Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
180/21.1GCSTS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FRANCISCO MOTA RIBEIRO
Descritores: AUDIÊNCIA
ARGUIDO PRESO
NOTIFICAÇÃO
REQUISIÇÃO
GREVE
FALTA DO ARGUIDO
CONSEQUÊNCIAS
INSUFICIÊNCIA DA MATÉRIA DE FACTO
REENVIO
Nº do Documento: RP20240612180/21.1GCSTS.P1
Data do Acordão: 06/12/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL (CONFERÊNCIA)
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE O RECURSO INTERPOSTO PELO ARGUIDO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Consumada a notificação do arguido através de requisição dirigida ao diretor do estabelecimento prisional onde se encontrava detido à ordem de outro processo, não sendo possível assegurar a sua comparência na primeira data designada, e considerando-se não ser absolutamente indispensável para a descoberta da verdade material a sua presença desde o início da audiência de julgamento, ao abrigo do art.º 333º, nºs 1 e 2, do CPP haverá fundamento legal para que se dê início à mesma, por iniciativa do tribunal, assegurado que fique o direito do arguido vir a prestar declarações até ao encerramento da audiência.
II - Não se vislumbra, pois, fundamento para que seja invocada a nulidade insanável a que alude o art.º 119, al. c), do CPP, por nas referidas circunstâncias a lei não exigir a efetiva comparência do arguido na primeira data em que teve lugar a audiência, sendo certo ainda que o arguido veio a comparecer na segunda data designada para a sua continuação, aí confessando de forma livre, integral e sem reservas os factos que lhe vinham imputados na acusação, não questionando as inquirições das testemunhas anteriormente realizadas, ou a necessidade de reexame da prova anteriormente produzida, nem mesmo a produção de novas provas que considerasse necessárias à descoberta da verdade material, fazendo-o ademais em circunstâncias nas quais lhe foram asseguradas todas as garantias de defesa.
III- Existirá vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a que alude o art.º 410º, nº 2, al. a), do CPP, a justificar o reenvio do processo para um novo julgamento, quando conclusivamente se diz na fundamentação da decisão de facto constante da sentença recorrida que o arguido “descreveu a motivação” que o levou a praticar os crimes de que vinha acusado, sem que na mesma sentença se descrevam factos que pudessem espelhar uma qualquer concreta motivação do arguido, ou ainda quando da mesma decisão se não descortina a existência de qualquer facto sobre as condições pessoais e socioeconómicas do arguido, factualidade consabidamente relevante para a determinação da pena, nos termos previstos no art.º 71, nº 2, al. c) e d), do CP.

(Sumário da responsabilidade do Relator)
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 180/21.1GCSTS.P1 - 4.ª Secção

Relator: Francisco Mota Ribeiro

Sumário

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Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto

1. RELATÓRIO

1.1 Após realização da audiência de julgamento no Processo nº 180/21.1GCSTS, que corre termos no Juízo Local Criminal de Santo Tirso, Tribunal Judicial da Comarca do Porto, por sentença de 05/02/2024, foi decidido o seguinte:

“Face ao exposto, julgo procedente a acusação pública e consequentemente condeno o arguido AA, pela prática de três crimes de furto, previstos e punidos pelo artigo 203.º, n.º 1, do Código Penal, na pena, por cada um deles, de 100 (cem) dias de multa;-

Em cúmulo jurídico das penas, condenar o arguido na pena única de 250 (duzentos e cinquenta) dias de multa à taxa diária de € 5,00, perfazendo a quantia global de € 1.250,00 (mil duzentos e cinquenta euros);-

Julgo procedente o pedido de indemnização formulado pelo demandante A... e consequentemente condeno o arguido no Pedido de Indemnização formulado nos autos, ou seja condeno-o ao pagamento da quantia de cento e dezanove euros e noventa e quatro cêntimos, quantia acrescida de juros legais desde a notificação para contestar. -

Condenar ainda a arguida no pagamento das custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 2 UC - art.º 8º, n.º 9 do RCP e Tabela III.-”

1.2. Não se conformando com tal decisão dela veio interpor recurso o arguido, apresentando motivação que termina com as seguintes conclusões:

