Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA | ||
Descritores: | REIVINDICAÇÃO DE IMÓVEL OCUPAÇÃO SEM TÍTULO | ||
Nº do Documento: | RP20240620540/22.0T8PVZ.P1 | ||
Data do Acordão: | 06/20/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMAÇÃO | ||
Indicações Eventuais: | 3. ª SECÇÃO | ||
Área Temática: | . | ||
Sumário: | I - Não existe fundamento jurídico para o terceiro sem título válido continuar a ocupar o prédio que não lhe pertence, opondo ao legítimo proprietário reivindicante que a desocupação do prédio colocará em risco a sua frágil saúde. II - Se porventura fossem invocáveis normas ou princípios constitucionais que fazer prevalecer o direito à habitação do ocupante ilícito sobre o direito de propriedade, essa prevalência estaria totalmente afastada sabendo-se que o terceiro ocupa gratuitamente o prédio há mais de 12 anos e a sua restituição já lhe foi pedida há mais de 3 anos. | ||
Reclamações: | |||
Decisão Texto Integral: | RECURSO DE APELAÇÃO ECLI:PT:TRP:2024:540.2.0T8PVZ.P1 * SUMÁRIO: ......................... ........................ ........................ ACORDAM OS JUÍZES DA 3.ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO: I. Relatório: A..., Lda., sociedade com o número único de matrícula e de pessoa colectiva ...51, com sede em Lisboa, instaurou acção judicial contra AA, contribuinte fiscal n.º ...74, e BB, contribuinte fiscal n.º ...70, ambos residentes em ..., pedindo a condenação dos réus a reconhecer que a autora é proprietário do prédio urbano sito em ..., inscrito na matriz sob o artigo ...46 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Matosinhos sob o n.º ...56 da União das Freguesias ... e ..., concelho de Matosinhos; a restituir à autora o prédio identificado, entregando-o livre de ónus e encargos e devoluto de pessoas e bens; a pagar à autora, a título de sanção pecuniária compulsória, a quantia de €100,00 por cada dia de atraso no cumprimento da sentença que julgar procedente os pedidos anteriores, desde a data da respectiva prolação. Para fundamentar o seu pedido alegou, em súmula, que é proprietária do prédio identificado por o ter adquirido ao seu anterior proprietário, o qual o havia adquirido, por sua vez, no processo de insolvência dos réus, então proprietários do mesmo, estando o imóvel inscrito no registo predial em seu nome, e que os réus ocupam o imóvel sem título que os legitime a tal, recusando-se a entregá-lo à autora. Os réus foram citados e apresentaram contestação, defendendo a improcedência da acção, mas alegando para o efeito apenas as condições em que se viram privados da propriedade do prédio que construíram e onde habitam há mais de 40 anos e as delicadas condições de saúde que serão agravadas pela saída do imóvel. Após os articulados, foi proferido saneador-sentença, tendo a acção sido julgada parcialmente procedente e os réus condenados a reconhecer que a autora é proprietária do prédio e a restituírem-no à autora livre de ónus e encargos e devoluto de pessoas e bens. Do assim decidido, o réu interpôs recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões: - Com o presente recurso, visa o recorrente questionar a apreciação da prova feita do que resultará ser posta em crise a douta decisão na parte respeitante à recorrida, nomeadamente a restituição imediata do prédio. - O Meritíssimo Juiz a quo desconsiderou o estado físico e psicológico do recorrente, através do qual se demonstra a sua incapacidade para desocupar o prédio, não apresentando qualquer capacidade de mobilização para outro local. - Sendo que toda esta situação pode, de forma agravada, pôr em risco da vida do recorrente. - Ora, salvo o devido respeito, é, neste momento, extremamente difícil, senão impossível a desocupação do imóvel por parte do recorrente. Termos em que V. Exas. concedendo provimento ao recurso e alterando a douta decisão recorrida nos termos pugnados nas presentes alegações, farão inteira justiça. Não foi apresentada resposta. Após os vistos legais, cumpre decidir. II. Questões a decidir: As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida se alguma das circunstâncias alegadas pelo recorrente podem constituir jurídico para a não entrega do imóvel ocupado sem título pelos réus ao seu legítimo proprietário. III. Fundamentação de facto: Encontram-se julgados provados em definitivo os seguintes factos: 1. A Autora adquiriu, por compra ao «Banco 1..., SA» o prédio urbano, sito na Rua ..., ..., composto por “casa de cave, rés-do-chão, andar e logradouro”, inscrito na matriz sob o artigo ...46 (anterior artigo ...60) e descrito na Conservatória do Registo Predial de Matosinhos sob o n.