Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
14772/23.0T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: TERESA FONSECA
Descritores: DIREITO DE PREFÊRENCIA DO ARRENDATÁRIO
CADUCIDADE
DIREITO A HABITAÇÃO
Nº do Documento: RP2024061714772/23.0T8PRT.P1
Data do Acordão: 06/17/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Não se verifica nulidade da sentença, nem com fundamento em desrespeito dos requisitos formais vertidos no art.º 607.º do Código de Processo Civil, nem devido a omissão de pronúncia na situação em que o processo finda no despacho saneador por verificação da exceção de caducidade, precedida a decisão de resenha da pretensão do autor e das razões das partes, não sendo conhecidas as demais questões suscitadas.
II - Findando o processo devido a exceção de caducidade, o tribunal deverá cingir-se a enunciar os factos tidos por relevantes para o conhecimento da exceção e a aferir da sua verificação.
III - A alegação do arrendatário titular do direito de preferência de que carece de lapso de tempo superior para se financiar junto da banca, sendo o exercício do direito dificultado por não ser viável a celebração de contrato-promessa de compra e venda, não obsta à caducidade do direito por falta de depósito do preço da compra e venda no prazo de 15 dias.
IV - A caducidade só é impedida pela prática, dentro do prazo legal, do ato a que a lei atribui efeito, no caso concreto, o depósito do preço.
V - O direito programático à habitação previsto na Lei Fundamental não é o direito a habitar uma determinada casa, mas um direito em abstrato, a potenciar pelas entidades públicas.
VI - O direito de preferência conferido ao arrendatário mais não visa do que possibilitar-lhe a aquisição do imóvel arrendado em condições de igualdade com o indigitado comprador, mas não em moldes mais favoráveis, assinaladamente temporais.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. 14772/23.0T8PRT.P1

Sumário
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Relatora: Teresa Fonseca
1.º adjunto: Carlos Gil
2.ª adjunta: Maria Fernanda Almeida

Acordam no Tribunal da Relação do Porto
I - Relatório
AA intentou a presente ação de processo comum contra “A...” e “B..., S.A.”.
Pede:
- que lhe seja reconhecido o direito de preferência na venda titulada pela escritura outorgada a 20-12-2022 e o direito a haver para si a fração autónoma designada pela letra “G” descrita na Conservatória dos Registos Civil, Predial, Comercial e Automóveis de Valongo sob o número ... da freguesia ...;
- que seja ordenada a substituição da 2.ª R. pelo A., quer face à escritura de compra e venda, quer quanto aos registos matriciais e prediais, mediante o pagamento do preço da alienação, e seja decretado o cancelamento da aquisição do imóvel pela 2.ª R. no registo predial e do averbamento do seu nome nas Finanças;
- que seja ordenado o cancelamento de quaisquer outras inscrições prediais averbadas ao mesmo prédio e relativas a qualquer transmissão ou oneração do direito de propriedade por parte da 2.ª R.
Alega:
- que lhe foi comunicado pela 1.ª R. que esta iria vender a fração à 2.ª R. e que poderia exercer o seu direito de preferência;
- que enviou carta à 1.ª R. dando-lhe conta de que pretendia exercer o direito;
- que a comunicação que subsequentemente lhe foi efetuada, com indicação da data da escritura, não concedeu tempo bastante para obter financiamento bancário;
- que pediu o adiamento da escritura sem que tal tivesse sido atendido e
- que o imóvel foi alienado à 2.ª R..
Citadas, as RR. contestaram, invocando, além do mais, a caducidade do direito ao exercício do direito de preferência relativamente à venda realizada em virtude de o A. não ter procedido ao depósito do preço nos 15 dias seguintes à propositura da ação.
Foi proferido despacho que ordenou a notificação do A. para se pronunciar sobre a matéria de exceção.
Em resposta, o A.:
- reconheceu a falta de depósito do preço de € 79 500, 00, invocando a dificuldade de recorrer a financiamento bancário no decurso de um processo judicial dada a inexistência de contrato-promessa de compra e venda;
- considerou que, tendo-se a 2.ª R. oposto à renovação do contrato de arrendamento e mantendo interesse em permanecer naquela que há mais de duas décadas é a sua casa de morada de família, lhe deve ser concedido prazo para proceder ao depósito do preço.
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O tribunal dispensou a realização de audiência prévia e proferiu sentença que julgou extinto o invocado direito de preferência do A. por caducidade e improcedente a ação.
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Inconformado, o A. interpôs o presente recurso, finalizando com as conclusões que em seguida se transcrevem.
I) O presente recurso vem interposto da sentença proferida nos presentes autos a 29/01/2024, e notificada ao ora Recorrente em 31/01/2024, que veio julgar a ação improcedente por considerar a existência de uma exceção perentória e, assim, declarar extinto por caducidade o direito de preferência invocado pelo Autor.
II) Com a presente ação judicial, o aqui Recorrente pretendia exercer o seu direito de preferência sobre a fração identificada nos autos - fração autónoma designada pela letra G, inscrita na matriz predial urbana com o artigo ... e descrita na Conservatória dos Registos Civil, Predial, Comercial e Automóveis de Valongo, freguesia ..., sob o número ..., localizada na Av. ...., em ... - porquanto no negócio em que a 1.ª Ré vendeu este imóvel à 2.ª Ré, o exercício desse direito não foi garantido, tendo-o aquela impedido de adquirir o imóvel.
