Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | JOÃO PEDRO PEREIRA CARDOSO | ||
Descritores: | LEI PENAL PENAS DE SUBSTITUIÇÃO EXECUÇÃO DA PENA MODO ESCOLHA DA PENA CRITÉRIOS PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE FUNDAMENTAÇÃO CRIME DE PECULATO MILITAR GUARDA NACIONAL REPUBLICANA EXERCÍCIO DE FUNÇÕES PROIBIÇÃO | ||
Nº do Documento: | RP202406261/22.8GAPNF.P1 | ||
Data do Acordão: | 06/26/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | RECURSO PENAL (CONFERÊNCIA) | ||
Decisão: | NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO PELO ARGUIDO | ||
Indicações Eventuais: | 4.ª SECÇÃO CRIMINAL | ||
Área Temática: | . | ||
Sumário: | I - Não resulta da lei penal, a obrigatoriedade de pronúncia específica sobre o afastamento de todas as penas de substituição ou modos de execução abstratamente aplicáveis, desde que a fundamentação da aplicada ou, da não aplicação de qualquer delas, resulte como adequada e suficiente para justificar a decisão. II - Se é certo que o legislador não hierarquiza entre si, cada uma das diversas penas de substituição, atentas a finalidades da punição, contidas nos artigos 40º e 42º C Penal, será em função do critério legal da adequação e suficiência, de acordo com as necessidades de prevenção geral e especial presentes em cada caso, que o tribunal deve escolher entre elas, sem esquecer o princípio da proporcionalidade, previsto no artigo 18º/2 da C.R.P. III - Condenar numa pena suspensa, ainda que condicionada a deveres e/ou regras de conduta, um militar da GNR que se apropriou de um animal achado por outrem e que recebeu no exercício das suas funções e por causa delas, sem fazer ressoar a mais ligeira consciência critica da elevada censurabilidade da sua conduta, mantendo um comportamento institucional e processual absolutamente deplorável, envolvendo e comprometendo colegas de profissão e particulares num rodilho de falsidades que ainda hoje alimenta, não é adequado, nem suficiente para reforço das sobreditas normas incriminadoras e menos ainda para o afastar do cometimento de novos crimes. IV - A comunidade não compreenderia a operacionalidade de uma pena que visa reforçar a validade de uma norma, sem impor ao infrator uma limitação ou restrição do direito fundamental que dilacerou com a violação da integridade, lealdade, boa-fé, transparência e confiança funcional que lhe era imposta. V - Num juízo mais prospetivo do que retroativo, mostra-se, assim, necessária, a aplicação ao recorrente de uma pena substitutiva de proibição do exercício de funções (artigo 46º, nº1 do CP) para reforçar a confiança comunitária na validade das normas violadas e facilitar a sua reintegração social por forma a conformar-se com os valores ético-jurídicos que violou com a sua conduta e que até ao momento não foi capaz de compreender. | ||
Reclamações: | |||
Decisão Texto Integral: | Processo: 1/22.8GAPNF.P1
Relator João Pedro Pereira Cardoso Adjuntos 1ª Liliana de Páris Dias 2ª Carla Oliveira
Sumário ………………. ………………. ……………….
No âmbito do processo nº1/22.8GAPNF, que corre termos pelo Juízo Local Criminal ... - Juiz 2, foi submetido a julgamento e condenado o arguido AA, pela prática de um crime de peculato, previsto e punido pelo artigo 375.º, n.º 1 do C.P. na pena de dois anos e dois meses de prisão, substituída, nos termos do disposto no artigo 46º, nº1 do mesmo diploma legal, pela proibição do exercício da sua profissão de militar da GNR por igual período (dois anos e dois meses). * Inconformado com a decisão condenatória, dela interpôs recurso o arguido para este Tribunal da Relação, com os fundamentos descritos na respetiva motivação e contidos nas seguintes “CONCLUSÕES” I. Antes de mais, no seu modesto entender, haver insuficiência da matéria de facto dada como provada para a condenação do recorrente - al. a) do n.º 2 do artigo 410º do C.P.P. Inexiste prova da alegada participação, a título de co-autoria e/ou de cumplicidade, nos alegados factos dados como provados. II. Por outro lado, por entender haver contradição insanável na fundamentação ou entre esta e a decisão a propósito dos factos provados em 1 a 15 (quanto ao recorrente), por um lado, e aos factos não provados - alínea b) do nº 2 do artigo 410º do C.P.P. III. Acresce que o Tribunal a quo valorou erradamente a prova produzida em audiência quanto à matéria de facto tendente à formação da convicção de que o recorrente tenha participado nos factos descritos na acusação mostrando-se erradamente julgados a propósito dos factos provados em 1 a 15 dos factos provados, tanto mais que resulta dos depoimentos das testemunhas inquiridas em audiência e de demais prova indirecta que o arguido/ recorrente não praticou os factos descritos na acusação de acordo com a qualificação jurídica entendida pelo Tribunal na sentença. IV. Por outro lado, ainda, a sentença recorrida é nula por falta de fundamentação relativamente à matéria assente dos factos provados em 1 a 15 dos factos provados (quanto ao recorrente). V. Adicionalmente, independentemente disso, a sentença em crise enferma ainda do vício de insuficiência para a decisão, dos factos provados em 1 a 15 dos factos provados (quanto recorrente), por um lado, e aos factos não provados quanto à alegada participação do recorrente nos factos descritos na acusação, existindo erro de julgamento quanto àqueles factos também devendo, para o efeito, ser ordenado o reenvio do processo para julgamento. VI. Em resultado da prova produzida em audiência de julgamento existiu errado enquadramento jurídico, por inexistência dos elementos objectivos e subjectivos do tipo de crime imputado - peculato, previsto e punido pelo artigo 375º, n.º 1 e 66º, n.º 1 alínea a), b), c) do Código Penal. VII. Pena excessiva Impõem solução diversa: - uma melhor apreciação do conjunto da prova produzida, designadamente: - Toda prova documental junta aos autos. - E uma correcta apreciação daqueles elementos no cotejo com o teor dos depoimentos prestados pela o arguido e pelas testemunhas BB, CC, DD, EE, FF, GG, HH (Gravação constante da plataforma CITIUS indicada supra). - A correcta apreciação do conjunto da prova levará necessariamente a uma diferente resposta aos factos em crise, com as legais consequências, como é de justiça. Requer: - a realização de audiência para debate da matéria referida no ponto I a VII da presente motivação, o que faz nos termos e para os efeitos do n.º 5 do artigo 411º do C.P.P. Em suma: -há insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de condenar o recorrente, assim como pelo preenchimento dos elementos objectivos e subjectivos do tipo de crime de peculato, previsto e punido pelo artigo 375º, n.º 1 do Código Penal. - Há contradição insanável na fundamentação, entre os factos assentes e entre esses e a decisão (artigo 410º, n.º 2, alínea a) do C.P.P.) - Há errada valoração do conjunto da prova produzida e, consequente, erro de julgamento quanto aos factos tendentes à formação da convicção de que o recorrente foi autor dos factos descritos nos artigos 1º a 15º dos factos provados (e, mais em particular, os artigos 10º a 15º), nomeadamente, que quis apropriar-se do bem (total inexistência de um comportamento doloso). - Em qualquer circunstância, deve revogar-se a sentença recorrida e substituí-la por acórdão que, fazendo correcta apreciação e valoração da prova produzida, o absolva da prática do crime em que foi condenado.” * * O Ministério Público, em primeira instância, apresentou resposta, pugnando pela improcedência do recurso do arguido. * Pelo Exmo Procurador Geral Adjunto foi emitido parecer, reiterado em audiência, no sentido da improcedência do recurso e confirmação da sentença recorrida. - Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal [1], após o que se procedeu a exame preliminar e foi realizada a audiência. * II - Fundamentação É pelo teor das conclusões que o recorrente extrai da motivação, onde sintetiza as razões de discordância com o decidido e resume o pedido (art.º 412.º, n.º 1 e 417.º, n.º 3, do CPP), que se delimita o objeto do recurso e se fixam os limites do horizonte cognitivo do Tribunal Superior, sem prejuízo das questões que devem ser conhecidas oficiosamente, como sucede com os vícios a que alude o art.º 410.º, n.º 2 ou o art.º 379.º, n.º 1, do Código Processo Penal. Insuficiência da matéria de facto Contradição insanável - Delimitado o thema decidendum, importa conhecer a factualidade em que assenta a condenação proferida, no excerto relevante aqui impugnado.
