Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | ANABELA DIAS DA SILVA | ||
Descritores: | AÇÃO DE REIVINDICAÇÃO CONDENAÇÃO NO PEDIDO ENTREGA DE COISA LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ | ||
Nº do Documento: | RP20240710949/22.0T8PVZ.P1 | ||
Data do Acordão: | 07/10/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Indicações Eventuais: | 2ª SECÇÃO | ||
Área Temática: | . | ||
Sumário: | I - A condenação de uma parte como litigante de má-fé consubstancia um verdadeiro juízo de censura sobre a sua atitude processual, face ao uso que possa ter feito dos mecanismos legais postos ao seu dispor, com o marcado intuito de moralizar a atividade judiciária. II – Em ação de reivindicação, depois de reconhecido o direito de propriedade do demandante, o demandado poderá contestar o seu dever de entrega, sem negar o direito de propriedade do autor, com base na existência e validade de uma qualquer relação (obrigacional ou real) que lhe confira a posse ou a detenção da coisa. III -“In casu” não alegou sequer o réu/apelante a existência de qualquer relação conferisse a posse ou a detenção da fração em apreço, logo, nada mais havia do que se julgar procedente o pedido de restituição da fração à sua legítima proprietária, assegurando-se assim a defesa do seu direito de propriedade. | ||
Reclamações: | |||
Decisão Texto Integral: | Apelação Processo n.º 949/22.0T8PVZ.P1 Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo Local Cível da Póvoa de Varzim – Juiz 2 Recorrente – AA Recorrida – Banco 1..., S.A Relatora – Anabela Dias da Silva Adjuntos – Desemb. Alexandra Pelayo Desemb. Anabela Andrade Miranda Acordam no Tribunal da Relação do Porto I – Banco 1..., S.A, com sede em Lisboa intentou no Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo Local Cível da Póvoa de Varzim a presente ação de processo comum contra AA, pedindo a condenação do réu a: i) Reconhecer a autora como dona e legítima proprietária da fração autónoma identificada no art.º 1.º da petição inicial e a entregá-la à autora, devoluta, livre de pessoas e bens. ii) Pagar à autora a título de indemnização pelos danos causados a quantia de €22.138,37 calculada até à presente data e, a partir desta data e até efetiva entrega do prédio, no montante mensal de €325,00, correspondente ao valor da renda calculado à data da aquisição, com atualizações anuais às taxas fixadas legalmente para as rendas livres, a liquidar em execução de sentença. Alegou a autora para tanto e, em síntese, que é dona e legítima proprietária da habitação correspondente à fração autónoma identificada no art.º 1.º da petição, que adveio à sua propriedade na sequência de aquisição da mesma no âmbito do processo de insolvência do réu, sendo que após a referida aquisição, a autora pretendeu entrar na posse da mesma tendo, para o efeito, interpelado o réu para o fazer, mas o mesmo recusou a entrega, o que impediu a autora de obter um rendimento equivalente ao valor de renda mensal à data de aquisição de €325,00/mês. O réu, citado pessoalmente, apresentou contestação por via da qual impugnou parcialmente a matéria de facto e requereu a suspensão da entrega do imóvel nos termos do disposto no artigo 6.º-E, n.ºs 7 e 8 da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março. Requereu ainda a condenação da autora como litigante de má fé. Foi proferido despacho que determinou a extinção da instância quanto ao pedido formulado em b) do petitório, por inutilidade superveniente da lide, nos termos da al. e) do art.º 277.º al. e) do CPC. A autora notificada, pronunciou-se quanto à exceção aduzida pelo réu, no sentido da sua improcedência. Foi proferido despacho saneador, por via do qual se julgou improcedente o pedido de suspensão de entrega do imóvel, para além de terem sido notificadas as partes quanto à possibilidade de se seguir decisão de mérito, por eventual uso indevido do processo. Após o contraditório, foi proferido despacho que determinou a dispensa da identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova. Foi realizada a audiência de julgamento, após o que foi proferida sentença de onde consta: “Pelo exposto, decido julgar a presente ação procedente e, em consequência, condeno o réu a reconhecer a autora como dona e legítima proprietária da fração autónoma identificada em 1 dos factos provados e a entregá-la à autora, devoluta, livre de pessoas e bens. Mais absolvo a autora do pedido de condenação em litigância de má fé. Custas pelo réu – art.