º ...56 da freguesia ... e ..., concelho de Matosinhos. 2. A autora registou a seu favor tal aquisição na Conservatória do Registo Predial, pela apresentação n.º 2509 de 2021/11/09. 3. Os réus foram proprietários do referido prédio. 4. Em 26/09/2002 e 23/07/2003 respectivamente, os réus celebraram contratos de empréstimo com o Banco 2..., S.A., mediante os quais foram constituídas hipotecas sobre o mesmo imóvel, a favor do referido banco. 5. E, em 03/11/2011, o Banco 3... (que integrou, por fusão, o activo e o passivo do Banco 2..., SA, em 31.12.2005), adquiriu em processo de insolvência dos aqui réus o referido prédio, registando tal aquisição a seu favor pela ap. ...14 de 2011/11/03. 6. Por sua vez, o Banco 1..., S.A., adquiriu o prédio por transmissão do Banco 3..., S.A., realizada em 21/04/2015, por força da deliberação de resolução do Banco de Portugal de 03/08/2014 e 28/10/2014, nos termos do art.º 145º-H/1 e 5 do RGICSF9 (DL 298/92, de 31/12) – registando tal aquisição a seu favor na mesma conservatória do registo predial, pela Ap. ...27 de 21/04/2015. 7. O imóvel descrito em 1) encontra-se ocupado pelos réus, que detêm as chaves do mesmo. 8. Em 06/09/2021, foi enviada carta registada com aviso de recepção em nome da autora, na qualidade de promitente compradora, da qual resultava que: “(…) tendo constatado que o referido imóvel se encontra ocupado por V. Exa., sem que tenha qualquer título que legitime ou justifique essa ocupação, vimos solicitar-lhe que, com vista à resolução consensual da situação nos contacte, no prazo de uma semana a contar da data da recepção da presente comunicação. (…). Após a outorga da escritura de compra e venda a favor da nova proprietária, sem que tenha sido possível a resolução por acordo da ocupação serão encetadas pela nossa representada todas as diligências, se necessário com recurso à via judicial, com vista à tomada de posse efectiva do imóvel em epigrafe.” 9. A carta registada foi recebida pelos réus em 09/09/2021, tendo o aviso de recepção sido devolvido e devidamente assinado. 10. Em resposta, os réus, remeteram à autora, que recebeu a carta datada de 22 de Setembro de 2021, junta como documento 7 da petição inicial, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzida. IV. Matéria de Direito: O recurso, não há como deixar de o afirmar, não tem o mínimo fundamento jurídico. As razões invocadas pelo recorrente prendem-se exclusivamente com o seu estado de saúde e as implicações pessoais que a saída do prédio lhe acarretará, não contendendo de qualquer modo com a definição do direito da autora e/ou a consequência jurídica de os réus ocuparem um imóvel que não lhes pertence sem qualquer título válido que legitime essa ocupação. Por isso, tais razões não constituem fundamento jurídico para impedir o legítimo proprietário do imóvel (qualidade que cabe à autora sem qualquer controvérsia) de fazer cessar a ocupação do imóvel por terceiros sem título válido que os habilitem a fazer essa ocupação e recuperar o seu uso e fruição. Os recorrentes, aliás, não citam uma única norma legal ou instituto jurídico que consinta ou autorize o que pretendem porque não a há. Com efeito, ao nível do direito ordinário, só o regime jurídico do contrato de arrendamento para habitação possui normas a regular, a fixar prazos e a autorizar o diferimento da desocupação do imóvel por razões sociais imperiosas (v.g. artigos 1081.º e 1087.º do Código Civil, artigo 15.º-N e 15.