Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1821/21.6T8VNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MANUELA MACHADO
Descritores: CONVENÇÃO DE INDEMNIZAÇÃO DIRETA AO SEGURADO
PRIVAÇÃO DO USO DA VIATURA
Nº do Documento: RP202406201821/21.6T8VNG.P1
Data do Acordão: 06/20/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A chamada “Convenção IDS” (Indemnização Direta ao Segurado) é um instrumento negocial que apenas envolve as seguradoras que a subscrevem, decorrendo do teor de tal Convenção que a mesma visa simplificar os interesses das seguradoras (embora, reflexamente, também os dos sinistrados), surgindo a seguradora do lesado (ali designada como Credora) como uma mera facilitadora ou intermediária no processo indemnizatório de que são partes únicas e verdadeiras o lesado e a seguradora do veículo mediante o qual se provocaram os danos (ali designada como Devedora). E assim sendo, as consequências jurídicas do sinistro repercutem-se sempre e apenas na pessoa da seguradora do lesante, ou seja, a Devedora.
II - No âmbito da convenção IDS, se a seguradora do lesado, dita credora, pagou a despesa de reparação do veículo da autora, sua segurada, tendo sido reembolsada pela seguradora devedora, do lesante, mas entendeu não dever pagar o valor que lhe é exigido a título de aparcamento da viatura, o que levou a que a dita viatura da autora se encontre ainda na oficina, retida até que a seguradora credora pague o valor reclamado a título de aparcamento, a autora/apelante é totalmente alheia a esta situação, não sendo parte no acordo celebrado entre a seguradora credora e a oficina, à qual a seguradora deu ordem para a reparação, como não é parte no protocolo entre as duas seguradoras, dele lesado e do lesante.
III - E sendo a autora alheia às relações entre a sua seguradora e a oficina e entre a duas seguradoras, não tendo sido ressarcida dos danos pela privação do uso da sua viatura, era à seguradora do lesante, a ré, a quem tinha que pedir a indemnização correspondente, como fez.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação 1821/21.6T8VNG.P1

Acordam na 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:

I - RELATÓRIO
A..., Unipessoal, Lda., instaurou ação declarativa com processo comum contra a B..., Companhia de Seguros, SA, pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de €39.445,73, que respeita aos danos que sofreu por causa de um acidente de viação em que interveio um veículo seu e que resultou de culpa do condutor do outro veículo interveniente, cuja responsabilidade civil havia sido transferida para a ré.
A ré contestou, pugnando pela improcedência da ação e deduziu a intervenção da C... PLC, tendo esta sido admitida a intervir no processo na qualidade interveniente acessória.
A C... PLC contestou, pugnando pela improcedência da ação.
Foi proferido despacho saneador, onde se conheceu parcialmente do mérito, tendo improcedido os pedidos de condenação da ré a pagar:
- o valor de € 1.757,18, referente ao valor necessário para proceder à reparação da sua viatura automóvel, valor acrescido dos juros legais; e
- o valor pelo aparcamento da viatura ..-HB-.. nas instalações da Sociedade D..., Unipessoal, Lda., nos montantes de €18.188,55, bem como no “valor diário de € 24,95, desde a data da propositura da ação até efetivo e integral pagamento.
Esta decisão transitou em julgado.
Foi determinado o prosseguimento do processo para determinar se a autora tem direito a exigir da ré B... o valor de €19.500 pelo dano de privação do uso da viatura acidentada, desde 17/01/2019 até à data da propositura da ação, acrescida de juros, à taxa legal, desde a citação, até integral e efetivo pagamento, no valor acrescido de €25,00 diários até efetivo e integral pagamento.

Prosseguindo o processo para julgamento, ao qual se procedeu, foi proferida sentença que julgou a ação improcedente, absolvendo a ré do pedido quanto ao pagamento pelo dano de privação do uso da viatura acidentada.
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Não se conformando com o assim decidido, veio a Autora interpor o presente recurso, que foi admitido como apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
A apelante formulou as seguintes conclusões:
“1 – A Recorrente veio propor a presente ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra a aqui R/Recorrida, pedindo a condenação desta no pagamento da quantia total de € 39.445,73 (trinta e nove mil quatrocentos e quarenta e cinco euros e setenta e três cêntimos).
2 – A referida ação teve por objeto um acidente de viação, ocorrido no pretérito dia 17 de Janeiro de 2019, onde foi interveniente o veículo automóvel da aqui Recorrente, com a matrícula ..-HB-.., e um outro veículo, com a matrícula ..-..-DQ, segurado na Recorrida.
3 – Sucede que no despacho saneador foi declarado improcedente os pedidos da Recorrente, quanto ao valor da reparação e do parqueamento da viatura.
4 – Ficando apenas por apurar a responsabilidade da Recorrida, quanto ao pedido de privação do uso da viatura HB.
5 – Após a realização da audiência de discussão de julgamento, foi dado como provado que a responsável pelo sinistro foi a viatura DQ, segurada na Ré, que o sinistro foi tramitado ao abrigo da IDS – Indemnização Direta ao Segurado, que a peritagem foi realizada no dia 12/02/2019, quase um mês sobre a data do sinistro, que a ordem de reparação ocorreu apenas no dia 28/02/2019 e a viatura ficou reparada no dia 06/03/2019 – (Vide factos provados).