“1) O recorrente, sem que em tal tenha consentido, e por motivo que não lhe é imputável e a que é alheio, não esteve presente na 1ª sessão da audiência de julgamento;

2) Não se tendo verificado os pressupostos legais para que a audiência de julgamento se iniciasse sem a presença do arguido, foi violado o direito de o arguido estar presente desde o início da audiência de julgamento;

3) Tal início da audiência do julgamento sem a presença do arguido é sancionada como nulidade insanável nos termos prevenidos no art.º 119 al c), do CPP;

4) Nulidade que afeta a audiência de julgamento e a douta sentença proferida, nos termos do art.º 122 nºs 1 e 2, do CPP, tornando-as inválidas;

5) Há insuficiência para a decisão de matéria de facto dada por provada, havendo factos resultantes da discussão da causa, dados por ocorridos na audiência de julgamento como decorre do próprio texto da douta sentença recorrida e que não constam na matéria de facto dada por provada;

6) Pelo que, impugna a matéria de facto dada por provada no sentido de que há omissão nela de que o arguido confessou os factos e mostrou arrependimento;

7) Tendo o arguido confessado os factos, confissão essa que foi livre integral e sem reservas (cf. pág. 2 meio da pág. da ata da sessão de 5/2/2024), e por a confissão ser um facto relevante para a decisão, devia constar da matéria de facto provada;

8) Do mesmo modo o arrependimento do arguido que devia constar da matéria de facto provada;

9) Devia a douta sentença recorrida ter extraído os efeitos que decorriam para a medida da pena, da confissão dos factos e do arrependimento do arguido;

10) Tendo o arguido descrito a motivação dos factos, devia a douta sentença recorrida explicitar qual a motivação descrita pelo arguido pela prática dos factos;

11) O Mmo. Juiz “a quo” não indagou das condições pessoais e financeiras do arguido, nada constando nesse sentido da matéria de facto provada ou não provada.

12) Deve o arguido ser condenado por um único crime de furto simples e não três crimes de furto simples;

13) Se assim se não entender, haverá então dois crimes de furto simples e não três, pois não é por no dia 5 a que alude a acusação continuarem as subtrações da parte da tarde, que importa mais outro crime;

14) Destarte, se se entender que há pluralidade de resoluções criminosas, então estamos perante crime continuado de furto simples uma vez que houve uma facilitação externa da atuação do arguido que diminui consideravelmente a sua culpa;

15) A norma que dimana dos arts. 332º, nº 1, do CPP, 333 nºs 1 e 2, e 334 nºs 1 e 2 , 119 al c) , 122 nºs 1 e 2, do CPP, na interpretação feita no sentido de que a falta do arguido na audiência de julgamento desde o seu inicio , sem que o arguido em tal tenha consentido, e por motivo que não lhe é imputável e a que é alheio, de que não tem como consequência a ocorrência de nulidade insanável que importa a invalidade da audiência de julgamento e da sentença, é inconstitucional por violar o direito do arguido estar presente na audiência de julgamento e das garantias de defesa consagradas na Constituição da República ;

16) A norma que provém dos arts. 374 nº 2, 379 nº 1 al c) primeira parte, 410 nº 2 al. a), do CPP, na interpretação segundo a qual constando do texto da sentença que o arguido fez confissão livre integral e sem reservas dos factos de que é acusado, de que tal confissão não tem de constar da matéria de facto provada e de que não ocorre nulidade da sentença por tal omissão, é inconstitucional por violação das garantias de defesa tuteladas pela Constituição da República Portuguesa.

17 ) A douta sentença recorrida violou o nº 1 al. a) do art.º 61 do CPP , o art.332 nº 1 do CPP , art.º 119 al c) , do CPP, art.º 122 nºs 1 e 2, do CPP, al. a)do nº 2 do art.410 do CPP, alínea c) primeira parte do nº 1 do art.379 do CPP,374 nº 2 do CPP, nº 4 do art.º 374º do CPP (houve confissão integral e sem reserva dos factos pelo arguido ) , al. d) do nº 2 do art.71 do C P, art.30 do CP, e o art.º 32º nº 1 , da Constituição da República.”