III) Assim, o Recorrente pretende que as Recorridas sejam condenadas nos seguintes termos: ser-lhe reconhecido o direito de preferência na venda titulada pela escritura outorgada a 20/12/2022 e o direito a haver para si o referido prédio; ser ordenada a substituição da 2.ª Recorrida pelo Recorrente, quer face à escritura de compra e venda, quer quanto aos registos matriciais e prediais, mediante o pagamento do preço da alienação, e seja decretado o cancelamento da aquisição do imóvel da 2.ª Recorrida no registo predial e do averbamento do seu nome nas Finanças; ser ordenado o cancelamento de quaisquer outras inscrições prediais averbadas ao mesmo prédio e relativas a qualquer transmissão ou oneração do direito de propriedade por parte da 2.ª Ré.
IV) O Recorrente não se conforma com a sentença recorrida, que, nos parágrafos 12, 13 e 14, veio decidir no sentido de que “o prazo de 15 dias previsto no art.º 1410.º, n.º 1, do CC é um prazo de natureza substantiva, preclusivo e improrrogável, cuja inobservância importa a caducidade do direito de preferência.”, concretizando que “estando invocado pelas RR. e reconhecido pelo A. que este não procedeu ao depósito do preço no prazo de 15 dias após a instauração da presente ação de preferência, e não sendo possível a prorrogação de tal prazo, o invocado direito de preferência tem que ser declarado extinto por caducidade”, concluindo pela improcedência da ação.
V) Com o presente recurso o Recorrente pretende que sejam reconhecidas as nulidades supra invocadas, pugnando pela revogação da presente decisão.
VI) Também pretende que V. Exas. declarem que inexiste qualquer exceção perentória de caducidade, devendo os presentes autos baixar ao Tribunal de 1.ª instância para a realização de demais elementos probatórios, para que o Recorrente efetive então o seu direito de preferência.
VII) Assim, o recurso visa debruçar-se sobre as nulidades de que a sentença padece, bem como sindicar direito - pois in casu não existe qualquer exceção perentória a considerar.
VIII) O art.º 607.º do CPC estipula que:
“2 - A sentença começa por identificar as partes e o objeto do litígio, enunciando, de seguida, as questões que ao tribunal cumpre solucionar.
3 - Seguem-se os fundamentos, devendo o juiz discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes, concluindo pela decisão final.
4 - Na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência.”
IX) A presente sentença não cumpre com os requisitos formais do citado artigo, pois não identifica os fundamentos, não discrimina quais os factos que considera provados e não provados, não refere quais os factos admitidos por acordo ou provados por documentos, não analisa as provas juntas pelo Recorrente, e não conclui, sequer, dizendo se a absolvição é relativamente ao pedido ou à instância, lesando os direitos de defesa e estando ferida de nulidade por violação dos artigos 607.º ex vi 195.º do CPC.
X) Por outro lado, o art.º 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC dispõe que “É nula a sentença quando: d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar (…)”.
XI) Como o douto Tribunal nada disse sobre várias questões suscitadas pelo Recorrente, e que a seguir se elencam, deverá a presente sentença ser declarada nula à luz da mencionada norma, o que desde já se requer.
XII) Nos presentes autos, o Recorrente instaurou então uma ação de preferência contra as Recorridas, uma vez que não foi garantido o exercício do seu direito de preferência, enquanto arrendatário da fração acima mencionada, quando a 1.ª Recorrida alienou esse imóvel à 2.ª Ré, em 20/12/2022.
XIII) Tendo as Recorridas invocado a caducidade do direito de preferência do Recorrente, uma vez que este não procedeu ao depósito do preço nos quinze dias seguintes à propositura da ação, o Tribunal veio simplesmente dizer que, tendo apurado que o preço não foi depositado, e que o prazo para o efeito é um prazo de caducidade de direito substantivo, preclusivo e improrrogável, o direito de preferência se considerava extinto por caducidade. Disse, simplesmente, que a ação era então improcedente - “o invocado direito de preferência tem de ser considerado extinto por caducidade”, conforme se pode ler na sentença.
XIV) Ao decidir como decidiu, o Tribunal fez tábua rasa dessa exceção, e não se pronunciou, em primeiro lugar, sobre o prazo manifestamente curto que mediou entre a carta enviada pela 1.ª Recorrida e recebida pelo Recorrente a 23/11/2022, que informava que a escritura seria realizada a 13/12/2022. Com essa carta, a 1.ª Recorrida deu ao Recorrente um prazo inferior a quinze dias úteis para dispor de todos os meios para poder adquirir o imóvel.
XV) Isto é, a 1.ª Recorrida tinha enviado, primeiramente, a 23/08/2022, uma carta ao Recorrente, dizendo que pretendia vender a fração, onde o Recorrente vivia e de que era inquilino, e que este podia, querendo, exercer o seu direito de preferência. O Autor respondeu dizendo que pretendia, efetivamente, exercer esse direito e comprar o imóvel.
XVI) A 1.ª Recorrida não informou, nessa primeira carta, a data da escritura, o que apenas veio a fazer naquela carta recebida pelo Recorrente a 23/11/2022. Fê-lo de forma apressada, comunicando que a escritura seria daí a menos de quinze dias, e não tendo concedido ao Recorrente um prazo razoável para que este reunisse as condições para realizar este negócio.
XVII) Conceder um prazo razoável é um pressuposto amplamente acolhido pelos tribunais, e sobre o qual o Tribunal a quo não se pronunciou.
XVIII) O Tribunal a quo também não se pronunciou sobre o facto de, na prática, o Recorrente se encontrar concretamente impedido de se deslocar a Lisboa onde ia ter lugar a escritura pública de compra e venda, já que a cidade se encontrava sob forte precipitação, e a Câmara Municipal tinha apelado, através da Comunicação Social, para que os cidadãos residentes fora da cidade não entrassem na cidade, sob pena de agravamento dos bloqueios e constrangimentos na cidade.
