Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
8222/23.0T8VNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RODRIGUES PIRES
Descritores: INQUÉRITO JUDICIAL À SOCIEDADE
DIREITO À INFORMAÇÃO
Nº do Documento: RP202407108222/23.0T8VNG.P1
Data do Acordão: 07/10/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O recurso ao inquérito judicial previsto nos arts. 1048º e segs. do Cód. de Proc. Civil não deve ser imotivado, nem tão-pouco se pode basear em «mera suspeita de irregularidades na administração da sociedade», devendo antes basear-se em factos concretos cuja alegação e consequente prova compete a quem requer o inquérito.
II - Assim, este inquérito judicial, destinado a dar cumprimento ao direito à informação “stricto sensu” conferido a todo e qualquer sócio, na sequência de recusa pela sociedade de prestação de informações ou da sua prestação falsa ou insuficiente, só pode incidir sobre atos ou factos, devidamente concretizados, que se integrem na gestão dessa sociedade.
III - Se o sócio requerente não questionou a gerência da sociedade sobre qualquer ato concreto da gestão ou da vida da sociedade, tendo-se limitado a solicitar que esta lhe disponibilizasse numerosas informações, as quais se reconduzem a uma muito vasta documentação, abrangendo toda a sua atividade, não tem fundamento para requerer inquérito judicial à sociedade.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 8222/23.0T8VNG.P1

Comarca do Porto – Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia – Juiz 5

Apelação

Recorrente: AA

Recorrida: “A..., Lda.”

Relator: Eduardo Rodrigues Pires

Adjuntos: Desembargadores Maria da Luz Teles Meneses de Seabra e Artur Dionísio do Vale dos Santos Oliveira

Acordam na secção cível do Tribunal da Relação do Porto:

RELATÓRIO

AA, residente na Rua ..., Entrada ..., n.º ..., 5º esquerdo, ..., Porto, requereu a realização de inquérito judicial contra “A..., Lda.”, com sede na Rua ..., Entrada ..., n.º ..., 5º esquerdo, ..., Porto, e BB, residente na Rua ..., ..., ..., pedindo que seja ordenada a realização de inquérito judicial à primeira, com o intuito de serem prestadas as informações pedidas e referidas no art. 102º do requerimento inicial (sem prejuízo da sua ampliação).

Alegou, em síntese, que é sócia da sociedade comercial requerida e que, tendo formulado e dirigido ao gerente, segundo requerido, dois pedidos de informação relativos a atos de gestão daquela, até à data não foi disponibilizada nenhuma das informações solicitadas. Alega, ainda, que tendo contraído matrimónio com o segundo requerido, ocorreu uma rutura da relação conjugal em Junho de 2023, momento a partir do qual a requerente foi alheada dos destinos da sociedade comercial, desconhecendo os negócios efetuados, os serviços que presta e as faturas que emite, os impostos que paga, etc. Nunca teve acesso a atas, contas e relatórios de gestão, nunca foi convocada para qualquer assembleia geral e nunca se pronunciou sobre a aprovação de contas.

Arrolou testemunhas, requereu o depoimento de parte do segundo requerido, a realização de prova pericial e juntou documentos.

Os requeridos, citados, contestaram, invocando o erro na forma do processo (alegando que a requerente, com a presente ação, pretende apenas avaliar o valor da empresa, sendo certo que o segundo requerido esteve sempre na disposição de fornecer os elementos que pudessem auxiliar tal valor para efeitos de partilha, e obter informações para fins pessoais e que nada têm a ver com o direito à informação do sócio) e por impugnação, pugnando pela improcedência do pedido e pela condenação da requerente em multa e indemnização, como litigante de má fé.

Arrolaram testemunhas, requereram a prestação de declarações de parte e o depoimento de parte da requerente e juntaram documentos.

A requerente apresentou articulado de resposta.

Foi efetuada, sem sucesso, tentativa de conciliação.

Seguidamente, em sede de despacho saneador, foi julgada improcedente a nulidade de erro na forma de processo e, depois, decidindo-se de mérito, julgou-se improcedente a ação e, em consequência, não se determinou a realização de inquérito à sociedade, absolvendo-se os requeridos do pedido.

Inconformada com o decidido a requerida interpôs recurso, tendo finalizado as suas alegações com as seguintes conclusões:

A. O Tribunal a quo deu como provado que a Recorrente dirigiu um pedido de informação ao qual os Recorridos não responderam (i.e. não prestaram a informação).

B. Não foi alegado nenhum motivo de recusa lícita, nem o Tribunal a quo motivou a decisão de indeferimento do inquérito em algum desses motivos descritos na lei.

C. O Tribunal a quo confunde as várias fases do inquérito.

D. É entendimento do Tribunal a quo que o pedido de informação dirigido à Sociedade tem de ser motivado, entendimento esse com o qual não concordamos, uma vez não ter respaldo na lei, na doutrina nem na jurisprudência.

E. O pedido de informação não é motivado, conforme se depreende dos artigos 214.º e ss. do CSC.

F. O pedido de informação dirigido pela Recorrente não foi indiscriminado, outrossim, discriminou ponto a ponto toda a informação a que queria ter acesso.

G. Por outro lado, também ao contrário do que propugna o Tribunal a quo, o fundamento do inquérito não são concretas violações dos administradores dos seus deveres de gestão. O efeito primeiro e principal do inquérito judicial é a prestação da informação, e não o inquérito às contas da sociedade.

H. Não tendo acesso à informação, nunca terá a Recorrente como demonstrar concretas violações do gerente.

I. Entende também o Tribunal a quo que a Recorrente pretende ter acesso a documentos e não a informação, e que a recusa de acesso a esses documentos não legitima o recurso ao inquérito judicial.

