Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1878/21.0T8OVR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ISABEL SILVA
Descritores: DIREITO DE PREFERÊNCIA DE ARRENDATÁRIO
Nº do Documento: RP202407041878/21.0T8OVR.P1
Data do Acordão: 07/04/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Para o exercício do direito legal de preferência com fundamento na qualidade de arrendatária, é pressuposto essencial a existência de um contrato de arrendamento, válido e eficaz.
II - Concluindo-se que o contrato foi simulado, a preferência terá de soçobrar.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação nº 1878/21.0T8OVR.P1

ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

I – Resenha histórica do processo
1. A..., SA instaurou ação contra AA e B..., Lda., pedindo:
a) ser reconhecido o direito de preferência legal da A. relativamente ao prédio misto composto por casa de habitação e terreno de cultura, vinho citrinos e árvores de fruto, com área de 5 664 m2 sito na Rua ..., ... – ..., concelho de ovar, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ... e descrita na conservatória do registo predial sob o n.º ...;
b) cumulativamente, ordenar-se a substituição da 2.ª R. pela A. na titularidade e posse do aludido prédio;
c) cumulativamente, ordenar-se o consequente cancelamento do registo de propriedade a favor da 2.ª R. com a ap ... de 2020/01/22.
d) cumulativamente, serem ambas as RR. condenadas a obstar a qualquer acto positivo ou negativo que contenda com o supra peticionado.
Estribou o seu pedido alegando ser arrendatária do prédio em questão desde 2015, tendo o prédio sido vendido à 1ª Ré no âmbito de um processo de execução fiscal que corria contra a locadora.
A Autora manteve a sua qualidade de arrendatária, passando a 1ª Ré à qualidade de senhoria.
Sucede que, sem conhecimento da Autora, a 1ª Ré vendeu o prédio à 2ª Ré, pelo que a Autora pretende exercer o direito de preferência.
Em contestação conjunta, as Rés suscitaram a insubsistência do direito de preferência com fundamento em o contrato de arrendamento constituir um negócio física ou legalmente impossível, do não uso efetivo do locado, falta de pagamento de renda, a falta de registo predial (com a consequente inoponibilidade a terceiros) e o abuso de direito. Mais invocaram a simulação do contrato e efetuaram uma proposta de acordo.
A Autora ainda respondeu, sustentando a improcedência das exceções.
Realizada audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença que decidiu absolver as Rés de todos os pedidos formulados pela Autora.

2. Para assim decidir, considerou-se na sentença a seguinte factualidade:
Factos provados
1. A autora é uma sociedade que se dedica à compra, venda, administração e construção de prédios e compra de imóveis com destino a revenda, intermediação na compra, venda, arrendamento ou atividades similares sobre imóveis, executadas por conta de terceiros, detenção e administração de participações sociais, com sede na Rua ..., ... Lisboa.
2. Encontra-se registado em nome da segunda ré, B..., LDA., o prédio composto por casa de habitação e terreno de cultura, vinho, citrinos e árvores de fruto, sito na Rua ..., ... – ..., concelho de Ovar, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ..., na matriz rústica sob o artigo ... e descrito na conservatória do registo predial sob o n.º ... da freguesia ....
3. No dia 21.01.2021, no Cartório Notarial de BB, a segunda ré, B..., LDA., comprou o referido imóvel à primeira ré, AA, pelo valor de €10.000,00 (dez mil euros).
4. O prédio descrito no ponto 2. foi comprado pela primeira ré, AA, através do seu pai, CC, no âmbito do processo executivo com o n.º ... e apensos (venda eletrónica n.º ...), que correu termos na Direção de Finanças de Aveiro, no qual figurava como executada a sociedade comercial C..., S.A. (pretérita proprietária do dito imóvel).
5. No âmbito do referido processo executivo, o imóvel descrito no ponto 2. foi publicitado, mormente, com a seguinte descrição: prédio misto composto por casa de habitação no estado de ruínas, com área total do terreno de 40 m2, área de implantação do edifício de 40m2 e terreno de cultura, vinho citrinos e árvores de fruto com área de 5.644 m2, sito na Rua ..., ... – ..., concelho de Ovar.