XIX) Mas, mais importante ainda, o Tribunal não se pronunciou sobre um ponto essencial: durante a recolha de documentos probatórios que instruíram este processo, o Recorrente teve conhecimento de que o seu senhorio – a sociedade comercial A..., – não é a 1.ª Recorrida, que agora vendeu o imóvel. Por isso, ou na altura de celebração do contrato de arrendamento, a 29/12/2013, a proprietária era já a 1.ª Recorrida e aquela entidade dispunha de uma autorização que lhe permitia celebrar o contrato de arrendamento ou então, depois da celebração do contrato de arrendamento, a senhoria vendeu a fração à 1.ª Recorrida – negócio que, a ter ocorrido, não acautelou também o seu direito de preferência. Por isso, o Recorrente requereu que fosse notificada a 1.ª Recorrida para que viesse aos autos juntar aquela autorização ou então, se não era a proprietária na altura da celebração do contrato de arrendamento, juntar a escritura pública mediante a qual adquiriu o imóvel. O Recorrente pretendia, deste modo, apurar se, para além do negócio de compra e venda acima identificado, tinha ocorrido uma anterior venda e, a ser assim, também aí tinha sido violado o seu direito de preferência.
XX) Esta questão era, pois, absolutamente essencial nos autos, porque, ao invés de discutirmos o exercício do direito de preferência numa escritura, poderíamos ter que discutir se o exercício desse direito lhe foi eventualmente vedado em duas escrituras. Poderíamos ter que chamar ao processo a senhoria, A..., e ser reconhecido ao Recorrente o direito de preferência nesse negócio, por não lhe ter sido comunicado qualquer intenção de venda - possibilidade sobre a qual o Tribunal a quo não podia deixar de indagar e, produzida a prova, pronunciar-se.
XXI) No entanto, a sentença de que ora se recorre também nunca se pronunciou sobre este aspeto, não tendo apurado se na data da celebração do contrato de arrendamento, a 1.ª Ré já era a proprietária ou se só depois se tornou proprietária - sendo que esta segunda possibilidade era a mais plausível. Apurar se existira uma anterior escritura de compra e venda era corolário para que depois o Tribunal também se pronunciasse sobre o negócio identificado no processo, ocorrido a 20/12/2022.
XXII) Como tal, ocorreu omissão de pronúncia do douto Tribunal quanto aos aspetos aqui invocados.
XXIII) Por fim, diga-se ainda que, em sede de contestação, as Recorridas lançaram mão da exceção perentória de caducidade do direito de preferência, não se pronunciando sobre estas demais questões. Esta falta de impugnação sempre deveria ter tido a cominação prevista no art.º 574.º, n.º 2, do CPC, tendo estes factos sido dado como provados, o que não aconteceu, tudo nos termos do art.º 615.º, n.º 1, al. d) do C.P.C, pelo que está ferida de nulidade a sentença, o que desde já se argui para todos os devidos efeitos.
XXIV) No que à impugnação da decisão proferida sobre a matéria de direito, o Tribunal veio decidir no sentido de que o prazo de 15 dias previsto no art.º 1410.º, n.º 1, do CC é um prazo de natureza substantiva, preclusivo e improrrogável, cuja inobservância importa a caducidade do direito de preferência”, concretizando que “estando invocado pelas RR. e reconhecido pelo A. que este não procedeu ao depósito do preço no prazo de 15 dias após a instauração da presente ação de preferência, e não sendo possível a prorrogação de tal prazo, o invocado direito de preferência tem que ser declarado extinto por caducidade”. Por fim, concluiu pela improcedência da ação.
XXV) Ora, o Recorrente não se pode conformar com a decisão, uma vez que a mesma não acautela o regime do direito à preferência em toda a sua extensão, nomeadamente no que diz respeito à noção de “prazo razoável” para o exercício do mesmo, que é devido por respeito ao princípio basilar de segurança jurídica, bem como os deveres de lealdade e de informação a que o obrigado à preferência estava obrigado.
XXVI) A sentença também não acautela o direito à habitação, constitucionalmente consagrado.
XXVII) Ora, conforme amplamente explanado, o Recorrente vivia na casa identificada nos autos há mais de vinte anos, primeiro como proprietário e depois, a partir de 29/12/2013, enquanto inquilino.
XXVIII) Ao abrigo do art.º 1091.º, n.º 1, al a) e n.º 5, e do art.º 1410.º do CC, a 23/08/2022, a 1.ª Recorrida enviou então uma carta ao Recorrente na qual comunicou que tinha intenção de vender o imóvel e que este, enquanto inquilino que lá vivia há mais de dois anos, podia exercer o seu direito de preferência.
XXIX) Apesar de o Recorrente ter rapidamente respondido, dizendo que queria exercer o seu direito de preferência no negócio e adquirir o imóvel, a 1.ª Recorrida não veio, depois garantir-lhe o exercício do mesmo.
XXX) Dessa primeira carta não constava a data concreta para a celebração da escritura, facto que a 1.ª Recorrida apenas comunicou ao Recorrente por carta enviada a 11/11/2022 e recebida por este a 23/11/2022.
XXXI) Nessa data, o Recorrente soube que faltava menos de quinze dias úteis para o efeito, pelo que passou a solicitar, de forma encarecida, para que a data fosse adiada, uma vez que, como bem sabia a 1.ª Recorrida, estava a aguardar pela decisão sobre o seu pedido de financiamento bancário, sendo-lhe absolutamente impossível consegui-lo em menos de quinze dias.
XXXII) A estes pedidos, a 1.ª Recorrida disse que caso não comparecesse na escritura agendada então para o dia 13/12/22, tal configurava juridicamente uma renúncia ao direito de preferência.
XXXIII) O Recorrente não compareceu então nessa data no cartório, por não ter o financiamento aprovado e por estar impossibilitado de entrar na cidade devido às condições climatéricas.