J. A Recorrente segue, no entanto, o entendimento unânime da doutrina e da jurisprudência (com excepção da agora proferida pelo Tribunal a quo) de que a recusa de consulta de documentos legitima o recurso ao inquérito judicial.

K. Não obstante estarmos perante um processo de jurisdição voluntária, o Tribunal a quo estava obrigado a apreciar os factos com base em critérios de legalidade.

L. Por essas razões, foram violados os artigos 21.º. 214.º, 215.º, 216.º e 292.º do Código das Sociedades Comerciais, e os artigos 1048.º a 1051.º do Código de Processo Civil, devendo a decisão proferida ser revogada por outra que comece por ordenar que a informação pedida seja prestada para que, após isso, se possa aferir da necessidade de realização da perícia, nos termos do n.º 2 do artigo 1049.º do CPC.

A requerida apresentou resposta ao recurso, na qual se pronunciou pela confirmação do decidido.

Formulou as seguintes conclusões:

1. A Douta Sentença proferida tem de manter-se, necessariamente, pois consubstancia a solução que consagra a mais justa interpretação e aplicação a este caso sub judice das normas legais e princípios jurídicos competentes.

2. QUANTO à NÃO MOTIVAÇÃO DO PEDIDO DE INFORMAÇÃO POR PARTE DA RECORRENTE, a letra do artigo 1048º, nº 1, do Código de Processo Civil é cristalina e não permite dúvidas que o pedido de informação tem de ser motivado.

3. A sua recusa das informações é legítima se a sua solicitação por parte do sócio não tiver sido efectuada nas condições admitidas na lei.

4. Ao invés de solicitar um chorrilho de informações e documentos, deveria antes a Recorrente, em cumprimento do determinado por lei, indicar nas missivas remetidas à sociedade aqui Recorrida ou ao seu gerente, os concretos elementos da sociedade que pretendia consultar, e apresentar a razão de ser de tal pretensão, isto é, o motivo ou motivos pelos quais a Recorrente, enquanto sócia, entendia como necessário obter o acesso àqueles elementos.

5. De igual modo, a Requerente ora Recorrente não alegou, na sua Petição inicial, um mínimo de factos que permitam ver reunidos os respectivos pressupostos para que fosse viável a realização do inquérito judicial.

6. Conforme foi entendido pelo Tribunal recorrido, a Requerente não alegou factos susceptíveis de fundamentar um inquérito judicial, logo, não faria sentido iniciar-se a fase de produção de prova quando não haviam factos alegados a provar.

7. Como bem decidiu o Juiz a quo, o recurso ao inquérito judicial não pode ser imotivado nem se pode basear em mera suspeita de irregularidades na administração dos bens sociais e deve sustentar-se em factos concretos.

8. As suspeitas invocadas pela Recorrente quanto à titularidade das participações sociais noutras sociedades comerciais, infundadas e sem a indicação de qualquer facto ou conhecimento que pudesse ter originado tais suspeitas, não revestem a virtualidade de fundar o processo de inquérito que a mesma apresentou.

9. De igual modo, o processo de inquérito também não se poderia fundar nas dúvidas invocadas quanto ao valor existente em contas bancárias ou quanto aos gastos e movimentos realizados, que sempre estarão sujeitas à aprovação ou não, na assembleia geral obrigatória para a apreciação anual da situação da sociedade, nos termos do artigo 263º do Código das Sociedades Comerciais - a qual aliás já se realizou em 12 de Abril de 2024.

10. Além do mais, não parece razoável admitir que os sócios tenham um direito ilimitado à informação societária, especialmente naqueles casos em que eles actuem com a intenção de prejudicar ou pressionar os demais sócios, ou por mera curiosidade pessoal.

11. O pedido de informação do sócio à gerência não pode ser inútil ou mesmo abusivo por violar o dever de lealdade do sócio perante a sociedade, o que se verifica quando o sócio “inunda” a sociedade com pedidos de informação, sem motivo para tal.

12. Por fim, ao contrário da indignação resvalada [sic] pela Recorrente, esta tem outros meios ao seu dispor para obter a informação que a mesma entende essencial para satisfazer as suas dúvidas, que não tentou, tais como a anulação das deliberações que tenham sido precedidas de recusa injustificada de informação ou do não fornecimento ao sócio de elementos mínimos de informação (arts. 290.º, n.º 3, 214.º, n.º 7 e 58.º, nº 1, al. c) e 4 do CSC), ou a convocação de assembleia geral de modo a que a informação seja prestada ou corrigida (art. 215.º, n.º 2 do CSC).

13. Já o inquérito judicial deve ser encarado como um instrumento subsidiário do direito à informação e, atento o seu tão acentuado carácter intrusivo na vida da sociedade visada, não deve ser utilizado em situações de impasse ou desconfiança, atendendo a que a sua utilização tende, não raras vezes, a agravar estas situações, colocando os tribunais como “polícias das sociedades”.

14. Assim, decidiu bem a Sentença ora em análise, ao declarar a acção improcedente, pois a requerente, aqui Recorrente, não alegou quaisquer factos susceptíveis de fundamentar o pedido de inquérito judicial.

15. QUANTO ÀS CONCRETAS VIOLAÇÕES POR PARTE DOS SEUS ADMINISTRADORES DOS DEVERES DE BOA GESTÃO DA SOCIEDADE SEREM FUNDAMENTO DO INQUÉRITO, a Recorrente não terá alcançado o que o Julgador de 1º Instância pretendeu transmitir.

16. No caso, a tomada de posição quanto à não prestação de informação foi lícita porque a Recorrente apenas pretendeu satisfazer a sua curiosidade acerca da documentação da empresa, por se ter separado do gerente, que era o seu marido.