A) Factos Provados
Xanthopteryx, ave essa que se encontrava devidamente anilhada. -- B) Factos Não Provados 1. BB ligou para o SEPNA ... que o aconselhou a entregar a ave em questão ao cuidado daquela unidade da GNR para que pudesse ser identificada e devolvida ao seu proprietário. -- Fundamentação de Facto O tribunal formou a sua convicção com base na prova documental junta aos autos, nas declarações do arguido prestadas em audiência, bem como na prova testemunhal produzida em audiência, tudo conjugado com as regras da experiência. Vejamos. Os factos descritos em 1 e 2 como provados foram admitidos pelo arguido, resultando também da informação que consta de fls. 18. Que o arguido se encontrava no serviço de atendimento no posto da GNR nas circunstâncias temporais consideradas provadas também foi referido pelo arguido, e também resulta da informação de fls. 18 (escala de serviço). No mais, e quanto ao que aconteceu no dia 03.10.2022, o arguido referiu o seguinte: - deslocou-se até à parada e viu o pneu do seu carro furado/rasgado, tendo ficado desnorteado e, por isso, atirou o saco com a ave para dentro de carro (esqueceu-se que a tinha na mão pois sofre de amnésia em virtude de ter sofrido um acidente de trabalho em que lesionou as costas e porque sofre de apneia do sono); Ora, mesmo sem a confrontação das declarações do arguido com a prova testemunhal e documental carreada para os autos, concluímos, só com base nas regras da experiência, que todo o seu discurso é estranho, não encontrando eco na normalidade da realidade. Quando analisada a prova supra mencionada, concluímos, sem margem de dúvida, que o arguido não falou a verdade, tendo construído uma narrativa falsa que não assenta em nenhum elemento de prova. Vejamos. Desde logo, das imagens de videovigilância retidas no Posto da GNR ... (das quais consta uma hora errada, pois marcavam uma hora adiantada como resultou do depoimento do próprio arguido e da testemunha FF, militar da GNR), verifica-se que o arguido não leva o saco onde estava a caixa com o papagaio para o seu carro no momento em que se vai embora por ter terminado o seu turno, mas sim cerca de 20 minutos antes (por volta das 6h37m). Assim, verificamos que o arguido sai do posto de atendimento, dirige-se ao seu carro com aquele saco, onde o deposita. Volta para o posto de atendimento, de onde sai cerca das 6h50m e dirige-se para o seu carro, saindo do quartel por volta das 7h. Tudo isto resulta do visionamento das imagens juntas a fls. 60 e dos fotogramas de fls. 21 e seguintes. Ora, a narrativa do arguido não explica o que o levou a dirigir-se ao seu veículo pelas 6h37m, quando só terminava o seu turno pelas 7h, não alcançando o tribunal outro motivo que não ir colocar a ave no seu veículo antes de ser rendido (pois seria estranho sair do posto com um saco na mão e poderia ser questionado pelo colega que entrava ao serviço). De facto, da visualização das imagens acima referidas, verifica-se que o arguido, aquando do transporte do saco onde estava acondicionada a ave para o seu veículo pessoal, apenas levava consigo este saco e não qualquer outro que lhe pertencesse. Por outro lado, a menção de sofrer perdas de memória e não se lembrar que levava um saco na mão, também não colhe. Desde logo, não explica por que motivo foi ao carro naquele momento e não explica por que motivos leva o saco, mas já não o traz de volta para o posto. Acresce que do documento junto a fls. 299, não resulta que à data de 03.01.2022 o arguido padecesse de amnésia (pois tal relatório apenas retrata a situação médica de apneia de sono a 01.08.2023, referindo que tal situação ainda se encontra em estudo, não referindo a data de início dos sintomas, sendo estranho que tal patologia estivesse em estudo há mais de um ano e oito meses), nem faz menção a qualquer lesão na coluna, como mencionado pelo arguido. BB, a pessoa que encontrou a ave e que prestou um depoimento desinteressado, contextualizado, pormenorizado e credível, referiu que tal sucedeu junto ao ... no dia 31.12.2021. Como conhece o Guarda CC que trabalha no SEPNA ..., telefonou-lhe informalmente para saber o que fazer, tendo este lhe dito para a guardar durante o fim-de-semana (pois ele sabia que a testemunha tinha condições para o fazer), e entregar na GNR na segunda feira de manhã. No dia 03.01.2022, pelas 6h (antes de ir trabalhar para o Porto), esta testemunha deslocou-se ao Posto da GNR ... e entregou um saco, com uma caixa onde transportava a ave, ao militar que o atendeu. Explicou-lhe o sucedido e o mesmo apontou o seu nome e contacto telefónico na caixa. Pouco tempo depois, ligaram-lhe da GNR ..., não ouviu, mas devolveu a chamada, e era o arguido a dizer-lhe que ave estava morta. Como achou estranho e ficou triste, acabou por telefonar mais tarde, pelas 9h30m, ao amigo, o Guarda CC, a contar que o colega lhe tinha telefonado a dizer que ave estava morta. Cerca das 10h30m/11h, o arguido voltou a telefonar-lhe a dizer que afinal o papagaio não estava morto, mas que tinha fugido. Ora, o mencionado por esta testemunha encontra-se corroborado pela fotografia de fls. 29 (registo de chamadas do telemóvel desta testemunha no dia em causa), onde constam as chamadas recebidas do posto da GNR, bem como pela perícia realizada ao telemóvel do arguido, sendo que ambos os telemóveis consta a chamada realizada pelo arguido à testemunha, pelas 10h52m. O mencionado por esta testemunha também se mostra corroborado pelo depoimento da testemunha CC (militar do SEPNA da GNR ...), que descreveu os factos de igual forma, referindo que pediu ao amigo para ficar com a ave até segunda feira, pois sabia que o mesmo tinha condições para o fazer e explicou as condicionantes existentes no serviço durante o fim de semana. Referiu, ainda, que a meio da manhã BB lhe telefonou a dizer que o arguido lhe tinha telefonado a dizer que ave estava morta e tinha medo de ter problemas. CC referiu, ainda, que ligou ao chefe – DD – a contar o que tinha acontecido e o que aconteceu a seguir não tem conhecimento, apenas sabendo que o chefe lhe pediu para telefonar a BB para ir prestar declarações, o que fez. Verificamos que os depoimentos das duas testemunhas são coincidentes. DD, supra mencionado, referiu que depois de receber um telefonema do Guarda CC a transmitir-lhe o ocorrido (a entrega de uma ave que afinal estava morta), deslocou-se ao atendimento no posto da GNR. Como não existiam registos da situação e o arguido já não estava no local, telefonou-lhe, tendo-lhe sido transmitido que ave não tinha morrido, mas sim fugido. Falou com o comandante, transmitindo-lhe a situação. Nada mais sabe. O depoimento desta testemunha, corrobora os depoimentos das anteriores. Esta testemunha negou ter, em algum momento, dito ao arguido para ligar ao cidadão que encontrou a ave dizendo-lhe que esta havia fugido. De facto, se assim fosse, esta testemunha não teria desencadeado toda a investigação, tendo reportado a situação ao comandante. EE, comandante da GNR, referiu que depois da informação lhe ter sido transmitida por DD foi ver o registo de videovigilância, que se encontra junto aos autos e cujos fotogramas se encontram a fls. 21 e seguintes (supra descrito). Como inexistia qualquer registo elaborado pelo arguido da entrega da ave (conforme documento junto a fls. 17), desencadeou a investigação ao sucedido. FF, chefe do NIC de ..., referiu que o Comandante EE falou consigo sobre o sucedido, viu as imagens, deslocou-se (com outros elementos) a casa do arguido que acabou por os levar até à quinta onde estava o papagaio. GG, capitão da GNR, referiu que foi o comandante EE que lhe pediu para ir com ele e viram as imagens de videovigilância. Refere que inexistiam registos da entrega da ave, sendo que todos os achados tem que ter um expediente. Nesse momento ligaram ao arguido, sendo que o mesmo refere que a ave fugiu. HH, militar da GNR que rendeu o arguido no seu turno, esclareceu que o arguido não o informou de nada, tendo sido uma rendição normal. Esclareceu ainda, que qualquer coisa achada e entregue na GNR tem que ter o respetivo registo, mais não seja no relatório de atendimento, onde nada constava. Das informações prestadas pela GNR a fls. 331 resultam os procedimentos a adotar pelo militar que esteja ao atendimento ao público quando alguém vai lá entregar algo que encontrou, não existindo um procedimento especifico para aves. De facto, o arguido não consegue explicar por que motivo não