º 527.º, n.º 1 e 2 do CPC. Registe e notifique.”. Inconformado com tal decisão, dela veio o réu recorrer de apelação, pedindo a sua revogação e substituição por outra que condene a recorrida como litigante de má-fé, nos precisos termos do pedido formulado, e que conceda um prazo minimamente razoável, nunca inferior a seis meses, para que o recorrente entregue a fração autónoma em causa nos autos à recorrida. O apelante juntou aos autos as suas alegações que terminam com as seguintes conclusões: I. Resulta da sentença objeto do presente recurso que o facto da recorrida ter peticionado a condenação do recorrente no pagamento de uma indemnização correspondente ao valor locatício da fração, calculado desde a aquisição da propriedade pela recorrida, em novembro de 2016, não obstante apenas ter interpelado o mesmo em maio de 2022, não é suficiente para se concluir pela má-fé da mesma. II. Contudo, não lhe assiste qualquer razão, porquanto a recorrida, na sua petição inicial, alegou que logo após ter adquirido a fração autónoma em causa nos autos, em 11.11.2016, procedeu à interpelação do ora recorrente, para que este a desocupasse, tendo o mesmo recusado a fazê-lo – cfr. artigos 3.º, 5.º a 7.º da petição inicial. III. Meses mais tarde, através de requerimento datado de 07.11.2022, a recorrida veio reconhecer expressamente que afinal, só em 19.05.2022 havia interpelado o recorrente para a desocupação da referida fração autónoma – cfr. artigos 1.º e 2.º do referido requerimento. IV. A alegação desses factos falsos na petição inicial da recorrida, serviu de causa de pedir ao pedido por si formulado de condenação do recorrente no pagamento de uma indemnização calculada desde a data da aquisição da referida fração até à sua efetiva entrega, no valor de €22.178,37. V. Resultando este valor do cálculo da soma do valor das rendas que a recorrida alegadamente poderia receber, se o recorrente não estivesse a ocupar a fração, contabilizado desde a data em que a recorrida, alegada e falsamente, interpelou o recorrente para a desocupar, ou seja, logo após ter adquirido a fração autónoma, em 11.11.2016. VI. Dispõe o artigo 542.º, n.º 2 do CPC que “2 - Diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave: a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar; b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa; (…)” VII. Ao atuar como atuou, a recorrida alterou propositada e conscientemente a verdade dos factos dela bem conhecidos, os quais não tinha como ignorar, o que desde logo se comprova com o reconhecimento da interpelação do recorrente apenas em 19.05.2022, referida no seu requerimento de 07.11.2022, bem como deduziu pretensão cuja falta de fundamento também não podia ignorar. VIII. Atendendo ainda ao teor dos factos dados como provados na decisão recorrida, nomeadamente os factos números 3 e 6, não poderia a conclusão de direito deles inferida ter sido a de que a recorrida não litigou com má-fé, uma vez que dando como provado o facto número 3 do elenco dos factos provados, está a decisão recorrida a considerar implicitamente que o alegado pela recorrida nos artigos 5.º a 7.º da sua petição inicial não corresponde à verdade, e, consequentemente, que a recorrida alterou a verdade dos factos. IX. Razões pelas quais deverá ser a sentença recorrida ser revogada, proferindo-se acórdão que condene a recorrida como litigância de má-fé, nos precisos termos do pedido formulado pelo recorrente, no seu requerimento de 10.11.2022. X. Por outro lado, a sentença de que ora se recorre julgou ainda procedente o pedido formulado pela recorrida, de condenação do recorrente a entregar àquela a fração autónoma objeto dos presentes autos, contudo, não poderia a sentença objeto do presente recurso condenar o recorrente nos precisos termos em que o fez, sem mais, atenta a sua situação económico-financeira e de saúde, a qual aliás alegou e provou na contestação por si deduzida. XI. Como é consabido, todos os cidadãos têm o direito fundamental à habitação, o qual vem aliás constitucionalmente previsto no artigo 65.º, n.º 1 da CRP, sendo que a fração autónoma em causa nos autos constitui casa de morada de família do recorrente, onde efetivamente habita, tal como alegado na sua contestação. XII. O recorrente alegou e provou que existem sérias dificuldades relacionadas com o seu realojamento, atenta a sua falta de meios que lhe permitam suportar o valor de uma renda a preços de mercado - cfr. artigo 6.