Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
91463/22.0YIPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MANUELA MACHADO
Descritores: INTERPRETAÇÃO DA DECLARAÇÃO NEGOCIAL
ÓNUS DE PROVA
ATO INÚTIL
Nº do Documento: RP2024062091463/22.0YIPRT.P1
Data do Acordão: 06/20/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3.ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Na interpretação da declaração negocial, não podemos deixar de atender ao teor literal do documento e às regras que constam dos arts. 217.º e 236.º do CC, pelo que, não constando do documento qualquer referência a um pagamento mensal, mas, antes, aí se referindo um valor de investimento inicial, um declaratário normal interpretará tal afirmação como prevendo uma prestação única.
II - De acordo com o disposto no art. 130.º do CPC, não é lícito realizar no processo atos inúteis, pelo que, consistindo a pretensão da apelante no aditamento de um facto que não constitui matéria controvertida e não tem interesse para a decisão, configura precisamente um ato inútil que não deve ser admitido.

(da responsabilidade da relatora)
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação 91463/22.0YIPRT.P1




Acordam na 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:




I - RELATÓRIO



A..., Lda. intentou ação especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato (subjacente a injunção) contra B..., SA, peticionando o pagamento da quantia de €7.992,50 de capital, €857,58 de juros de mora e € 148,00 de outras quantias, resultante da prestação de serviços de “Consultoria e Acompanhamento em estratégia e Otimização Web, incluindo campanhas, content, social”, respeitantes aos meses de novembro e dezembro de 2020, janeiro, fevereiro e março de 2021.
Na oposição, a Ré impugnou a dívida, alegando, no essencial, que a proposta acordada consistiu no investimento inicial de €1.950,00, a pagar uma única vez, e cobrada uma percentagem de 10% sobre o valor das vendas, durante um período de 6 (seis) meses.

Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença, na qual se decidiu:
“Pelo exposto e nos termos dos fundamentos de direito invocados, julgo a ação totalmente improcedente por não provada, e, em consequência absolvo a Ré B..., SA do pedido formulado pela Autora A..., Lda.
Valor da ação: € 8.998,08.
Custas da ação pela Autora.
Registe e notifique.”.


Não se conformando com o assim decidido, veio a Autora interpor o presente recurso, o qual foi admitido como apelação, a subir nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