procedeu ao registo da entrega da ave. Em sede de declarações, como justificação para o incumprimento do dever de registo da ave, o arguido alegou que não o fez porque considerou que o militar CC já estava a par da situação do animal. Sucede que, o arguido não podia saber se a informação prestada pela pessoa que lhe entregou a ave era verdadeira, ou não, pelo que deveria ter procedido ao registo. Por outro lado, mesmo que o militar CC soubesse que a ave tinha sido entregue no posto, esta circunstância não o desobrigava de exercer as suas funções. Aliás, sendo pouco comum receberem-se animais no posto, como todas as testemunhas mencionaram e até o próprio arguido o reconheceu, estranha-se a circunstância de este não ter referenciado esta situação ao militar HH que o rendeu findo o seu serviço, omissão esta que foi confirmada, de forma objetiva e desprendida por esta testemunha e corroborada pela informação constante do relatório de serviço, junto a fls. 12-13. Acresce que, ainda que não existam procedimentos específicos para uma ave exótica (assim como não existe um procedimento específico para cada objeto/animal que é encontrado), a verdade é que todos os achamentos têm que ser registados, e tal resulta do depoimento de todas as testemunhas elementos da GNR supra identificadas e da normalidade do ser. O importante não é a forma como o arguido procederia a tal registo, se num auto próprio ou no registo de ocorrências, desde que o acontecimento em si estivesse registado e documentado. A não existência desse registo, aliado ao facto do arguido ter colocado a ave no seu carro e voltado para o posto, aliado ao facto de ter ligado ao achador a dizer que ave morreu e, depois de saber que a situação estava ser investigada, lhe ligar a dizer que afinal tinha fugido, leva-nos a concluir, que toda a sua versão dos factos é falsa. E mais. O arguido refere que quando contactou o amigo, dono da quinta para onde levou o papagaio, ainda achava que o mesmo estava morto e queria saber os motivos (queria que lhe realizassem uma necropsia). Só este facto é estranho. Porém, esta realidade é negada pela testemunha JJ (o dono da quinta) que foi esclarecedor e perentório quando afirma que em momento algum o arguido lhe disse que o papagaio estava morto. Aliás, tal resulta das mensagens trocadas entre o arguido e esta testemunha, juntas a fls. 163 e seguintes, onde se lê o arguido a dirigir-se à testemunha e a perguntar “tenho aqui um papagaio, posso deixar na quinta, não tenho gaiola para ele”. Ora, se o arguido estivesse convencido, naquele momento, que o papagaio estava morto, não precisava de uma gaiola para o mesmo. E nessas mensagens nada consta sobre a condição de morto do animal. Também a testemunha KK, funcionário da quinta, referiu que nunca lhe foi transmitido que o papagaio estaria morto, sendo que também não referiu que o arguido lhe pediu para verificar a quem pertencia o animal pela anilha. De salientar, que por JJ foi esclarecido que para se conseguir retirar a anilha do animal era necessário um alicate. Também esclareceu que na sua quinta não se fazem necropsias e que se o arguido lhe tivesse dito que era isso que pretendia lhe teria dado o contacto de um veterinário. Ora, atendendo a toda a prova supra descrita, e pelos motivos elencados, não há qualquer dúvida que o arguido, militar da GNR em exercício de funções, recebeu de um cidadão uma ave exótica achada (sendo que a recebeu por causa das funções que estava a exercer) e decidiu ficar com a mesma, apropriou-se da mesma, sabendo que estava a agir contra a lei (sendo isto de conhecimento de todos). As características da ave e o seu valor constam dos documentos juntos a fls. 54 e seguintes, e que o mesmo foi entregue ao proprietário do termo de entrega de fls. 52. A ausência de antecedentes criminais do arguido resulta do respetivo CRC junto aos autos, e as suas condições económicas do documento junto a fls. 214 e seguintes”. **** Da nulidade da sentença por falta de fundamentação Defende o recorrente que a sentença recorrida é nula por falta de fundamentação relativamente à matéria assente dos factos provados em 1 a 15 dos factos provados (quanto ao recorrente). A sentença deve conter, sob pena de nulidade, o exame crítico da prova, que envolve a enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas, os motivos de determinada opção por um ou outro dos meios de prova, as razões da credibilidade atribuída aos depoimentos, valoração de documentos e exames, que interferiram na formação da convicção do tribunal, de acordo com os comandos legais vertidos nos arts. 374º, nº 2 e 379º nº 1 alínea a) do Código Processo Penal. Pois sempre que observa o condicionalismo legal, a motivação de facto permite aos sujeitos processuais e ao tribunal superior a análise do percurso lógico ou racional em que se apoia a decisão de facto. O que se exige é uma enunciação, ainda que sucinta, das provas que serviram para fundar a decisão e a indicação dos elementos que, em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos, constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido. Ora, percorrida a motivação da decisão recorrida foi efetivamente levado a cabo o exame crítico do manancial probatório a que alude o citado art. 374º, nº 2. Da leitura da decisão recorrida é possível reter que dela consta a respetiva e obrigatória motivação da decisão da matéria de facto, na qual o tribunal explicita e examina de forma suficientemente detalhada em que se estribou para fixar aquela factualidade, analisando criticamente, naquilo que aqui se impunha, as provas de que se socorreu. Efetivamente, a sentença recorrida inclui, em sede própria, a explanação do raciocínio lógico em que o tribunal a quo ancorou essa decisão de facto, resultando, em suma, do confronto dos meios de prova produzidos e sujeitos a contraditório em audiência, avaliados à luz das regras da experiência comum. Portanto, independentemente da discordância do recorrente sobre a interpretação da prova, a sentença inclui menção completa da prova atendida e em que se ancora a convicção do tribunal sobre a atuação atribuída ao arguido, pelo que a censura produzida no recurso carece de substrato. De resto, neste prisma, o tribunal não tem de expressar a sua valoração critica relativamente a cada um e todos os meios de prova, antes e só em relação àqueles que teve por decisivos para dar como provados ou não provados os factos descritos na fundamentação, sendo certo que em relação a estes tão-pouco lhe é imposto que o faça de forma individualizada. Por conseguinte, não ocorre a nulidade arguida pelo recorrente, prevista artigo 379º, nº1, al.a), conjugado com o art.374.º, n.º2, ambos do Código Processo Penal. - Invoca o recorrente incorrer a sentença na insuficiência da matéria de facto e contradição insanável, vícios previstos no art.410º, do Código Processo Penal. Vistas as conclusões do recurso, o recorrente afirma o seguinte: “I. Antes de mais, no seu modesto entender, haver insuficiência da matéria de facto dada como provada para a condenação do recorrente - al. a) do n.º 2 do artigo 410º do C.P.P. Inexiste prova da alegada participação, a título de co-autoria e/ou de cumplicidade, nos alegados factos dados como provados. II. Por outro lado, por entender haver contradição insanável na fundamentação ou entre esta e a decisão a propósito dos factos provados em 1 a 15 (quanto ao recorrente), por um lado, e aos factos não provados - alínea b) do nº 2 do artigo 410º do C.P.P. (…) V. Adicionalmente, independentemente disso, a sentença em crise enferma ainda do vício de insuficiência para a decisão, dos factos provados em 1 a 15 dos factos provados (quanto recorrente), por um lado, e aos factos não provados quanto à alegada participação do recorrente nos factos descritos na acusação, existindo erro de julgamento quanto àqueles factos também devendo, para o efeito, ser ordenado o reenvio do processo para julgamento”. Vejamos. Os vícios decisórios – a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e o erro notório na apreciação da prova – previstos no nº 2 do art. 410º do CPP, traduzem defeitos estruturais da decisão penal e não do julgamento e por isso, a sua evidenciação, como dispõe a lei, só pode resultar do texto da decisão, por si só, ou conjugado com as regras da experiência comum. Não é permitido, para a demonstração da sua verificação, o recurso a quaisquer elementos que sejam externos à decisão recorrida.