6. A primeira ré, AA, não deu conhecimento à autora da venda do imóvel descrito no ponto 2., nem dos elementos essenciais da venda que pretendia realizar a que se alude no ponto 3.
7. A autora procedeu ao pagamento do montante de €333,05 (trezentos e trinta e três euros e cinco cêntimos) à primeira ré, AA, no dia 24 de outubro de 2023, a título de rendas.
8. A segunda ré, B..., LDA., tem dois sócios: CC e DD, pais da primeira ré, AA.
9. A primeira ré, AA, não deu conhecimento à autora da venda do imóvel descrito no ponto 2., nem dos elementos essenciais da venda que pretendia realizar, por considerar que a autora nunca teve direito de preferência, na medida em que, para si, o contrato de arrendamento para fins habitacionais que constava do anúncio/termo de adjudicação da venda não era válido, era fictício.
10. EE, filho de FF, um dos representantes legais da sociedade comercial C..., S.A., foi administrador único da autora, durante cerca de 15 dias, no ano de 2021.
11. A autora e a sociedade comercial C..., S.A. subscreveram o documento denominado por contrato de arrendamento relativo ao prédio descrito no ponto 2. com escopo de onerar o referido imóvel, impedir sequentes penhoras e/ou vendas executivas e posteriores transmissões do imóvel, sem intenção de cumprirem as cláusulas constantes do referido documento.
12. O referido contrato de arrendamento relativo ao prédio descrito no ponto 2. não foi registado.
13. A autora nunca realizou obras no imóvel descrito no ponto 2.
14. A única casa de habitação que se encontra no imóvel descrito no ponto 2. está em ruínas pelo menos desde 2015 até à presente data.
Factos não provados
a. No dia 01.10.2015 e no âmbito da atividade descrita no facto provado n.º 1, a autora e a sociedade comercial C..., S.A. celebraram um contrato de arrendamento para fins habitacionais relativo ao imóvel descrito no facto provado n.º 2, nos termos do qual acordaram mormente que:
a. O dito contrato teria a duração de 30 (trinta) anos, com início a 01.10.2015 e termo a 30.09.2045;
b. A autora, na qualidade de arrendatária, nos primeiros três anos de vigência do contrato, não iria pagar as rendas e, em contrapartida, iria proceder à realização de obras necessárias;
c. Nos cinco anos seguintes a renda anual seria de €400,00 (quatrocentos euros), sem sujeição a atualização anual e
d. o local arrendado “destina-se a Habitação e cultura, podendo a arrendatária sublocá-lo no todo ou em parte, nos termos e condições que entender e pelo preço que lhe aprouver, sem necessidade de respeito pelos limites impostos no artigo 1062.º do Código Civil, autorizando desde já a sublocação, a primeira outorgante.”
b. No mês de agosto de 2021, GG, pessoa que cuida e trata das culturas, designadamente das vinhas, plantação de citrinos e árvores de fruto do imóvel descrito no ponto 2. transmitiu à autora, na pessoa de HH, que o referido imóvel tinha sido vendido.
c. A primeira ré, AA, desde que comprou o referido imóvel nunca ocupou o mesmo.

3. Inconformado com tal decisão, dela apelou a Autora, formulando as seguintes conclusões:
[A] A Recorrente insurge-se contra a sentença proferida nos presentes autos pelo Tribunal ad quo em virtude de ter constatado erros na apreciação da prova e na aplicação do Direito.
[B] A decisão respeitante aos pontos 11. dos factos provados e a. dos factos não provados decorre de sete fundamentos expostos na douta sentença, todos assentes na errónea apreciação da prova.
[C] Primeiramente, afirma o Tribunal ad quo a inexistência do contrato de arrendamento em que a Recorrente assenta o seu pedido porque o mesmo foi impugnado, cabendo-lhe por isso provar que o alegado contrato existia e foi efetivamente celebrado.