17. De facto, apenas a partir de Junho de 2023 (data em que a relação conjugal entre a requerente e o requerido terminou – ponto v. da matéria de facto dada como provada) é que a Recorrente suscitou interesse pela gestão da sociedade, inclusive os de 2021 e de 2022.

18. Aliás, solicitou bastante informação que já teve acesso anteriormente, conforme foi demonstrado, e solicitou documentos que a própria já tinha assinado e da qual não pode alegar desconhecimento.

19. Por outro lado, a Recorrente requereu que lhe fosse enviado pela Recorrida informação que é pública ou à qual a Recorrente poderia aceder directamente.

20. A este respeito, a Jurisprudência tem entendido que viola as regras da boa fé o sócio que solicita da sociedade a remessa por escrito de cópias de uma enormidade de documentação sem demonstrar que essa documentação esteja inacessível por consulta na sede da sociedade, ou que tal consulta lhe tenha sido recusada.

21. E tem entendido que, não tendo o sócio questionado a gerência da sociedade sobre qualquer acto concreto da gestão ou da vida da sociedade, tendo-se limitado a requerer que lhe fosse entregue avultada documentação por escrito, não tem fundamento legal para requerer inquérito judicial à sociedade, razão pela qual deve improceder o alegado pela Recorrente.

22. QUANTO AO DIREITO À INFORMAÇÃO NÃO COMPORTAR A CONSULTA DE DOCUMENTOS, MAS TÃO SÓ O DIREITO A OBTER INFORMAÇÕES SOBRE FACTOS CONCRETOS RELATIVOS À GESTÃO DA VIDA SOCIETÁRIA, não tem qualquer razão a Recorrente e, por critérios de brevidade e comodidade adere-se ao conteúdo da douta Sentença emanada pelo Tribunal recorrido.

23. Ainda assim, cumpre criticar o título escolhido pela Recorrente para o separador III., que é enganador perante o que efectivamente foi decidido pelo Tribunal de 1º Instância.

24. O que daquela Sentença resulta, em consonância com a Jurisprudência que se debruça sobre igual temática, é que o sócio interessado deve definir a matéria específica, isto é, a concreta atuação societária ou o assunto da vida ou da gestão da sociedade sobre a qual deseja ser informado pela gerência da sociedade.

25. E foi precisamente essa definição que a Recorrente não cumpriu, tendo, ao invés, solicitado à sociedade uma lista exaustiva de documentos, desde a constituição da sociedade, onde incluiu os que já teve conhecimento prévio, e os que são de acesso público.

26. Portanto, a Recorrente nunca quis efectivamente obter informações sobre factos concretos e individualizados relativos à gestão da vida societária.

27. Pelo que, não poderia ser outra a decisão de mérito por parte do Tribunal a quo, a qual se deve manter.

28. No mais, sufragamos toda a fundamentação quer de facto quer de direito, plasmada no douta Decisão proferida, pelo que entendemos que a mesma não merece qualquer censura ou reparo.

O recurso foi admitido como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.

Cumpre então apreciar e decidir.


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FUNDAMENTAÇÃO 

O âmbito do recurso, sempre ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, encontra-se delimitado pelas conclusões que nele foram apresentadas e que atrás se transcreveram – cfr. arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do Cód. do Proc. Civil.


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A questão a decidir e a seguinte:

Apurar se foi correta a decisão da 1ª Instância no sentido de não determinar a realização de inquérito judicial à sociedade nos termos dos arts. 216º do Cód. das Sociedades Comerciais e 1048º e segs. do Cód. de Proc. Civil.


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OS FACTOS

É a seguinte a matéria de facto dada como assente na decisão recorrida:

a) A sociedade comercial “A... – Lda.” está registada na Conservatória do Registo Comercial com o NIPC ..., com sede na Rua ..., Entrada ..., n.º ..., 5º esquerdo, ..., Porto, tendo como objecto actividade das sedes sociais, outras actividades de consultoria para os negócios e a gestão, outra investigação e desenvolvimento das ciências físicas e naturais, compra e venda de bens imobiliários, actividades de relações públicas e comunicação, actividades combinadas de serviços administrativos, administração de imóveis por conta de outrem, compra, venda e revenda de bens imóveis, urbanizações e empreendimentos imobiliários e hoteleiros, gestão, administração e arrendamento de imóveis, projectos de arquitectura, urbanismo e engenharia, importação e exportação, com o capital de 2.500,00 euros, sendo gerente BB;

b) Foi constituída a 24 de Junho de 2021, com o capital de 2.500,00 euros, dividido em duas quotas, uma no valor nominal de 1.875,00 euros, titulada por BB, e outra no valor nominal de 625,00 euros, titulada por AA, tendo sido designado gerente CC;

c) Através da inscrição com a ap. ..., de 25 de Março de 2022, mostra-se registada a cessação de funções de gerente de CC, por renúncia (de 22 de Março de 2022);

d) Através da inscrição com a ap. ..., de 25 de Março de 2022, mostra-se registada a designação do sócio BB como gerente;

e) Através a inscrição DEP ..., de 15 de Julho de 2022, mostra-se registada na Conservatória do Registo Comercial a prestação de contas relativa ao exercício de 2021;

f) Através a inscrição DEP ..., de 13 de Julho de 2023, mostra-se registada na Conservatória do Registo Comercial a prestação de contas relativa ao exercício de 2022;

g) A sociedade comercial “A... – Lda.” é titular de uma quota no valor nominal de 1.750,00 euros no capital da sociedade comercial “B..., Lda.”, a qual, por sua vez, é titular de acções representativas de 36,30% do capital social da sociedade comercial “C..., S.A.”;

h) A sociedade comercial “A... – Lda.” é, ainda, titular de acções representativas de 0,20% do capital social da sociedade comercial “C..., S.A.”;

i) A requerente nunca interveio em qualquer acto de gestão da sociedade comercial “A... – Lda.”