º e doc. 3 da contestação. XIII. Encontra-se ainda o recorrente numa situação de incapacidade para o trabalho por dor torácica, encontrando-se a receber subsídio de doença, no valor diário de €13,40, desde o final do mês de julho de 2022 – cfr. docs. 4 e 5 juntos com a contestação. XIV. Pelo que existem, in casu, razões sociais imperiosas, as quais foram demonstradas nos autos, que deveriam ter sido tomadas em conta na sentença recorrida. XV. Nomeadamente, deveria a sentença recorrida ter tido em consideração as exigências da boa-fé, a circunstância de o recorrente não dispor imediatamente de outra habitação, a sua situação económica e social e ainda o seu estado de saúde, devendo ter concedido ao recorrente um prazo minimamente razoável para que este entregasse a fração autónoma à recorrida. XVI. Pelo exposto, deve a sentença recorrida ser revogada, proferindo-se acórdão que conceda ao recorrente um prazo minimamente razoável, nunca inferior a seis meses, para que este entregue a fração autónoma à recorrida. A autora apresentou contra-alegações onde pugna pela confirmação da sentença recorrida. II – Da 1.ª instância chegam-nos assentes os seguintes factos: 1. Mostra-se inscrita a favor da autora a propriedade da habitação correspondente à fração autónoma designada pela letra «N», situada no 3.º andar esquerdo, com entrada pelo número ..., do prédio sito na Rua ..., inscrito na matriz sob o artigo urbano n.º ... e descrito na Conservatória do Registo Predial da Póvoa de Varzim, sob o n.º ... da freguesia da Póvoa de Varzim. 2. A autora adquiriu a fração supra identificada em 11.11.2016, no âmbito do processo de insolvência do aqui réu (que correu seus termos no Juiz 3 da 1.ª Secção de Comércio de Santo Tirso – Comarca do Porto, com o n.º 425/14.4T8STS). 3. A autora interpelou o réu, por escrito, em 19 de maio de 2022, com vista à desocupação do imóvel. 4. No âmbito do processo mencionado em 2, em 17.11.2021, a autora solicitou a entrega do imóvel, requerendo a prolação de despacho a autorizar o agendamento de diligência de arrombamento, com auxílio da força policial, se necessário. 5. Tendo, contudo, o Sr. Juiz do processo de insolvência indeferido tal pretensão, com fundamento no encerramento do processo e no facto de a aqui autora ter ao seu dispor outros meios processuais para efetivação de tal direito. 6. A autora peticionou nestes autos a condenação do réu, além do mais, no pagamento da quantia de €22.138,37, correspondente à perda patrimonial decorrente da falta de entrega da fração pelo réu. III – Como é sabido o objeto do recurso é definido pelas conclusões do recorrente (art.ºs 5.º, 635.º n.º3 e 639.º n.ºs 1 e 3, do C.P.Civil), para além do que é de conhecimento oficioso, e porque os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, ele é delimitado pelo conteúdo da decisão recorrida. * Ora, visto o teor das alegações do réu/apelante são questões a apreciar no presente recurso: 1.ª – Da alegada litigância de má fé da autora. 2.ª – Do peticionado diferimento da entrega do bem. 1.ªquestão – Da alegada litigância de má fé da autora. Como resulta expresso da decisão recorrida, aí julgou-se improcedente o pedido formulado pelo réu/apelante de condenação da autora como litigante de má-fé, com fundamento no seguinte: “(…)Nos termos do art.º 542.º, n.º 1, do CPC, tendo litigado de má-fé, a parte será condenada em multa e numa indemnização à parte contrária se esta a pedir. Por outro lado, dispõe o n.º 2, do mesmo artigo, que diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave, tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar, tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa, tiver praticado omissão grave do dever de cooperação ou tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão. Ora, compulsada a matéria de facto apurada verificamos que a autora pediu a condenação do réu no pagamento de um valor a título de indemnização correspondente ao valor locatício da fração e contabilizados desde a aquisição da propriedade, não obstante apenas ter interpelado o réu em maio de 2022. Isto, por si, não é suficiente para se concluir pela má fé da autora, tanto é que a aquisição da fração ocorreu no âmbito do processo de insolvência do réu, que este não podia desconhecer. Por esta razão, entendemos que inexistem elementos que permitam concluir no sentido da autora ter liquidado com má fé”. Como também resulta expresso dos autos, o réu/apelante formulou pelos seguintes fundamentos o pedido de condenação da autora como litigante de má-fé: “I – Da litigância de má fé da autora: 1º O requerimento apresentado pela autora mais não é do que o reconhecimento explícito da má fé com que litiga nos presentes autos. 