º-O do NRAU). O regime jurídico do direito de propriedade não possui normas com esse âmbito e/ou objectivo. E compreende-se que assim seja: no contrato de arrendamento o detentor do imóvel encontra-se na sua detenção ao abrigo de um contrato oneroso e terá em qualquer caso de pagar pela ocupação a remuneração contratual devida até ao momento da entrega; na acção de reivindicação, o terceiro encontra-se numa situação de detenção da coisa sem título jurídico que o consinta e sem pagar qualquer contrapartida por essa utilização. Por isso, enquanto que no primeiro caso a lei impõe ao proprietário um sacrifício, em nome de razões sociais imperiosas, mas sem lhe impor a resignação à contrapartida económica do seu direito; no segundo caso, a lei não impõe ao proprietário a expropriação temporária do conteúdo do seu direito subjectivo em benefício de particulares e no interesse particular destes porque não cabe ao proprietário conceder a terceiros, à custa do seu próprio património, o apoio de natureza social de que estes possam carecer. Essa missão é do Estado e das respectivas instituições de solidariedade social e de saúde, os quais as exercem na medida dos recursos financeiros disponíveis e a cuja distribuição e afectação deverão presidir critérios de justiça social. Será possível um desfecho diferente com recurso a normas e princípios de direito constitucional? O Tribunal Constitucional tem afirmado de modo reiterado que «o ‘direito à habitação’, ou seja, o direito a ter uma morada condigna, como direito fundamental de natureza social (...) é um direito a prestações. Ele implica determinadas acções ou prestações do Estado, as quais, ... são indicadas nos ns. 2 a 4 do artigo 65º da Constituição. (...) Está-se perante um direito cujo conteúdo não pode ser determinado ao nível das opções constitucionais, antes pressupõe uma tarefa de concretização e de mediação do legislador ordinário, e cuja efectividade está dependente da chamada ‘reserva do possível’ (Vorbehalt des Möglichen), em termos políticos, económicos e sociais (...).» - v.g. Acórdãos nºs. 130/92 e 131/92 -. Tem ainda afirmado que «o direito à habitação, como direito social que é, quer seja entendido como um direito a uma prestação não vinculada, recondutível a uma mera pretensão jurídica ... ou, antes, como um autêntico direito subjectivo inerente ao espaço existencial do cidadão ..., não confere a este um direito imediato a uma prestação efectiva, já que não é directamente aplicável, nem exequível por si mesmo. O direito à habitação tem, assim, o Estado - e, igualmente, as regiões autónomas e os municípios - como único sujeito passivo - e nunca, ao menos em princípio, os proprietários de habitações ou os senhorios» - v.g. Acórdãos 570/2001 e 212/2003 -. Mais tem afirmado que «não pode aceitar-se como constitucionalmente exigível que a realização do direito à habitação esteja dependente de limitações intoleráveis e desproporcionadas dos direitos de terceiros, porventura também constitucionalmente consagrados, como é o direito de propriedade privada (cfr. Acórdão n.º 101/92, publicado no Diário da República, II Série, de 18 de Agosto de 1992); de outro ângulo, o cidadão só pode exigir o cumprimento do direito à habitação nas condições e nos termos definidos por lei, ou seja, depois de uma interpositio do legislador, destinada a concretizar o seu conteúdo» - v.g. Acórdãos n.º 130/92 e 322/2000 -. Em contrapartida, afirma-se por exemplo no Acórdão 695/2022 que «a garantia da propriedade privada, na sua dimensão subjectiva, abrange não apenas o direito de propriedade em sentido jurídico-real ..., mas vai ainda além disso, albergando todos os direitos de conteúdo patrimonial. Como assinala Miguel Nogueira de Brito, «os direitos de conteúdo patrimonial adquiridos com base na lei são protegidos contra posteriores lesões pelo poder público do Estado, efectuadas designadamente através da lei, sem que isso envolva qualquer resultado paradoxal. Enquanto direito fundamental, isto é, direito subjectivo dos indivíduos, o artigo 62.º, n.