A autora formulou as seguintes conclusões:
“1. No que tange à questão essencial dos autos – retribuição do contrato estabelecido entre as Partes -, cremos que o Tribunal a quo laborou em manifesto erro de julgamento.
2. Vindo a sentença recorrida a adoptar uma decisão que abala toda a instrução da causa, sendo, assim, injusta e merecendo a sua revogação.
3. A Recorrente impugnou o ponto 2 da matéria de facto julgada provada.
4. No exacto sentido da verdadeira realidade contratual e objectivada nos autos.
5. Como bem frisou AA (nas declarações de parte prestadas em audiência, devidamente balizadas nas alegações), era inconcebível ajustar-se um único valor de 1.950,00 € (+IVA); sendo que o negociado e aceite, após diversos contactos e reuniões por videochamada, abarcou uma concentração de serviços mediante uma remuneração inicial de 1.950,00 € (+ IVA), complementada por valores mensais de igual montante num período de seis meses e uma comissão de 10% sobre as vendas da Ré, como, sem margem para dúvidas, deu nota a testemunha BB (no seu depoimento prestado em audiência, devidamente identificado nas alegações), enquanto principal negociador do vínculo.
6. Aliás, como é prática empresarial da Autora, também destacado pela testemunha CC (no seu depoimento prestado em audiência e identificado nestas alegações).
7. Porquanto a realidade dos serviços contratados envolve uma abrangência e conciliação de meios humanos/técnicos ao longo de todo o período.
8. Entendível, até, face aos documentos n.º 5 e 6, juntos pela Autora.
9. E, sobretudo, face ao julgamento positivo que mereceram os pontos 4,5, 6 e 7 da matéria de facto provada.
10. A Recorrida – face à posição por si espelhada nos autos – actua, sim, em contravenção da boa-fé contratual e em abuso de direito (venire contra factum proprium) – Cfr. art.334.º, do C.C.;
11. Porque a realidade demonstra que actuou, concludentemente, no sentido da remuneração que foi efectivamente ajustada entre as Partes.
12. Já que tendo recebido as facturas elencadas no ponto 5 (da matéria de facto provada), as quais gizam expressamente os meses a que se referem, não as devolveu nem das mesmas reclamou em tempo oportuno.
13. Antes logrou pagar à Recorrente de forma parcial, conforme prestações realizadas entre 2/02/2021 e 19/03/2021 e que totalizam a quantia de 4.000,00 €, como demonstra o documento n.º4 (junto pela Autora).
14. O que, notoriamente, revela bem da exigibilidade da obrigação.
15. Como bem sabe a Ré. Não tendo qualquer apoio lógico e racional o que foi, desconcertantemente, invocado pela testemunha DD (cujo depoimento foi devidamente identificado nas alegações), maxime de que os pagamentos parciais realizados correspondiam a comissões.
16. Porquanto, além de estas nunca terem sido contabilizadas e facturadas, sempre os montantes dos referidos pagamentos ostentam um valor não coincidente, sequer, com o invocado nos artigos 21.º, 22.º e 23.º da Oposição da Ré.
17. O que ao próprio Tribunal a quo não deixou de merecer total estranheza.
18. Ignorando o Tribunal a quo tal estado de coisas, revela, igualmente, um errado sentido interpretativo do concreto negócio jurídico.
19. Conforme a Doutrina e Jurisprudência evidenciada no corpo alegatório, a propósito dos cânones patentes nos arts.217.º e sgs., 236.º e sgs., do C.C.
20. Já que o Tribunal a quo se quedou, meramente, pelo elemento textual do acordo, ignorando as reais circunstâncias concomitantes e com relevância para a efectiva compreensão de sentido do que temos em presença.