[D] Porém, as Rés não impugnaram o contrato de arrendamento, antes invocaram a simulação do mesmo - as Rés não colocaram em causa o seu conhecimento ou suscitaram sequer a sua falsidade, não o impugnando, apenas atacando a sua validade e eficácia enquanto negócio jurídico.
[E] As cópias dos documentos particulares não impugnados terão o valor probatório dos originais, pois o documento particular cuja autoria seja reconhecida nos termos dos artigos antecedentes faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, sem prejuízo da arguição e prova da falsidade do documento – cfr. artigo 376º, nº 1, CC.
[F] Concluímos, portanto, que o Tribunal ad quo ajuizou erradamente o valor do contrato de arrendamento junto aos autos pela Autora, que, pela falta de impugnação das Rés, assume força probatória plena.
[G] Depois, invoca o Tribunal ad quo o ofício da AT de 02 de dezembro de 2022, citando-o parcialmente quanto á omissão de comunicação AT da emissão de qualquer recibo de arrendamento e consequentemente omissão da declaração de rendimentos.
[H] Desde logo, a omissão do dever de emissão do recibo e declaração do rendimento decorrente do recebimento da renda é responsabilidade exclusiva do senhorio (cfr. Artigos 115º, nº 1, alª. a), CIRS e 117º, nº 1, alª. b) CIRC), não imputável à Recorrente, não se provando com tal afirmação que a Recorrente não haja pagos rendas à originária senhoria.
[I] Mais grave é que na douta sentença ad quo se tenha falsamente afirmado de que nenhuma pessoa/entidade, coletiva e/ou singular, pública ou privada, tiveram, desde 2015 até à presente data, conhecimento da existência do contrato em causa, quando do ofício invocado se informa a existência dum contrato de arrendamento, indicando-se o respetivo número de registo, identificação dos prédios objeto e valor da renda.
[J] Mais, a AT faz juntar a tal ofício a declaração de comunicação de contratos de arrendamento (modelo 2) submetida pela senhoria C..., que, além de corroborar a declaração junta pela Autora como doc. 11 à petição inicial, comprova que a entidade pública a quem as contraentes se encontravam obrigadas a comunicar o contrato de arrendamento - AT - dele tinha integral e perfeito conhecimento.
[K] Suscita-se também na fundamentação de facto da douta sentença o e-mail da Câmara Municipal ... de 12 de dezembro de 2022, entidade a que nenhuma das outorgantes era obrigada a comunicar o contrato de arrendamento e que se limita a demonstrar que não foram localizados processos, designadamente de obras e/ou licenciamento, titulados pela Recorrente ou pela originária senhoria.
[L] Finalmente faz o Tribunal ad quo saber que conclui pela existência duma ligação entre a autora nestes autos e a pretérita proprietária do imóvel ajuízado, no ano de 2015 porque constata que EE é filho de um dos representantes legais da sociedade C..., S.A. e foi administrador único da autora, durante cerca de 15 dias (desde 22.06.2021 a 07.06.2021).
[M] A existência de relação entre as Requerente e a originária senhoria nunca foi oculta, o que é manifesto pela celebração do contrato de arrendamento – só não tem a dimensão nefasta que o Tribunal ad quo lhe pretende atribuir.
[N] Veja-se: em 2015 os legais representantes da senhoria C... eram II e JJ e EE foi administrador único da Recorrente em 2021.
[O] A cópia do assento de nascimento do referido EE evidencia inequivocamente que é filho de FF e este não assumia qualquer função naquela C... desde Maio de 2012.
[P] O reflexo da relação familiar na relação comercial que o Tribunal ad quo pretendeu invocar não tem, portanto, qualquer sustentação nos documentos juntos aos autos.
[Q] Sustenta ainda o Tribunal ad quo que não houve da parte e da sociedade C... (…) o intuito de arrendarem o imóvel ajuizado, tendo pretendido sim onerar o imóvel de forma fictícia, em manifesto prejuízo dos credores que necessariamente veem eternizada a liquidação do ativo e totalmente desvalorizado o imóvel.