j) A requerente AA endereçou ao requerido BB, para a Rua ..., ..., ..., a carta, registada com aviso de recepção, cuja cópia foi junta aos autos pela primeira como documento n.º 6 e cujo teor se dá aqui por reproduzido, datada de 28 de Agosto de 2023, recebida pelo próprio a 31 de Agosto de 2023, através da qual requereu os seguintes documentos:

“1. Os extractos das contas bancárias da empresa referentes aos últimos 12 meses;

2. Os relatórios e contas da empresa relativos aos anos de 2021 e 2022;

3. Um balancete actualizado referente ao primeiro semestre de 2023;

4. Todas as actas de assembleias gerais ocorridas desde 2021 inclusive;

5. Todas as actas de assembleias gerais ocorridas nas empresas em que a A..., Lda. participa direta ou indiretamente desde 2021 inclusive ou desde que essa participação se iniciou.”;

k) Em tal carta pode, ainda, ler-se o seguinte: “(…) quero desde já revogar e dar sem efeito a delegação de poderes, assim como qualquer procuração que possa ter outorgado a favor de BB na qualidade de sócio e ou gerente da empresa, ou do gerente CC.

(…)

Agradeço que me sejam disponibilizadas estas informações até 15 de Setembro de 2023

(…).”;

l) A requerente endereçou à sociedade comercial “D..., Lda.” e para a Rua ..., Porto, carta registada com aviso de recepção com a mesma data e com igual conteúdo, recebida a 29 de Agosto de 2023;

m) Morada referida na alínea anterior corresponde à morada do gabinete de contabilidade da sociedade comercial “A... – Lda.”;

n) A requerente AA endereçou à gerência da sociedade comercial requerida, para a Rua ..., ..., ..., a carta, registada com aviso de recepção, cuja cópia foi junta aos autos pela primeira como documento n.º 10 e cujo teor se dá aqui por reproduzido, datada de 4 de Outubro de 2023, recebida a 6 de Outubro de 2023, através da qual requereu “a disponibilização das seguintes informações:

1. Participações detidas noutras Sociedade desde 2021, bem como, em caso de alienação das referidas, o preço pago pelas mesmas;

2. Relatórios de Gestão e de Contas, e proposta de aplicação de resultados, referentes aos anos de 2021 e 2022;

3. Balancetes analíticos de apuramento de resultados a 31 de Dezembro para os exercícios de 2021 e 2022;

4. IES de 2021 e 2022;

5. Modelos 22 de 2021 e 2022;

6. Report de responsabilidades bancárias da sociedade;

7. Listagem de saldos de clientes;

8. Listagem de saldos de todos os fornecedores e restantes credores;

9. Reconciliações bancárias referentes a 31 de Dezembro de 2021 e 31 de Dezembro de 2022;

10. Principais contratos celebrados com clientes e, em especial, celebrados com a Sociedade E..., SGPS, S.A., ou quaisquer outras em relação de simples participação, domínio ou grupo com esta;

11. Principais contratos em vigor celebrados com fornecedores;

12. Mapas de saldos e transacções com sócios, gerentes e entidades relacionadas, no caso de emissão de recibos-fatura;

13. Suporte de todas as movimentações de numerário, nomeadamente levantamentos, desde 2021;

14. Detalhe de despesas com fornecedores de atividades não relacionadas com a actividade da empresa;

15. Justificação da finalidade que motivou tais despesas;

16. Extracto detalhado da conta Sócios;

17. Informação sobre as responsabilidades de crédito em curso, nomeadamente:

Cópias dos contratos de crédito;

Informação sobre a sua origem, o seu destino, taxa de juro, capital mutuado, capital já reembolsado, rendas em falta, comissões e outras prestações pecuniárias decorrentes dos mesmos.

18. Informação sobre as garantias bancárias autónomas on First demand prestadas;

19. Extractos detalhados sobre todas as contas bancárias de que a Sociedade é titular;

20. Cópia das actas das Assembleias Gerais de 2021, 2022 e 2023”;

o) Em tal carta pode, ainda, ler-se o seguinte: “Encontro-me disponível para agendar, em prazo razoável, a consulta e análise dos documentos e informações solicitados.

Nestes termos, adverte-se V. Exa. que, se num prazo de 15 (quinze) dias a contar da receção da presente carta, não prestar informação verdadeira, completa e elucidativa sobre a gestão da sociedade, não restará outra alternativa que não seja acionar os devidos mecanismos legais para obter a referida informação.”;

p) A requerente enviou para a Rua ..., Porto, carta (registada com aviso de recepção) com a mesma data e com igual conteúdo, dirigida à gerência da sociedade comercial requerida, recebida a 6 de Outubro de 2023;

q) O pedido referido na alínea n) foi enviado para os seguintes endereços electrónicos:    BB@gmail.com e A...@gmail.com;

r) Tais comunicações foram recebidas pelo requerido BB, o qual, a 12 de Outubro de 2023, remeteu à requerente, por correio electrónico, a seguinte comunicação:

