Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
202/20.3YRPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: DEOLINDA VARÃO
Descritores: DECISÃO ARBITRAL
ACÇÃO DE ANULAÇÃO
Nº do Documento: RP20210211202/20.3YRPRT.P1
Data do Acordão: 02/11/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: ACÇÃO DE ANULAÇÃO DE DECISÃO ARBITRAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – Um conflito de consumo de reduzido valor económico se submetido ao Centro de Arbitragem de Conflitos por parte do consumidor origina a constituição de arbitragem necessária, sem necessidade de prévia convenção de arbitragem.
II – Na arbitragem necessária, o direito de acesso a uma tutela jurisdicional efectiva encontra-se devidamente assegurado.
III – As decisões proferidas pelo Tribunal Arbitral são recorríveis desde que julguem pela aplicação do Direito e tenham valor superior à alçada do Tribunal de 1.ª instância.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 202/20.3YRPRT
– 3ª Secção (Apelação) - 1065
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
I.
B…, residente na Rua …, n.º …, ….-… …, Matosinhos, apresentou reclamação no Centro de Informação de Consumo e Arbitragem do Porto, contra C…, LDA, com sede na Zona … – …, Sector …, Lote …, …. Maia.
Pediu a condenação da requerida a substituir o sofá objecto da presente acção por outro igual, sem encargos para a requerente ou, caso tal não seja possível, a repor o bem por exercício do direito à resolução do contrato, com a consequente devolução do preço, no valor de €1.061,10.
Como fundamento, alegou, em síntese, que adquiriu um sofá à requerida e que este se encontrava danificado na parte da chaise-longue, tendo a requerida proposto a reparação do mesmo, o que a requerente recusou.
Na reclamação, a requerente declarou que pretendia que o conflito objecto de reclamação fosse submetido a arbitragem.
A requerida contestou, alegando que reparação do sofá é apta à reposição da conformidade integral, e que as soluções constantes do pedido formulado não excessivas e desproporcionadas.
No Tribunal Arbitral de Consumo de Matosinhos, foi realizada a audiência de julgamento arbitral, com a presença da requerente e da Mandatária da requerida.
De seguida, foi proferida sentença que julgou a acção procedente, condenando a requerida a substituir o sofá em questão nos autos.
A requerida instaurou a presente acção de anulação da sentença arbitral, invocando os seguintes fundamentos:
- Falta de celebração de convenção de arbitragem entre as partes;
- Inconstitucionalidade da norma do artigo 14.º, n.º 2 da Lei 24/96;
- Inconstitucionalidade da referida norma, conjugada com os artigos 39.º, n.º 4 da LAV e 15.º do Regulamento do CICAP, quendo interpretada no sentido da irrecorribilidade das decisões arbitrais proferidas em sede de arbitragem necessária.
A requerente foi citada e não contestou.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
*
II.
O Tribunal é absolutamente competente.
Não há nulidades que invalidem todo o processo.
As partes dispõem de personalidade e de capacidade judiciária e são legítimas.
Não há outras excepções ou questões que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
*
III.
O Tribunal arbitral considerou provados os seguintes factos:
1. A requerida tem por objecto a compra e venda de sofás, entre outros.
2. A requerente é uma consumidora dos bens comercializados pela requerida.
3. No dia 24.07.19, a requerente comprou e a requerida vendeu um sofá, para uso não profissional, pelo preço de €1.061,10.
4. A 01.09.09, a requerida emitiu a factura-recibo n.º FR1 11/11635 referente ao bem identificado no ponto 3 dos factos provados.
5. A 05.10.19, a requerida procedeu à entrega do sofá, do mesmo constando como anomalia “danificado numa das pontas/lados da chaise longue.
6. A requerida propôs-se reparar o bem identificado o ponto 3. Dos factos provados, rendo o mesmo sido recusado pela requerente,
7. A requerente mantém interesse na substituição do bem.
E considerou não provado o seguinte:
1. A reparação em questão, atentas as desconformidades do produto reclamado, mostra-se inteiramente apta à reposição da conformidade integral.
2. As soluções constantes do pedido formulado mostram-se manifestamente excessivas e desproporcionadas.
*
IV.
1. Falta de convenção arbitral
Segundo o artigo 46.º, n.º 3 da Lei da Arbitragem Voluntária (LAV), aprovada pela Lei 63/11, de 14.12, a sentença arbitral só pode ser anulada pelo tribunal estadual competente nos casos que estão previstos nas als. a) e b) daquele preceito.