[R] Porém, e como obviamente se contata da aquisição pela Ré AA, a existência do contrato de arrendamento não impediu a venda do imóvel pela AT, que não sofreu qualquer condicionamento na liquidação do património daquela através da venda do imóvel - que foi licitado por 10 proponentes e de forma bem renhida - e recebeu o preço mais elevado e seguramente o aplicou no pagamento do seu crédito.
[S] A factualidade dada como assente relativamente à venda do imóvel - pontos 2. a 5. - contraria a conclusão de que a existência do contrato teria, ou poderia ter, como consequência o prejuízo dos credores pela eternização da liquidação do património e/ou desvalorização do mesmo.
[T] Foram ainda suscitadas as questões de omissão da realização de obras e do pagamento de renda – cuja prova, relembra-se, em face do ónus probatório decorrente da invocação da simulação, cabia às Rés.
[U] E só parcialmente foram as mesmas bem sucedidas - relativamente ao atraso no pagamento das rendas devidas à Ré AA, que na pendência do processo a Recorrente regularizou, e à omissão da realização de obras, que constituem meros incumprimentos contratuais que a Ré AA nunca fez valer, como era seu direito.
[V] De todo o modo, tais incumprimentos não permitem sustentar qualquer juízo acerca quer da divergência entre a declaração e a vontade das contraentes Autora e C... quer da conluiada intenção de enganar terceiros.
[W] O Tribunal ad quo incorreu, pois, em escabroso erro na apreciação da prova documental constante dos autos, que à saciedade se conclui impossibilitarem os juízos e conclusões que se fez verter na fundamentação de facto da sentença.
[X] E, nessa decorrência, impõe-se a alteração à matéria de facto provada, excluindo-se o teor do seu ponto 11. e aditando-se-lhe o que no ponto a. é dado como não provado, passando o ponto 11. dos factos provados a ter a seguinte redação:
a. No dia 01.10.2015 e no âmbito da actividade descrita no facto provado n.º1, a autora e a sociedade comercial C..., S.A. celebraram um contrato de arrendamento para fins habitacionais relativo ao imóvel descrito no facto provado n.º2, nos termos do qual acordaram mormente que:
a. O dito contrato teria a duração de 30 (trinta) anos, com início a 01.10.2015 e termo a 30.09.2045;
b. A autora, na qualidade de arrendatária, nos primeiros três anos de vigência do contrato, não iria pagar as rendas e, em contrapartida, iria proceder à realização de obras necessárias;
c. Nos cinco anos seguintes a renda anual seria de €400,00 (quatrocentos euros), sem sujeição a atualização anual e
d. o local arrendado “destina-se a Habitação e cultura, podendo a arrendatária sublocá-lo no todo ou em parte, nos termos e condições que entender e pelo preço que lhe aprouver, sem necessidade de respeito pelos limites impostos no artigo 1062.º do Código Civil, autorizando desde já a sublocação, a primeira outorgante.”
[Y] Nem na factualidade dada como provada nem na dada como não provada refere o Tribunal ad quo o momento em que a Recorrente teve conhecimento da venda confessada pelas Rés e seus termos.
[Z] Na petição inicial a Recorrente alega que em 07.10.2021 requereu cópia da escritura pública pela qual as Rés transmitiram o identificado imóvel e que apenas nesse dia tomou conhecimento das concretas e integrais condições da venda do mesmo, designadamente preço, condições e identificação da compradora, demonstrando-o com tal cópia da escritura.
[AA] Atenta a força probatória plena do documento junto à petição inicial sob o número 6, haveria do Tribunal ad quo de ter fixado, como ponto 7. dos factos provados, que A Autora requereu em 07.10.2021 cópia da escritura pública pela qual a 1.ª R. vendeu à 2.ª R. o identificado imóvel, pelo que apenas no dia 07.10.2021 a A. tomou conhecimento das concretas e integrais condições da venda do mesmo, designadamente preço, condições e identificação da compradora, e atual titular do registo de propriedade do referido imóvel.