“A informação já está em posse dos meus advogados que farão chegar aos teus advogados”;

s) Na sequência das cartas referidas nas alíneas j) e n), com excepção da comunicação referida na alínea anterior, os requeridos nada enviaram à requerente;

t) A requerente teve acesso ao Modelo 22 do ano de 2021;

u) A requerente e o requerido BB contraíram casamento a 12 de Junho de 2010, sendo que, na constância do mesmo, nasceram dois filhos, ainda menores;

v) A relação conjugal entre a requerente e o requerido terminou a 2 de Junho de 2023, tendo o segundo abandonado a casa de morada de família, sita na Rua ..., Entrada ..., n.º ..., 5º esquerdo, ..., Porto, no dia 11 dos mesmos mês e ano;

w) A requerente continua a residir na morada referida na alínea anterior, com os dois filhos do casal;

x) O requerido BB tem domicílio fiscal na mesma morada;

y) O requerido BB, a 27 de Setembro de 2023, instaurou contra a requerente acção de divórcio sem consentimento de um dos cônjuges, a qual corre termos com o n.º 5844/23.2T8VNF, no Juízo de Família e Menores do Porto – Juiz 4;

z) Tal acção foi instaurada no Juízo de Família e Menores de Vila Nova de Famalicão, sendo que, na sequência da arguição, pela aqui requerente, da excepção da incompetência territorial (com os fundamentos que constam do articulado junto aos presentes autos como documento n.º 1 com a oposição), foi decidido julgar competente para a sua apreciação o Juízo de Família e Menores do Porto.


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O DIREITO

1. Na decisão recorrida concluiu-se que a requerente não alegou factos suscetíveis de fundamentar o seu pedido de inquérito judicial, não se verificando “in casu” os respetivos pressupostos – a formulação à sociedade requerida de um pedido de informação válido a que correspondeu a não prestação de informações ou a prestação de informações deficientes.

Este entendimento teve a discordância em via recursiva da requerente que considera estarem preenchidos os pressupostos da realização do requerido inquérito judicial.

Vejamos então.

2. Nas sociedades por quotas, como é a requerida, qualquer sócio pode recorrer ao processo de inquérito, desde logo porque a lei atribui a todo o sócio o direito de obter informações sobre a vida da sociedade, nos termos da lei e do contrato – cfr. arts. 21º, nº 1, al. c) e 216º, nº 1 do Cód. das Sociedades Comerciais [CSC].

Dispõe o art. 1048º, nº 1 do Cód. de Proc. Civil que «o interessado que pretenda a realização de inquérito judicial à sociedade, nos casos em que a lei o permita, alega os fundamentos do pedido de inquérito, indica os pontos de facto que interesse averiguar e requer as providências que repute convenientes.»

Assim, o requerente deve alegar o motivo justificativo do pedido de consulta de elementos através do recurso ao inquérito judicial – recusa de informação, falsidade ou insuficiência da informação -, devendo também concretizar os elementos informativos que pretende obter.

Terá, pois, que concretizar os pontos de facto a averiguar e que deverão ser abarcados pela diligência a realizar – art. 1049º, nº 2 do Cód. de Proc. Civil -, de modo a que o tribunal possa aferir se há, ou não, motivos para proceder ao inquérito, e se a informação pretendida pelo requerente foi ou não recusada ilicitamente pela sociedade. 

O direito à informação que é conferido a todos os sócios – art. 21º, nº 1, al. c) do CSC – tem conteúdo extrapatrimonial, sendo instrumental relativamente a outros direitos, como o direito aos lucros, o direito de voto ou o direito à impugnação de deliberações sociais. Entronca no elemento essencial do contrato de sociedade que é o exercício em comum de uma atividade. Ainda que sujeito a restrições ou condições, o direito de informação prevalece sobre o direito de reserva tão caro à vida das empresas, satisfazendo o interesse legítimo do sócio em conhecer factos da vida societária, designadamente com vista a apurar o modo de gestão dos seus interesses ligados à participação social.

Mas se este direito à informação é de grande amplitude nas sociedades em nome coletivo – art. 181º, nº 6 do CSC -, já sofre maiores restrições no âmbito das sociedades por quotas – art. 214º do CSC -, deixando-se aos sócios alguma liberdade de autorregulação da matéria no pacto social. Ainda assim, as restrições não podem ser injustificadas – nº 2 deste preceito -, de modo que, em caso de recusa, o sócio pode provocar deliberação dos sócios para a obtenção da informação recusada, incompleta ou falseada – art. 215º, nº 2 do CSC. Pode abarcar tanto os atos já praticados como atos futuros e tudo o que tenha a ver com a gestão da sociedade, Tal direito envolve: informação verdadeira, completa e elucidativa sobre a gestão da sociedade; consulta de escrituração, livros e documentos, inspeção de bens sociais – cfr. ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e PIRES DE SOUSA, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. II, Almedina, pág. 491.

Relativamente às sociedades por quotas, o art. 216º do CSC, no seu nº 1[1], prevê o recurso ao inquérito judicial quando ao sócio tenha sido recusada informação a que tenha direito ou quando a informação prestada seja presumivelmente falsa, incompleta ou não elucidativa. Ou seja, em princípio, o recurso ao inquérito judicial deve ser sequencial a uma recusa de prestação de informações ou insuficiência das informações prestadas. Tem subjacente a invocação do interesse em agir, correspondente à necessidade de envolver o tribunal na exercitação de um direito societário - cfr. ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e PIRES DE SOUSA, ob. cit., pág. 492.   

Cabe ao requerente o ónus de prova da sua qualidade de sócio, bem como do impedimento ou desvirtuamento da informação previamente solicitada à gerência (STJ 29-10-13, 3829/11, RL 28-2-19, 6786/18, RG 31-10-18, 32/18) enquanto à sociedade incumbe provar a factualidade que possa estribar a licitude da recusa (art. 342º nº 2 do CC; art. 215º do CSC) - cfr. ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e PIRES DE SOUSA, ob. e loc. cit..