6 – Ficou igualmente provado que a oficina exerceu direito de retenção sobre a viatura HB, uma vez que a C... efetuou o pagamento de parte do valor faturado, apenas no dia 04/06/2021, mais de dois anos sobre a data da reparação da viatura HB – (Vide factos provados).
7 – Por último, ficou provado que a viatura ainda se encontra nas instalações da oficina que procedeu à reparação, uma vez que esta está a exercer direito de retenção sobre a mesma, por não lhe ter sido liquidado o valor do parqueamento – (Vide factos provados).
8 – Todavia, o Tribunal a quo absolveu a R/Recorrida do pedido, porquanto, segundo a douta sentença recorrida, não poderia ser assacada aquela, qualquer ação ou omissão que pudesse conduzir à sua responsabilização, uma vez que o processo de regularização do sinistro foi tramitado ao abrigo da IDS e, por conseguinte, tramitado pela C..., não tendo a R/Recorrida qualquer intervenção no facto danoso provocado na esfera jurídica da Recorrente (paralisação da sua viatura automóvel).
9 – A Recorrente não pode concordar com aquela posição, daí apresentar o presente recurso que irá versar, única e exclusivamente, sobre a matéria de direito.
10 – Assim, conforme matéria dada como provada na sentença recorrida, a viatura automóvel HB, propriedade da Recorrente ainda se encontra paralisada, nas instalações da oficina que procedeu à sua reparação.
11 – A privação do uso de um veículo é, em si mesma, um dano indemnizável, desde logo por impedir o proprietário (ou, eventualmente, o titular de outro direito, diferente do direito de propriedade, mas que confira direito a utilizá-lo) de exercer os poderes correspondentes ao seu direito.
12 – A isto acresce o facto de a viatura automóvel acidentada ser um veículo que se encontrava ao serviço do escopo social da Autora, nomeadamente para transportar idosos ao hospital – (Vide factos provados).
13 – A sua paralisação causou graves transtornos à Recorrente.
14 – O dever de a Ré indemnizar a Autora não resulta de um contrato, resulta sem dúvida do princípio da boa fé, tal como plasmado no artigo 762.º n.º 1 do Código Civil, representando uma transferência, para o campo contratual, do princípio neminem laedere.
15 – Escudou-se a Recorrida no facto de a regularização do sinistro ter sido efetuado ao abrigo da IDS, onde alegadamente não teve qualquer envolvimento no processo de averiguação de danos e nos atrasos dele decorrentes.
16 – Salvo melhor opinião em contrário, não assiste qualquer razão à Recorrida, apesar de ter sido acolhida pela douta Sentença recorrida.
17 – A Convenção IDS não passa de um instrumento que apenas envolve as seguradoras que a subscreveram, funcionando assim como uma autêntica resinteralios acta relativamente aos sinistrados.
18 – Decorre claramente do teor da Convenção que a mesma visa operacionalizar em primeira linha os interesses das seguradoras, surgindo a seguradora do lesado como uma mera facilitadora ou intermediária no processo indemnizatório de que são partes únicas e verdadeiras o lesado e a seguradora do veículo mediante o qual se provaram os danos.
19 – Ora, decorre daqui que as consequências jurídicas do sinistro se repercutem sempre e apenas na pessoa da seguradora dita devedora, aqui Recorrida.
20 – Assim, não pode a Recorrida querer escusar-se a reparar o dano causado, privação do uso do veículo HB, com fundamento em razões atinentes à execução inter-partes (inter-seguradoras) da dita Convenção, independentemente de todo o processo negocial ter decorrido com a C....
21 – Não obstante o aludido Protocolo IDS, a verdade é que as consequências jurídicas do sinistro se repercutem sempre e apenas na pessoa da seguradora aqui Recorrida.
22 – Aliás, esta questão já foi levada inúmeras vezes aos tribunais superiores, sendo unânimes em referir que as implicações danosas emergentes do sinistro correm naturalmente por conta do obrigado à reparação do dano, independentemente de a regularização do sinistro ter sido tramitada ao abrigado do Protocolo IDS, para tanto basta atentar no acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, datado de 04/02/2021, proferido ao abrigo do processo n.º 11280/17.2T8LRS.L1.S1.
23 – Assim, mal andou o Tribunal a quo para absolver a Recorrida do pedido.
24 – Por tudo o que se acabou de expor, dúvidas não restam que cabe à Recorrida B... proceder ao pagamento do valor correspondente à privação do uso da viatura automóvel da Recorrente.
25 – Dito isto, a Recorrente encontra-se privada da sua viatura automóvel desde a data do acidente, 17 de Janeiro de 2019.
26 – Foi dado igualmente como provado que a privação do uso provocou e continua a provocar prejuízos à Recorrente, desde logo pelo facto de a viatura estar adstrita à prossecução do objeto social da Recorrente.
27 – A propósito do segmento da pretensão da aqui Recorrente, não se pode ignorar que a privação do uso do veículo automóvel da Recorrente, desacompanhada da sua substituição por outro veículo de idênticas características ou do pagamento de uma quantia bastante para alcançar o mesmo efeito, reflete o corte definitivo e irrecuperável de uma “fatia” dos poderes inerentes ao proprietário.