[BB] Concluiu o Tribunal ad quo que toda a prova produzida aponta claramente no sentido de que nenhum dos contraentes, mormente a aqui autora, pretendeu celebrar qualquer negócio, tendo como único objetivo afastá-lo da esfera dos credores, ajuizando pela simulação do contrato de arrendamento suscitado pela Autora, declarando a respetiva nulidade.
[CC] Só poderemos encontrar-nos perante uma simulação quando (i) por acordo entre declarante e declaratário (ii) houver divergência entre a declaração negocial e a vontade real do declarante e (iii) no intuito de enganar terceiros, requisitos de verificação necessariamente cumulativa.
[DD] O ónus da prova de tais requisitos, porque constitutivos do respetivo direito, cabe, segundo as regras gerais nesta matéria, a quem invoca a simulação.
[EE] A determinação da intenção dos contraentes, nomeadamente o intuito de enganar terceiros, é matéria de facto (…) e constitui ónus de prova para o demandante (que invoca a simulação).
[FF] Na sua contestação as Rés invocam a simulação com base na existência de um esquema empresarial fraudulento com vista à recuperação do património dum Sr. EE – que não demonstraram minimamente - a que somaram a invocação da omissão da realização de obras e do pagamento de renda - que só parcialmente demonstraram relativamente às falta de realização de obras e de pagamento atempado das rendas devidas à Ré AA.
[GG] Já no que às rendas pagas, ou não, à originária proprietária C..., atento o ónus da prova decorrente da invocação da simulação cabia às Rés, e não à Autora, demonstrar o seu pagamento, ou omissão, com exatidão, ónus que também não cumpriram.
[HH] Aqueles meros incumprimentos de obrigações contratuais que nunca a Ré AA fez valer, como era seu direito, designadamente para efeitos de resolução contratual, não constituem alegações suficientes ao preenchimento dos requisitos da simulação e não permitem sustentar qualquer juízo acerca quer da divergência entre a declaração e a vontade das contraentes Autora e C... quer da intenção de enganar terceiros.
[II] Constatamos não se encontrarem preenchidos os pressupostos legais cumulativos do instituto da simulação, especialmente alterada que seja a factualidade dada como assente como supra se requereu.
[JJ] Mesmo que que tal modificação da matéria de facto dada como provada não haja procedido, o que só por hipótese se admite, sempre se diga que a fundamentação de facto originalmente constante da douta sentença ad quo também não permite concluir pelo preenchimento dos requisitos da simulação.
[KK] Dos factos dados como provados e da fundamentação de facto da douta sentença não se vislumbra nenhuma matéria factual que permita concluir pela divergência entre a vontade e a declaração e/ou pela existência do necessário acordo entre as outorgantes para aquela divergência se demonstrasse.
[LL] A relação familiar entre EE, que só assumiu funções nos órgãos sociais da Recorrente em 2021, e o legal representante da C..., que em 2015 não era o pai daquele, suscitada na fundamentação de facto não permite concluir pela existência de especial relação entre a Recorrente e esta sociedade.
[MM] Já os documentos juntos pela AT aos autos demonstram que o contrato foi oportunamente declarado mediante a apresentação de comunicação de contrato de arrendamento.
[NN] E, verdade seja dita, nem tão pouco as Rés se propuseram demonstrar tal divergência ou o necessário acordo ou prova alguma foi produzida a esse respeito.
[OO] O asservo factual constante dos autos é manifestamente insuficiente para que se mostrem preenchidos os requisitos do instituto da simulação, em consequência do que deverá revogar-se a douta sentença ad quo na parte em que reconhece a simulação do negócio e declara a respetiva nulidade.
[PP] Já no que respeita à condenação da Recorrente como litigante de má fé, o erro na apreciação da prova e consequente alteração à matéria de facto assente e a ausência de preenchimento dos requisitos de aplicabilidade do instituto da simulação permitem concluir que tal condenação é manifestamente desprovida de sustentação factual e legal.