O vício da contradição insanável da fundamentação ocorre, “(…) quando, de acordo com um raciocínio lógico na base do texto da decisão, por si ou conjugado com as regras da experiência comum, seja de concluir que a fundamentação justifica decisão oposta, ou não justifica a decisão, ou torna-a fundamentalmente insuficiente, por contradição insanável entre os factos provados, entre os factos provados e não provados, entre uns e outros e a indicação e a análise dos meios de prova fundamentos da convicção do Tribunal” – Ac STJ 13.10.99, Colectânea de Jurisprudência – Acórdão s do Supremo Tribunal de Justiça, Ano VII, Tomo III, p. 184. Como referem Simas Santos e Leal Henriques : “Por contradição, entende-se o facto de afirmar e de negar ao mesmo tempo uma coisa ou a emissão de duas proposições contraditórias que não possam ser simultaneamente verdadeiras e falsas, entendendo-se como proposições contraditórias as que tendo o mesmo sujeito e o mesmo atributo diferem na quantidade e qualidade. Para os fins do preceito (al. b) do nº2) constitui contradição apenas e tão só aquela que, expressamente se postula, se apresente como insanável, irredutível, que não possa ser integrada com recurso à decisão recorrida no seu todo, por si só ou com auxílio das regras da experiência.” A contradição insanável ocorre ainda nas situações em que existe um vício “(…) ao nível das premissas que determina uma formação defeituosa da conclusão: se as premissas se contradizem, a conclusão logicamente correcta é impossível.” A contradição insanável da fundamentação ou entre esta e a decisão, revela-se em desarmonia intrínseca insanável, em termos de que a sua interligação se apresenta com resultados opostos sobre a mesma factualidade, não sendo possível, face ao texto da decisão recorrida, ainda que em conjugação com as regras da experiência comum, obter o facto seguro, sem dúvidas, saber qual a factualidade provada, percetível, consistente e conjugável harmonicamente entre si. – cfr. STJ 2015-03-12 (Pires da Graça) www.dgsi.pt. Ora, a divergência de convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida em audiência e aquela que o Tribunal formou não se confunde com qualquer vício do artigo 410º nº 2 do Código Processo Penal. O que releva, neste aspeto, não é a interpretação ou a análise pessoal do recorrente, mas o resultado da avaliação e ponderação sobre as provas produzidas perante o tribunal, avaliadas segundo o princípio da livre convicção. Ora, no caso dos autos, a pretexto do vício da contradição insanável, o recorrente mais não faz do que confrontar com os factos provados e/ou não provados a sua interpretação na apreciação da prova para, desse modo, colocar em causa a valoração que o Tribunal a quo efetuou. Em relação aos factos dados como provados e os factos não provados, nenhuma contradição insanável se vislumbra no texto da decisão recorrida, quer entre si, quer em relação à fundamentação probatória que os suporta. Inexiste, assim, o alegado vício. -- Da insuficiência da matéria de facto Argumenta o recorrente arguido, nos termos do artigo 410º, nº2, do CPP, ter havido insuficiência da matéria de facto provada, por si aqui impugnada, na medida em que não permite o juízo valorativo deduzido sob a matéria vertida naquele. O vício previsto no art.410º, nº 2, al. a), ocorre quando a matéria de facto provada não basta para fundamentar a solução de direito alcançada na decisão e sempre que o tribunal, podendo fazê-lo, não investigou toda a matéria de facto contida no objeto do processo e com relevo para a decisão final. O conceito de insuficiência da matéria de facto provada significa pois que os factos apurados e constantes da decisão recorrida são insuficientes para a decisão de direito, do ponto de vista das várias soluções que se perfilem – absolvição, condenação, existência de causa de exclusão da ilicitude, da culpa ou da pena, circunstâncias relevantes para a determinação desta última, etc. - e isto porque o tribunal deixou de apurar ou de se pronunciar sobre factos relevantes alegados pela acusação ou pela defesa ou resultantes da discussão da causa, ou ainda porque não investigou factos que deviam ter sido apurados na audiência, vista a sua importância para a decisão, por exemplo, para a escolha ou determinação da pena. Deste modo, a insuficiência em causa neste vício decisório reporta-se aos factos indispensáveis para a decisão de direito, daí que o vício se considere demonstrado quando a sentença, por si só considerada evidencie que os factos dados como provados não permitiam atingir a decisão de direito a que se chegou. Ou seja, o vício ocorre quando a matéria de facto provada se mostra exígua para fundamentar a decisão de direito, em resultado de o tribunal ter omitido o dever de investigar toda a matéria de facto com interesse para a decisão. Portanto a insuficiência diz respeito aos factos e não à prova, por isso, o que importa indagar é se a sentença contém falha, hiato ou omissão ao nível dos factos e não se a decisão da matéria de facto tem apoio na prova ou se era exigível ao tribunal produzir ou valorar de forma diversa as provas, como vem invocado pelo aqui recorrente. Ora a ocorrência do nomeado vício é justificada pelo recorrente arguido porque, em seu entender, o Tribunal a quo não foi rigoroso na sustentação e prova da matéria de facto que considerou provada sob pontos por si impugnados, não havendo, na interpretação que faz daquela, prova que o sustentasse. No fundo, apela à sua convicção quanto à prova que foi produzida em audiência e que, em seu entender, impunha decisão diversa, o que nada tem a ver com a insuficiência enquanto vicio decisório, tal como acabou de se expor. O que o recorrente expressa é a sua divergência sobre o modo como a prova foi examinada e valorada na sentença, contrapondo uma diferente visão sobre a mesma, por não “concordar” com a decisão de facto, ou seja, que exista prova que permita suportar os pontos de facto impugnados. A verificação do vício em causa implicaria a deteção, na própria decisão, de uma lacuna no apuramento da matéria de facto necessária para a imputação do crime em causa, o que não se vislumbra no texto da sentença, nem o recorrente a especifica na motivação e conclusões do recurso. Deste modo, resta concluir que a decisão recorrida não padece dos supra apontados vícios, mostrando-se a sua arguição infundada. Não ocorrendo vício que inquine a matéria de facto nos termos do art.410º, nº2, do Código Processo Penal, a factualidade assente é insuscetível de modificação pela via da impugnação restrita. -- Da impugnação ampla art.412º, n.º 3, do Código Processo Penal No entender do recorrente, o Tribunal valorou erradamente a prova produzida em audiência quanto à matéria de facto tendente à formação da convicção de que o arguido quis apropriar-se da ave e com eles se conformou mostrando-se erradamente julgados a propósito os factos provados 1 a 15 dos factos provados (em particular os artigos 10 a 15). Como é sabido a matéria de facto pode ser sindicada de dois modos: 1º no âmbito restrito, mediante a arguição dos vícios decisórios previstos no art. 410º, nº 2, do Código Processo Penal (diploma a que pertencem as disposições que, doravante, vierem a ser citadas sem indicação de origem), cuja indagação tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo, por isso, admissível o recurso a elementos àquela estranhos para a fundamentar, ainda que se trate de elementos existentes nos autos e até mesmo provenientes do próprio julgamento, a chamada revista alargada; 2º) na impugnação ampla, com base em erro de julgamento, nos termos do art. 412º, nºs 3, 4 e 6, caso em que a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência. Vejamos, pois, este modo de sindicância da matéria de facto. Nos termos do art. 428º, nº 1, as Relações conhecem de facto e de direito e de acordo com o artigo 431º “Sem prejuízo do disposto no artigo 410º, a decisão do tribunal de 1ª instância sobre matéria de facto pode ser modificada: a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base; b) Se a prova tiver sido impugnada, nos termos do nº 3, do artigo 412º; ou c) Se tiver havido renovação da prova.” Sucede que a impugnação da decisão da matéria de facto, pela via mais ampla prevista no artigo 412º, do C.P.P., tendo havido documentação da prova produzida em audiência, com a respetiva gravação, impõe ao recorrente o ónus de proceder a uma tríplice especificação, nos termos dos seus nºs 3,4 e 6. Exige-se ao recorrente a especificação dos concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, o que só se satisfaz com a indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida e que considera indevidamente julgado [2]. Para além disso, a especificação das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, o que se traduz na anotação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que acarreta decisão diversa da recorrida, a que acresce a necessidade de explicitação da razão pela qual essa prova implica essa diferente decisão, devendo, por isso, reportar o conteúdo específico do meio de prova por si invocado