XXXIV) A 1.ª Recorrida nunca mais contactou o Recorrente, nem para o informar que afinal a escritura seria até realizada no dia 20/12/2022, o que poderia ter sido decisivo para conseguir obter o financiamento em tempo.
XXXV) Assim, andou mal o Tribunal ao não se pronunciar sobre a alegada renúncia expressa ao direito, invocada pela 1.ª Ré, pelo facto de o Recorrente não ter comparecido na escritura, sendo que a jurisprudência tem considerando que esse direito se extingue apenas quando existe uma renúncia expressa do preferente. O Tribunal sempre deveria ter-se pronunciado sobre esse aspeto porque, uma vez que não houve essa renúncia, também nunca a 1.ª Ré poderia ter alterado a escritura para o dia 20/12/2022 sem ter informado o Recorrente.
XXXVI) Por outro lado, ao ter comunicado que a escritura seria daí a menos de quinze dias, quando sabia que estava em curso um processo de financiamento bancário de que o Recorrente dependia, a 1.ª Recorrida não garantiu um prazo razoável, que o vendedor tem sempre de conceder para que o preferente reúna as condições necessárias para efetivar esse direito, tendo deliberadamente impossibilitado que este conseguisse assim adquirir o imóvel que sabia que queria adquirir. O conceito de prazo razoável assenta nos princípios gerais de boa-fé, de confiança entre as partes e, não o garantir, implica uma violação grosseira dos deveres de segurança, lealdade e informação.
XXXVII) O Tribunal a quo fez tábua rasa daquela exceção e não cuidou de se pronunciar sobre a violação por parte da 1.ª Recorrida destes deveres e princípios.
XXXVIII) Por fim, a sentença recorrida fez prevalecer o requisito de depósito do preço nos quinze dias seguintes à propositura da ação, previsto no art.º 1410.º do CC, aplicável ex vi art.º 1091.º do CC, sobre o direito à habitação, constitucionalmente consagrado, no art.º 65.º da Constituição da República Portuguesa, que estipula que todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada.
XXXIX) Como é sabido, o sector imobiliário vive uma crise sem precedentes, que atinge os mais desfavorecidos no geral e os inquilinos, como o Recorrente, em particular, que veem, muitas vezes, as suas casas perdidas para empresas e entidades que transacionam as suas habitações como se qualquer outro bem comercial se tratasse. E a sentença de que ora se recorre, com o devido respeito, agrava, mais uma vez, o problema da habitação, sendo que os Tribunais não podem descurar o seu papel social.
XL) Assim, andou mal o Tribunal a quo ao fazer tábua rasa da exceção, sem considerar a justeza da sua aplicação ao caso concreto.
XLI) Pugnamos, por isso, pela revogação da sentença.
XLII) Assim, por tudo o exposto, nunca poderia a ação ter sido julgada, como foi, totalmente improcedente, devendo a douta sentença do Tribunal a quo ser revogada, tendo em consideração as nulidades invocadas de que padece a sentença e por erro manifesto na aplicação do direito, e serem as Recorridas condenadas no pedido.
Nestes termos e melhores de Direito, que V. Exas mui doutamente suprirão, deverá o presente Recurso ser admitido e julgado procedente por provado, e, em consequência, revogar-se a decisão recorrida nos termos requeridos e melhor aduzidos nas conclusões do presente recurso.
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Não houve lugar a contra-alegações.
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II - Questões a dirimir
a - da nulidade da sentença por não respeitar o disposto no art.º 607.º do C.P.C.;
b - da nulidade da sentença por omissão de pronúncia;
c - da caducidade do direito de preferência por falta de depósito do preço;
d - Se o direito à habitação deve obstaculizar à caducidade do direito de preferência.
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III - Fundamentação de facto (respigada do processado)
1 - Em 23-8-2022, a 1.ª R., representada pela entidade “C..., S.A.”, enviou carta ao A., tendo como assunto “comunicação para efeitos de exercício do direito legal de preferência conferido ao arrendatário” (doc. 4 junto com a petição inicial).
2 - Nessa carta, inteirava-o de que, enquanto proprietária, tinha a intenção de vender o imóvel arrendado à 2.ª R. pelo preço de € 79 500, 00, a pagar na data da celebração da escritura de compra e venda, através de cheque bancário ou transferência bancária.
3 - Mais informou que a data da escritura seria entre 9-12-2022 e 20-12-2022.
4 - O A., através de carta registada com aviso de receção que enviou em 13-9-2022, declarou pretender exercer o direito de preferência.
5 - Essa declaração foi recebida pela 1.ª R., que, em 19-9-2022, respondeu pedindo dados pessoais do A., como cópia do cartão de cidadão, comprovativo de morada e de IBAN, mais constando na resposta que a escritura seria realizada no Cartório Notarial da Dra. BB, sito na Rua ... n.º ..., R/C A, em Lisboa, sendo que a data e a hora da escritura seriam acordadas posteriormente, “com a antecedência necessária”, e que, na eventualidade de não comparecer na data que então fosse fixada, o direito de preferência considerar-se-ia extinto para todos os efeitos (doc. 6 junto com a petição inicial).
6 - Em 11-11-2022, a 1.ª R. enviou comunicação, pedindo novamente os dados pessoais do A. e informando que a escritura se encontrava agendada para o 13-12-2022 de Dezembro de 2022, às 09.30h, no Cartório Notarial da Dra. BB, em Lisboa e voltando a referir que, caso o A. não comparecesse na referida data, se extinguiria o seu direito de preferência (doc. 7 junto com a petição inicial).
7 - O A. respondeu por carta, datada de 12-11-2022, expondo que exercera o seu direito tempestivamente e esclarecendo que a 1.ª R. sabia, conforme emails que foram entretanto trocados, que se encontrava a aguardar resposta por parte da instituição bancária quanto à concessão de crédito à habitação, essencial para poder adquirir a casa.