[QQ] A Recorrente alegação fez relativamente a realidade inexistente e cuja inexistência conhecia.
[RR] Acresce que a fixação do valor da multa aplicada se afere desprovida de fundamentação, sendo reconhecido pelo Tribunal ad quo que, não obstante os seus poderes inquisitórios, não foi obtido qualquer elemento relativo à situação financeira da Recorrente, e manifestamente desproporcional à situação.
[SS] Deve, pois, ser revogada tal condenação.
Termos em que, julgando o presente recurso procedente, por provado, e
(a) alterando a matéria de facto provada e não provada nos termos supra requeridos;
(b) revogando o reconhecimento da simulação do contrato de arrendamento e consequente declaração de nulidade;
(c) revogando a condenação da Recorrente como litigante de má fé; e
(d) reconhecendo o direito de preferência da Recorrente na aquisição do imóvel, em face da factualidade dada como provada;
Farão V/ Exªs., como sempre, inteira e sã JUSTIÇA!

4. As Rés contra-alegaram, sustentando a improcedência da apelação.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II - FUNDAMENTAÇÃO
5. Apreciando o mérito do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas questões suscitadas nas conclusões dos recorrentes, e apenas destas, sem prejuízo de a lei impor ou permitir o conhecimento oficioso de outras: art.º 615º nº 1 al. d) e e), ex vi do art.º 666º, 635º nº 4 e 639º nº 1 e 2, todos do Código de Processo Civil (CPC).
No caso, são as seguintes as questões a decidir:
● Reapreciação da matéria de facto
● Se existiu erro de julgamento na subsunção dos factos ao direito
● Se é de manter a condenação por litigância de má fé

5.1. Sobre a reapreciação da matéria de facto
A Recorrente pretende que se exclua o facto provado 11. e que, em seu lugar, se passe a considerar provado o teor do facto não provado sob a alínea a.
Em causa está o exercício de um direito de preferência legal, com fundamento na qualidade de arrendatária da Autora Recorrente.
Como decorre do art.º 1091º do Código Civil (CC), é pressuposto essencial desse direito a existência de um contrato de arrendamento, válido e eficaz.
Ora, a Autora invocou um contrato de arrendamento, celebrado com a anterior proprietária do imóvel, nos termos do qual o prédio misto lhe teria sido dado de arrendamento, para habitação e cultura, pelo prazo certo de 30 anos, renovável, com início em 01/10/2015.
Na contestação, as Rés invocaram várias exceções, designadamente a falta de registo predial (com a consequente inoponibilidade a terceiros) e a simulação do contrato.
Nessa medida, a prova da celebração do contrato constituía um facto constitutivo do direito invocado pela Autora, pelo que lhe competia a prova correspondente; já a prova da simulação competia às Rés: art.º 342º nº 1 e 2 do CC.
Na motivação da sentença recorrida, considerou-se que a celebração do contrato fora inexistente, com fundamento em que, pese embora o documento escrito do contrato, a respetiva outorga “não foi corroborada por nenhuma das testemunhas inquiridas em Juízo, mormente os seus (alegados) outorgantes, nem foi sustentado pela demais prova (documental e testemunhal) produzida”.
No que toca a prova documental, estribou-se num ofício da AT, dando conta que não lhe foi participada a emissão de qualquer recibo de arrendamento e consequentemente não foram declarados rendimentos e dum e-mail da Câmara Municipal ... informando que nenhuma pessoa/entidade, coletiva e/ou singular participaram ou diligenciaram pelo licenciamento de quaisquer obras (obrigação que decorria do contrato.
Pese embora as exceções invocadas pelas Rés, nem assim a Autora juntou um único recibo ou qualquer outro meio de pagamento das rendas devidas após outubro de 2018 (atento o período de carência do contrato em função das obras a executar). Os únicos pagamentos demonstrados pela Autora reportam-se aos efetuados no processo de execução, quando se viu compelida pela Agente de Execução ao respetivo pagamento pela penhora. A Autora é uma sociedade comercial, obrigada a ter contabilidade organizada, pelo que tais pagamentos e respetivos comprovativos lá teriam de constar.