1.3. O Ministério Público respondeu, concluindo pela concessão de provimento ao recurso, na parte em que o arguido entende ter cometido um único crime de furto, na forma continuada, nos termos do art.º 30º, nº 2, do CP.

1.4. O Exmo.  Senhor Procurador-Geral-Adjunto, junto deste Tribunal, emitiu douto parecer, no qual concluiu pela negação de provimento ao recurso, nos seguintes termos:

3. Como anteriormente referimos, entendemos dever manter-se a condenação do arguido pela prática de três crimes de furto.

Com efeito, podemos entender que, em cada um dos dias em que agiu, o arguido tomou desde logo a resolução de retirar duas garrafas, efetuando duas deslocações apenas devido à maior dificuldade que o transporte de duas garrafas duma só vez lhe acarretaria, e pesando também o acréscimo de risco de ver-se surpreendido, que tal envolveria.

Contudo, já o seu regresso em dias diversos e, também num mesmo dia, mas com intervalos temporais mais dilatados, como verificado no período da manhã e da tarde, do dia 5 de abril, entendemos tratarem-se de atuações a que correspondem sucessivas renovações da resolução criminosa, verificadas em três ocasiões distintas.

Mas a verdade é que nem sequer se mostra elencada como provada qualquer factualidade que nos permita, sequer, afirmar que o arguido teve as suas atuações facilitadas pelo facto de ser sabedor “que na zona da garrafeira do supermercado “A...” de ... não estava operacional qualquer serviço de vigilância, quer presencial, quer por outros meios”, como é referido na resposta do Exm.º Colega.

Ora, não se tratando sequer de matéria que haja sido dada como provada, nunca poderia o tribunal vir a proceder à condenação do arguido pela prática de um crime continuado, por não dispor de factualidade provada que assim o habilitasse.

Na verdade, a entender-se que tal situação se tratava de circunstância apta a diminuir a culpa do arguido, então a mesma deveria ter sido descrita na acusação, em obediência ao determinado pelo n.º 3 do artigo 283.º do CPP.

Não o tendo sido, o tribunal só poderia socorrer-se de tal factualidade na sua decisão, procedendo a uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação, nos termos do disposto nos artigos 258.º do CPP.

Ainda assim sempre diremos que, em nosso entender, a situação invocada (inexistência de qualquer serviço de vigilância, quer presencial, quer por outros meios) apesar de constituir uma circunstância externa ao arguido, não é de molde a diminuir sensivelmente a sua culpa, pelo que bem se compreende que o tribunal nenhuma menção haja feito a tal facto, por ser inócuo para a decisão.”

1.5. Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, tendo o arguido respondido ao parecer, concluindo como no recurso interposto.

1.6. Tendo em conta os fundamentos do recurso interposto, ademais os poderes de cognição deste Tribunal, importa antes de mais apreciar e decidir se a sentença recorrida padece dos vícios de falta de fundamentação ou de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1. Factos a considerar

2.1.1. Na sentença recorrida foi considerada provada a seguinte factualidade:

“1. No dia 04 de abril de 2021, pelas 10h, o arguido deslocou-se no veículo automóvel da marca Citroen, com a matrícula ..-..-OB até ao supermercado denominado “A...” sito em ..., Trofa, tendo estacionado o veículo no parque de estacionamento.

2. Pelas 10h32, quando já se encontrava no interior desse supermercado, o arguido deslocou-se à zona da garrafeira e apoderou-se de uma garrafa de whiskey da marca ..., n valor de 19,19€.

3. De seguida saiu da loja sem efetuar o respetivo pagamento.

4. Pelas 10h41m do mesmo dia, o arguido, sem já estar na posse da referida garrafa, voltou a entrar no mesmo supermercado e deslocou-se mais uma vez à zona da garrafeira, tendo desta vez se apoderado de mais uma garrafa de whiskey da mesma marca e valor unitário.

5. O arguido voltou a sair da loja sem efetuar o respetivo pagamento.

6. No dia 05 de abril de 2021, pelas 10h, o arguido deslocou-se novamente no mesmo veículo automóvel até ao citado supermercado.

7. Quando já estava no interior do supermercado dirigiu-se à zona da garrafeira e apoderou-se de uma garrafa de whiskey da marca ..., no valor de 19,99€.