8 - Mais referiu que “seria utópico acreditar-se que tais trâmites bancários se concluiriam num prazo máximo de 15 (quinze) dias úteis, tendo sido este o prazo volvido entre a receção da V/ missiva com a indicação do agendamento da escritura e a data da escritura”.
9 - A carta foi recebida pelo A. em 23-11-2022, conforme registo do sítio dos CTT, estando disponível no ponto de entrega desde 16 de novembro (doc. 8 junto com a petição inicial).
10 - A escritura pública de compra e venda teve lugar em 20-12-2022.
11 - No final de dezembro de 2022, o A. teve conhecimento que o imóvel tinha sido vendido, através de carta datada de 21-12-2022, recebida e emitida pela representante da 1.ª R., em que esta informava que a nova proprietária e sua senhoria era a 2.ª R. (doc. 24 junto com a petição inicial).
12 - A 2.ª R., a “D..., S. A.”, em Julho de 2023, notificou o A. da oposição à renovação do contrato de arrendamento, sendo data da cessação o passado dia 31-12-2023.
13 - A presente ação foi intentada em 30-08-23.
14 - O A. não procedeu ao depósito do preço a que se refere no art.º 1410.º/1 do Código Civil, nem em 15 dias, nem posteriormente.
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IV - Fundamentação jurídica
A - Da nulidade da sentença por esta não respeitar os requisitos previstos no art.º 607.º do C.P.C..
O recorrente alega que a sentença não cumpre os requisitos formais do art.º 607.º. Segundo invoca, a sentença não identifica os fundamentos, não discrimina quais os factos que considera provados e não provados, não refere quais os factos admitidos por acordo ou provados por documentos, não analisa as provas juntas pelo Recorrente, e não conclui, sequer, dizendo se a absolvição é relativamente ao pedido ou à instância, lesando os direitos de defesa e estando ferida de nulidade por violação dos artigos 607.º ex vi 195.º do CPC..
O art.º 607.º/2 do C.P.C. dispõe que a sentença começa por identificar as partes e o objeto do litígio, enunciando, de seguida, as questões que ao tribunal cumpre solucionar. E o n.º 3 que se seguem os fundamentos, devendo o juiz discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes, concluindo pela decisão final.
Prevê, por seu turno, o n.º 4 que na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência.
O art.º 615.º/1/b preceitua que é nula a sentença quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.
Nos termos do art.º 607.º/4/5 do C.P.C., na fundamentação da sentença, o juiz deve declarar quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, especificando os fundamentos que foram decisivos para a sua convicção.
O dever geral de fundamentação dos despachos e sentenças é conforme ao princípio constitucional vertido no art.º 205.º/1 da Constituição da República Portuguesa (C.R.P.), segundo o qual as decisões do tribunal, que não sejam de mero expediente, devem ser fundamentadas na forma prevista na lei, de molde a assegurar a todos os cidadãos um processo equitativo e justo, conforme decorre do disposto no art.º 20.º/4 da C.R.P.
Em consonância com este dever de assegurar um processo equitativo e justo, exige-se a indicação dos factos provados, como dos não provados e do processo lógico-racional que conduziu à formação da convicção do julgador, relativamente aos factos que considerou provados ou não provados, de acordo com o ónus de prova que incumbia a cada uma das partes, conforme o disposto no art.º 607º, nº 4 do CPC.
Ensinam Abrantes Geraldes/Paulo Pimenta/Luís Filipe Pires de Sousa (em anotação ao art.º 607 do C.P.C.) que se impõe ainda que a factualidade apurada pelo tribunal deva ser descrita pelo juiz de forma fluente e harmoniosa, técnica bem diversa de uma que continue a apostar na mera transcrição de respostas afirmativas, positivas, restritivas ou explicativas a factos sincopados, como os que usualmente preenchiam os diversos pontos da base instrutória (e do anterior questionário). Se, por opção, por conveniência ou por necessidade, se inscreveram nos temas de prova factos simples, a decisão será o reflexo da convicção formada sobre tais factos, a qual deve ser convertida num relato natural da realidade apurada… […]. O importante é que, na enunciação dos factos provados e não provados, o juiz use uma metodologia que permita perceber facilmente a realidade que considerou demonstrada, de forma linear, lógica e cronológica, a qual, uma vez submetida às normas jurídicas aplicáveis, determinará o resultado da ação.
Analisada a sentença recorrida, constata-se que esta identifica as partes e as respetivas pretensões, enuncia as principais questões por estas suscitadas e julga improcedente a ação.
Está em causa sentença que conhece de exceção perentória de caducidade, pelo que careceria de sentido, porque inútil, como tal proibido por lei (art.º 130.º da C.P.C.) que conhecesse de todas as questões suscitadas pelo A.. Por outro lado, o respetivo conhecimento dependeria eventualmente de produção de prova.
De entre os reparos apontados pelo apelante, constata-se que o saneador-sentença proferido não enunciou os factos, embora os enuncie genericamente, que levou em linha de conta para a tomada de posição a propósito da exceção de caducidade. Devendo tê-lo feito, padece aquele despacho de nulidade.
Lê-se no ac. da Relação de Lisboa de 6-6-2019 (proc. 21172/16.7T8LSB.L1-2, Laurinda Gemas): (…) não podemos confundir uma decisão de mérito proferida na fase do saneamento com uma decisão de mérito/sentença proferida após a audiência final. Na primeira, o Tribunal deverá limitar-se a elencar os factos tidos por relevantes (factos essenciais, em sentido amplo, que constituem a causa de pedir e em que se baseiam as exceções invocadas - cf. art. 5.º do CPC) que estão plenamente provados (admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão).