Por fim, a própria testemunha da Autora, HH, com as funções de administrativa que organiza os papéis da autora para a contabilidade, referiu não conhecer o contrato de arrendamento, nem nunca o ter visto. Quanto ao pagamento das rendas, só se lembrava das que esteve a pagar ao agente de execução, que depois “metia na contabilidade”.
Provou-se ainda que a casa continua em ruínas e nenhuma obra foi efetuada, sendo assim impossível o destino de habitação que lhe foi dado.
Mais se extrai da certidão de registo comercial da C..., SA, que no seu objeto social não consta o arrendamento, mas apenas compra e venda, administração e revenda de imóveis.
Concluindo, não logrou a Autora efetuar a prova da celebração do contrato, pelo que nada há a alterar quanto à matéria de facto.

5.2. Subsunção dos factos ao direito
Como se verifica da sentença recorrida, a ação soçobrou por 2 fundamentos: (i) não se ter provado a qualidade de arrendatária da Autora e (ii) ter-se considerado simulado o contrato de arrendamento invocado pela Autora.
A Autora Recorrente reage apenas quanto à simulação, considerando não existir matéria de facto suficiente à prova dos elementos constitutivos da simulação.
Tal pretensão derivava da alteração da matéria de facto, designadamente o facto provado 11 - A autora e a sociedade comercial C..., S.A. subscreveram o documento denominado por contrato de arrendamento relativo ao prédio descrito no ponto 2. com escopo de onerar o referido imóvel, impedir sequentes penhoras e/ou vendas executivas e posteriores transmissões do imóvel, sem intenção de cumprirem as cláusulas constantes do referido documento.
Daqui resulta a demonstração dos requisitos da simulação (art.º 240º nº 1 do CC): (i) o acordo simulatório entre ambas as partes que subscreveram o escrito; (ii) a divergência entre a vontade real e a vontade declarada (na medida em que a outorga do escrito não foi acompanhada da respetiva vontade de cumprir as obrigações dele decorrentes) e (iii) o intuito de enganar terceiros (o fim visado foi a tentativa de impedir subsequentes penhoras e/ou vendas executivas).
Nessa medida, inexistiu o invocado erro de julgamento.

5.3. Sobre a litigância de má fé
Também esta questão foi suscitada na sequência da possível alteração da matéria de facto.
Tendo tal alteração sido improcedente, o mesmo deve acontecer à revogação da condenação por litigância de má fé.
Reproduzindo a argumentação da sentença, «Neste contexto, não se pode deixar de considerar que a autora actua como litigante de má fé, porquanto, nos articulados da petição inicial e sequente contraditório após a contestação das rés, alega uma realidade que se provou inexistir e cuja inexistência forçosamente conhecia (inexistência do contrato de arrendamento), o que significa que procurou alterar a verdade dos factos a fim de deduzir intencionalmente, portanto, com dolo, cuja falta de fundamento não podia deixar de conhecer, assim integrando o estatuído nas alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 542.º do Código de Processo Civil.»
Quanto ao valor da multa fixada (6 UCs), é certo que é totalmente desconhecida dos autos a situação económico-financeira da Autora. No entanto, a situação económico-financeira é apenas um dos elementos a ter em conta. Ponderando que a baliza se situa entre as 2 e as 100 UCs, e que a conduta da Autora foi dolosa, a condenação em 6 UCs situa-se próximo do mínimo legal, pelo que a decisão se revela razoável e prudente, nada havendo a alterar.

6. Sumariando (art.º 663º nº 7 do CPC)
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III. DECISÃO
7. Pelo que fica exposto, acorda-se nesta secção cível da Relação do Porto em julgar improcedente a apelação, mantendo-se a sentença recorrida.
Custas a cargo da Autora, face ao decaimento.

Porto, 04 de julho de 2024
Isabel Silva
António Paulo Vasconcelos
Carlos Portela