21. Com efeito, a decisão que deve recair sobre o ponto 2 da matéria de facto provada é a seguinte: « 2. No dia 6 de agosto de 2020, a Autora e Ré outorgaram um acordo, nos termos do qual aquela se comprometeu a prestar a esta “Apoio ao Desenvolvimento do Website e Campanhas de Publicidade Online”, mediante a retribuição no montante de € 1.950,00, acrescida de IVA, por mês, durante um período de 6 (seis) meses, além do valor de € 1.950,00 (+ IVA) a pagar inicialmente.»
22. E sendo tal decisão de facto contrária ao julgamento do ponto 1 da matéria de facto não provada, com os argumentos impugnatórios supra constantes e que se dão por reproduzidos, cremos que este mesmo ponto deverá ser excluído do elenco da matéria de facto não provada.
23. Todavia, caso assim não se entenda, sempre dessa matéria de facto não provada – pelos fundamentos expressos na impugnação do ponto 2 da matéria de facto provada – deverá constar que: «1. A retribuição do acordo firmado em 2) correspondia ao montante de € 1.950,00, a pagar de uma só vez.»;
24. Ainda no que respeita ao delimitar da factualidade relevante, entendemos ser de responder ao quid da prestação, bem como ao tempo da sua execução.
25. Para lá da documentação junta aos autos pela Autora, v.g. documentos n.º 4, 5 e 6, foram as testemunhas CC e BB (nos referidos e identificados depoimentos) claras em referir que a execução dos serviços decorreu entre 1/10/2020 e 31/03/2021.
26. Além de que inexiste notícia, ou sequer foi alegado convenientemente pela Ré, de que tenham sobrevindo vícios de prestação, imputáveis à Autora.
27. Assim, dever-se-á aditar ao elenco da matéria de facto provada que: «8. Os serviços contratados foram prestados pela Autora à Ré entre o início do mês de Outubro de 2020 e o final do mês de Março de 2021».
28. Destarte, concluímos que se impõe ser de revogar a sentença recorrida.
29. Por decisão que, em respeito do disposto nos artigos 406.º e 762.º, n.º 1 do C.C., condene a Ré no pagamento da quantia de 7.992,50 € (sete mil, novecentos e noventa e dois euros e cinquenta cêntimos), referente ao capital em dívida, acrescido dos juros de mora legais, comerciais, vencidos e vincendos, desde as datas de vencimento de cada uma das facturas reclamadas e até efectivo e integral pagamento, bem como no montante de 40,00 € (quarenta euros), ao abrigo do que dispõe o art. 7.º, do D.L. n.º 62/2013, de 10 de Maio e dos juros de mora legais vencidos e vincendos, que incidem sobre esta quantia desde a notificação do requerimento injuntivo, até efectivo e integral pagamento. E, em conformidade, mais devendo a Ré ser condenada em custas processuais.
Nestes termos, e nos melhores de Direito que V.Exas. doutamente suprirão, deve o Recurso ser julgado procedente, com legais consequências, máxime substituindo-se a sentença por Acórdão que: condene a Ré, em favor da Autora/Recorrente, na quantia de 7.992,50 € (sete mil, novecentos e noventa e dois euros e cinquenta cêntimos), referente ao capital em dívida, acrescido dos juros de mora legais, comerciais, vencidos e vincendos, desde as datas de vencimento de cada uma das facturas reclamadas e até efectivo e integral pagamento;
Mais devendo a Ré ser condenada a pagar à Autora a quantia de 40,00 € (quarenta euros), ao abrigo do que dispõe o art. 7.º, do D.L. n.º 62/2013, de 10 de Maio, acrescido dos juros de mora legais vencidos e vincendos, que incidem sobre esta quantia desde a notificação do requerimento injuntivo, até efectivo e integral pagamento.
Bem como nas custas processuais, na justa medida do decaimento.”.
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A ré apresentou resposta, concluindo pela manutenção da sentença proferida.
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Após os vistos legais, cumpre decidir.
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II - DO MÉRITO DO RECURSO