28 – Na avaliação do dano, deve-se procurar alcançar uma reconstituição efetiva, por equivalente ao valor em dinheiro, que corresponda ao montante dos danos.
29 – A sua quantificação depende, porém, de muitos fatores, designadamente da utilidade que era dada à viatura acidentada, neste caso, era utilizada no transporte de idosos ao hospital e na prossecução do objeto da sociedade.
30 – A Recorrente, no seu petitório, pede a condenação da Recorrida no pagamento diário de € 25,00 (vinte e cinco euros), desde a data do acidente, até efetivo e integral pagamento.
31 – Encontrando-se a viatura impossibilitada de circular, por persistirem os custos de amortização do valor da viatura e os aludidos custos fixos de utilização, sofre o seu proprietário, usufrutuário ou titular de outro direito de gozo, ipso facto, e enquanto tal impossibilidade perdurar, uma diminuição patrimonial, porquanto a tais encargos deixa de corresponder a possibilidade de fruição daquele bem.
32 – Ficou demonstrado na sentença sob censura que a Recorrente teve graves prejuízos com a privação da sua viatura automóvel, por todas as razões acima apontadas.
33 – Assim, tem a Recorrida que indemnizar o Recorrente por esses mesmos prejuízos, nomeadamente no valor da privação do uso da viatura automóvel daquele, de acordo com o valor peticionado, ou seja, no valor diário de € 25,00 (vinte e cinco euros), desde a data do acidente, até efetivo e integral pagamento.
34 – Deste modo, deverá ser alterada a sentença sob análise, devendo ser considerada a responsabilidade extracontratual da Recorrida B..., na privação do uso da viatura propriedade da Recorrente, dano sofrido por esta e, em consequência, ser a Recorrida condenada a pagar à Recorrente o valor diário de € 25,00 (vinte e cinco euros), desde a data do acidente, 17 de Janeiro de 2019, até à presente data, e que se calcula em € 42.250,00 (quarenta e dois mil duzentos e cinquenta euros), num total de 1730 dias.”.
Conclui que dando provimento ao presente recurso, deve ser revogada a decisão recorrida, e substituída por outra que condene a Recorrida B..., no valor diário de € 25,00 (vinte e cinco euros), a título de privação do uso do veículo, desde a data do acidente até efetivo e integral pagamento, num total de 1730 dias, o que perfaz a quantia total de € 42.250,00 (quarenta e dois mil duzentos e cinquenta euros).

A Recorrida B... – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso, com a consequente confirmação da sentença recorrida.
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Após os vistos legais, cumpre decidir.
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II - DO MÉRITO DO RECURSO
1. Objeto do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. arts. 635º, nº 4, 637º, nº 2, 1ª parte e 639º, nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil.
Atendendo às conclusões das alegações apresentadas pela Apelante, a única questão a apreciar consiste em decidir se deve ser alterada a análise jurídica que foi feita na sentença recorrida, por errada aplicação das regras de direito aplicáveis ao caso, concluindo-se pela total procedência da ação.
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2. Apreciando:
2.1. A decisão recorrida
A apelante não impugnou a matéria de facto dada como provada e não provada, pelo que se consideram assentes os seguintes factos:
1) A autora é a dona do veículo automóvel da marca Nissan, modelo ..., com a matrícula ..-HB-...
2) No dia 17/01/2019, pelas 21 horas e 15 minutos, na Rua ..., junto ao número de polícia ..., em ..., Vila Nova de Gaia, ocorreu um embate em que foi interveniente também a viatura matrícula ..-..-DQ.
3) A viatura ..-HB-.. encontrava-se com a responsabilidade civil por danos causados a terceiros transferida para a Companhia de Seguros “C... PLC – Sucursal em Portugal”, através do contrato de seguro com a apólice número ...;
4) A viatura ..-..-DQ encontrava-se com a responsabilidade civil por danos causados a terceiros transferida para a Companhia de Seguros “E...”, entretanto incorporada na B... Seguros, através do contrato de seguro com a apólice número ...;
5) No momento do embate, o veículo HB era conduzido pelo senhor AA e o veículo DQ era conduzido pela sua proprietária e tomadora do seguro, a senhora BB;
6) O veículo HB circulava na Rua ..., em ..., Vila Nova de Gaia e o veículo DA circulava na mesma artéria, imediatamente atrás da viatura HB.
7) O condutor do veículo HB foi abrandou a viatura por si conduzida, por força do abrandamento da viatura que circulava à sua frente tendo então a condutora do veículo DQ que circulava na retaguarda do veículo HB, não respeitando a distância de segurança para imobilizar, de forma segura, a sua viatura, embatido na traseira da viatura da autora.
8) Por força daquele embate, o veículo HB ficou com a traseira afetada, com os farolins traseiros, os sensores de parqueamento traseiros, o sensor antichoque e o para-choques traseiro estragados.
9) O embate foi participado à seguradora C..., tendo sido tramitado ao abrigo da IDS – Indemnização Direta ao Segurado pela companhia, o que foi aceite pelas seguradoras C... e pela E... (atual B...).
10) Após o embate, a viatura de matrícula ..-HB-.. não podia circular, tendo naquele dia sido transportada para a oficina D..., Unipessoal, Lda., ficando a aguardar a peritagem e respetiva ordem de reparação.