Ora, sobre o direito dos sócios à informação estatui o seguinte o art. 214º, nº 1 do CSC:

«Os gerentes devem prestar a qualquer sócio que o requeira informação verdadeira, completa e elucidativa sobre a gestão da sociedade, e bem assim facultar-lhe na sede social a consulta da respetiva escrituração, livros e documentos. A informação será dada por escrito, se assim for solicitado

O direito à informação sobre a vida da sociedade manifesta-se em três diferentes vertentes: como direito à informação stricto sensu, que permite ao sócio formular questões sobre a vida da sociedade e desta exigir resposta verdadeira, completa e elucidativa; como direito à consulta, por cujo exercício o sócio pode solicitar que a sociedade exiba, para exame, os livros de escrituração e outros documentos descritivos da atividade social; como direito de inspeção, assim podendo o sócio vistoriar os bens da sociedade – cfr. MARGARIDA COSTA ANDRADE in “Código das Sociedades Comerciais em Comentário”, IDET, Almedina, vol. I, pág. 360.

A que acresce o direito de requerer inquérito judicial no caso de recusa ilícita de informação, ou no caso de ser fornecida informação falsa, incompleta ou não elucidativa.

3. Tal como já atrás se referiu, a requerente, enquanto sócia, deve indicar os motivos que justificam a sua pretensão no sentido de se realizar inquérito judicial à sociedade e especificar quais os concretos pontos factuais que interessa averiguar.

Prosseguindo, conforme se sustenta no Ac. Rel. Porto de 8.3.2018 (p. 2929/16.5T8STS.P1, relator CARLOS PORTELA, disponível in www.dgsi.pt.)[2], o recurso ao inquérito judicial não é imotivado nem se pode basear em mera suspeita de irregularidades na administração dos bens sociais, devendo sustentar-se em factos concretos.  

Por isso, para que a realização do inquérito à sociedade seja viável impõe-se ao sócio que o requeira que alegue, em sede de petição inicial, um mínimo de factos que permitam considerar reunidos os respetivos pressupostos.[3]

Sucede que a requerente funda a sua pretensão não em factos concretos, mas sim em suspeitas quanto à titularidade de participações sociais noutras sociedades comerciais e em dúvidas quanto ao valor existente em contas bancárias ou quanto a gastos e movimentos realizados, sendo manifesta, face aos elementos constantes dos autos, a existência de alguma confusão entre, por um lado, a esfera patrimonial da requerente e do requerido BB e, por outro, a esfera patrimonial da sociedade requerida.

Ora, as meras suspeitas e dúvidas, no tocante à regularidade da gestão da sociedade, não podem servir de fundamento ao pretendido inquérito judicial que sempre teria de se apoiar na alegação de factos concretos justificativos da sua realização.  

De resto, MENEZES CORDEIRO (in “Direito das Sociedades”, I, 5ª ed., págs. 656/657) afirma, inclusive, que o inquérito judicial surge como um procedimento complicado e pesado, a usar, somente, quando necessário, sendo um esquema destinado a enfrentar problemas bem mais graves do que a não prestação de informação ou a informação inexacta.

“O direito de requerer inquérito judicial, por denegação do direito à informação, atento o seu tão acentuado caráter intrusivo na vida da sociedade visada, é ou mostra-se suscetível de ser tão grave e perturbador, que não deve ser utilizado em situações de impasse ou desconfiança, atendendo a que a sua utilização tende, não raras vezes, a agravar estas situações, colocando os tribunais como “polícias das sociedades”, tendo, nessa medida, um efeito mais negativo que positivo. Se assim é, o inquérito também não deve ser tomado como mecanismo para a obtenção de meios de prova relativos a outros processos em curso[4], como tantas vezes ocorre no âmbito de conflitos societários.

Estes aspetos são particularmente importantes e merecem ser retidos: o inquérito judicial deve ser encarado como um instrumento subsidiário do direito à informação e tem, como dissemos, uma inequívoca natureza sancionatória, pois representa forçosamente uma intromissão do tribunal, ou seja, uma intervenção autoritária externa na vida da sociedade, devendo ser reservado para os casos em que o direito à informação é violado, sem possibilidade de auto-composição interna dos interesses no âmbito societário, e em que os vícios da informação prestada (falsidade, incompletude ou falta de clareza) sejam o resultado de uma atuação deliberada do membro órgão de gestão que faça presumir os apontados vícios.”[5] – cfr. DIOGO LEMOS E CUNHA, “O inquérito judicial enquanto meio de tutela do direito á informação nas sociedades por quotas, ROA, ano 75, págs. 331/332; também disponível in portal.oa.pt).

Por isso, salienta este mesmo autor (ob. cit., págs. 332/333) que “a prática dos tribunais tem-se revelado — e bem — bastante exigente quanto à possibilidade de conceder provimento ao processo de inquérito judicial, (…), só o admitindo em casos que verdadeiramente o justifiquem, designadamente quando o grau de conflitualidade impõe, inevitavelmente, a intervenção do tribunal para dirimir o litígio, esgotadas que estão todas as possibilidades da sua resolução, nomeadamente pela via extrajudicial, ou então no caso em que a informação possa ser obtida por outra via, que não através de inquérito.”

Nesta linha, e tal como já atrás expusemos, conclui também este autor (ob. e loc. cit.) que “o recurso ao inquérito não deve ser imotivado, nem tão-pouco se pode basear em «mera suspeita de irregularidades na administração da sociedade»[6], devendo antes basear-se em factos concretos cuja alegação e, consequente, prova compete, naturalmente, a quem requer o inquérito judicial à sociedade visada por tal procedimento judicial.”