1. Objeto do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. arts. 635º, nº 4, 637º, nº 2, 1ª parte e 639º, nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil.
Atendendo às conclusões das alegações apresentadas pela apelante, as questões a apreciar são as seguintes:
- Se ocorre erro de julgamento nos termos da impugnação da matéria de facto;
- Se perante a alteração, ou não, da matéria de facto, deve ser alterada a decisão de direito.
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2. Decisão recorrida

a) A decisão recorrida deu como provados os seguintes factos:
1. A Autora é uma sociedade por quotas que tem por objeto social o planeamento, gestão e desenvolvimento de sistemas de informação; otimização de estratégias digitais, conceção, desenvolvimento, gestão, administração, monitorização e atualização de software, bases de dados, servidores, redes informáticas, aplicações multimédia e interativas, plataformas de comércio eletrónico; formação, consultoria, desenvolvimento de produtos e serviços nas áreas de inteligência digital, comunicação, publicidade e marketing on e offline.
2. No dia 6 de agosto de 2020, a Autora e Ré outorgaram um acordo, nos termos do qual aquela se comprometeu a prestar a esta “Apoio ao Desenvolvimento do Website e Campanhas de Publicidade Online”, mediante a retribuição no montante de € 1.950,00 durante 6 (seis) meses, a pagar de uma só vez.
3. …mais foi acordado que esse investimento inicial seria complementado com uma comissão de 10% sobre a faturação (Sem IVA).
4. Conforme ajustado em 2), a Autora procedeu à emissão da fatura-recibo nº FR 2019/1, com data de emissão 29/10/2020, com o descritivo “Consultoria e Acompanhamento em estratégia e Otimização Web (inclui: Campanhas, Content, Social”, no montante de € 2.398,50 (€ 1.950,00 + IVA), valor pago pela Ré.
5. A Autora procedeu ainda à emissão das seguintes faturas:
a) FA 2021/6, com o descritivo “Consultoria e Acompanhamento em estratégia e Otimização Web, inclui: Campanhas, Content, Social; novembro e dezembro de 2020”, com data de emissão e vencimento 15/01/2021, no montante de € 4.797,00;
b) FA 2021/16, com o descritivo “Consultoria e Acompanhamento em estratégia e Otimização Web, inclui: Campanhas, Content, Social; janeiro 2021”, com data de emissão e vencimento 09/02/2021, no montante de € 2.398,50;
c) FA 2021/17, com o descritivo “Consultoria e Acompanhamento em estratégia e Otimização Web, inclui: Campanhas, Content, Social; fevereiro 2021”, com data de emissão e vencimento 09/03/2021, no montante de € 2.398,50;
d) FA 2021/44, com o descritivo “Consultoria e Acompanhamento em estratégia e Otimização Web, inclui: Campanhas, Content, Social; março 2021”, com data de emissão e vencimento 16/04/2021, no montante de € 2.398,50.
6. Relativamente à fatura FA 2021/6 encontra-se liquidado o valor de € 4.000,00.
7. Não obstante as diversas interpelações, a Ré não procedeu ao pagamento das faturas em 5).