11) A peritagem foi feita a 12/02/2019, tendo sido orçada em 1.757,18€, dando a C... PLC ordem de reparação a 28/02/2019.
12) A viatura ficou reparada no dia 6 de março de 2019.
13) A oficina comunicou à C... PLC a 26/02/2019, 06/03/2019, 12/03/2019, 19/03/2019, 26/03/2019, 18/04/2019, 17/06/2019, 05/07/2019, 01/06/2021, 17/06/2021 e 30/09/2021, que para além do valor da reparação do veículo, seria necessário pagar o aparcamento do veículo nas suas instalações, tudo conforme termos das comunicações eletrónicas juntas com o requerimento de 05/09/2022, cujos teores aqui se dão por reproduzidos.
14) A C... PLC pagou a 4 de junho de 2021, por transferência bancária, a D..., Unipessoal, Lda., a quantia de 1.757,18€.
15) O proprietário da oficina da D..., Unipessoal, Lda., não permitiu que a viatura fosse entregue por pretender que lhe fosse pago, para além do valor da reparação, o montante correspondente ao aparcamento e imobilização da viatura na sua oficina, que computava, a 30/05/2021 e a 01/06/2021, em 27.366,90€.
16) Estando ainda esse veículo na oficina.
17) A autora utilizava veículo de matrícula ..-HB-.. no exercício da sua atividade, servindo designadamente ara transportar idosos ao hospital.
18) Desde que se viu privada da utilização do veículo de matrícula ..-HB-.., utilizou um outro veículo, pertencente ao seu representante legal.

E considera-se não provado, o facto seguinte:
19) A C... PLC enviou em 26.11.2019 à oficina reparadora do veículo da autora uma carta cheque com o valor de €1.757,18, correspondente ao valor da peritagem de reparação do veículo.
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Com interesse para a questão que se coloca no recurso em apreciação, passamos a transcrever a motivação de direito que consta da sentença recorrida:
“3. Fundamentação jurídica
O caso sub judice integra uma situação de responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos, cujo regime jurídico se encontra plasmado nos artigos 483.º e seguintes do Código Civil (CC), importando, antes de mais, verificar se estão reunidos os pressupostos exigidos no referido preceito legal, sem os quais não poderá haver lugar ao direito de indemnização peticionado pelo autor.
Dispõe o referido normativo legal que aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.
São, assim, pressupostos necessários à existência de responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos, também denominada “aquiliana”, a verificação de um facto voluntário, a ilicitude, a imputação do facto ao lesante, a culpa, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Elemento básico da responsabilidade é o facto praticado pelo agente, um comportamento ou uma forma de conduta humana, objetivamente dominável ou controlável pela vontade, que tanto pode ter conteúdo positivo, consistindo numa ação, como conteúdo negativo, traduzindo-se numa omissão.
Por outro lado, para que o facto seja ilícito é necessário que ele seja contrário à ordem jurídica, ou seja, que se verifique uma desconformidade entre a conduta devida e o comportamento praticado.
A ilicitude é, assim, a reprovação da conduta do agente no plano geral e abstrato da lei – diferente da culpa que se reporta já a um comportamento concreto – e pode traduzir-se na violação de um direito subjetivo de outrem, ou seja, de direitos absolutos oponíveis erga omnes, aos quais corresponde um dever geral de sujeição, ou na infração de uma disposição legal que protege interesses alheios, tratando-se aqui de leis que embora protejam interesses particulares, não conferem aos seus titulares um direito subjetivo propriamente dito, impedindo-os deles disporem livremente.
Nestes casos, a existência de responsabilidade pressupõe que a lesão dos interesses dos particulares corresponda a violação de uma norma legal, que a tutela dos interesses particulares figure entre os fins de proteção da norma e ainda que o dano se tenha registado no círculo de interesses privados que a lei visa proteger.
Por sua vez, a culpa traduz-se num juízo de censura ético-jurídica sobre a conduta do agente, manifestada na imputação psicológica do facto à sua vontade, e pode revestir duas formas distintas: o dolo, modalidade mais grave da culpa, em que se verifica uma estreita identificação entre o facto e a vontade do agente, e a negligência que consiste na omissão do cuidado ou diligência exigível ao agente.
O dolo pode assumir diferentes níveis de intensidade consoante o grau de vontade que o agente dirige à prática do facto, existindo dolo direto quando o agente representa o resultado da sua conduta e o quer como fim da sua atuação; necessário, quando o agente não quer diretamente o facto ilícito mas prevê-o como consequência inevitável da sua conduta e ainda assim decide agir; ou eventual, quando o agente prevê a produção do facto ilícito como efeito possível da sua ação e age conformando-se com a sua verificação.
A negligência, por seu lado, pode ser consciente, se, ao omitir o cuidado devido, o agente previr a possibilidade de produção do facto ilícito ou inconsciente, quando o agente não chega sequer a conceber como possível a verificação de tal facto.
Nos termos do disposto no artigo 487.º, n.º 2, do CC, a culpa é apreciada objetivamente, em função de um padrão ideal de comportamento ficcionado pela lei – o critério de diligência do bonus pater familias – que corresponde à conduta que um homem medianamente sensato e prudente adotaria se estivesse colocado diante das circunstâncias do caso concreto.