Um desses casos consiste na demonstração pela parte que faz o pedido de anulação de que a sentença se pronunciou sobre um litígio não abrangido pela convenção de arbitragem ou contém decisões que ultrapassam o âmbito desta (citado artigo 46.º, n.º 3, al. a), iii).
A requerida invocou o fundamento de anulação da sentença arbitral previsto no citado preceito, alegando que não foi celebrada convenção de arbitragem entre as partes.

Diz o artigo 1.º, n.º 1 da LAV que, desde que por lei especial não esteja submetido exclusivamente aos tribunais do Estado ou a arbitragem necessária, qualquer litígio respeitante a interesses de natureza patrimonial pode ser cometido pelas partes, mediante convenção de arbitragem, à decisão de árbitros.
O Centro de Informação de Consumo e Arbitragem do Porto (CICAP), promove a resolução de conflitos de consumo (artigo 4.º, n.º 1 do respectivo Regulamento).
Nos termos do n.º 2 do mesmo artigo 4.º, consideram-se conflitos de consumo os que decorrem da aquisição de bens, da prestação de serviços ou da transmissão de quaisquer direitos destinados a uso não profissional e fornecidos por pessoa singular ou colectiva, que exerça com carácter profissional uma actividade económica que visa a obtenção de benefícios.
Por seu turno, o artigo 2.º, n.º 1 da Lei 24/96, de 31.07 (Lei de Defesa do Consumidor) define consumidor como todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios.

Resulta da factualidade que foi considerada provada na sentença arbitral que o conflito existente entre a requerente e o requerido cabe no âmbito de aplicação daquela Lei 24/96, qualificando-se como conflito de consumo (cfr. artigo 2.º, n.º 1 da referida Lei)
Segundo o artigo 10.º, n.º 1 do Regulamento do CICAP, a submissão do litígio a decisão do Tribunal Arbitral depende da convenção das partes ou de estar sujeito a arbitragem necessária.
Segundo o artigo 14.º, n.º 2 da citada Lei 24/96, os conflitos de consumo de reduzido valor económico estão sujeitos a arbitragem necessária ou mediação quando, por opção expressa dos consumidores, sejam submetidos à apreciação de tribunal arbitral adstrito aos centros de arbitragem de conflitos de consumo legalmente autorizados.
O n.º 3 do mesmo preceito considera conflitos de consumo de reduzido valor económico aqueles cujo valor não exceda a alçada dos tribunais de 1.ª instância.
A alçada dos tribunais de 1ª instância está, actualmente, fixada em €5.000,00 – artigo 44.º, n.º 1 da Lei 62/13, de 26.01 (LOSJ).
O valor do litígio em causa nos presentes autos é de €1.081,10.
Trata-se, portanto, de um conflito de consumo de reduzido valor económico, pelo que lhe é aplicável o disposto no citado artigo 14.º, n.º 2 da Lei 24/96, bastando a submissão do conflito ao centro de arbitragem de conflitos, por parte do consumidor, para que a arbitragem se constitua como arbitragem necessária.
Não sendo, por isso, exigível a celebração de uma convenção de arbitragem pelas partes, conforme resulta do disposto no artigo 1.º, n.º 1 da LAV.
No caso, a requerente submeteu o conflito ao CICAP, tendo declarado expressamente que pretendia que o conflito fosse submetido a arbitragem – o que basta para a constituição da arbitragem necessária.
Não sendo exigível a celebração de convenção de arbitragem entre a requerente e a requerida, é evidente que, ao conhecer do presente litígio, o Tribunal Arbitral não se pronunciou sobre um litígio não abrangido pela convenção de arbitragem nem contém decisão que ultrapassam o âmbito desta.
E, por isso, não se verifica o fundamento de anulação da sentença arbitral previsto no artigo 46.º, n.º 3, al. a), iii) da LAV.
2. Inconstitucionalidade da norma do artigo 14.º, n.º 2 da Lei 24/96
Já vimos que o artigo 14.º, n.º 2 da Lei 24/96 sujeita os conflitos de consumo de reduzido valor económico a arbitragem necessária ou mediação quando, por opção expressa dos consumidores, sejam submetidos à apreciação de tribunal arbitral adstrito aos centros de arbitragem de conflitos de consumo legalmente autorizados.
Sustenta o requerido que tal norma é inconstitucional por violar o direito de acesso aos tribunais e à tutela jurisdicional efectiva, bem como o princípio da igualdade.

Diz o n.º 1 do artigo 20.º da CRP que a todos é assegurado o direito ao acesso e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos.