ao facto individualizado que considere mal julgado. O recorrente terá, pois, de indicar os elementos de prova que não foram tomados em conta pelo tribunal quando o deveriam ter sido ou que foram considerados quando não o podiam ser, nomeadamente por haver alguma proibição a esse respeito, ou então, de pôr em causa a avaliação da prova feita pelo tribunal, assinalando as deficiências de raciocínio que levaram a determinadas conclusões ou a insuficiência (atenta, sobretudo, a respetiva qualidade) dos elementos probatórios em que se estribaram tais conclusões. O recorrente deverá referir o que é que nos meios de prova por si especificados não sustenta o facto dado por provado ou não provado, de forma a relacionar o seu conteúdo específico, que impõe a alteração da decisão, com o facto individualizado que se considera incorretamente julgado. Finalmente, a especificação das provas que devem ser renovadas implica a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em 1ª instância cuja renovação se pretenda, dos vícios previstos no artº 410º, nº 2, do CPP e das razões para crer que aquela permitirá evitar o reenvio do processo (cfr. artº 430º, do CPP). Ainda quanto às concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, resulta do nº 4 do dispositivo legal em análise que havendo gravação das provas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, devendo o recorrente indicar as passagens (das gravações) ou os concretos segmentos de tais depoimentos em que se funda a impugnação e que no seu entender invertem a decisão proferida sobre a matéria de facto, pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes (n.º 6 do artigo 412.º). Saliente-se que a remissão para os suportes técnicos não é a simples remissão para a totalidade das declarações prestadas, mas para os concretos e precisos locais da gravação, que suportam a tese do recorrente, só assim se dando cumprimento à especificação das “concretas provas” que é dizer do conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa da recorrida [3]. Assim, quando se trate de depoimentos testemunhais, de declarações dos arguidos, assistentes, partes civis, peritos, etc, o recorrente tem, pois, de individualizar, no universo das declarações prestadas, quais as particulares e precisas passagens, nas quais ficam gravadas, que se referem ao facto impugnado. Na ausência de consignação na ata do início e termo das declarações, bastará “a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas pelo recorrente”, de acordo com o acórdão do STJ de fixação de jurisprudência de 8/3/2012 (AFJ nº3/2012), publicado no DR - I - Série, nº77, 18/4/2012. Assim, quanto ao cumprimento do ónus de indicação das provas que impõem decisão diversa da recorrida (al. b) do nº 3 do artigo 412º do Código de Processo Penal), com o AFJ (STJ) nº 3/2012, foi fixada a seguinte jurisprudência: - Se a ata contiver a referência ao início e termo das declarações, basta a indicação das passagens em que se funda a impugnação por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364 (nº 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal); – Ou, alternativamente, se a ata não contiver essa referência, a identificação e transcrição nas motivações de recurso das ditas “passagens” dos meios de prova oral (declarações, depoimentos e esclarecimentos gravados). No caso vertente, o recorrente indica os pontos de facto provados (pontos 1 a 15) que considera incorretamente julgados e o sentido em que devia ter sido produzida a decisão (não provados). Contudo, o recorrente não especifica e explana em relação a todos e cada um desses factos as provas concretas que – no seu entender - impõem decisão diversa, com referência, no caso dos depoimentos, às concretas passagens ou os concretos segmentos de tais depoimentos com virtualidade de fazer inverter a decisão proferida sobre a matéria de facto – a alínea b) do n.º 3 do artigo 412.º. Mais, vista a prova e explanação aduzidas pelo recorrente constata-se que o mesmo se limita a colocar em crise a convicção do tribunal recorrido, e acaba por pretender simplesmente impor a sua própria e subjetiva leitura crítica da prova, em detrimento daquela que alicerçou a convicção adquirida pelo tribunal recorrido e que a sentença explicita de forma clara e cabal. O recorrente esquece que o tribunal de recurso não realiza um segundo julgamento da matéria de facto, incumbindo-lhe apenas emitir juízos de censura crítica a propósito dos pontos concretos que as partes especifiquem e indiquem como não corretamente julgados ou se as provas sindicadas impunham decisão diversa. Nem a alteração da matéria de facto decorre, por via do recurso, da mera possibilidade de a prova produzida permitir uma decisão de sentido distinto da tomada pelo julgador. Exige-se, isso sim, que essa decisão diversa se imponha por ser evidente ou flagrante o erro do tribunal a quo, em função das provas produzidas, no julgamento da matéria de facto. Na situação que nos ocupa, as declarações do arguido e demais testemunhas, corroboradas por outros meios de prova aludidos na decisão recorrida, foram devidamente sopesados pelo tribunal, na sua conjugação com a prova documental apontada na motivação, na estrita medida em que permitiram formar uma dada convicção no sentido factual dado como provado relativamente aos pontos de facto impugnados. Da motivação de recurso fica-nos apenas um discurso de assumida discordância do recorrente quanto à análise crítica da prova efetuada pelo tribunal recorrido, qual opinião alicerçada em generalizações probatórias baseadas em concetualizações pessoais sobre a credibilidade dos depoimentos e o sentido das regras da experiencia, o que torna inviável a pretensão de sindicar a livre apreciação da prova, tal como vem consagrada no artigo 127º, do Código de Processo Penal. O que o recorrente faz é convocar o tribunal de recurso para um novo julgamento com apreciação da totalidade da prova produzida em 1ª instância, expondo a sua visão da prova e dos factos em substituição da convicção alcançada pelo tribunal a quo. Em suma, não padecendo a decisão recorrida de qualquer vício previsto no art.410º, nº2, mostra-se também pela via mais ampla do art. 412º, n.º 3, ambos do Código de Processo Penal, inviável a modificabilidade da decisão proferida sobre a decisão da matéria de facto, o que implica que a mesma se tenha por definitivamente consolidada. De resto, o tribunal a quo não expressou qualquer dúvida razoável e fundada sobre a matéria de facto provada sob os pontos impugnados, nem da sua fundamentação emerge que a devesse ter, ao abrigo do princípio constitucional do in dubio pro reo. Não havendo, como não deve haver, qualquer dúvida insanável, séria e fundada sobre a conclusão de facto a que chegou a decisão recorrida, nenhuma censura merece a mesma. Posto isto, não houve valoração arbitrária da prova, nem violação do princípio do dubio pro reo, previsto no art.32º da C.R.P., pelo que sempre haveria de se aceitar a sobredita autoria dos factos pelo recorrente nos precisos termos que lhe vêm imputados. De resto, não se verificam motivos objetivos que justifiquem a modificação da matéria de facto provada (impugnada) e determinem o afastamento do raciocínio lógico desenvolvido pelo tribunal a quo, mas antes se confirmam os fundamentos em que se alicerçou a convicção do tribunal sobre a matéria provada. O duplo grau de jurisdição na apreciação da decisão da matéria de facto não tem, portanto, a virtualidade de abalar o princípio da livre apreciação da prova que está conferido ao julgador de primeira instância. Cabe deste modo concluir que, e para além da violação das provas subtraídas à livre apreciação do julgador, ou da violação dos referidos princípios, o juízo decisório da matéria de facto só é suscetível de ser alterado, em sede de recurso, quando a racionalidade do julgamento da matéria de facto corresponda, de um modo objetivo, a um juízo desrazoável ou mesmo arbitrário da apreciação da prova produzida. Nessa decorrência, repete-se, o legislador teve o cuidado de enunciar que as provas a atender pelo Tribunal ad quem são aquelas que “impõem” e não as que “permitiriam” decisão diversa - cfr. art. 412º, nº 3, al. b). A negação e/ou diferente interpretação dos factos por parte do arguido, por si só, não impõe a alteração factual pretendida, mostrando-se plenamente justificada a credibilidade e interpretação conferida a toda a prova produzida e examinada em julgamento, em conjugação com as regras da experiência comum e da normalidade do acontecer. Não se vislumbram razões, nem o recorrente as especifica, a partir das concretas provas produzidas, para sobrepor o seu juízo interpretativo ao que foi alcançado na decisão impugnada. Tão pouco se mostrando incumpridas as regras da experiência comum, entende-se que a decisão da matéria de facto se deverá manter inalterada, respeitando a convicção pessoal do julgador no âmbito do uso do principio que vigora neste domínio, o da livre apreciação da prova vertido no art.127º. No caso foi efetuado um exame critico e consistente às provas produzidas, tendo o tribunal a