Agir com culpa significa, assim, atuar em termos de a conduta do agente merecer a reprovação ou censura do direito. E a conduta do lesante é reprovável quando, pela sua capacidade e em face das circunstâncias concretas da situação, se concluir que ele podia e devia ter agido de outro modo (Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, volume I, pág. 562).
Enquanto facto constitutivo do direito à indemnização decorrente da responsabilidade civil extracontratual, a culpa tem, em princípio, de ser provada pelo lesado, nos termos do disposto nos artigos 342.º, 1 e 487.º do Código Civil, apenas se invertendo esse ónus no caso de se verificar alguma das situações para as quais a lei estabelece uma presunção de culpa, como são os casos previstos nos artigos 491.º a 493.º do referido diploma legal.
O dano, por seu lado, consiste num prejuízo ou sacrifício causado nos interesses juridicamente tutelados de terceiros, os quais podem revestir natureza patrimonial ou não patrimonial, consoante sejam ou não suscetíveis de avaliação pecuniária.
O último pressuposto da responsabilidade civil é o nexo de causalidade entre facto e dano, consagrando a nossa lei no artigo 563.º do CC, a formulação negativa da teoria da causalidade adequada.
Com efeito, não podendo considerar-se como causa em sentido jurídico toda e qualquer condição, há que restringir a causa aquela ou aquelas condições que se encontrem para com o resultado numa condição mais estreita, isto é, numa relação tal que seja razoável impor ao agente responsabilidade por esse mesmo resultado (Pires de Lima/Antunes Varela, citando Vaz Serra, Código Civil Anotado, volume I, pág. 547.)
O nexo causal coenvolve a verificação de um nexo naturalístico, reportado ao facto sem o qual o dano não se teria verificado, complementado por um juízo de adequação, do qual se possa concluir que o facto é, em abstrato, causa adequada do dano.
Segundo esta formulação, causa adequada deve considerar-se, em princípio, toda e qualquer condição do prejuízo. Mas uma condição deixará de ser causa adequada, tornando-se pois juridicamente indiferente, desde que seja irrelevante para a produção do dano segundo as regras da experiência, dada a sua natureza e atentas as circunstâncias conhecidas do agente, ou suscetíveis de ser conhecidas por uma pessoa normal, no momento da prática da acção. E dir-se-á que existe aquela relevância quando, dentro deste condicionalismo, a acção não se apresenta de molde a agravar o risco da verificação do dano” (Galvão Telles, Direito das Obrigações, pág. 405.)
Em suma, segundo o critério estabelecido no artigo 563.º do Código Civil, o facto que atuou como condição do dano só deixará de ser considerado como causa adequada se se mostrar totalmente irrelevante para a produção daquele, tendo-o provocado apenas por virtude de circunstâncias excecionais ou anormais.
Por fim, deve ainda ter-se em conta que a causalidade adequada não se refere ao facto e ao dano isoladamente considerados, mas ao processo factual que, em concreto, conduziu ao dano, sendo esse processo concreto que há de caber na aptidão geral ou abstrata do facto para o produzir.
Postas estas considerações, temos que na sequência da decisão parcial de mérito proferida no despacho saneador, que conheceu pela improcedência dos pedidos de condenação da ré quanto ao pagamento da reparação da sua viatura automóvel e do pagamento do aparcamento dessa viatura nas instalações da oficina D..., Unipessoal, Lda., a ação prosseguiu para determinar se a autora tem direito a exigir da ré B... o valor de €19.500 pelo dano de privação do uso da viatura acidentada, desde 17/01/2019 até à data da propositura da ação, acrescida de juros.
Nem sempre tem sido unânime a resposta da jurisprudência quanto à ressarcibilidade e qualificação da natureza deste dano, embora se venha a defender que na responsabilidade extracontratual emergente de acidente de viação a privação do uso de um veículo automóvel constitui um dano autónomo indemnizável na medida em que o seu dono fica impedido do exercício dos direitos de usar, fruir e dispor inerentes à propriedade, que o artigo 1305.º, do CC, lhe confere de modo pleno e exclusivo, sendo suficiente a prova pelo lesado que utilizava habitualmente a viatura na sua vida diária, presumindo-se que da respetiva privação derivem danos efetivos (sendo exemplo deste entendimento o acórdão do STJ de 17/06/2021 (processo n.º 879/17.7T8EVR.E1.S1), consultado em www.dgsi.pt).
Não obstante, neste caso concreto, a pergunta que se faz sobre se a autora pode exigir da ré B... o valor que pede a este título é negativa.
À ré B..., Companhia de Seguros, SA, nenhuma ação ou omissão se pode assacar que possa conduzir à sua responsabilização, faltando assim desde logo o primeiro pressuposto da responsabilidade civil acima enunciado e, nesse seguimento, todos os demais.
A ré B..., Companhia de Seguros, SA, nada fez ou nada deixou de fazer que devesse ter feito, considerando que a autora optou por reclamar os prejuízos que resultaram do acidente de viação ao abrigo da Convenção IDS (Indemnização Direta ao Segurado), diretamente à sua própria companhia de seguros C... PLC.