A regra contida no art.º 665.º/1 do C.P.C. é a de que, mesmo verificando-se a nulidade da decisão que põe termo ao processo, o tribunal de recurso deve conhecer do objeto da apelação.
Assim, fixou-se a matéria de facto que do ponto de vista lógico era necessária à prolação de decisão e que emerge dos termos do processado, assim se sanando a nulidade.
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B - Da nulidade da sentença por omissão de pronúncia
O recorrente invoca a nulidade da sentença por omissão de pronúncia.
Aduz, em síntese, o seguinte:
- o tribunal não se pronunciou sobre o prazo manifestamente curto que mediou entre a carta enviada pela 1.ª R., por si recebida em 23-11-2022, e a data da escritura, em 13-12-2022;
- o tribunal não se pronunciou sobre o facto de o recorrente se encontrar impedido de se deslocar a Lisboa, onde ia ter lugar a escritura pública de compra e venda, por a cidade se encontrar sob forte precipitação e a Câmara Municipal ... ter apelado a que os não residentes não entrassem na cidade;
- o tribunal não se pronunciou sobre a renúncia expressa ao direito de preferência invocada pela 1.ª R., pelo facto de o recorrente não ter comparecido na escritura;
- o tribunal não se pronunciou sobre a circunstância de durante a recolha de documentos que instruíram o processo o recorrente ter tido conhecimento de que o seu senhorio - a sociedade comercial “A...” - não ser a 1.ª R., entidade que ora vendeu o imóvel, não tendo apurado se na data da celebração do contrato de arrendamento a 1.ª R. já era a proprietária ou se só posteriormente adquiriu essa qualidade;
- o tribunal não se pronunciou sobre a consequência de, em sede de contestação, as RR. terem lançado mão da exceção perentória de caducidade do direito de preferência, não se pronunciando sobre as questões suscitadas pelo A., o que deveria ter tido a cominação prevista no art.º 574.º/2, do C.P.C., sendo os factos atinentes dados como provados.
Preceitua o art.º 615.º/1/d do C.P.C. que é nula a sentença quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
Como se viu o processo findou logo após os articulados. Isto com fundamento na verificação de exceção perentória de caducidade, que em nada se prendia com a análise do mérito da causa. Na aceção do tribunal de 1.ª instância, o conhecimento da exceção precedeu o conhecimento das questões de mérito, tornou a produção de prova inútil e prejudicou a análise dos fundamentos jurídicos avançados pelo A.. Por consequência, embora o juiz não se tenha debruçado sobre as questões enumeradas, ao menos na sua ótica, não impendia sobre si o dever de o fazer, conforme é exigido pela citada alínea d) do n.º 1 do art.º 615.º do C.P.C..
Em face do exposto, desatende-se a nulidade arguida.
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c - Da caducidade do direito por falta de depósito do preço
A sentença recorrida julgou verificada a exceção perentória de caducidade, absolvendo a R. do pedido conforme preceitua o art.º 576.º/2 do C.P.C..
Dispõe o art.º 1410.º/1 do C.C., com a epígrafe ação de preferência, que o comproprietário a quem se não dê conhecimento da venda ou da dação em cumprimento tem o direito de haver para si a quota alienada, contanto que o requeira dentro do prazo de seis meses, a contar da data em que teve conhecimento dos elementos essenciais da alienação, e deposite o preço devido nos 15 dias seguintes à propositura da ação.
Consigna, por seu turno, o art.º 1091.º do C.C., nos segmentos com relevo para os autos:
1 - O arrendatário tem direito de preferência:
a) Na compra e venda ou dação em cumprimento do local arrendado há mais de dois anos, sem prejuízo do previsto nos números seguintes; (…)
4 - A comunicação prevista no n.º 1 do artigo 416.º é expedida por carta registada com aviso de receção, sendo o prazo de resposta de 30 dias a contar da data da receção.
5 - É aplicável, com as necessárias adaptações, o disposto nos artigos 416.º a 418.º e 1410.º, sem prejuízo das especificidades, em caso de arrendamento para fins habitacionais, previstas nos números seguintes.
No caso dos autos não está em causa que não tenha sido dado conhecimento da venda e das respetivas condições principais, mas sim os moldes, segundo o apelante, imperfeitos, em que lhe foi dado exercer o seu direito a preferir na venda, avultando o lapso temporal concedido, qualificado como insuficiente para a obtenção de empréstimo bancário a que aquele teria que recorrer para a aquisição.
Segundo alegado pelo próprio A., a comunicação de que a 1.ª R. iria vender a sua casa, de que poderia exercer direito de preferência e de que a escritura iria ter lugar entre 9-12-2022 e 20-12-2022 ocorreu em 23-8-2022. A comunicação do dia exato da escritura ocorre por carta de 11-11-2022. Embora o A. alegue que só a recebeu em 23-11-2022, o que se comprova pelo registo dos CTT, o que é facto é que o A. demonstra ter conhecimento do respetivo teor em 12-11-2022, já que responde à 1.ª R. através de carta dessa data.
O processo não prosseguiu para julgamento para que se aquilatasse das objeções do apelante ao modo como lhe foi dado exercer o direito de preferência que enquanto arrendatário lhe assistia sob o fundamento de que, não tendo procedido ao depósito do preço para a venda, teria precludido aquele direito.
Efetivamente, para que o seu direito não caducasse, o A. teria de o acautelar, comprovando o depósito do preço respetivo, no prazo legalmente fixado de 15 dias, contados da data da propositura da ação, em conformidade com o assinalado art.º 1410.º/1 in fine do C.C..