O direito de acesso aos tribunais a que se refere o n.º 1 do artigo 20.º inclui, no seu âmbito normativo, além de outros, o “subdireito” de acção, que se mostra concretizado, na área do processo civil, pelo disposto no artigo 2.º, n.º 2 do CPC.
O direito de acção ou de agir em juízo terá de se efectivar através de um processo equitativo, como postula o n.º 4 do artigo 20.º.
Todo o processo – desde o momento do impulso da acção até ao momento da execução – deve estar informado pelo princípio da equitatividade, através da exigência do processo equitativo. O significado básico da exigência do processo equitativo é o da conformação do processo de forma materialmente adequada a uma tutela judicial efectiva.
A doutrina e a jurisprudência têm procurado densificar o princípio do processo equitativo através de outros princípios, dos quais destacamos, por serem os que aqui nos interessam: a) o direito à igualdade de armas ou direito à igualdade de posições no processo, com proibição de todas as discriminações ou diferenças de tratamento arbitrárias; b) o direito de defesa e o direito ao contraditório, traduzido fundamentalmente na possibilidade de cada uma das partes invocar as razões de facto e de direito, oferecer provas, controlar as provas da outra parte e pronunciar-se sobre o valor e resultado destas provas[1].
Lopes do Rego[2] defende que, embora considerando que a Constituição não impõe um modelo predeterminado para o processo judicial entre particulares, gozando, consequentemente, o legislador ordinário de ampla margem de discricionariedade no delinear da respectiva tramitação, segundo considerações de oportunidade, eficácia e celeridade, deverá esta subordinar-se, no entanto, a um cumprimento minimamente satisfatório dos dois princípios fundamentais acima referidos.
Ou seja, o legislador infraconstitucional tem legitimidade para regular procedimentalmente o exercício dos direitos de acção ou de defesa, criando determinadas regras adjectivas que apenas disciplinam (sem dificultarem ou restringirem de modo intolerável) o acesso aos tribunais.
A efectividade do direito de defesa pressupõe: a) o conhecimento pelo demandado do processo contra ele instaurado; b) a concessão de um prazo razoável para o exercício dos direitos de oposição e de resposta; c) a eliminação ou atenuação de gravosas preclusões ou cominações, decorrentes de uma situação de revelia ou ausência de resposta à conduta processual da parte contrária, que se revelem manifestamente desproporcionadas[3].

A arbitragem é um meio de resolução alternativo de litígios, o que significa que, a par dos tribunais estaduais, aquela consubstancia uma outra via para as partes buscarem a composição dos seus litígios[4].
Segundo os mesmos autores[5], a arbitragem voluntária assume-se, na sua natureza, como uma manifestação de uma jurisdição que, embora enquadrada legislativamente, deve ser considerada como puramente privada e não como “delegada” pelo Estado; considerando a noção de arbitragem necessária geralmente aceite pela doutrina, entendem que como tal deve ser considerada aquela “(…) que, não derivando da autonomia da vontade das partes, é imposta por lei especial, confiando a árbitros a resolução de um litígio que passa a ser subtraído à jurisdição dos tribunais que, regra geral, deteriam a competência para julgar uma determinada causa.”.
Salientam ainda que a falta do elemento contratual na arbitragem necessária aproxima esta forma de resolução de litígios da jurisdição estadual[6].

No processo arbitral, são observados os princípios da defesa, do contraditório e da igualdade de armas (artigo 30.º, n.º 1 da LAV).
A tramitação processual subsequente à apresentação da petição inicial segue regras similares às do CPC, com observância dos princípios atrás referidos (artigos 33.º a 38.º da LAV), não havendo, sequer, lugar ao efeito cominatório da falta de apresentação da contestação, ao invés do que sucede no CPC (cfr. o artigo 35.º, n.º 2 da LAV, em contraponto ao artigo 567.º, n.º 1 do CPC).

Resulta do exposto que, na arbitragem necessária, o direito de acesso a uma tutela jurisdicional efectiva se encontra devidamente assegurado, densificado nas próprias normas processuais da LAV, que, para além de consagrarem os princípios da defesa, do contraditório e da igualdade de armas, regulam a tramitação processual de forma idêntica à da legislação processual civil.
Não há, por isso, violação do disposto no artigo 20.º da CRP e, consequentemente, não há violação do princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º da mesma Lei Fundamental.
3. Inconstitucionalidade da norma do artigo 14.º, n.º 2 da Lei 24/96 conjugada com os artigos 39.º, n.º 4 da LAV e 15.º do Regulamento do CICAP
A requerida invoca novamente a inconstitucionalidade da norma do artigo 14.º, n.º 2 da Lei 24/96, na previsão da sujeição dos conflitos de consumo à arbitragem necessária, desta vez, quando conjugada com as normas dos artigos 39.º, n.º 4 da LAV e 15.º do Regulamento do CICAP, ou seja, quando interpretada no sentido da irrecorribilidade das sentenças dos tribunais arbitrais.