b) E deu como não provado, o facto seguinte:
1. A retribuição do acordo firmado em 2) correspondia ao montante de € 1.950,00/mês.
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c) Tendo apresentado a seguinte motivação da decisão de facto:
Para a formação da sua convicção o Tribunal considerou e ponderou toda a prova produzida no seu conjunto e em confronto, analisada segundo as regras da experiência comum.
Relativamente ao objeto do contrato (Apoio ao Desenvolvimento do Website e Campanhas de Publicidade Online), emissão das faturas e pagamento da primeira fatura emitida, foram determinantes os documentos juntos aos autos, designadamente os vários emails trocados entre as partes, em particular o email datado de 06/08/2020, nos termos do qual consta os serviços acordados pelas partes, as faturas e relatório de campanhas, em conjugação com os depoimentos das testemunhas CC, BB, DD e as declarações de parte do sócio gerente da Autora.
A testemunha CC, gestora de campanhas de marketing digital da Autora, explicou a execução do trabalho no âmbito do desenvolvimento das campanhas digitais prestados à Ré, no período compreendido de outubro de 2020 a março de 2021, notando que não teve qualquer intervenção do negócio, desconhecendo o valor acordado pelas partes.
O testemunho de BB, diretor de operações da Autora, foi considerado na parte em que explicou os trâmites das negociações entre as partes através de emails e videochamada, confirmando que o email junto aos autos datado de 06/08/2020 trata-se da proposta final e que a primeira fatura emitida foi paga sem qualquer reclamação por parte da Ré. Mais explicou que a Ré fez pagamentos parciais, os quais não correspondem à comissão de 10% sobre a faturação (Sem IVA), pois a Autora não teve acesso ao volume da venda.
O depoimento da testemunha DD, diretor comercial da Ré, foi ponderado na parte em que explicou os serviços contratados pela Ré, notando que a relação comercial terminou em fevereiro ou março de 2021.
As declarações de parte do sócio gerente da Autora foram atendidas na parte em que explicou o objeto do acordo firmado entre as partes, notando que o acordo foi confirmado através do email datado de 06/08/2020.
Regista-se que o Tribunal para além de ter procurado atender aos factos essenciais para a decisão da causa segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, atendeu ainda aos factos complemento ou concretização do que as partes alegaram e resultaram da instrução da causa, tal como lhe é permitido (cfr. artº 5º, nº 2, al. b), do Código de Processo Civil), como é o caso da matéria fáctica dos pontos 2º, 3º e 4º dos factos provados, sujeito ao contraditório.
Quanto à questão fulcral que divergem as partes, ou seja, saber: (i) se o acordo em 2) correspondia à retribuição de € 1.950,00 durante 6 (seis) meses ou (ii) se tal retribuição correspondia ao valor mensal, a prova testemunhal e declarações de parte do sócio gerente da Autora foi muito frágil e insegura.
Com efeito, da análise da prova documental junta aos autos, em particular o email datado de 06/08/2020 resulta que a retribuição dos serviços contratados de “Apoio ao Desenvolvimento do Website e Campanhas de Publicidade Online” era de € 1.950,00 durante 6 (seis) meses.
A prova testemunhal apresentada pelas partes e declarações de parte mostra-se divergente.
BB, que teve intervenção nas negociações, e as declarações de parte do sócio gerente AA vão no sentido de que seria uma retribuição mensal, acrescentando que essa negociação foi via videochamada.
DD é no sentido de que tal montante seria respeitante aos 6 meses, o remanescente da retribuição seria através da comissão de 10% sobre o valor das vendas.
Ora, não se compreende que uma empresa como é o caso da Autora, a ser verdade que o valor da retribuição de € 1.950,00 era mensal, não tenha reduzido a escrito tal valor remuneratório, sendo certo que os documentos juntos aos autos vão todos no sentido da tese da Ré.
Por conseguinte, tal materialidade fáctica por ser tão frágil e insegura, deverá ser não provada.
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3. Impugnação da matéria de facto:
Considerando as questões a apreciar, comecemos pela impugnação da matéria de facto.
Nas suas conclusões de recurso veio a autora/apelante requerer a reapreciação da decisão de facto, impugnando o facto provado número 2., bem como o único facto não provado, pretendendo a alteração do primeiro e a eliminação do segundo, e, ainda, o aditamento de um facto novo.
O art. 640.º do CPC estabelece os ónus a cargo do recorrente que impugna a decisão da matéria de facto, nos seguintes termos:
“1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3. […]”
O mencionado regime veio concretizar a forma como se processa a impugnação da decisão de facto, reforçando o ónus de alegação imposto ao recorrente, o qual terá que apresentar a solução alternativa que, em seu entender, deve ser proferida pela Relação em sede de reapreciação dos meios de prova.
Recai, assim, sobre o recorrente, o ónus, sob pena de rejeição do recurso, de determinar os concretos pontos da decisão que pretende questionar, ou seja, delimitar o objeto do recurso, motivar o seu recurso através da transcrição das passagens da gravação que reproduzem os meios de prova, ou a indicação das passagens da gravação que, no seu entendimento, impunham decisão diversa sobre a matéria de facto, a fundamentação, e ainda, indicar a solução alternativa que, em seu entender, deve ser proferida pelo Tribunal da Relação.
No caso concreto, o julgamento foi realizado com gravação dos depoimentos prestados em audiência, sendo que a apelante impugna a decisão da matéria de facto com indicação dos pontos de facto alvo de impugnação, indica a prova a reapreciar, bem como a decisão que sugere, mostrando-se, assim, suficientemente, reunidos os pressupostos de ordem formal para proceder à reapreciação da decisão.
Tal como dispõe o nº 1 do art. 662º do CPC, a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto “(…) se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”, o que significa que os poderes para alteração da matéria de facto conferidos ao tribunal de recurso constituem um meio a utilizar apenas nos casos em que os elementos constantes dos autos imponham inequivocamente uma decisão diversa da que foi dada pela 1ª instância.
No presente processo, como referido, a audiência final processou-se com gravação da prova produzida.
Segundo ABRANTES GERALDES, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, pág. 225, e a respeito da gravação da prova e sua reapreciação, haverá que ter em consideração que funcionando o Tribunal da Relação como órgão jurisdicional com competência própria em matéria de facto, nessa reapreciação tem autonomia decisória, devendo consequentemente fazer uma apreciação crítica das provas, formulando, nesse julgamento, com inteira autonomia, uma nova convicção, com renovação do princípio da livre apreciação da prova.
Assim, compete ao Tribunal da Relação reapreciar as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, face ao teor das alegações do recorrente e do recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados.
Cabe, ainda, referir que neste âmbito da reapreciação da prova vigora o princípio da livre apreciação, conforme decorre do disposto no art. 396.º do Código Civil.
E é por isso que o art. 607.º, nº 4 do CPC impõe ao julgador o dever de fundamentação da factualidade provada e não provada, especificando os fundamentos que levaram à convicção quanto a toda a matéria de facto, fundamentação essencial para o Tribunal de Recurso, nos casos em que há recurso sobre a decisão da matéria de facto, com vista a verificar se ocorreu, ou não, erro de apreciação da prova.