8. Tal como ocorrido nas situações anteriores o arguido saiu da loja sem efetuar o respetivo pagamento.

9. Passados cerca de cinco minutos o arguido, sem já estar na posse da referida garrafa, voltou a entrar no mesmo supermercado e deslocou-se mais uma vez à zona da garrafeira, tendo desta vez se apoderado de mais uma garrafa de whiskey da mesma marca e valor unitário.

10. De seguida saiu da loja sem efetuar o respetivo pagamento.

11. Ainda no dia 05 de abril de 2021, pelas 18h09, o arguido voltou a entrar no mesmo supermercado e apoderou-se de outra garrafa de whiskey da mesma marca e valor unitário.

12. De seguida saiu da loja sem efetuar o respetivo pagamento.

13. Pelas 18h17m o arguido voltou a entrar no supermercado e apoderou-se de outra garrafa de whiskey com as mesmas características e valor comercial.

14. De seguida saiu da loja sem efetuar o respetivo pagamento.

15. Com as suas condutas o arguido apropriou-se de bens que ascendem ao valor 119,94€.

16. O arguido agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente, com o propósito concretizado de subtrair e fazer suas as referidas garrafas de whiskey, bem sabendo que as mesmas não lhe pertenciam e que ao não proceder ao seu pagamento atuava contra a vontade do proprietário.

17. O arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.


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O arguido tem os seguintes antecedentes criminais:-

- o arguido foi condenado, por sentença transitada em julgado em 06-04-2022, no âmbito do processo 72/21.4GCSTS, por crime de condução de veículo em estado de embriaguez, na pena de 50 dias de multa;

- o arguido foi condenado, por sentença transitada em julgado em 15-06-2023, no âmbito do processo 159/21.3GCSTS, por crime de furto simples, na pena de 7 meses de prisão suspensa por um ano e 6 meses;”

Factos do Pedido de indemnização civil

A demandante sofre prejuízo no montante de 119,94 euros sendo o valor dos bens furtados e não recuperados.”

2.1.3. O Tribunal a quo motivou a decisão de facto, nos seguintes termos:

“A convicção do Tribunal, no que concerne à matéria de facto dada como provada fundou-se na análise crítica da totalidade da prova produzida.

Concretizando:

Ponderou-se as declarações confessórias do arguido, que confrontado com os factos e meio de prova confessou os factos, mostrou arrependimento e descreveu a motivação dos mesmos. Ponderou-se igualmente o depoimento de BB, diretor do A... da Trofa que nessa qualidade acedeu às imagens e depois constataram que o arguido subtraia as garrafas de whiskey e depois dirigia-se ao carro deixando-as lá sem que procedesse ao seu pagamento.

Procedeu-se igualmente à inquirição de CC, que referiu que o arguido trabalhou consigo, sabe vagamente dos furtos, não sabendo nada em concreto e ponderou-se igualmente o teor da prova documental junta aos autos, nomeadamente as imagens retratadas nos autos nomeadamente a fls. 16 e as fotos constantes de fls. 40 e seguintes em que se constata que o suspeito ora arguido efetivamente dirige-se à parte onde tem os destilados e retira garrafas sem proceder ao seu pagamento, facto que o arguido confessou e a prova documental apresentada pela demandante.

 O arguido tem antecedentes criminais, conforme resulta do Certificado de Registo Criminal junto aos autos.”
2.2. Fundamentos fáctico-conclusivos e jurídicos

Alega o recorrente que, “sem que em tal tenha consentido, e por motivo que não lhe é imputável e a que é alheio, não esteve presente na audiência de julgamento desde o seu início ou seja tendo a audiência de julgamento comportado duas sessões, não esteve presente na 1ª sessão”. Acrescentando que não esteve presente na primeira sessão da audiência realizada em 31/1/2024, por os serviços prisionais não o terem transportado ao edifício do Tribunal e o Tribunal ter entendido “que não era necessária a presença do arguido desde o início do julgamento, ordenando o começo da audiência de julgamento sem a presença do arguido”.