Por seu turno, no Ac. STJ de 19.10.2021 (proc. 1484719.9T8LRA.C1.S1, relator LUÍS ESPÍRITO SANTO, disponível in www.dgsi.pt.), com apoio no anterior Ac. Rel. Porto de 17.1.2000 (CJ, ano XXV, tomo I, págs. 184/186, relator CUNHA BARBOSA), escreveu-se o seguinte:

“De acordo com o disposto no artigo 214º, nº 1, do Código das Sociedades Comerciais, o direito à informação “stricto sensu” só pode ter como objecto a “gestão da sociedade”, isto é, o sócio só pode requerer que o gerente preste informação sobre actos ou factos que se integrem na “gestão da sociedade”. (...) A “gestão da sociedade” que aí se pretende ver inserida é a que se compadece tão só com actos substantivos de gestão que já não com actos de mero registo dessa gestão pois, a entender-se doutro modo, ficaria sem justificação, sem interesse, e, de alguma forma, sem conteúdo o direito de consulta da respectiva escrituração, livros e documentos, já que o resultado de uma possível consulta aos livros da escrituração, de que faz parte o “Diário Razão”, poderia ser obtido através dos gerentes ou administradores” (...) a entender-se de outra forma, (...) poderia transformar-se o gerente ou administrador em constante informador contabilístico, permitindo-se, desta forma, um constante exercício de chicana por parte dos sócios e para com os gerentes ou administradores da sociedade”.

Consequentemente, o recurso ao inquérito judicial, destinado a dar cumprimento ao direito à informação “stricto sensu” conferido a todo e qualquer sócio, na sequência de recusa pela sociedade de prestação de informações ou da sua prestação falsa ou insuficiente, só pode incidir sobre atos ou factos, devidamente concretizados, que se integrem na gestão dessa sociedade.    

4. No caso dos autos, o que se verifica é que a requerente endereçou à gerência da sociedade comercial requerida carta registada com aviso de receção, datada de 4.10.2023, através da qual requereu a disponibilização das seguintes informações: 

“1. Participações detidas noutras Sociedade[s] desde 2021, bem como, em caso de alienação das referidas, o preço pago pelas mesmas;

2. Relatórios de Gestão e de Contas, e proposta de aplicação de resultados, referentes aos anos de 2021 e 2022;

3. Balancetes analíticos de apuramento de resultados a 31 de Dezembro para os exercícios de 2021 e 2022;

4. IES de 2021 e 2022;

5. Modelos 22 de 2021 e 2022;

6. Report de responsabilidades bancárias da sociedade;

7. Listagem de saldos de clientes;

8. Listagem de saldos de todos os fornecedores e restantes credores;

9. Reconciliações bancárias referentes a 31 de Dezembro de 2021 e 31 de Dezembro de 2022;

10. Principais contratos celebrados com clientes e, em especial, celebrados com a Sociedade E..., SGPS, S.A., ou quaisquer outras em relação de simples participação, domínio ou grupo com esta;

11. Principais contratos em vigor celebrados com fornecedores;

12. Mapas de saldos e transacções com sócios, gerentes e entidades relacionadas, no caso de emissão de recibos-fatura;

13. Suporte de todas as movimentações de numerário, nomeadamente levantamentos, desde 2021;

4. Detalhe de despesas com fornecedores de atividades não relacionadas com a actividade da empresa;

15. Justificação da finalidade que motivou tais despesas;

16. Extracto detalhado da conta Sócios;

17. Informação sobre as responsabilidades de crédito em curso, nomeadamente:

Cópias dos contratos de crédito;

Informação sobre a sua origem, o seu destino, taxa de juro, capital mutuado, capital já reembolsado, rendas em falta, comissões e outras prestações pecuniárias decorrentes dos mesmos.

18. Informação sobre as garantias bancárias autónomas on First demand prestadas;

19. Extractos detalhados sobre todas as contas bancárias de que a Sociedade é titular;

20. Cópia das actas das Assembleias Gerais de 2021, 2022 e 2023”. [al. n)]

Dessa carta consta ainda o seguinte:

“Encontro-me disponível para agendar, em prazo razoável, a consulta e análise dos documentos e informações solicitados.

Nestes termos, adverte-se V. Exa. que, se num prazo de 15 (quinze) dias a contar da receção da presente carta, não prestar informação verdadeira, completa e elucidativa sobre a gestão da sociedade, não restará outra alternativa que não seja acionar os devidos mecanismos legais para obter a referida informação.”[al. o)]

A carta foi recebida pelo requerido BB, que, em 12.10.2023, remeteu, por correio eletrónico, a seguinte comunicação: “A informação já está em posse dos meus advogados que farão chegar aos teus advogados” [al. r)].

Nada foi enviado à requerente, sendo certo que esta teve acesso ao modelo 22 do ano de 2021 [als. s) e t)].

5. Daqui se conclui é que a requerente não colocou qualquer questão à gerência da sociedade, nem fez nenhuma pergunta concreta sobre um qualquer ato de gestão ou da vida da sociedade sobre o qual entendesse dever ser informado ou esclarecido quanto ao seu âmbito.

O que se verifica é que a requerente pretende que lhe seja disponibilizado um vasto conjunto de documentação relativo à vida da sociedade requerida, de forma indiscriminada, sem que se reporte a qualquer assunto concreto referente à sua gestão.

Como escreve a Mmª Juíza “a quo”, a requerente não pretende obter informações sobre factos, antes visa obter e/ou ter acesso aos documentos que discrimina no art. 102º do seu requerimento inicial[7].

Ora, é sempre ao interessado que caberá definir a matéria específica, isto é, a concreta atuação societária ou o assunto da vida ou da gestão da sociedade sobre a qual deseja ser informado pela gerência da sociedade.[8]

Acontece que a requerente, tal como se tem vindo a salientar, se limitou a solicitar à sociedade requerida que lhe disponibilizasse numerosas informações, as quais se reconduzem a uma muito vasta documentação, abrangendo toda a sua atividade, sem indicar a concreta atuação societária ou o assunto da vida ou da gestão da sociedade sobre o qual pretendia ser informada.  