Posto isto, cabe analisar se assiste razão à autora/apelante, na parte da impugnação da matéria de facto, tendo sido ouvida a prova gravada e analisada a documentação que consta dos autos.
Como resulta das respetivas conclusões do recurso, a apelante entende que deve ser alterada a matéria de facto dada como provada no ponto 2., deve ser eliminado o ponto único dos factos não provados e, ainda, aditado um ponto aos factos provados.
No ponto 2 dos factos provados considerou-se assente que:
“No dia 6 de agosto de 2020, a Autora e Ré outorgaram um acordo, nos termos do qual aquela se comprometeu a prestar a esta “Apoio ao Desenvolvimento do Website e Campanhas de Publicidade Online”, mediante a retribuição no montante de € 1.950,00 durante 6 (seis) meses, a pagar de uma só vez.”.
E foi dado como não provado que:
“1. A retribuição do acordo firmado em 2) correspondia ao montante de € 1.950,00/mês.”.
Está em causa saber se a retribuição de € 1.950,00, mais IVA, deveria ser pago mensalmente ao longo de seis meses, como a apelante entende, ou se está em causa o pagamento de um valor inicial a pagar de uma só vez, como foi decidido na sentença recorrida.
Assim, antes de mais, há que ter em conta a prova documental constituída pelo email de 06-08-2020 (18.04 horas), junto aos autos através de requerimento de 19-04-2023, do qual consta, no que para a decisão interessa, “(…) Assim, propomos um arranque de projeto com um valor de investimento inicial de 1.950,00 Euros, com um compromisso mínimo de 6 (seis) que deverá incluir, de acordo com a nossa proposta inicial:
 Apoio ao Desenvolvimento do Website;
 Campanhas de Publicidade Online;
Este investimento inicial deverá ser complementado com uma comissão de 10% sobre a faturação (Sem IVA), estando o projeto sujeito a uma reavaliação no decurso das operações. (…)”.
Ora, atendendo ao teor literal do documento referido, bem como às regras da interpretação da declaração negocial (arts. 217.º e 236.º do CC), não podemos deixar de considerar que em momento algum aí se refere que o valor mencionado é a pagar mensalmente, como a apelante pretende.
Pelo contrário, entende-se que desse teor resulta que se trata de apenas um pagamento, o que se retira da expressão “valor de investimento inicial”, o que não se coaduna com o pagamento mensal ao logo de seis meses, ao que acresce a expressão “Este investimento inicial deverá ser complementado com uma comissão de 10% sobre a faturação (Sem IVA)”.
Caso se tratasse de um pagamento mensal, não seria lógico referir apenas o investimento inicial como sendo complementado com a comissão de 10%.
Parece-nos, assim, evidente que o documento referido e que contém o acordo final celebrado, o que foi admitido por todos os intervenientes que foram ouvidos, apenas no sentido que consta do facto provado 2., pode ser interpretado.
Mas também dos depoimentos das testemunhas BB e DD, bem como das declarações do legal representante da autora, AA, se pode retirar a mesma conclusão.
Senão, vejamos:
A testemunha BB disse ter tido intervenção nas negociações, mencionando uma proposta inicial para três meses, que acabou por ser alterada para seis meses, o que também se retira dos emails juntos em 19-04-2023.
Contudo, na proposta inicial, onde constava também esse valor de 1.950,00 euros, (também sem mencionar que seria mensal), estavam previstos outros valores, um deles mensal, e um fee de 5% sobre o total do budget a investir, o que foi também referido e explicado pelo gerente da apelante.
Essa proposta acabou por ser alterada, como referido pelo mesmo gerente da apelante, sendo certo que se manteve sempre o valor de 1.950,00 euros sem mencionar que seria mensal, mas antes como investimento inicial, tendo sido alterada a remuneração restante, a pedido da ré, como foi referido pela testemunha DD, já que uma remuneração em função da faturação, evitava um investimento fixo.
Aliás, também não pudemos deixar de reparar que, uma vez emitida e paga a primeira fatura, relativa ao mês de outubro de 2020, ou seja, o investimento inicial, não foi emitida pela autora qualquer fatura relativa aos meses de novembro e dezembro, o que apenas veio a acontecer, como a testemunha BB referiu, quando a autora já fazia parte de um grupo empresarial e um departamento desse grupo passou a ser responsável pela contabilidade.
O que resulta da documentação mencionada, foi, ainda, confirmado pelo depoimento da testemunha DD que disse que não tendo a ré condições para pagar um valor mensal fixo, propôs os 10% sobre a faturação, o que foi aceite pela apelante, sendo que, como já referido, a proposta inicial previa, para além do investimento inicial, um pagamento mensal de determinada quantia, que deixou de constar da proposta final, o que vai ao encontro da versão da ré.
Face ao exposto, e porque de acordo com as regras do ónus da prova, cabia à autora, como facto constitutivo do seu direito, fazer prova de que o pagamento do valor de € 1.950,00, mais IVA, era mensal, prova que não fez de forma suficiente, devem manter-se os dois factos impugnados, tal como foram dados como provados e não provados na sentença recorrida.