O Ministério Público respondeu, alegando que a não comparência do arguido se deveu ao facto de os guardas prisionais se encontrarem em greve e assim não ser possível assegurar a sua presença na primeira sessão da audiência de julgamento. Acrescentando que nessa sessão da audiência de julgamento o arguido se encontrava representado pelo seu Il. Defensor, que ao longo de toda a sessão não se opôs à decisão do Tribunal de dar início à audiência de julgamento na ausência do arguido.

Ao contrário do que estipula o nº 1 do art.º 333º (julgamento na ausência do arguido por iniciativa do tribunal), parece resultar claramente do art.º 334º, nº 2, do CPP (julgamento na ausência por iniciativa do próprio arguido), nas circunstâncias de impossibilidade de comparência do arguido à audiência de julgamento aí previstas, que o exercício do direito do arguido a requerer ou a consentir que tal audiência se realize na sua ausência, apenas ao próprio caberá, pessoalmente ou através do seu defensor, mas nesta última hipótese desde que o defensor se encontre munido de procuração com poderes especiais para o efeito[1].

Assim sendo, e não resultando dos autos o referido consentimento, nos termos e condições legalmente exigidas, resta-nos apurar a possibilidade de o julgamento poder ter tido lugar na ausência do arguido, por iniciativa do próprio Tribunal, nos termos previstos no art.º 333º, nº 1, do CPP, quando diz: “Se o arguido regularmente notificado não estiver presente na hora designada para o início da audiência, o presidente toma as medidas necessárias e legalmente admissíveis para obter a sua comparência e a audiência só é adiada se o tribunal considerar que é absolutamente indispensável para a descoberta da verdade material a sua presença desde o início da audiência.”

Recordemos que, no caso dos autos, a notificação do arguido para comparecer à audiência de julgamento na data designada foi consumada através de requisição dirigida ao diretor do estabelecimento prisional onde o arguido se encontrava detido à ordem de outro processo, nos termos previstos no art.º 114º, nº 1, do CPP, e ainda que o não comparecimento do arguido à primeira sessão da audiência de julgamento se deveu à impossibilidade de o mesmo ser transportado para o Tribunal, como resulta da ata da audiência de 31/01/2024, onde se consignou o seguinte: “Iniciada a presente diligência foi dado conhecimento ao Meritíssimo Juiz, ao Digníssimo Procurador e ao Ilustre Defensor do Arguido de que, após ser encetado contacto telefónico com o Estabelecimento Prisional, pelo mesmo foi informado de que os Guardas Prisionais se encontravam em greve, e por esse motivo não é possível o transporte do Arguido para a presente diligência.” Tendo de seguida sido proferido o seguinte despacho: “Considerando que não se encontra presente o Arguido pelos motivos acima explanados, o Tribunal entende não ser necessária a presença do arguido desde o início do Julgamento, razão pela qual passa-se de imediato à produção de prova com a inquirição das Testemunhas arroladas pelo Ministério Público na Acusação, sem prejuízo de o Arguido ser interrogado mais tarde.

Importa agora referir que a ausência de qualquer fundamento dos previstos no art.º 103º, nº 2, do Código de Processo Penal, implicava considerar que a audiência de julgamento não era um ato urgente. Tal facto, tendo ademais presente o direito fundamental à greve, com previsão constitucional no art.º 57º da Constituição da República, cujo nº 3 apenas permite sejam impostas limitações a um tal direito quando esteja em causa a realização de “serviços necessários à segurança e manutenção de equipamentos e instalações, bem como de serviços mínimos indispensáveis para ocorrer à satisfação de necessidades sociais impreteríveis”, e ainda o disposto no art.º 15º do Estatuto dos Guardas Prisionais (aprovado pelo DL n.º 3/2014, de 09/01), no qual apenas se prevê que seja “assegurada a apresentação imediata de recluso ou detido ao juiz, quando ordenado nos casos de habeas corpus, nos prazos legais estipulados pelo mesmo, e em todos os casos em que possa estar em causa a libertação de recluso ou detido, bem como a apresentação, no prazo de 24 horas, à autoridade judicial de pessoas que se apresentem em estabelecimentos prisionais e que declarem ter cometido um crime ou que contra eles haja ordem de prisão”, e não ocorrendo nos autos qualquer desses pressupostos, não podia o Tribunal a quo impor, por qualquer meio, a deslocação ao Tribunal do arguido, e desde logo sob pena de incorrer na violação das normas constitucionais e legais que tutelam o direito à greve. Podendo assim dizer-se que, com as diligências realizadas telefonicamente, junto do estabelecimento prisional no qual o arguido se encontrava detido, o Tribunal a quo tudo fez, no que era legalmente admissível, para assegurar a comparência do arguido na primeira sessão da audiência de julgamento. E, não sendo tal comparência possível[2], por ademais considerar que não era absolutamente indispensável a presença do arguido naquela primeira sessão, determinou, como manda o art.º 333º, nº 1, do CPP, que o adiamento da audiência não tivesse lugar, sem prejuízo de ficar sempre assegurado o direito de o arguido prestar declarações até ao encerramento da audiência, o que aquele veio a fazer, na sessão seguinte, realizada a 05/02/2024, sessão na qual, aliás, o arguido declarou que pretendia prestar declarações e, prestando-as, confessou os factos de que vinha acusado, de forma livre, integral e sem reservas – cf. ata de julgamento do dia 05/02/2024.