Dispõe o artigo 39.º, n.º 4 da LAV que a sentença que se pronuncia sobre o fundo da causa ou que, sem conhecer deste, ponha termo ao processo arbitral, só é susceptível de recurso para o tribunal estadual competente no caso de as partes terem expressamente previsto tal possibilidade na convenção de arbitragem e desde que a causa não haja sido decidida segundo a equidade ou mediante composição amigável.
Por seu turno, diz o artigo 15.º, n.º 4 do Regulamento do CICAP que a sentença arbitral tem o mesmo carácter obrigatório e a mesma força executiva de uma sentença de um tribunal judicial, sendo apenas susceptível de recurso se o valor do processo for superior ao da alçada do tribunal judicial de primeira instância e tiver sido decidida segundo o direito.
Como salienta Fernanda da Silva Pereira[7], salvo no que respeita aos princípios enformadores do ordenamento jurídico, designadamente o princípio do contraditório, da igualdade das partes e da citação do demandado, o Regulamento Arbitral deverá desempenhar uma função primordial relativamente à LAV; esta deve ter somente um papel supletivo e de garante de que as regras imperativas que contém são respeitadas pelo tribunal arbitral.
Podendo a norma da irrecorribilidade da sentença arbitral que tenha decidido por aplicação do direito (e não segundo a equidade ou por composição amigável) prevista no n.º 4 do artigo 39.º da LAV ser afastada por vontade das partes, conforme ali se prevê, trata-se de uma norma supletiva que, por isso, pode também ser afastada pelo Regulamento Arbitral.
Assim, face ao disposto no artigo 15.º, nº 4 do Regulamento do CICAP, as sentenças proferidas pelo respectivo Tribunal Arbitral do CICAP são recorríveis, desde que julguem pela aplicação do direito e tenham valor superior à alçada do tribunal judicial de 1ª instância, não sendo necessário que as partes estipulem essa recorribilidade na convenção arbitral.
A contrario, resulta daquele preceito do Regulamento que as sentenças proferidas sobre objecto conflitos de consumo de valor inferior à alçada do tribunal judicial de 1ª instância não admitem recurso para o tribunal judicial.
Mas a referida irrecorribilidade não resulta do facto de a norma do artigo 14º, n.º 2 da Lei 24/96 submeter tais conflitos a arbitragem necessária, dessa forma inexistindo convenção de arbitragem.
A norma do n.º 4 do artigo 39.º da LAV limita-se a consagrar a regra da irrecorribilidade da sentença arbitral e a possibilidade do afastamento dessa regra pela convenção arbitral (e também pelo Regulamento Arbitral, como já vimos).
Mas não afasta a aplicação à sentença arbitral das regras gerais da admissibilidade dos recursos, tais como a da alçada e da sucumbência previstas no artigo 629.º do CPC.
Ou seja, ainda que não existisse a norma do artigo 14.º da Lei 24/96 e as partes pudessem convencionar a admissibilidade do recurso da sentença arbitral em causa nos presentes autos, sempre a mesma seria irrecorrível, por ter valor inferior à alçada do Tribunal de 1ª instância.
E a jurisprudência constitucional tem entendido, de forma reiterada, que – fora do âmbito do processo penal – não está generalizadamente assegurado o “direito ao recurso”, que não pode considerar-se compreendido no artigo 20.º da CRP[8].
Não se verifica, pois, a inconstitucionalidade invocada pela requerida.
*
V.
Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a presente acção de anulação de decisão arbitral.
Custas pela autora C…, LDA.
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Porto, 11 de Fevereiro de 2020
Deolinda Varão
Freitas Vieira
Carlos Portela
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[1] Gomes Canotilho e Vital Moreira, CRP Anotada, I, 4ª ed., pág. 415.
[2] Comentários ao CPC, I, 2ª ed., 13, págs. 14 e 21.
[3] Lopes do Rego, obra citada, 17.
[4] António Pedro Pinto Monteiro, Artur Flamínio da Silva e Daniela Miranda, Manual de Arbitragem, 2020, pág. 11.
[5] Obra citada na nota 4, págs. 13 e 15.
[6] Obra citada na nota 4, pág. 17.
[7] Arbitragem Voluntária Nacional – Impugnação de Sentenças Arbitrais, pág. 56.
[8] Lopes do Rego, obra citada, pág. 569.