º 1, garante a estes a existência de bens e direitos em face do poder do Estado, nos termos em que eles foram adquiridos, em conformidade com as normas vigentes no momento relevante» – cf. A Justificação da Propriedade Privada numa Democracia Constitucional, Coimbra, 2007, p. 852. (...). Já quanto ao conteúdo do direito de propriedade privada, o Tribunal Constitucional tem-lhe reconhecido um valor jusfundamental. Nesta última vertente, têm sido identificadas, pelo menos, quatro dimensões: o direito de aceder à propriedade; o direito de não ser arbitrariamente privado da propriedade; o direito à transmissão da propriedade inter vivos ou mortis causa; e, se bem que sem referência expressa no texto constitucional e sujeitando-se a limites particularmente intensos ..., a liberdade de usar e fruir dos bens de que se é proprietário (...). Em jurisprudência constante (cf., inter alia, os Acórdãos nºs. 44/99; 329/99; 205/2000; 263/2000; 425/2000; 187/2001; 57/2001; 391/2002; 139/2004; 159/2007; 421/2009), o Tribunal Constitucional tem mesmo reconhecido a «propriedade» como um pressuposto da autonomia das pessoas e afirmado que, não obstante a inclusão do direito que lhe corresponde no título respeitante aos «Direitos e deveres económicos, sociais e culturais», a sua natureza e relevância fundamentam, pelo menos parcialmente, a respectiva inclusão no leque dos clássicos direitos de defesa, revestindo, nalguma medida, natureza análoga aos chamados direitos, liberdades e garantias. (...). No mesmo sentido, assinalam Gomes Canotilho/Vital Moreira que «revestindo o direito de propriedade, em vários dos seus componentes, uma natureza negativa ou de defesa, ele possui natureza análoga aos “direitos, liberdades e garantias”, compartilhando por isso do respectivo regime específico (cfr. art. 17.º), nomeadamente para efeito do regime de restrições» – ob. cit., p. 802. Consequentemente, tais restrições, como escrevem os mesmos Autores, podem «(…) vir a revelar-se injustificadas por violação dos princípios da adequação, necessidade e proporcionalidade (…)» – ob. cit., p. 803.». Igualmente no Acórdão n.º 50/2022, manifesta o Tribunal Constitucional o entendimento de que o direito à habitação, «cujo conteúdo se traduz no «direito a uma morada digna, onde cada um possa viver com a sua família» ... assume, a exemplo do que se verifica com outros direitos sociais, uma dupla natureza ou dimensão, ... (cf., neste sentido, entre outros, os Acórdãos n.ºs 101/92, 612/2019 e 393/2020). Por um lado, tem uma dimensão negativa ou defensiva, que se traduz no direito a exigir do Estado (ou de terceiros) que se abstenham de actos que prejudiquem tal direito; por outro lado, tem uma dimensão positiva, que correspondente ao direito dos cidadãos a medidas e prestações estaduais, visando a sua promoção e protecção, isto é, a medidas e prestações estaduais tendentes a assegurar «uma habitação adequada e condigna à realização da condição humana, em termos de preservar a intimidade pessoal e a privacidade familiar». É este também o entendimento de Gomes Canotilho e Vital Moreira ...que afirma o seguinte a respeito de tal direito: «Consiste, por um lado, no direito de não ser arbitrariamente privado da habitação ou de não ser impedido de conseguir uma; neste sentido, o direito à habitação reveste a forma de “direito negativo”, ou seja, de direito de defesa, determinando um dever de abstenção do Estado e de terceiros, apresentando-se, nessa medida, como um direito análogo aos “direitos, liberdades e garantias” (cfr. art. 17º). Por outro lado, o direito à habitação consiste no direito a obtê-la por via de propriedade ou arrendamento, traduzindo-se na exigência das medidas e prestações estaduais adequadas a realizar tal objectivo. Neste sentido, o direito à habitação apresenta-se como verdadeiro e próprio “direito social”.» É esta segunda vertente ou dimensão positiva do direito à habitação, enquanto direito fundamental de natureza social, que se encontra acentuada no artigo 65.º da Constituição, particularmente nos seus n.