No que diz respeito ao facto que a apelante pretende ver aditado aos factos provados, com o seguinte teor: “Os serviços contratados foram prestados pela Autora à Ré entre o início do mês de Outubro de 2020 e o final do mês de Março de 2021”, entende-se não ter qualquer interesse para a decisão, uma vez que se trata de matéria que não se mostra controvertida nos autos, já que ambas as partes admitem que o contrato era para vigorar durante seis meses.
Assim, em relação a esta questão, apenas diremos que de acordo com o disposto no art. 130.º do CPC, não é lícito realizar no processo atos inúteis, sendo que a pretensão da autora, configura precisamente um ato inútil, tendo em conta que se trata de matéria que não se mostra controvertida e não tem interesse para a decisão.
Conclui-se, assim, sem necessidade de outras considerações, que improcede a impugnação da matéria de facto, deduzida pela autora/apelante.
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4. Decidindo de direito:
A Autora pretende a substituição da sentença recorrida por outra que condene a ré nos pedidos, impugnando para o efeito a matéria de facto dada como provada e não provada.
Improcedente a impugnação da matéria de facto, improcede necessariamente também a decisão de direito, uma vez que a condenação pretendida pela apelante, dependia da prova de que a quantia mencionada no acordo celebrado entre as partes, era a pagar mensalmente, ao longo de seis meses, prova que à autora cabia, mas que não logrou fazer pelos motivos expostos.
Nestes termos, é de manter a decisão recorrida, com a total improcedência do recurso.
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III- DISPOSITIVO

Pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação do Porto em julgar totalmente improcedente a apelação interposta.

Custas a cargo da Autora/apelante.






Porto, 2024-06-20
Manuela Machado
Carlos Portela
Francisca Mota Vieira