quo formado a sua livre convicção, quanto à autoria e ientação com que os factos ocorreram, sendo que a decisão recorrida só seria de alterar se se revelasse evidente que as provas não conduziriam àquela decisão, o que, in casu, não sucedeu, sendo irrelevante se a interpretação que o recorrente faz dessa prova é diversa da interpretação do julgador. Em vez de especificar e explanar os concretos meios de prova que impõem decisão diversa da impugnada, em vez de rebater de viva voz em julgamento os factos imputados, o recorrente lança agora mão do livre arbítrio e das valorações puramente subjetivas, fundadas em meras especulações, para infirmar uma dada convicção racional, objetivável e suficientemente motivada do tribunal a quo. No fundo, o recorrente pretende fazer vingar a sua versão dos factos radicada exclusivamente numa interpretação e valoração subjetiva da prova produzida em audiência, a sua, sobrepondo-a àquela que está subjacente à decisão recorrida. Vista a motivação da sentença, percebe-se que foram conjugados todos os elementos de prova produzidos, fazendo-se referência a todos, nomeadamente as declarações do arguido, das testemunhas e prova documental, bem assim às razões do convencimento do tribunal a quo perante esse material probatório. Nestes termos, carece de fundamento a pretensão recursiva de modificação da matéria de facto. -- Do preenchimento do tipo de crime de peculato Defende o recorrente que, em resultado da prova produzida em audiência de julgamento, existiu errado enquadramento jurídico, por inexistência dos elementos objetivos e subjetivos do tipo de crime de peculato. Porém, mantendo-se incólume a matéria de facto assente na sentença, que como se analisou foi impugnada sem êxito, nada haverá a decidir no que à pretendida absolvição ou alteração da qualificação jurídica dos factos tange. Reitera-se, a matéria de facto provada neste momento mostra-se intangível, perante a decidida questão atinente à pretendida alteração da matéria de facto, e assim sendo, dúvidas não existem que todos os elementos do tipo legal assacado ao recorrente se mostram verificados, como aliás, fundadamente, a decisão em escrutínio revelou. Donde, terá liminarmente de ser desatendida a pretensão em causa, considerando a improcedência do recurso relativamente à impugnação da matéria de facto. Não merece, pois, reparo a sentença na parte em que considerou convergirem no caso os requisitos típicos do assinalado tipo legal de crime. -- Da medida concreta da pena de prisão Defende o arguido que no presente caso as penas fixadas apresentam-se, salvo o devido respeito, altamente exageradas face ao grau de culpa imputável ao recorrente. Vejamos. O arguido foi condenado pela prática de um crime de peculato, previsto e punido pelo artigo 375.º, n.º 1 do C.P. na pena de dois anos e dois meses de prisão. O crime de peculato é punível com pena de prisão entre 1 e 8 anos. Salientando que: o recorrente concluiu que a mera censura do facto e, muito em especial, a ameaça da pena, seriam fatores suficientemente inibitórios da prática de novas condutas criminosas e, por essa razão, a opção deveria ter sido – e deverá sê-lo – pela redução da pena e consequente suspensão da sua execução por se revelar adequado à salvaguarda das finalidades das penas. Em síntese, o recorrente considera a pena aplicada excessiva e violadora do princípio da culpa. Como é sabido, o Tribunal da Relação conhece de facto e de direito (art. 428.º do CPP). Sendo o recurso de direito, como é o caso, a lei impõe que sejam indicadas, além do mais, “as normas jurídicas violadas” e “o sentido em que, no entendimento do recorrente, o tribunal recorrido interpretou cada norma ou com que a aplicou e o sentido em que ela deveria ter sido interpretada ou com que devia ter sido aplicada” (als. a) e b) do n.º 2 do art. 412.º do mesmo Código). A decisão de interpor recurso, não sendo o mesmo obrigatório, é em si mesma uma opção responsabilizante, pois que os recorrentes têm o ónus de apresentar as concretas razões da sua discordância relativamente à decisão recorrida, condensando-as nas respetivas conclusões, enunciando as questões que pretende ver reapreciadas, aí resumindo “as razões do pedido” (n.º 1 do citado art. 412.º). Com efeito, o Tribunal de recurso não formula um novo juízo sobre a responsabilidade penal dos arguidos com fundamento no quadro factual apurado em primeira instância, nem tão pouco aplica novamente as penas. O Tribunal ad quem reaprecia uma decisão judicial de acordo com os argumentos que a possam infirmar, de acordo com as conclusões dos recorrentes. Portanto, não basta aos recorrentes clamar que as penas devem ser reduzidas por excederem as exigências de prevenção, o grau de ilicitude dos factos e/ou a culpa dos arguidos. Impõe-se ao recorrente que justifique porquê, baseado, consoante o caso, nos factos apurados ou nos preceitos legais aplicáveis, bem como que indique qual, no seu entendimento, será a decisão justa ou a medida adequada da pena nos limites da moldura abstrata correspondente. Sucede que o arguido recorrente não deu cumprimento ao referido ónus de especificação que lhe é imposto pelo art.412º, nº2, do Código Processo Penal. Acresce que ao tribunal de recurso, em sede de determinação da medida da pena, compete apenas controlar os erros apontados no recurso, alterando a pena se houver violação clara dos princípios da proporcionalidade e necessidade e/ou omissão ou manifesta ponderação errada de algum critério legal ou facto relevante. Ora, tendo em conta a moldura abstrata correspondente, ponderando todos os elementos mencionados em sede determinação da pena concreta, entende-se não se justificar a intervenção corretiva deste tribunal, no sentido de uma redução, antes deverá manter-se a pena aplicada, por se mostrar ajustada e proporcional às elevadas exigências de prevenção, sem exceder o grau de culpa. - O recorrente pugna ainda pela suspensão da execução da pena de prisão em detrimento da substituição aplicada, nos termos do disposto no artigo 46º, nº1 do mesmo diploma legal, pela proibição do exercício da sua profissão de militar da GNR por igual período. A este respeito recorrida ponderou-se na sentença o seguinte: “Atendendo à medida concreta da pena de prisão fixada, impõe-se que se pondere uma pena de substituição não detentiva. Atenta a concreta pena de prisão fixada, mostra-se afastada a possibilidade de ser substituída por multa e por trabalho a favor da comunidade (artigos 45º e 58º do C.P.). Se é certo que a lei penal não hierarquiza entre si cada uma das diversas penas de substituição, ressuma indubitável que o julgador aplicará aquela que cumprir melhor a sua finalidade, numa ótica de adequação, suficiência, sem descurar as finalidades de prevenção geral e especial e o princípio da proporcionalidade que impõe que se opte pela pena de substituição menos grave (acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 22-05-2013, processo n.º 163/06.1SFPRT.P1, relatado por Ernesto Nascimento e disponível em www.dgsi.pt). De acordo com o entendimento da doutrina, a pena de proibição do exercício de profissão, função ou atividade é uma verdadeira pena de substituição da pena de prisão e não apenas um mero regime de cumprimento desta pena de prisão, pelo que, em regra, deve substituir a “pena concreta de prisão não superior a 3 anos quando o crime tenha sido cometido no exercício de profissão, função, ou atividade públicas ou privadas e o tribunal conclua que esta pena realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição” (Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, 4.ª edição, Lisboa: Universidade Católica Portuguesa, 2021, p. 319). Nos termos do disposto no artigo 46º, nº1 do Código Penal, em vigor à data da prática dos factos: “A pena de prisão aplicada em medida não superior a três anos é substituída por pena de proibição, por um período de dois a cinco anos, do exercício de profissão, função ou atividade, públicas ou privadas, quando o crime tenha sido cometido pelo arguido no respetivo exercício, sempre que o tribunal concluir que por este meio se realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”. Esta pena de substituição é aplicável, uma vez que o arguido vai condenado numa pena de prisão de dois anos e dois meses pela prática de um crime quando estava no exercício da sua profissão/funções. Cumpre verificar se as finalidades da punição se realizam de forma adequada e suficiente com a aplicação desta pena de substituição. Considerando que nos termos do no nº3 da norma em análise esta pena de substituição é revogada se o arguido exercer a profissão/funções proibidas ou se no seu decurso praticar novo crime e, com isso, revelar que as finalidades da pena de proibição do exercício de profissão, função ou atividade não puderam por meio dela ser alcançadas, concluímos que o tribunal tem que verificar se pode realizar, neste momento, um juízo de prognose favorável no sentido de a ameaça de prisão conjugada com o afastamento do arguido da GNR serem suficientes para prevenir a prática de novos ilícitos pelo mesmo. Concluímos que sim. De facto, apesar do arguido não ter interiorizado o desvalor dos factos por si praticados, verificamos que o mesmo não tem antecedentes criminais e encontra-se familiarmente integrado. Assim, a ameaça de prisão aliada ao afastamento do arguido do exercício da profissão de militar da GNR, mostra-se previsivelmente suficiente para que o mesmo se abstenha da prática de novos ilícitos criminais, designadamente no exercício das funções ou por causa delas, sendo, ainda, censura suficiente para que comunidade veja o valor da norma violada reforçado. Assim sendo, vai o arguido condenado numa pena de dois e dois meses de prisão, substituída, nos termos do disposto no artigo 46º do C.P., pela proibição do exercício da sua profissão de militar da GNR por igual período (dois anos e dois meses). Resulta do artigo 46.