Esta convenção resulta de um protocolo entre seguradoras e permite aos seus segurados que se o sinistro não envolver mais de dois veículos, danos materiais superiores a €15.000 e não implicar danos corporais, resolver diretamente o sinistro com a sua própria seguradora, que deverá assumir os danos no veículo, acertando posteriormente as contas com a seguradora do terceiro.
Tendo a autora assim optado, o que a ré B..., Companhia de Seguros, SA, aceitou, cabia naturalmente à C... PLC proceder ao pagamento desses prejuízos, não cabendo essa obrigação à ré B..., Companhia de Seguros, SA, que, segundo o que disse a testemunha CC, já procedeu inclusive à compensação devida com a C....
Desta forma, outra alternativa não existe senão absolver a ré B..., Companhia de Seguros, SA, do pedido, não deixando aqui de referir que se admite como possível que outra pudesse ser a resposta do tribunal caso a ação tivesse sido intentada contra a C... PLC.
Mas não foi. A intervenção da C... PLC neste processo é como terceira interveniente, ocupando a posição de parte acessória da ré, “sendo a sua intervenção destinada apenas a auxiliar na defesa da parte principal que o chama e que ocupa na ação, necessariamente, a posição de demandado. O que justifica esta modalidade de intervenção não é qualquer comparticipação na relação material controvertida do réu com o autor, não é qualquer proximidade entre causas de pedir e pedidos, é somente a circunstância de entre o réu e o chamado existir uma outra relação jurídica (distinta da que une as partes principais) em função da qual será depois possível ao réu, no caso de decair na defesa, reverter contra o chamado os efeitos da sentença que o condenar” (acórdão da Relação do Porto de 15/06/2022 (processo n.º 51664/18.7YIPRT.P1, consultado em www.dgsi.pt).
Desta forma, a ação improcede.
4. Decisão
Face ao exposto, para além do que já foi decidido no despacho saneador, julgo a presente ação improcedente, por não provada, e em consequência, absolvo a ré B..., Companhia de Seguros, SA, do pedido formulado pela autora A..., Unipessoal, Lda., quanto ao pagamento pelo dano de privação do uso da viatura acidentada.
As custas correm pela autora, atento o vencimento (artigo 527.º, 1, do CPC).
Notifique e registe.”
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2.2. Posto isto, entende a Apelante que, sendo a privação do uso de um veículo, em si mesma, um dano indemnizável, e que a Convenção IDS não passa de um instrumento que apenas envolve as seguradoras que a subscreveram, funcionado assim como uma autêntica res inter alios acta relativamente aos sinistrados, as consequências jurídicas do sinistro se repercutem sempre e apenas na pessoa da seguradora devedora, aqui Recorrida.
Vejamos:
Depois de discorrer, de forma que não nos merece censura, sobre a responsabilidade civil extracontratual e os seus requisitos, a decisão recorrida refere que “À ré B..., Companhia de Seguros, SA, nenhuma ação ou omissão se pode assacar que possa conduzir à sua responsabilização, faltando assim desde logo o primeiro pressuposto da responsabilidade civil acima enunciado e, nesse seguimento, todos os demais.
A ré B..., Companhia de Seguros, SA, nada fez ou nada deixou de fazer que devesse ter feito, considerando que a autora optou por reclamar os prejuízos que resultaram do acidente de viação ao abrigo da Convenção IDS (Indemnização Direta ao Segurado), diretamente à sua própria companhia de seguros C... PLC.
Esta convenção resulta de um protocolo entre seguradoras e permite aos seus segurados que se o sinistro não envolver mais de dois veículos, danos materiais superiores a €15.000 e não implicar danos corporais, resolver diretamente o sinistro com a sua própria seguradora, que deverá assumir os danos no veículo, acertando posteriormente as contas com a seguradora do terceiro.
Tendo a autora assim optado, o que a ré B..., Companhia de Seguros, SA, aceitou, cabia naturalmente à C... PLC proceder ao pagamento desses prejuízos, não cabendo essa obrigação à ré B..., Companhia de Seguros, SA, que, segundo o que disse a testemunha CC, já procedeu inclusive à compensação devida com a C....
Desta forma, outra alternativa não existe senão absolver a ré B..., Companhia de Seguros, SA, do pedido, não deixando aqui de referir que se admite como possível que outra pudesse ser a resposta do tribunal caso a ação tivesse sido intentada contra a C... PLC.”.
Não podemos concordar com esta decisão.
De facto, a chamada “Convenção IDS” (Indemnização Direta ao Segurado) é um instrumento negocial que apenas envolve as seguradoras que a subscrevem, decorrendo do teor de tal Convenção que a mesma visa simplificar os interesses das seguradoras (embora, reflexamente, também os dos sinistrados), surgindo a seguradora do lesado (ali designada como Credora) como uma mera facilitadora ou intermediária no processo indemnizatório de que são partes únicas e verdadeiras o lesado e a seguradora do veículo mediante o qual se provocaram os danos (ali designada como Devedora). E assim sendo, afigura-se evidente que as consequências jurídicas do sinistro se repercutem sempre e apenas na pessoa da seguradora do lesante, ou seja, a Devedora.