2º Com efeito, conforme a autora agora expressamente reconhece (arts. 1º e 2º do referido requerimento), apenas em 19/05/2022, interpelou o réu para a desocupação do imóvel, conforme carta que junta, tendo recebido do mandatário do mesmo a resposta que consta do email que igualmente junta (documentos esses que correspondem exatamente aos mesmos que o réu já havia junto com a sua contestação – cfrs. Docs. 1 e 2). 3º No entanto, a autora não se coibiu de, na sua petição inicial, alegar que logo após a sua aquisição da fração autónoma em causa nos presentes autos, em 11/11/2016, interpelou o réu para proceder à sua desocupação, recusando-se este a fazê-lo (cfr. arts. 3º, 5º a 7º da P.I.). 4º Bem sabendo que tal facto não corresponde à verdade, conforme agora expressamente veio reconhecer. 5º Tendo, em consequência de tal falsa alegação, ademais peticionado a condenação do réu no pagamento de uma indemnização calculada desde a data de tal aquisição até à efetiva entrega da fração autónoma em causa, no valor de 22.178,37€! 6º Ora, nos termos do disposto no nº 2 do artigo 542.º do CPC, (…) 7º Decorre, pois, do supra exposto que a autora, ao alegar que interpelou o réu para proceder à entrega do imóvel logo após a aquisição do mesmo, em 11/11/2016, bem como ao peticionar indemnização do mesmo réu em virtude deste se ter recusado a proceder a tal entrega nessa data, quando, na verdade, apenas interpelou o réu para tal entrega em 19/05/2022, ou seja, mais de cinco anos após a aquisição do imóvel, alterou a verdade dos factos dela bem conhecidos e que não tinha como ignorar bem como deduziu pretensão cuja falta de fundamento também não podia ignorar, pelo que deve a autora ser condenada em exemplar multa e indemnização ao réu, ambas em quantias exemplares a fixar por V.Exa., desde logo tendo em consideração que a autora é uma reputada instituição financeira de capitais exclusivamente públicos, que deveria ser a primeira a dar o seu exemplo no cumprimento escrupuloso dos deveres de verdade e boas práticas processuais!” Resulta dos autos também que a interpelação a que se alude em 3 dos factos provados tem o seguinte teor: Vejamos. Nos termos do art.º 542.º n.º 1, do C.P.Civil, tendo litigado de má-fé, a parte será condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta o pedir. E como dispõe o n.º 2 do mesmo artigo, “Diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave: a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar; b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa; c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação; d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão”. Como é sabido desde a reforma processual decorrente do DL n.º 329-A/95, de 12 de dezembro, a litigância de má-fé compreende não apenas a litigância dolosa, mas também a temerária. Assim, são admissíveis quer a comissão dolosa, quer a comissão negligente grave. As diversas atuações ilícitas são enumeradas no art.º 542.º n.º 2 do C.P.Civil. Em primeiro lugar, a dedução de pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar. Em segundo lugar, a violação do dever de verdade. Em terceiro lugar, a violação do dever de cooperação. Em quarto lugar; o uso reprovável do processo, através da prossecução de objetivo ilegal, do impedimento da descoberta da verdade, do entorpecimento da ação da justiça ou do protelamento do trânsito em julgado. O instituto da litigância de má-fé visa sancionar os deveres impostos às partes, nos art.ºs 7.º e 8.