º, n.º 2, do Código Penal que à aplicação desta pena de substituição sucedem os efeitos que fluem do artigo 68.º, ainda que com as necessárias adaptações. Com efeito, prescreve este último normativo no seguinte sentido: “1 - Salvo disposição em contrário, a proibição e a suspensão do exercício de função pública determinam a perda dos direitos e regalias atribuídos ao titular, funcionário ou agente, pelo tempo correspondente. Assim sendo, durante o período definido supra, o arguido ver-se-á confrontado com a perda dos direitos e das regalias que até então recebia, por força e em virtude do exercício das funções enquanto militar da GNR. * O M.P. pugnou pela aplicação da pena acessória prevista no artigo 66.º, n.º 1, alienas a) b) e c) do Código Penal. Sucede que nos termos desta disposição a pena acessória em causa só aplicável quando o crime praticado é punido, em concreto, com pena de prisão superior a três anos e ao arguido foi aplicada uma pena de prisão inferior. Assim sendo, esta pena acessória não é aplicável/aplicada”. Cumpre apreciar. A fundamentação do tribunal quanto à aplicação desta pena de substituição é suficiente e perfeitamente adequada, permitindo compreender com clareza e precisão os motivos e a construção do percurso lógico da decisão que optou de forma clara pela proibição do exercício de funções por tempo determinado entre a moldura legal prevista no art.46º, do Código Penal. Não resulta da lei penal, a obrigatoriedade de pronúncia específica sobre o afastamento de todas as penas de substituição ou modos de execução abstratamente aplicáveis, desde que a fundamentação da aplicada ou, da não aplicação de qualquer delas, resulte como adequada e suficiente para justificar a decisão [4]. No caso, o tribunal não só deixou clara a sua opção, como fundamentou, clara e convincentemente, por que considera imperioso o cumprimento daquela pena de substituição, não tendo que afastar, sucessivamente, cada uma e todas das penas de substituição abstratamente aplicáveis e modos de execução cujos pressupostos de aplicação se mostrem verificados e que, por conseguinte, seriam, em abstrato, aplicáveis. Coisa diferente é saber se a solução a que chegou o tribunal a quo para punir este concreto arguido deve ser mantida. Como é sabido, são finalidades exclusivamente preventivas que devem presidir à operação da escolha da espécie de pena a aplicar ao agente, devendo o tribunal dar preferência à pena não detentiva, a não ser que razões ligadas à socialização do delinquente (no seu conteúdo mínimo, traduzido na prevenção da reincidência) ou de preservação do limite mínimo da prevenção geral positiva, no sentido de "defesa do ordenamento jurídico", imponham a pena de prisão. Em caso de conflito entre os vetores da prevenção geral e especial, o primado pertence à prevenção geral. Com escreve André Lamas Leite [5] , “ a comunidade só é capaz de voltar a acreditar no bem jurídico em que se baseia a regra jurídico-penal infringida se o sistema que a suporta for capaz de demonstrar ao comum dos indivíduos que tal se fará, também, no respeito pela sua segurança. Na verdade, o direito à segurança é um direito fundamental clássico. Mais do que funcionar como limite da prevenção geral positiva, entendemo-lo como verdadeiro fundamento dessa teoria, dado inexistir confiança sem segurança”. É consensual na doutrina e na jurisprudência que em caso de conflito entre as exigências de prevenção geral e especial, o tribunal deve dar primazia à defesa da ordem jurídica e da paz social – o conteúdo mínimo da prevenção geral positiva. Seguindo ainda a doutrina de André Lamas Leite, CONTRIBUTO PARA A EVOLUÇÃO HISTÓRICA DAS PENAS SUBSTITUTIVAS, in RJLB, Ano 5 (2019), nº 3, “os princípios do Estado de Direito impõem que, em situações de conflito irresolúvel entre as necessidades preventivas gerais e especiais, se tenha de dar prevalência às primeiras, sob pena de ser a própria convivência comunitária que se acharia irremediavelmente comprometida. Entre a ressocialização duvidosa do condenado e a protecção da sociedade, ao menos através da sua segregação social, o sistema penal prefere, em última instância, esta última, aliás apoiado pela percepção que tem de que a opinião pública também se encaminha em tal sentido. Donde, no plano das coisas últimas, e nas hipóteses de impossibilidade absoluta de ressocializar o indivíduo sem pôr em causa a segurança comunitária, o sistema não parece tão preventivo-especial positivo. Contudo, note-se: tal não significa que deixe de ser preventivo-geral de integração se e na medida em que se entender a reafirmação da validade da norma violada como limitada pela segurança societária” (itálico nosso). Já atuarão exclusivamente considerações de prevenção especial no caso de haver mais de uma pena de substituição adequada e suficiente a realizar as finalidades de prevenção. Nesta hipótese o tribunal deverá aplicar a que melhor satisfizer a finalidade de reintegração do agente na sociedade - cfr. Maria João Antunes, Penas e Medidas de Segurança, Almedina, 2017, pg.77. Em abstrato, numa situação de concorrência ou de concurso, entre várias penas de substituição, tendo presente que nos termos dos artigos 40º e 42º C Penal, a aplicação da pena visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade e que a sua execução, servindo a defesa da sociedade e prevenindo a prática de crimes, se deve orientar no sentido da reintegração social do recluso, preparando-o para conduzir a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes, “será em função do critério legal da adequação e suficiência, de acordo com as necessidades de prevenção especial positiva, presentes no caso concreto, que o tribunal deve escolher entre elas - sem esquecer que de acordo com o princípio da proporcionalidade, previsto no artigo 18º/1 da CRP a suficiência significará que se deve optar pela pena de substituição menos grave” – cfr. RP 22-05-2013 (processo 3/06.1SFPRT.P1, Ernesto Nascimento) www.dgsi.pt. Vale isto dizer que na escolha das penas de substituição devem ser tomados tendo em conta unicamente critérios de prevenção. Se é certo que o legislador não hierarquiza entre si, cada uma das diversas penas de substituição, atentas a finalidades da punição, contidas nos artigos 40º e 42º C Penal, será em função do critério legal da adequação e suficiência, de acordo com as necessidades de prevenção geral e especial presentes em cada caso, que o tribunal deve escolher entre elas, sem esquecer o princípio da proporcionalidade, previsto no artigo 18º/2 da C.R.P. Nessa hipótese, a opção deve ser feita pela pena que se julgue mais adequada à realização, no caso concreto, das finalidades preventivas da punição, ou que mais se aproxime dessa realização, tendo em vista os critérios legalmente estabelecidos para cada uma das penas de substituição. Analisada a decisão recorrida, verificamos que o tribunal de primeira instância fundou em razões de prevenção geral e especial, ligadas à necessidade de reafirmação da confiança comunitária na validade da norma violada e de ressocialização do recorrente, a opção pela aplicação da pena de substituição de proibição do exercício de funções prevista no art.46º, do Código Penal. Apreciando, desde já se adianta que se afiguram inteiramente justificadas as considerações expendidas pelo tribunal recorrido a propósito dessa opção. Concretizando, Dando escrupuloso cumprimento ao dever imposto pelo art.1323º, nº1 a 3, do Código Civil, e art.209º, do Código Penal, o cidadão BB providenciou e entregou no posto da GNR local um animal por si achado (papagaio) com o propósito de o ver entregue ao SEPNA. Recebido o animal pelo arguido, militar da GNR, no exercício das suas funções no posto de atendimento, em vez de registar a ocorrência e acondicionar o animal nas instalações do SEPNA, o arguido apropriou-se daquele, sem registo daquela. Sabia o arguido que ilegitimamente se apropriava de uma ave, no valor de €250,00, que sabia não lhe pertencer e que se encontrava na sua disponibilidade em razão das suas funções como Militar da GNR. Não obstante, o arguido não se absteve de agir do modo descrito, violando os deveres inerentes à função que desempenhava na função pública jurisdicional, atuando com o propósito conseguido de obter benefícios patrimoniais