O que inviabiliza, desde logo, a realização de inquérito judicial nos termos do art. 1048º e segs. do Cód. de Proc. Civil.

Com efeito, embora a requerente seja sócia da sociedade requerida “A..., Lda.” não pode exigir, designadamente na sequência da rutura da relação conjugal que mantinha com o requerido BB, gerente daquela sociedade, que esta exponha todos os dados da sua atividade, de forma indiscriminada, sem indicar concretos atos de gestão sobre os quais pretenda ser informada.

Aliás, a recusa da prestação de informações por parte da sociedade, sem que seja apresentado por parte do sócio requerente um motivo válido para a obtenção dessas informações funda-se, em termos gerais, naquilo que a recorrida, nas suas contra-alegações, designa como uma espécie de cláusula de salvaguarda ou de proteção assente na tutela do interesse da sociedade, segundo a qual é permitido ao órgão de gestão recusar a informação quando haja receio de que a sua prestação possa atentar contra a própria sociedade.

Por essa razão, um pedido de informação dirigido por um sócio à respetiva gerência pode até ser encarado como abusivo por violar o seu dever de lealdade perante a sociedade, designadamente quando este formula sistemáticos pedidos de informação sem que tenha ou apresente motivo para tal.

Prosseguindo, não se nos afigura, à semelhança do entendido pela 1ª Instância, que a requerente tenha alegado factos suscetíveis de fundamentar a realização de inquérito judicial à sociedade requerida nos termos dos arts. 216º, nº 1 do CSC e 1048º e segs. do Cód. de Proc. Civil, pois não se mostram verificados os respetivos pressupostos, donde se destaca, em primeira linha, a formulação de um pedido de informação válido, o que não ocorre, a que se seguiria a recusa de prestação de informações, ou a sua prestação falsa ou insuficiente.

A propósito aludir-se-á ainda ao Ac. Rel. Porto de 30.1.2024 (proc. 575/23.6T8VNG.P1, relatora MARIA DA LUZ SEABRA, aqui 1ª adjunta, disponível in www.dgsi.pt), onde no respetivo sumário se escreveu o seguinte:

“II – Viola as regras da boa fé o sócio que solicita da sociedade a remessa por escrito de cópias de uma enormidade de documentação sem demonstrar que essa documentação esteja inacessível por consulta na sede da sociedade, ou que tal consulta lhe tenha sido recusada.

III - Não tendo o sócio questionado a gerência da sociedade sobre qualquer acto concreto da gestão ou da vida da sociedade, tendo-se limitado a requerer que lhe fosse entregue avultada documentação por escrito, requerendo em simultâneo a consulta da documentação da sociedade na sede acompanhado de ROC e a inspeção dos bens sociais, sem que tenha demonstrado ter havido recusa da pretendida consulta ou da solicitada inspeção dos bens sociais, não tem fundamento legal para requerer inquérito judicial à sociedade.”

Neste contexto, como a requerente não questionou a gerência da sociedade sobre qualquer ato concreto da gestão ou da vida da sociedade, não existe, como já referido, fundamento para a realização do requerido inquérito judicial.

De qualquer forma, importará referir que a rejeição do pretendido inquérito judicial não impede a sócia requerente de utilizar outros instrumentos processuais de menor intrusão, como seja, por exemplo, a possibilidade de convocação de assembleia geral nos termos do art. 215º, nº 2 do CSC.

Deste modo, apesar da argumentação desenvolvida pela requerente nas suas alegações de recurso, sublinhando-se a natureza subsidiária do inquérito judicial, entendemos ser de manter a decisão recorrida.


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Sumário (da responsabilidade do relator – art. 663º, nº 7 do Cód. de Proc. Civil):

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DECISÃO

Nos termos expostos, acordam os juízes que constituem este Tribunal em julgar improcedente o recurso de apelação interposto pela requerente AA e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida.

Custas, pelo seu decaimento, a cargo da recorrente.


Porto, 10.7.2024
Rodrigues Pires
Maria da Luz Seabra
Artur Dionísio Oliveira
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[1] Dispõe o seguinte este artigo: «O sócio a quem for recusada a informação ou que tenha recebido informação presumivelmente falsa, incompleta ou não elucidativa pode requerer ao tribunal inquérito à sociedade.»
[2] No mesmo sentido e deste mesmo relator cfr. Ac. Rel. Porto de 23.2.2023, p. 177/19.1 T8STS.P2, disponível in www.dgsi.pt.
[3] Ac. Rel. Guimarães de 31.10.2018, p. 32/18.2 T8BGC.G1, relatora FERNANDA PROENÇA FERNANDES, disponível in www.dgsi.pt.
[4] Cfr. Ac. Rel. Lisboa de 12.4.2011, p. 1207/10.8 TBSCR.L1-7, relator ABRANTES GERALDES, disponível in www.dgsi.pt.
[5] Cfr. Ac. Rel. Évora de 8.6.2009, p. 1065/07.0 TBOLH-A.E1, relator FERNANDO BENTO, disponível in www.dgsi.pt.
[6] Cfr. Ac. Rel. Porto de 7.4.2005, p. 0531171, relator JOSÉ FERRAZ, disponível in www.dgsi.pt e Ac. STJ de 10.7.1997, CJ STJ, ano V, Tomo II, págs. 166/167 (FIGUEIREDO E SOUSA).
[7] Esses documentos correspondem aos que constam da alínea n) da factualidade assente, aos quais adicionou “um balancete actualizado referente ao primeiro semestre de 2023”. [8] Cfr. DIOGO LEMOS E CUNHA, ob. cit., págs. 331 e ss.