfação do crédito exequente e das custas. Por isso, deve começar a penhora pelos bens de mais fácil execução, em respeito pelo princípio da adequação (Art. 751.º n.º 1 do C.P.C.), passando depois para os demais, desde que respeitem os princípios da proporcionalidade e os limites estabelecidos em normas imperativas (Art. 751.º n.º 2 do C.P.C.) e, finalmente, ainda que não se adeque, por excesso, é admissível a penhora de imóveis ou estabelecimentos comerciais, respeitados os limites objetivos estabelecidos nas alíneas do n.º 3 do Art. 751.º do C.P.C. (idem págs. 538 a 541). Nos termos do artigo 735.º, n.º 1, do novo Código de Processo Civil “estão sujeitos à execução todos os bens do devedor susceptíveis de penhora que, nos termos da lei substantiva, respondem pela dívida exequenda”. A regra é a penhorabilidade dos bens do devedor que respondem pelo cumprimento da obrigação. Todavia, há bens absoluta ou totalmente impenhoráveis (os enumerados nos artigos 736.º do CPCivil) e bens relativamente impenhoráveis (previsto no artigo 737 do CPCivil). Nos termos do artigo 737 do CPCivil: 1 - Estão isentos de penhora, salvo tratando-se de execução para pagamento de dívida com garantia real, os bens do Estado e das restantes pessoas coletivas públicas, de entidades concessionárias de obras ou serviços públicos ou de pessoas coletivas de utilidade pública, que se encontrem especialmente afetados à realização de fins de utilidade pública. 2 - Estão também isentos de penhora os instrumentos de trabalhos e os objetos indispensáveis ao exercício da atividade ou formação profissional do executado, salvo se: a) O executado os indicar para penhora; b) A execução se destinar ao pagamento do preço da sua aquisição ou do custo da sua reparação; c) Forem penhorados como elementos corpóreos de um estabelecimento comercial. 3 - Estão ainda isentos de penhora os bens imprescindíveis a qualquer economia doméstica que se encontrem na casa de habitação efetiva do executado, salvo quando se trate de execução destinada ao pagamento do preço da respetiva aquisição ou do custo da sua reparação. Está em causa nos autos o artigo 737 n~2 do CPCivil que isenta de penhora os instrumentos de trabalho e os objectos indispensáveis ao exercício da actividade ou formação profissional do executado, devendo neste contexto entender-se os que estejam estritamente conexionados co o desempenho da sua formação ou profissão. Esta norma vem responder á necessidade de tutelar os interesses do agregado familiar do executado em função da actividade profissional por ele exercida (vide CPCivil Anotado, A.Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Filipe Sousa Vol.II,pág. 104 a 105). Por razões económico-sociais do executado são impenhoráveis os bens indispensáveis à formação profissional e ao exercício da sua actividade profissional, sendo certo que é preciso que sem esses bens o executado não possa continuar a exercer a sua profissão habitual ou que a penhora deles ponha gravemente em causa esse exercício (J. P. Remédio Marques (Curso de Processo Executivo à Face do Código Revisto, págs. 172 e segs.). Conforme refere Amâncio Ferreira (Curso de Processo de Execução, 1ª edição, Almedina pág. 117), a impenhorabilidade processual relativa filia-se em motivos de interesse económico, matizado com considerações de humanidade e abrange os instrumentos de trabalho e os objectos indispensáveis ao exercício da actividade ou formação profissional do executado, evitando-se, assim, que se retirem ao executado os meios necessários para ganhar a vida e sustentar-se, bem como à sua família. Esta norma visa tutelar razões de interesse económico associadas a razões de humanidade, por forma a que o executado não fique privado dos seus meios de sustento, radicando, pois, em razões intrinsecamente pessoais. Os instrumentos de trabalho e os objetos indispensáveis ao exercício da atividade profissional ou formação profissional do executado por regra não podem ser penhorados, nomeadamente os bens estritamente ligados ao desempenho da sua profissão. Compete aos executados demonstrar e provar factos impeditivos do direito à penhora nos termos e para os efeitos do artigo 342.º do CCivil. Compulsados os autos, verifica-se, desde logo que o veículo penhorado surge no auto de penhora com o valor de zero euros, o que implica dever-se considerar ter um valor muito diminuto. Acresce que apesar de o valor da quantia exequenda ser elevado (41.000,00 Euros) constata-se que estão penhorados a quota parte dos salários e reembolsos de IRS. E por fim, constata-se que a exequente não deduziu oposição ao pedido de levantamento do veículo. Assim, e atento o acima referido, é manifesto que a manutenção da penhora sobre o veículo não é necessária para assegurar as finalidades da execução. Neste caso, está em causa a alínea a) do referido artigo 784º, que refere ser é legítimo ao executado opor-se à penhora com fundamento na extensão com que a mesma foi realizada. Tal desproporcionalidade afere-se comparando o valor dos bens, em relação ao momento da sua provável satisfação através da venda ou liquidação da dívida e pagamento desta através do produto obtido, com o valor venal ou de mercado dos mesmos ou o valor por que previsivelmente serão vendidos a qualquer interessado. Assim, os bens nomeados à penhora têm que ser penhoráveis e suficientes para garantir o crédito exequendo, sendo a “suficiência” apreciada logo no momento da apreensão e não só após a venda dos mesmos. Se este valor for desproporcionalmente maior que aquele, a penhora deverá ser limitada aos suficientes e levantada quanto