ºs 2 a 4. Nesta vertente, ... o direito à habitação é configurado um direito a prestações, cujo principal destinatário é o Estado, a quem são impostas um conjunto de incumbências no sentido criar as condições necessárias tendentes a assegurar tal direito (cf. o n.º 2 do referido artigo 65.º), bem como a adopção de políticas no sentido de estabelecer um sistema de renda compatível com o rendimento familiar e de acesso à habitação própria (cf. o n.º 3, idem) e ainda, em conjunto com as regiões autónomas e as autarquias locais, a adopção de outras medidas adequadas à prossecução daquele direito (cf. o n.º 4, ibidem). Significa isto que as pretensões fundadas no direito à habitação não têm como destinatários directos os particulares nas relações entre si, mas antes o Estado e igualmente as Regiões Autónomas e autarquias locais. O direito à habitação, como um direito social que é ..., não confere ...um direito imediato a uma prestação efectiva, já que não é directamente aplicável, nem exequível por si mesmo. (...) Não obstante, mesmo quando olhou para o direito à habitação nesta perspectiva, o Tribunal Constitucional não deixou de admitir a possibilidade de serem impostas restrições aos proprietários privados. A esse respeito, escreveu-se o seguinte no Acórdão n.º 151/92: «A concretização do direito à habitação – o facultar a cada pessoa uma morada condigna – é, pois, uma tarefa cuja realização – gradual, como se disse – a Constituição comete ao Estado. Mas, fundando-se o direito à habitação na dignidade da pessoa humana (ou seja, naquilo que a pessoa realmente é – um ser livre com direito a viver dignamente), existe, aí, um mínimo que o Estado sempre deve satisfazer. E para isso pode, até, se tal for necessário, impor restrições aos direitos do proprietário privado. Nesta medida, também o direito à habitação vincula os particulares, chamados a serem solidários com o seu semelhante (princípio de solidariedade social); vincula, designadamente, a propriedade privada, que tem uma função social a cumprir.». Esta ideia foi posteriormente retomada em diversa jurisprudência do Tribunal, de que é exemplo o recente Acórdão n.º 299/2020, no qual se reafirmou a admissibilidade de restrições ao direito de propriedade baseadas na “cláusula legal de conformação social da propriedade”: «A colocação sistemática do direito constitucional de propriedade no âmbito dos direitos económicos, sociais e culturais e a protecção “nos termos da Constituição” acentuam considerações objectivas que contribuem para a definição do seu conteúdo e limites. Com efeito, o âmbito de protecção daqueles direitos fundamentais acolhe valores e interesses sociais que devem ser ponderados quando em confronto com o direito de propriedade privada, como acontece como o direito à habitação (artigo 65.º) e o direito ao ambiente e qualidade de vida (artigo 66.º), assim como com os diversos regimes específicos de propriedade que a Constituição recorta em função da individualidade e destinação do respectivo objecto (artigos 65.º. n.º 4, 88.º, 94.º, 95.º, 96.º), que prevêem restrições que encontram justificação na aptidão da propriedade para a prossecução de interesses sociais. De modo que, tal como os demais direitos fundamentais, o direito de propriedade pode ser restringido por «razões sociais», nos termos que relevam do n.º 2 do artigo 18.º da Constituição, ou seja, por razões de importância constitucional. O que está vedado são intervenções legislativas restritivas do direito de propriedade, tendo em vista a prossecução de valores e interesses que não gozem, também eles, de protecção da Constituição.». Contudo, o Tribunal não deixou também de salientar que «a dimensão objectiva da garantia constitucional da propriedade privada não deve, porém, ser sobrevalorizada à custa da dimensão individual ou subjectiva» concluindo que «o direito constitucional de propriedade integra poderes e faculdades subjectivas intangíveis, através da abstenção do legislador» (cf. o ponto 13 do referido Acórdão n.