Neste sentido se pronunciou o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 07-07-2011, Processo 2843/09.0TBVCT.G1, onde se diz:
“I - A chamada “Convenção IDS” (Indemnização Directa ao Segurado) é um instrumento negocial que apenas envolve as seguradoras que a subscrevem, funcionando como uma res inter alios acta relativamente aos sinistrados.
II - Deste modo, é sempre à seguradora do veículo cujo condutor provocou o acidente que compete reparar o dano, não à seguradora do veículo do lesado.
III - É ao autor da lesão (e, consequentemente, à seguradora para quem tenha sido transferida a responsabilidade), e não ao lesado, que compete agir, e de forma diligente, para que o dano seja reparado.
IV - Consequentemente, as implicações danosas acrescidas (“agravamento do dano”) emergentes do decurso do tempo correm por conta do obrigado à reparação do dano e não por conta do lesado, sem prejuízo dos prazos de prescrição.”

Nos presentes autos, mostra-se provada a responsabilidade civil da ré B..., enquanto seguradora do veículo considerado responsável pelo acidente, responsabilidade que a ré assumiu quando aceitou pagar a reparação da viatura, através do sistema IDS, depois de a C... (seguradora da autora) ter aceitado a intervenção no âmbito da convenção IDS.
Como já foi decidido no despacho saneador proferido nos autos, que decidiu parcialmente a ação, e que transitou em julgado, “se, no passado, a C... reconheceu que o segurado da E... (atual B...) era o responsável pelo embate nos exatos termos que foram participados e a B... aceitou essa mesma responsabilidade nos exatos termos que lhe foram comunicados pela C..., não pode a B... vir agora, sem ofender os princípios basilares da boa fé, pretender que se discuta a dinâmica de um embate que, no passado, aceitou.”.
No âmbito da convenção IDS, a C... (credora) pagou a despesa de reparação do veículo da autora, sua segurada, tendo sido reembolsada pela ré B... (devedora).
Contudo, a C... entendeu não dever pagar o valor que lhe é exigido pela oficina que procedeu à reparação, a título de aparcamento da viatura, o que levou a que a dita viatura da autora se encontre ainda na mesma oficina, retida até que a C... pague o valor reclamado a título de aparcamento.
Ora, a autora/apelante é totalmente alheia a esta situação, não sendo parte no acordo celebrado entre a C... e a oficina, à qual a seguradora deu ordem para a reparação, como não é parte no protocolo entre as duas seguradoras, dele lesado e do lesante.
E sendo alheia às relações entre a C... e a oficina e entre a duas seguradoras, não tendo sido ressarcida dos danos pela privação do uso da sua viatura, era à seguradora do lesante, a ré B..., a quem tinha que pedir a indemnização correspondente.
O facto de ser a sua seguradora a recusar pagar à oficina as despesas com o aparcamento da viatura, o que causou a retenção do veículo pela oficina, e, consequentemente, o aumento dos danos sofridos pela autora, com a privação do uso da viatura, não faz recair sobre si esse agravamento dos danos.
Como seguradora do veículo responsável pela ocorrência do acidente, em virtude do contrato de seguro celebrado com o respetivo proprietário, cabe à ré o ressarcimento de todos os danos sofridos pelo lesado. Se tais danos se agravaram pelo facto de ter sido pedida a resolução do acidente ao abrigo da Convenção IDS, e a seguradora do lesado não comunicou à seguradora do lesante a situação que levou à retenção da viatura e ao agravamento do dano pela privação do respetivo uso, é entre as duas seguradoras que a situação deve ser resolvida, não podendo a apelante, que, como referido, é alheia a essa mesa situação, ser prejudicada.
Neste sentido, cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 16-11-2016, Processo 1209/10.4TJLSB.L1-2, disponível em dgsi.pt, onde se decidiu:
“I - Na consequência de acidente de viação em que tenha sido assinada declaração amigável entre os vários intervenientes e sendo accionada a convenção IDS (indemnização directa ao segurado), a falta de acordo entre o lesado e a sua seguradora faz cessar a intervenção desta ao abrigo daquela convenção.
II - Na sequência da cessação da intervenção da seguradora do lesado, este apenas poderá pedir o ressarcimento dos danos sofridos e ainda não indemnizados junto da seguradora do lesante ao abrigo do seguro da responsabilidade civil.
III - A falta de reparação por parte da seguradora do lesado não inverte a responsabilidade civil das seguradoras intervenientes, ou seja, a seguradora do lesado não se torna responsável pelos danos causados, na medida em que a sua intervenção é tão só para agilizar o pagamento da indemnização devida e não mais que isso.”.
Em sentido idêntico decidiu o Tribunal da Relação de Coimbra, em acórdão de 22-09-2020, Processo 5894/17.8T8VIS.C1.
Deste modo, deve proceder a apelação, cabendo decidir se a apelante tem direito à pretendida indemnização pela privação do uso da viatura identificada nos autos.

Tem-se entendido que o dano decorrente da privação do veículo constitui dano patrimonial autónomo suscetível de indemnização, quando o proprietário do veículo sinistrado se viu privado de um bem que faz parte do seu património, deixando de dele poder dispor e gozar livremente, nos termos estabelecidos no art. 1305.º do Código Civil.