Ou seja, a realização da primeira sessão da audiência de julgamento, no dia 31/01/2024, na ausência do arguido, foi levada a cabo por determinação do Tribunal  a quo ao abrigo do art.º 333º, nº 1, do CPP, por considerar que a presença do arguido não era absolutamente indispensável, circunstância que não foi posta em causa, nem pelo Il. Defensor do arguido, nem por este quando foi ouvido na segunda sessão dessa audiência de julgamento, nem se vislumbram razões que pudessem levar a considerar que aquela presença seria absolutamente indispensável na primeira sessão, tanto mais quando qualquer questionamento que pudesse ser feito sobre o quando e o como em que a produção da prova dos factos em causa nos autos havia sido feita na fase inicial da audiência, foi categoricamente afastado pela confissão livre, integral e sem reservas dos factos que lhe vinham imputados, quando o arguido acabou por ser ouvido na segunda fase dessa mesma audiência,  renunciando assim também a qualquer questionamento sobre reinquirições de testemunhas, produção ou exame de provas anteriormente realizadas, ou outras que fundamentadamente pudessem servir uma qualquer necessidade de descoberta da verdade material, comprovando-se, também de um ponto de vista material, a desnecessidade do adiamento da audiência, nos termos inicialmente determinados pelo Tribunal recorrido. Tendo, pois, sido cumpridos os três requisitos referidos pelo Professor Paulo Pinto de Albuquerque, que a norma do art.º 333º, nº 1, do CPP e a realização da audiência de julgamento na ausência do arguido aí prevista comporta (“a. O arguido encontrar-se devidamente notificado para a mesma; b. O arguido não estar presente na hora e dia designados e c. O Tribunal considerar que não é absolutamente indispensável para a descoberta da verdade a presença do arguido desde o início da audiência”[3]), assim como foram asseguradas ao arguido todas as garantias de defesa, previstas nos art.ºs 333º, nºs 2 e 3, do CPP e 32º, nº 1, da CRP, tendo o arguido estado sempre representado pelo seu Defensor, e tendo ainda sido ouvido na audiência de julgamento, antes que fosse produzido qualquer juízo sobre a sua culpa, nos termos legalmente previstos, com todas as possibilidades de defesa de que se podia fazer valer ou usar antes de ser proferida a decisão final, renunciando inequivocamente à possibilidade de requerer a repetição de qualquer ato anteriormente realizado, ou a reinquirição ainda que parcial de qualquer testemunha anteriormente ouvida ou a produção de novos meios de prova que julgasse necessários à descoberta da verdade material, agindo, pelo contrário, de forma livre e sem reservas, em termos de, perante o Tribunal a quo, assumir a prática dos factos que lhe vinham imputados na acusação. Podendo assim dizer-se que, tendo tido lugar a primeira sessão da audiência de julgamento na ausência do arguido, em concordância com o legalmente estipulado, e tendo estado presente na segunda data designada para continuação da audiência de julgamento, pessoalmente, não é possível agora afirmar-se que o arguido esteve ausente em ato relativamente ao qual a lei exigisse a sua comparência, para que assim também se considerasse verificada a nulidade insanável, a que alude o art.º 119º, al. c), do CPP.