º do C.P.Civil, de cooperação, de probidade, de lisura processual, em suma, de boa-fé processual. A condenação de uma parte como litigante de má-fé consubstancia um verdadeiro juízo de censura sobre a sua atitude processual, face ao uso que possa ter feito dos mecanismos legais postos ao seu dispor, com o marcado intuito de moralizar a atividade judiciária. Sendo que segundo entendemos, a sanção por litigância de má-fé apenas pode e deve ser aplicada aos casos em que se demonstre, pela conduta da parte, que ela quis, conscientemente, litigar de modo desconforme ao respeito devido não só ao tribunal, como também ao seu antagonista no processo. Na verdade, não se pode olvidar que a concretização das situações de litigância de má-fé exige alguma flexibilidade por parte do intérprete, o qual deverá estar atento a que está em causa o exercício do direito fundamental de acesso ao direito, cfr. art.º 20.º da C.R.Portuguesa, não podendo aquele instituto traduzir-se numa restrição injustificada e desproporcionada daquele direito fundamental, cfr. n.ºs 2 e 3, do art.º 18.º da C.R.Portuguesa. Como refere Menezes Cordeiro, in “Litigância de Má-Fé abuso do Direito de Ação e Culpa”, pág. 26 e in “Da Boa-Fé no Direito Civil”, pág. 380., alargou-se a litigância de má-fé à hipótese de negligência grave, equiparada, para o efeito, ao dolo. Dolo, esse, que supõe o conhecimento da falta de fundamento da pretensão ou oposição deduzida - dolo substancial direto - ou a consciente alteração da verdade dos factos ou omissão de um elemento essencial - dolo substancial indireto, podendo ainda traduzir-se no uso manifestamente reprovável dos meios e poderes processuais. Também Miguel Teixeira de Sousa, in “Estudos sobre o Novo Processo Civil”, LEX, pág. 62, diz que que a infração do “dever honeste procedere” pode resultar de uma má-fé subjetiva, se ela é aferida pelo conhecimento ou não ignorância da parte, ou objetiva, se resulta da violação dos padrões de comportamento exigíveis. A nossa Jurisprudência tem entendido que a negligência grave é caracterizada como a imprudência grosseira, sem aquele mínimo de diligência que lhe teria permitido facilmente dar-se conta da desrazão do seu comportamento, que é manifesta aos olhos de qualquer um, cfr. Ac do STJ de 8.12.2001, in www.dgsi.pt. O montante da multa, de harmonia com o disposto no art.º 27.º n.º3 do R.C.Processuais, é fixado entre duas unidades de conta a cem unidades de conta. Sendo que “O montante da multa ou penalidade é sempre fixado pelo juiz, tendo em consideração os reflexos da lei na regular tramitação do processo e na correta decisão da causa, a situação económica do agente e a repercussão da condenação no património deste”, cfr. n.º4 do citado art.º 27.º. Por fim dir-se-á ainda que a existência de litigância de má-fé determina a condenação numa indemnização à parte contrária, desde que exista pedido, cfr. art.º 542.º n.º 1 do C.P.Civil. Tal pedido deve ser formulado antes da prolação de decisão final, sob pena de preclusão. O quantitativo da indemnização é delimitado pelo art.º 543.º n.º 1 do C.P.Civil. São previstos dois tipos de indemnização, a saber: danos emergentes diretamente causados – alínea a); todos os prejuízos, incluindo lucros cessantes, em consequência direta ou indireta da má-fé – alínea b). A opção entre um e outro tipo de indemnização deve ser realizada em função da gravidade da conduta do litigante. * Depois destas linhas gerais, e considerando os factos assentes nos autos e o que consta dos articulados das partes manifesto é de concluir que se não encontra demonstrada nenhuma conduta da autora/apelada subsumível às situações previstas nas alíneas do n.º2 do art.º 542,º do C.P.Civil. ou seja, não se revela minimamente indiciado que a autora tenha deduzido pretensão cuja falta de fundamento não devia ignorar, mormente quanto ao pedido de pagamento de um valor pela ocupação do imóvel por parte do réu, sem qualquer título que o legitimasse para tal e, desde que que o adquiriu no processo de insolvência, facto que, como é óbvio, não podia ser desconhecido do réu, não obstante ter sido apenas interpelado pela autora para fazer a entrega da fração anos depois, ou seja, em maio de 2022. Quanto ao montante peticionado, a forma processual para o fazer e a oportunidade de tal pedido é algo de natureza técnico-jurídica mais complexa, pelo que mesmo não tendo sido, por mera hipótese, por via dos presentes autos, o meio processualmente utilizado pela autora/apelada, tal não tem a virtualidade de se poder fazer um juízo sobre essa atuação como de litigante de má-fé. Também não se acha minimamente indiciado que a autora tenha violado o dever de verdade, nem o dever de cooperação, nem ainda que tenha feito um uso reprovável do processo, através da prossecução de objetivo ilegal, do impedimento da descoberta da verdade e, do entorpecimento da ação da justiça.Destarte e sem necessidade de outros considerandos, nenhuma censura nos merece o decidido quanto a esta questão em 1.