Neste sentido, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 18-05-2023, Processo 5560/20.7T8PRT.P1, Relator: JUDITE PIRES, onde se decidiu:
“I - A privação do uso de veículo danificado em consequência de acidente, pode constituir um ilícito gerador da obrigação de indemnizar, uma vez que impede o seu dono do exercício dos direitos inerentes à propriedade, i. é, de usar, fruir e dispor do bem de que se viu privado.
II - A determinação do valor do dano haverá de corresponder ao efectivo prejuízo sofrido pelo lesado em consequência da privação do bem que lhe pertence; não podendo ser quantificado esse prejuízo, a sua reparação far-se-á com recurso a critérios de equidade.”
Assim, face ao disposto nos arts. 562.º a 564.º e 566.º do Código Civil, da imobilização de um veículo em consequência de acidente, pode resultar:
a) um dano emergente - a utilização mais onerosa de um transporte alternativo como o seria o aluguer de outro veículo;
b) um lucro cessante - a perda de rendimento que o veículo dava com o seu destino a uma atividade lucrativa;
c) um dano advindo da mera privação do uso do veículo que impossibilita o seu proprietário de dele livremente dispor nos termos previstos no art. 1305.º do Código Civil, ou seja, usando-o, fruindo-o e aproveitando-o como bem entender.
No mesmo sentido, veja-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 28/09/2021, Processo 6250/18.6T8GMR.G1.S1, disponível em dgsi.pt, onde se diz:
“(…) constitui dano indemnizável toda a perda, prejuízo ou desvantagem resultante da ofensa de bens ou interesses alheios protegidos pela ordem jurídica.
Na verdade, o lesante deve reparar todos os prejuízos causados ao lesado que merecerem a tutela do direito de modo a colocá-lo na situação que existiria se não tivesse ocorrido a lesão, querendo significar, no que ao caso sub iudice respeita, que o período de privação do uso do veículo sinistrado, que não seja imputável ao lesado, deve ser suportado por quem deu causa ao acidente.
O dano decorrente da privação do veículo constitui dano patrimonial autónomo suscetível de indemnização, quando o proprietário do veículo sinistrado se viu privado de um bem que faz parte do seu património, deixando de dele poder dispor e gozar livremente, nos termos estabelecidos no art. 1305.º do Código Civil, cabendo, assim, pela violação do direito de propriedade, o direito a indemnização pela ocorrência desse dano.
Este entendimento vem sendo sufragado pela Doutrina e pelos nossos Tribunais superiores.
(…)
Neste mesmo sentido damos nota da orientação doutrinária, entre muitos outros, Menezes Leitão, in, Direito das Obrigações, volume I, página 317, Cadernos de Direito Privado, anotação de Júlio Gomes, n.º 3.
“Quando a privação do uso recaia sobre um veículo automóvel danificado num acidente de viação, bastará que resulte dos autos que o seu proprietário o usaria normalmente - constituindo um facto notório ou resultando de presunções naturais a retirar da factualidade provada - para que se possa exigir do lesante uma indemnização a esse título, sem necessidade de provar direta e concretamente prejuízos efetivos”.
No caso, a apelante ficou sem poder usar o seu veículo desde o dia do acidente até à atualidade, pelo facto de o mesmo estar retido na oficina, já que o dono da oficina se recusa a entregar a viatura enquanto não lhe for pago o valor que reclama a título de aparcamento da mesma, sendo certo que, como já foi dito supra, a apelante é alheia a essa situação.
Assim sendo, tem a mesma direito a ser indemnizada dos danos que tem vindo a sofrer em consequência da privação do uso da viatura, até porque se provou que essa viatura era usada no exercício da sua atividade, nomeadamente para transportar idosos ao hospital, vendo-se obrigada a utilizar outro veículo.
A privação do uso da viatura deve contar-se desde o dia do acidente até que a mesma lhe seja entregue.
No que diz respeito ao valor diário da indemnização, não se afigura ser exagerada a quantia de € 25,00 (vinte e cinco euros) diários, pedida pela apelante, quantia que se fixa por equidade, considerando que a apelante não pode exercer o seu direito de propriedade sobre a viatura e os direitos que lhe estão associados, em concreto, não a podendo utilizar no exercício da sua atividade, como se provou que fazia.
Assim, é devida indemnização à apelante, no valor diário de € 25,00 (vinte e cinco euros), desde o dia 17-01-2019 até que lhe seja entregue a viatura, tendo, até à data de hoje (20-06-2024) decorrido 1981 dias, o que, ao valor diário referido, corresponde a € 49 525,00 (quarenta e nove mil, quinhentos e vinte e cinco euros), valor ao qual acresce o montante diário de € 25,00 (vinte e cinco euros) até efetiva entrega da viatura.
Procede, deste modo, o recurso.
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III- DISPOSITIVO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar procedente o recurso, revogando a decisão recorrida que se substitui por outra que, julgando a ação procedente, condena a ré B..., Companhia de Seguros, S.A., a pagar à autora/apelante, a título de indemnização pela privação do uso do seu veículo, a quantia de € 49 525,00 (quarenta e nove mil, quinhentos e vinte e cinco euros), à qual acresce o montante diário de € 25,00 (vinte e cinco euros) até efetiva entrega da viatura.
Custas a cargo da recorrida (art. 527.º do CPC).

Porto, 2024-06-20
Manuela Machado
Paulo Duarte Teixeira
António Carneiro da Silva