que sabia não lhe serem devidos, ciente que tal conduta era proibida e punida por lei. Ora, a reafirmação contrafáctica da norma violada pelo arguido impõe claramente a imperiosa e inabalável necessidade e adequação de uma pena substitutiva que, numa conceção operativa, por um lado, reforce os deveres funcionais dos militares da GNR e reponha a confiança institucional que lhes é devida pela comunidade num Estado de Direito Democrático, por outro lado, restabeleça o sentimento e compreensão comum do dever imposto a todos os cidadãos, quer pela lei civil, quer pelo lei penal, sobre a entrega de coisa ou animal achado. Lembrando mais uma vez André Lamas Leite, ALGUMAS NOTAS PARA UM CONCEITO OPERATIVO DE “PENA”, JULGAR, nº32, 2017, pg.205, “De nada adianta a uma comunidade desejar fortemente que o status quo ante permaneça na situação em que se encontrava (dentro do possível) antes do evento do crime, se não dispuser de mecanismos efetivos de o concretizar. E esses mecanismos passam por uma atuação sobre a generalidade dos membros, para os afastar de repetirem aquele comportamento, mas também por uma atuação sobre o concreto delinquente, ao menos com o mesmo fim”. Naturalmente que, como todas as penas, ainda que de substituição, em busca da proteção das normas criminais violadas, as quais protegem bens jurídicos, a proibição de exercício de funções pressupõe uma limitação ou restrição de direitos fundamentais do condenado compatível com as exigências e os efeitos do sancionamento. Não se trata de uma visão exasperadamente retributiva, castigadora do infrator. Sucede, isso sim, que a comunidade não compreenderia a operacionalidade de uma pena que visa reforçar a validade de uma norma, sem impor ao infrator uma limitação ou restrição do direito fundamental que dilacerou com a violação da integridade, lealdade, boa-fé, transparência e confiança funcional que lhe era imposta. Em nome desse mesmo sistema de valores jurídicos que foram violados pelo arguido, no exercício das funções e por causa delas, mostra-se necessário, adequado e proporcional que este cidadão mantenha os direitos que em geral lhe são inerentes (princípio da humanidade das penas), mas com ressalva daqueles que por virtude da sua condenação ou da sua execução devam ser limitados, restringidos correlacionados com o seu desempenho funcional. A suspensão da execução da pena de prisão não realiza de forma adequada e suficiente essas finalidades da punição. Este mesmo tribunal, em acórdão de 8.05.2024 do mesmo relator, no processo nº154/23.8GBMTS.P1, confirmou a condenação de uma arguida pelo crime de apropriação ilegítima de coisa achada, p. p. pelo art.209º, do Código Penal. Condenar numa pena suspensa, ainda que condicionada a deveres e/ou regras de conduta, um militar da GNR que se apropriou de um animal achado por outrem e que recebeu no exercício das suas funções e por causa delas, sem fazer ressoar a mais ligeira consciência critica da elevada censurabilidade da sua conduta, mantendo um comportamento institucional e processual absolutamente deplorável, envolvendo e comprometendo colegas de profissão e particulares num rodilho de falsidades que ainda hoje alimenta, não é adequado, nem suficiente para reforço das sobreditas normas incriminadoras e menos ainda para o afastar do cometimento de novos crimes. Ilustrando, se a comunidade, no referido contexto, mal compreende que “o lobo possa guardar as ovelhas”, jamais aceitará que o ordenamento jurídico penal nisso consinta, depois de lhes ver rasgar a pele, mantendo-o impenetrável na integridade das funções. A opção pela proibição do exercício das funções depende unicamente de considerações ligadas à necessidade e proporcionalidade das restrições dos direitos em contraponto com as exigências de prevenção verificadas no caso concreto. As exigências de prevenção geral “sob a forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico", pelas quais se limita sempre o valor da socialização, são sobremaneira elevadas no caso dos autos. A comunidade dificilmente compreenderia que alguém que pratica factos da natureza e gravidade dos que o arguido praticou, revelando uma personalidade avessa à observância das normas jurídico-penais e dos deveres funcionais inerentes, enquanto militar da GNR, se mantivesse no cumprimento das funções, a mais que, num juízo de prognose sobre o seu comportamento futuro, sobressai a total ausência de capacidade de autocritica em relação à sua conduta socialmente desvaliosa. Mostra-se, assim, necessária, num juízo mais prospetivo do que retroativo, a aplicação ao recorrente de uma pena substitutiva de proibição do exercício de funções para reforçar a confiança comunitária na validade das normas violadas e facilitar a sua reintegração social por forma a conformar-se com os valores ético-jurídicos que violou com a sua conduta e que até ao momento não foi capaz de compreender. Dado o seu cariz intimidatório sobre pessoas socialmente inseridas, como é o caso, o cumprimento desta pena de proibição do exercício de funções não só têm uma especial eficácia preventiva - short sharp shock, como se mostra necessária e adequada para cumprir com as finalidades da punição, justamente ali onde fracassou o dever ético jurídico do arguido, pese embora, naturalmente, as desvantagens ou sofrimento próprio do respetivo sancionamento. Estamos perante um crime com forte repercussão negativa na sociedade, que espera do sistema judiciário uma resposta firme, peremptória e severa no combate a comportamentos disruptivos semelhantes causadores de um grande alarme e reprovação social, fator de enorme perturbação no normal funcionamento das instituições. É certo que o arguido tem vindo a revelar um percurso normativo e encontra-se inserido social, familiar e profissionalmente. No entanto, estas circunstâncias não o impediram de cometer o crime em causa nos autos. Ali onde o valor do animal é o menor dos bens apropriados pela conduta do arguido, já que aos olhos dos seus pares e da comunidade espoliou da GNR a inestimável confiança, seriedade e honorabilidade institucional que lhe são devidas, o comportamento do arguido revela traços de uma personalidade imprestável à sua divisa, posto que se mostrou incapaz de respeitar a Lei e servir a Grei (os habitantes de um país). Ademais, mantendo-se o arguido acrítico perante a ilicitude de tal conduta, as penas de substituição não podem ser dispensadas de cumprir assertivamente com as finalidades da punição penal, a pretexto de outras sanções disciplinares eventualmente poderem ser aplicadas. Não pode é o julgador valorizar como consciência critica ou conferir algum beneficio na atitude processual (contrária) de quem falsamente negou os factos, o que não viola o artigo 70.º do CP, nem é atentatório do direito de defesa e do direito à não autoincriminação (art.32º, nº1, da CRP), mostrando-se respeitado o principio da presunção da inocência (art.32º, nº2, da CRP). Por retas contas, se bem vemos as coisas, a penosidade que a proibição temporária de funções acarreta e a introspeção que lhe imporá mostram-se determinantes, mas também necessárias e adequadas para o arguido repensar os valores infringidos precisamente no exercício daquelas. Como escreve Anabela Miranda Rodrigues, “A Determinação da medida da pena privativa da liberdade”, Coimbra Editora, 1995, pg.256-7: A sociedade tolera uma certa perda de efeito preventivo geral – isto é, conforma-se com a aplicação de uma pena de substituição; mas nenhum ordenamento jurídico se pode permitir pôr-se a si mesmo em causa, sob pena de deixar de existir enquanto tal”. A suspensão da execução da pena de prisão, ainda que condicionada fosse a deveres e regras de conduta, não cumpre com os desideratos punitivos que presidem ao juízo substitutivo da pena, ao deixar intocável e, por isso, insensível, a esfera de poderes e deveres do arguido precisamente ali onde a sua personalidade se mostrou e apresenta especialmente vulnerável, isto é, no desempenho das suas funções, enquanto colega e militar da GNR. Ao invés, a pena de substituição de proibição temporária do exercício de funções é aquela que, do ponto de vista especial-preventivo, estabelece um maior e adequado diálogo entre a punição e a quebra do dever ínsito na incriminação, comportando o potencial mais capaz de provocar no arguido alguma reação interna, necessariamente apta a fazê-lo recordar as consequências do seu ato, se e quando confrontado com outra situação similar no exercício das suas funções. Por conseguinte, improcede também nesta parte o recurso. - III - Dispositivo Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes da 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido, confirmando-se integralmente a sentença recorrida. Custas pelo arguido recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 5 (cinco) UC (artigos 513º, nº 1, do CPP, 1º, nº 2 e 8º, nº 9, do RCP e tabela III anexa). Notifique.
Porto, 26 de junho de 2024 João Pedro Pereira Cardoso Liliana de Páris Dias Carla Oliveira (Elaborado e revisto pelo relator – art.º 94º, nº 2, do CPP – e assinado digitalmente). ______________ |