Razão por que, neste segmento, irá ser negado provimento ao recurso.

2.2.2. Da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada

Entende o arguido ter havido violação das normas dos art.ºs 374º, nº 2, 379º, nº 1, al. c), primeira parte, e 410º, nº 2, al. a) do CPP, por considerar ter confessado livre e integralmente os factos dados como provados e mostrado arrependimento e tal factualidade não constar dos factos dados como provados na sentença recorrida.

Comecemos por dizer que o apelo à norma do art.º 374º, nº 2, do CPP, levar-nos-ia, à partida, para a eventual existência de um vício de falta de fundamentação, caso se omitisse na sentença recorrida as menções referidas no n.º 2 e na alínea b) do n.º 3 do artigo 374.º, omissão que a existir seria fundamento para a nulidade da sentença, nos termos previstos no art.º 379º, nº 1, al. a), do CPP.

Não vemos, porém, onde possa existir tal vício, porquanto o mesmo pressuporia que a sentença recorrida não contivesse a enumeração dos factos provados e não provados, ou a exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a sua convicção, ou que aí se não tivesse decidido condenar ou absolver o arguido. E nada disso é dado descortinar na sentença recorrida.

Também sem delongas importa afastar a possibilidade da existência de um vício de omissão de pronúncia a que alude a al. c) do art.º 379º do mesmo diploma, ao estabelecer que é nula a sentença “Quando o Tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”. Mas as questões referidas em tal norma, são as fáctico-juridicamente constitutivas do objeto do litígio, os concretos problemas ou o dissídio a resolver, existindo um tal vício quando o tribunal as deixe de conhecer, como sucederá quando não conheça de todos os crimes imputados ao arguido na acusação ou não se pronuncie sobre o pedido de indemnização cível, ou sobre a prescrição do procedimento criminal, quando ela já tinha ocorrido à data da sentença, ou omita pronúncia sobre a aplicação de pena acessória, ou o perdão ou amnistia, quando aplicável, etc.. Nas palavras do Juiz Conselheiro Oliveira Mendes, a omissão de pronúncia terá por objeto a violação do dever de pronúncia “sobre questões e não sobre os motivos ou argumentos invocados pelos sujeitos processuais (…) em sustentação das questões que submetem à apreciação do tribunal, entendendo-se por questão o dissídio ou problema concreto a decidir e não os simples argumentos, razões, opiniões ou doutrinas expendidos pela parte em defesa da sua pretensão[4].

Assim sendo, é bom de ver que o facto que o recorrente considera relevante para a decisão da causa, e porque atine à matéria de facto necessária ao mérito daquela decisão, quando muito integraria o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a que alude o art.º 410º, nº 2, al. a), do CPP, ao estabelecer que “Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;”

Mas uma tal questão, no tocante à confissão, assim como ao arrependimento mostrado pelo arguido, é anódina, porquanto resulta da sentença recorrida que o recorrente confessou os factos dados como provados, porquanto nela se consignou que o arguido confessou os factos, “mostrou arrependimento e descreveu a motivação dos mesmos”. É isso que resulta da motivação da decisão de facto. Aliás como também da ata da audiência de julgamento do dia 05/02/2024. Ou seja, a ausência de uma correta arrumação formal de tal factualidade no lugar reservado na sentença para os factos dados como provados, não impediria que o Tribunal a quo, e por maioria de razão este Tribunal de recurso, a considerasse na decisão a proferir sobre o mérito da causa, porquanto da mesma sentença, ainda que na motivação da decisão de facto, tal factualidade resulta inequivocamente tida como provada, e assim nunca poderia este Tribunal determinar o reenvio do processo para novo julgamento, ainda que parcial, com esse fundamento, dado o disposto nos art.ºs 426º, nº 1, e 431º, al. a), do CPP.

Mas questão relevante é já, também segundo o recorrente, o Tribunal a quo não ter indagado sobre as suas condições pessoais e financeiras, nada constando nesse sentido na matéria de facto dada como provada.