ª instância. Improcedem as respetivas conclusões do apelante. 2.ªquestão – Do peticionado diferimento da entrega do bem. Vem depois ao réu/apelante defender, sem o mínimo de razão e mesmo de razoabilidade, que a sentença recorrida julgou procedente o pedido formulado pela autora, de condenação do mesmo a entregar àquela a fração autónoma objeto dos autos. Mais, dizendo que tal condenação não poderia ter ocorrido sem mais, atenta a sua situação económico-financeira e de saúde. Ora, atento o objeto do processo tal como a autora o apresentou na sua p. inicial estamos claramente perante uma ação de reivindicação, cfr. art.º 1311.º do C.Civil. Na realidade, a autora alegando ser proprietária da fração autónoma em apreço nos autos (não importando aqui cuidar da forma da aquisição do direito de propriedade invocado) veio pedir que o réu seja condenado a reconhecer esse seu direito e condenado a restituir-lhe esse bem. Trata-se de uma ação petitória que “tem por objeto o reconhecimento do direito de propriedade por parte do autor e a consequente restituição da coisa por parte do possuidor ou detentor dela”, cfr. Profs. Pires Lima e A. Varela, in “Código Civil Anotado”, Vol. III, pág.112. O jus reivindicandi é a manifestação da supremacia universal do direito do proprietário que, impondo-se erga omnes, determina a passividade dos restantes sujeitos jurídicos e a reposição intrínseca da plenitude do gozo do objeto. Já vimos que esse direito de propriedade sobre o imóvel foi reconhecido à autora pela sentença ora em recurso. Como é sabido, são dois os pedidos que integram e caracterizam a ação de reivindicação: o reconhecimento do direito de propriedade (pronuntiatio), por um lado, e a restituição da coisa (condennatio), por outro. E como se sabe - entre outras formas que não interessa ora considerar - o demandado poderá contestar o seu dever de entrega, sem negar o direito de propriedade do autor, com base na existência e validade de um qualquer relação (obrigacional ou real) que lhe confira a posse ou a detenção da coisa, cfr. Profs. Pires Lima e A. Varela, in “Código Civil Anotado”, Vol. III, pág. 116. “In casu” não alegou sequer o réu/apelante a existência de qualquer relação que lhe conferisse a posse ou a detenção da fração em apreço, logo, nada mais havia do que se julgar procedente o pedido de restituição da fração à sua legítima proprietária, assegurando-se assim a defesa do seu direito de propriedade. Mais se dirá ainda que, como resulta dos autos, em sede de contestação, o réu/apelante peticionou a suspensão da entrega da fração em apreço com base nas leis temporárias e excecionais publicada ao tempo da pandemia COVID19 e por decisão de 17.04.2023, foi indeferida tal pretensão, sendo que com o teor da mesma o réu se conformou. Agora, em sede de alegações de recurso, vem peticionar que lhe seja concedido um prazo minimamente razoável, nunca inferior a seis meses, para que este entregue a fração autónoma à autora/apelada. Fundamenta essa sua pretensão no preceito constitucional contido no art.º 65.º de que todos os cidadãos têm direito à habitação, sem esquecer, que segundo alega, a fração autónoma em causa nos autos constitui a sua casa de morada de família e ainda no que alega quanto ao seu estado de saúde. Ora, não pode o réu/apelante também ignorar que por força do preceituado no art.º 62.º n.º1 da C.R.Portuguesa também a todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte, nos termos da Constituição. Por outro lado, inexiste o mínimo fundamento legal para se deferir o pretendido pelo réu/apelante, o que aliás o mesmo não consegue expressar para fundamentar em termos da lei aquela sua pretensão. Destarte e sem necessidade de outros considerandos, improcedem as derradeiras conclusões do apelante, havendo de se confirmar a decisão recorrida. Sumário: ……………………………… ……………………………… ……………………………… IV – Pelo exposto acordam os Juízes desta secção cível em julgar a presente apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida. Custas pelo réu/apelante. Porto, 2024.07.10 Anabela Dias da Silva Alexandra Pelayo Anabela Miranda |