aos excessivos. No caso dos autos, verifica-se que o veículo tem um valor diminuto, a exequente não deduziu oposição alguma ao levantamento dessa penhora, e constata-se que estão penhorados valores relativos ao reembolso do IRS e percentagens dos salários, e assim, sem necessidade de mais considerações, conclui-se que a penhora do veículose traduz numa penhora desnecessária aos fins da execução e nessa medida se decreta o seu levantamento. Sem prejuízo, e mesmo que assim não fosse entendido, no caso dos autos consideramos que os recorrentes lograram demonstrar a indispensabilidade do veiculo, porque ficou provado que o recorrente trabalha numa empresa, o local da sua residência, e o seu horário laboral, e a inexistência de alternativas de transporte publico que permitam a deslocação tempestiva entre a sua residência e o seu local de trabalho. Para outros desenvolvimentos, vide o Ac da RP, Processo: 771-H/2002.P1, Relator: AUGUSTO DE CARVALHO, 05-12-2011 (disponível na base de dados da DGSI, local de origem de toda a jurisprudência citada):Sumário: I - Havendo colisão entre o direito do credor/exequente a ver realizado o seu crédito e o direito do devedor/executado a não ser privado dos instrumentos do seu trabalho e dos objectos indispensáveis ao exercício da sua actividade profissional, o legislador optou pelo sacrifício do primeiro. II - A impenhorabilidade relativa prevista no nº 2 do artigo 823º do C.P.C. apenas abrange os instrumentos de trabalho e os objectos estritamente indispensáveis ao exercício da actividade ou formação profissional do executado. E, vide o Ac da RC processo: 275/19.1T8TCS-A.C1 Relator: ANTÓNIO CARVALHO, 09-02-2021, Sumário: «…6. Havendo colisão entre o direito do credor/exequente a ver realizado o seu crédito e o direito do devedor/executado a não ser privado dos instrumentos do seu trabalho e dos objectos indispensáveis ao exercício da sua actividade profissional, o legislador optou pelo sacrifício do primeiro. 7. A impenhorabilidade relativa prevista no nº 2 do artigo 823º do C.P.C. apenas abrange os instrumentos de trabalho e os objectos estritamente indispensáveis ao exercício da actividade ou formação profissional do executado. 8. A função de garantia geral das obrigações que o património do devedor desempenha concretiza-se com a penhora, principal meio de agressão do património do devedor. 9. Pode dizer-se que a regra é a penhorabilidade dos bens do devedor que respondem pelo cumprimento da obrigação. Mas também é sabido que há bens absoluta e relativamente impenhoráveis (os enumerados nos artigos 736.º e 737.º do Cód. Proc. Civil) e bens só parcialmente penhoráveis. 10. Em tais termos, pois, mais «verificamos, essencialmente, que no n.º 1 do art. 737.º do NCPC se pretende acima de tudo garantir a realização de fins de utilidade pública, já o seu n.º 2 pretende-se garantir a subsistência do executado através do trabalho que realiza na sua atividade profissional. Portanto, os instrumentos de trabalho e os objetos indispensáveis ao exercício da atividade profissional ou formação profissional do executado por regra não podem ser penhorados, nomeadamente os bens estritamente ligados ao desempenho da sua profissão. 11. O termo “profissão” traduz-se como sendo a forma de abranger qualquer tipo de atividade lícita, qualquer ocupação, qualquer ofício por mais rudimentar ou modesto que seja. Nesta linha de pensamento tenta-se proteger o “ganha-pão” das profissões liberais e de qualquer trabalho manual, ou formação. 12. A impenhorabilidade “não resulta apenas da indisponibilidade (objetiva ou subjetiva) de certos bens ou de convenções negociais que especificamente a estipulem. Resulta também da consideração de certos interesses gerais, de interesses vitais do executado ou do interesse de terceiros que o sistema jurídico entende deverem-se sobrepor aos do credor exequente. Impenhoráveis por estarem em causa interesses vitais do executado são aqueles bens que asseguram ao seu agregado familiar um mínimo de condições de vida (…) são indispensáveis ao exercício da profissão do executado.”. Portanto, uma “impenhorabilidade processual relativa filia-se em motivos de interesse económico, matizados com considerações de humanidade”. 13. Verificando-se que na sentença recorrida constam os factos e as razões de direito em que o tribunal alicerçou a sua decisão e esta é consequência lógica daquela fundamentação, é evidente que aquela peça processual não está inquinada de qualquer nulidade (art. 668°, nº 1, alíneas b), c) e d) do CPC - art. 615° NCPC).». Pelo exposto, consideramos que o automóvel penhorado integra, deste modo, o estritamente indispensável ao exercício da actividade profissional do executado, já que o mesmo não tem alternativa de outros transportes, para chegar ao seu local de respeitando o seu horário, o que implica que não se possa conceber o exercício daquela actividade sem veículo de transporte. Conclui-se, pois, que o exercício da actividade profissional pelo executado é posto gravemente em causa com a penhora do veículo referido nos autos, e neste sentido, verificam-se os requisitos que o artigo 737, nº2 do CPCivil estabelece. Pelo exposto, e quanto á fundamentação jurídica, conclui-se que o presente recurso de apelação terá, por conseguinte, de ser julgado procedente. *** III- DISPOSITIVO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação procedente, revogando-se a decisão recorrida, julgando-se procedente a oposição á penhora, e em consequência, determina-se o levantamento da penhora objecto do recurso. Custas a cargo do recorrido (art. 527º, nºs 1 e 2). |