º 299/2020). Por outro lado, mesmo quando se olha para o direito à habitação na sua dimensão negativa – traduzido num mero dever de abstenção do Estado e de terceiros, no sentido de não praticarem actos que possam prejudicar a efectiva realização daquele direito ou enquanto direito de não ser arbitrariamente privado da habitação –, não é de aceitar como constitucionalmente exigível que a realização do mesmo direito esteja dependente de limitações intoleráveis e desproporcionadas de direitos de terceiros, porventura também constitucionalmente consagrados, como sucede com o direito de propriedade privada (cf. o referido Acórdão n.º 101/92). Ou seja, embora o direito à habitação possa justificar limitações à propriedade, tais limitações terão de obedecer sempre a um princípio de equidade e de proporcionalidade, sem que se perca de vista que o direito à habitação constitucionalmente garantido, na sua vertente positiva, tem como titulares passivos, em primeira linha, o Estado e os demais entes públicos territoriais, e não os particulares (cf. o Acórdão n.º 612/2019) e que a consagração do direito fundamental à habitação «pressupõe a mediação do legislador ordinário destinada a concretizar o respectivo conteúdo, a efectivar-se segundo a “reserva do possível”, não conferindo, por si mesmo, habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e de conforto, com preservação da intimidade pessoal e da privacidade familiar, na medida em que isso sempre dependerá da concretização da tarefa constitucionalmente atribuída ao Estado» (cf. Acórdão n.º 829/96 e, neste mesmo sentido, entre outros, os Acórdãos n.ºs 508/99 e 29/2000). Finalmente, não é também irrelevante, no plano constitucional, para aferir do âmbito de protecção do direito à habitação, analisar a que título e em que circunstâncias quem pretende beneficiar da tutela desse direito acedeu ao espaço habitacional em questão e quais os fundamentos que poderão motivar a cessação do direito com base no qual se legitimava a utilização do espaço em causa, tendo em atenção o confronto com outros eventuais interesses conflituantes de terceiros sobre esse mesmo imóvel, que sejam igualmente merecedores de tutela (cf., a este respeito, os Acórdãos n.ºs 101/92 e 168/2010).» Ora, caso, por hipótese, algum destes princípios constitucionais pudesse, o que não concedemos, ser invocado para neutralizar o direito do legítimo proprietário de fazer cessar a ocupação ilícita do seu imóvel por terceiros sem qualquer título válido, existe no caso concreto uma circunstância que o recorrente faz por esquecer, mas cujo significado é absolutamente relevante e mesmo decisivo. Os réus deixaram de ser titulares do direito de propriedade do imóvel em 03-11-2011, mas, não obstante, continuam a viver no imóvel há mais de ... 12 (doze) anos! E foram interpelados pela legítima proprietária do imóvel para o entregaram há praticamente ... 3 (três) anos! Tal lapso de tempo, pela sua dimensão, torna absolutamente irrazoável, desproporcionada e ilegítima a invocação de problemas de saúde ou pessoais para deixarem de ocupar gratuitamente o que não lhes pertence, e condena, pelo princípio constitucional da proibição do excesso, qualquer tentativa de alegar direitos absolutos, como o direito à integridade física, ou fundamentais, como o direito à habitação, para impedir a legítima pretensão do proprietário. Por tudo isso e sem questionar sequer as razões de saúde e pessoais invocadas pelo recorrente, é manifesta a improcedência do recurso. V. Dispositivo: Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação julgar o recurso improcedente e, em consequência, negando provimento à apelação confirmam a decisão recorrida. Não há lugar ao pagamento de custas porque as devidas correspondiam apenas à taxa de justiça pela interposição do recurso (não foi apresentada resposta ao recurso) e o recorrente está dispensado do seu pagamento. * Porto, 20 de Junho de 2024. * Os Juízes Desembargadores Relator: Aristides Rodrigues de Almeida (R.to 836) 1.º Adjunto: Carlos Portela 2.º Adjunto: Ernesto Nascimento [a presente peça processual foi produzida pelo Relator com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas qualificadas] |