Na ação de preferência, prevista no art.º 1410.º do C.C., são dois os ónus que recaem sobre o preferente: em primeiro lugar, interpor a ação no prazo de seis meses a contar da data em que teve conhecimento dos elementos essenciais da alienação e em segundo lugar depositar o preço devido nos 15 dias seguintes à propositura da ação. O pedido de reconhecimento do direito de preferência no prazo estabelecido na lei e o depósito também no prazo aí previsto são constitutivos do direito de preferência, isto é, ele não é reconhecido sem que os prazos sejam respeitados.
Está em causa um prazo de caducidade, já que segundo o disposto no art.º 298.º/2 do C.C. quando, por força da lei ou por vontade das partes, um direito deva ser exercido dentro de certo prazo, são aplicáveis as regras da caducidade, a menos que a lei se refira expressamente à prescrição.
O instituto da caducidade funda-se em razões de certeza jurídica, na medida em que certos direitos devem ser exercidos durante certo prazo, para que ao fim desse tempo fique inalteravelmente definida a situação jurídica das partes. É de interesse público que tais situações fiquem, assim, definidas duma vez para sempre, com o transcurso do respetivo prazo (in Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, 1987, vol. II, p. 464).
Ensinam Pires de Lima e Antunes Varela (in Código Civil Anotado, vol. I, 2.ª ed., pp. 372/373) que se o titular do direito de preferência não propuser a ação nos seis meses seguintes ao conhecimento dos elementos essenciais da alienação e não depositar o preço nos 15 dias seguintes à respetiva propositura o direito de preferência caduca.
O art.º 331.º/1 do C.C. estabelece com carácter taxativo as causas impeditivas da caducidade, a saber, a prática, dentro do prazo legal ou convencional, do ato a que a lei ou convenção atribua efeito impeditivo (n.º 1).
Os prazos de caducidade não se suspendem nem se interrompem, senão nos casos em que a lei o determine (art.º 328.º do C.C.).
Só impede a caducidade a prática, dentro do prazo legal ou convencional do ato a que a lei ou convenção atribua efeito impeditivo (art.º 331.º/1 do C.C.).
Leia-se o ac. da Relação de Guimarães de 23-4-2020 (proc. 446/19.0T8CHV.G1, Anizabel Sousa Pereira): o prazo de 15 dias para o depósito do preço aludido no artigo 1410.º do CC é um prazo substantivo e de caducidade e, como tal, não se suspende nem se interrompe senão nos casos determinados na lei (art.º 328.º do CC) (…).
Neste sentido, vejam-se ainda o ac. do S.T.J. de 8-1-2015 (proc. 164/09.8TCLRS.L1.S1II, Granja da Fonseca), o ac. da Relação de Coimbra de 2-6-2009 (proc. 1015/07.3TBLRA.C2, Arlindo Oliveira) e o ac. da Relação de Évora de 26-5-2022 (proc. 108/21.9T8ALR.E1, Rui Machado e Moura).
A caducidade só seria, pois, impedida pela prática, dentro do prazo legal, do ato a que a lei atribui efeito, no caso concreto, o depósito do preço.
Compreende-se a exigência do depósito do preço num prazo curto após a propositura da ação, diversamente do que se verificava na vigência do Código Civil de 1867, em que o depósito só tinha que ser realizado antes da entrega da coisa preferida (§ 1.º do art.º 1566.º). Cumpre garantir a utilidade da ação, forçando o preferente a apresentar de imediato os meios necessários à aquisição que se propõe e não deixar prosseguir a ação, ficcionando que o autor dispõe desses meios, o que se pode vir a verificar não ser verdade.
O caso concreto é expressivo sob esse ponto de vista, já que a ação foi intentada a 30-8-2023 e volvidos que são, à data, cerca de nove meses não há notícia do depósito do valor da venda.
Por outro lado, o A. alegou que na data da escritura de compra e venda não se poderia ter deslocado a Lisboa em face das condições climatéricas que aí se fizeram sentir nesse dia, mas a verdade é que deixa bem claro que não reunia as condições financeiras para preferir. O A. explicita que precisa de recorrer a empréstimo bancário para poder fazer face à aquisição e que o modo pelo qual lhe foi dado conhecimento de que existia a intenção de venda o impede de recorrer ao crédito. Isto porque as entidades bancárias exigiriam a celebração de um contrato-promessa prévia ao contrato definitivo.
Sob esta ótica, mal se compreende o pedido do A. de que o tribunal, excecionalmente, lhe conceda um prazo adicional para depósito do preço. É que a sua condição de base, que invoca como inviabilizadora da celebração do contrato-promessa, entenda-se, a ausência de possibilidade de celebrar contrato-promessa com o senhorio, se mantém inalterada.
Já se vê que as regras do contrato de arrendamento ignoram tal problemática. Visam tão só que ao titular de direito de preferência seja facultada a possibilidade de preferir, mas não lhe conferem esse direito a todo o custo. O preferente há de ser inteirado das condições essenciais da compra e venda, como sejam o preço, a identidade do comprador e a data prevista para a escritura, não exigindo, porém, a lei que lhe seja concedida a possibilidade de preferir sem limitações. O preferente há de poder exercer o direito nas exatas condições que são concedidas ao proponente da compra.
Não se subestimam as eventuais dificuldades do titular do direito de preferência. Vejam-se as considerações de Pires de Lima e de Antunes Varela, em anotação ao art.º 1410.º do C.C. (in Código Civil Anotado, vol. III, 2.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1984, p. 373): a exigência do prévio depósito do preço constitui uma garantia para o alienante, pondo-o a coberto do risco de perder o contrato com o adquirente e não vir a celebrá-lo com o preferente, por este se desinteressar entretanto da sua realização ou não dispor dos meios necessários para esse efeito (…).
Em súmula, não suscita dúvidas entre a doutrina e jurisprudência que a consequência da não realização do depósito do preço devido dentro do prazo fixado no art.º 1410.º/1 do C.C. resida, naturalmente, na caducidade do direito de preferir.
Em concreto, o A. dispôs de um prazo de seis meses para a propositura da ação, a que acresceu um prazo de 15 dias para o depósito do preço. Beneficiou de um lapso de tempo que não pode deixar de ser considerado razoável para a obtenção dos fundos necessários ao pagamento do preço - é certo que o A. objeta que a entidade bancária a que teria que recorrer para se financiar quereria ver celebrado contrato promessa prévio à compra e venda, supõe-se que para efeitos de dar início aos trâmites da garantia hipotecária. A lei, sem embargo, não contempla tais considerandos, nem contemporiza com delongas acrescidas. Repete-se, o direito de preferência não é um direito a exercer a todo o custo e ao arrepio do que possam ser os interesses e eventual urgência do senhorio. O arrendatário tem a hipótese de se tornar proprietário apenas se o proprietário do imóvel se propuser vender o arrendado e acaso disponha de condições para a celebração do negócio.
Volvido que está - há muito - o prazo de 15 dias, extinguiu-se inexoravelmente o direito que o A. pretende exercitar, isto é, preferir na compra do imóvel de que é arrendatário.
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d - Se o direito à habitação deve obstaculizar à caducidade do direito de preferência
O A. suscita a questão da inconstitucionalidade da interpretação dada na sentença recorrida ao disposto no art.º 1410.º do C.C., fazendo prevalecer o requisito de depósito do preço nos quinze dias seguintes à propositura da ação, previsto no art.º 1410.º do CC, aplicável ex vi art.º 1091.º do C.C., sobre o direito à habitação.
Para além da argumentação por si explanada a propósito das demais questões recursivas, o apelante recorda que a 2.ª R., a “D..., S.A.”, em Julho de 2023, o notificou da oposição à renovação do contrato de arrendamento, sendo data da cessação o passado dia 31-12-2023. Assim, a manter-se a decisão recorrida, cessará a sua posição de arrendatário, sendo desalojado enquanto inquilino.
Prevê o art.º 65.º da Constituição da República Portuguesa (C.R.P.), sob a epígrafe habitação e urbanismo que todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar.
Para assegurar o direito à habitação, incumbe ao Estado, em colaboração com as regiões autónomas e com as autarquias locais, promover e executar uma série de atividades, nomeadamente uma política de habitação, a construção de habitações económicas e sociais, estimular a construção privada, ou incentivar e apoiar as iniciativas das comunidades locais e das populações, tendentes a resolver os respetivos problemas habitacionais (n.º 2 do mesmo art.º).
O Estado adotará uma política tendente a estabelecer um sistema de renda compatível com o rendimento familiar e de acesso à habitação própria (n.º 3).
O Estado, as regiões autónomas e as autarquias locais definem as regras de ocupação, uso e transformação dos solos urbanos, designadamente através de instrumentos de planeamento, no quadro das leis respeitantes ao ordenamento do território e ao urbanismo, e procedem às expropriações dos solos que se revelem necessárias à satisfação de fins de utilidade pública urbanística (n.º 4).
Sendo inegável que o direito à habitação deve ser visto como uma projeção da dignidade humana (cf. ac. do Tribunal Constitucional 507/94, de 14-7-1994, processo 129/93, Ribeiro Mendes, consultável in www.tribunalconstitucional.pt), tem como sujeito passivo o Estado, que não os proprietários de habitações ou os senhorios (cf. ac. do Tribunal Constitucional 581/2014, de 17-9-2014, , proc. n.º 650/12, José Cunha Barbosa).
Jorge Miranda e Rui Medeiros (in Constituição Portuguesa Anotada “, vol. I, p. 665) escrevem: o direito à habitação não se confunde com direito de propriedade, mesmo na sua dimensão positiva enquanto direito à aquisição de propriedade. O direito à habitação, por si só, “não se esgota ou, ao menos, não aponta, ainda que de modo primordial ou a título principal, para o direito a ter uma habitação num imóvel da propriedade do cidadão.
O direito à habitação é constitucionalmente salvaguardado através de norma de índole programática, por cujo preenchimento os RR. não são iniludivelmente responsáveis. Já os precisos termos em que opera o direito de preferência na aquisição de imóvel pelo arrendatário estão pormenorizadamente enunciados e são adequados à salvaguarda dos legítimos interesses do inquilino. Esses interesses hão de ser exercidos em condições de igualdade com os do proponente comprador, mas não se podem superiorizar aos deste, nem ao legítimo propósito do senhorio de vender o imóvel em determinadas condições, assinaladamente, temporais.
O direito à habitação previsto na Lei Fundamental não é o direito a habitar uma determinada casa, com aquelas precisas caraterísticas, mas um direito em abstrato.
O direito de preferência do arrendatário não visa salvaguardar a expetativa do A. de se manter na casa em que, segundo alega, reside há mais de duas décadas, mas sim conferir-lhe a possibilidade de preferir ao potencial comprador, nas condições de igualdade possíveis.
Aliás, segundo o próprio apelante, não é a não aquisição da fração em causa que lhe veda o direito a manter-se nesta, mas sim a ulterior oposição da 2.ª R. à renovação do contrato de arrendamento. Ora já se vê que essa é matéria que não cabe no âmbito da presente ação.
Conclui-se, em síntese, que também nesta sede não assiste razão ao recorrente.
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V - Dispositivo
Nos termos sobreditos, acorda-se em julgar improcedente o recurso, mantendo-se a decisão recorrida.
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Custas pelo apelante, por ter soçobrado na sua pretensão (art.º 527.º/1/2 do C.P.C.).
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Porto, 17-6-2024
Teresa Fonseca
Carlos Gil
Fernanda Almeida