Recordemos antes de mais que o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a que se refere o art.º 410º, nº 2, al. a), do CPP, pressupõe a identificação de um qualquer facto que devesse ter sido investigado pelo tribunal, facto esse considerado relevante para a decisão do mérito da causa, e que o mesmo não tivesse sido investigado, ou tendo-o sido não fosse objeto de decisão, quer o facto tivesse sido alegado pelo Ministério Público na acusação ou pelo arguido na contestação, ou ainda advindo ou não ao processo no decurso da audiência de julgamento, porquanto o tribunal, no âmbito dos poderes de cognição que lhe competem, face aos factos que constituem o objeto do processo[5], e nessa medida também o objeto da prova, nos termos previstos no art.º 124º do CPP, não pode deixar de fora da sua apreciação e julgamento facto ou factos que importe conhecer. Condição fundamental da verificação do vício previsto no art.º 410, nº 2, al. a), do CPP é, portanto, que o facto em causa seja juridicamente relevante para a boa decisão da causa, porquanto só estes têm a virtualidade de constituírem o objeto da prova, nos termos do art.º 124º do CPP, e ainda que tal vício resulte do próprio texto da decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum. É o que resulta do corpo do nº 2 do art.º 410º do CPP. Sendo que qualquer facto terá a virtualidade de se constituir como objeto de prova se for juridicamente relevante para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade do arguido e a determinação da pena ou da medida de segurança aplicáveis – art.º 124º do CPP.

Ora, a primeira interpelação que a sentença recorrida nos coloca é sobre os motivos que levaram o arguido a agir nos termos em que agiu. Não só porque tais motivos são relevantes para efeitos de determinação da pena, nos termos previstos no art.º 71º, nº 2, al. c), do CP, mas também porque o Tribunal a quo lhes fez expressa e conclusiva referência na motivação da decisão de facto, ao dizer que o arguido “descreveu a motivação dos mesmos”, mas sem que se descortine na decisão de facto proferida ou em qualquer lugar da sentença, factualidade concreta que nos permitisse saber que motivação foi essa que o Tribunal a quo referiu o arguido ter dito que o levou a agir nos termos em que agiu. Para além, obviamente, da básica intenção de se apropriar dos bens subtraídos ao legítimo proprietário que o preenchimento dos pressupostos do tipo de crime em causa exige. E uma tal questão é tão ou mais relevante quanto estranho é que o arguido se tenha deslocado ao mesmo estabelecimento comercial para furtar o mesmo tipo de objeto, ou seja, sempre uma garrafa de whisky, bebida de elevado teor alcoólico, portanto, da mesma marca e valor, e não outro objeto qualquer, desconhecendo-se a razão de assim ter agido, seis vezes seguidas, duas no mesmo dia, e quatro vezes no dia seguinte, e se as bebidas alcoólicas assim obtidas eram para seu consumo pessoal ou de terceiros, ou se foi para com elas depois obter proventos económicos.

Ao acabado de referir acresce a circunstância de na decisão recorrida não resultar qualquer facto sobre as condições pessoais do arguido, assim como a sua situação económica, factos que são também relevantes para a determinação da pena, nos termos previstos no art.º 71, nº 2, al. d), do CP.

Padece assim a sentença do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a que alude o art.º 410º, nº 2, al. a) do CPP.

Dada a impossibilidade, com base apenas no texto da decisão recorrida, ainda que conjugada com as regras da experiência comum, de este Tribunal suprir os referidos vícios e decidir da causa, irá determinar-se o reenvio do processo para um novo julgamento, circunscrito às questões de facto acima referidas, e outras relevantes que eventualmente possam surgir no âmbito do novo julgamento a realizar, nos termos das disposições conjugadas dos art.ºs 410.º, n.º 2, alínea a), 426.º e 426.º-A do CPP, cumprindo-se oportunamente, se necessário for, o disposto nos art.ºs 358º e 359º do CPP, tudo sem prejuízo, na decisão final que vier a ser proferida, do princípio da proibição da reformatio in pejus, e do disposto no art.º 40º do mesmo diploma, nomeadamente da sua al. c), ou seja, e quanto a este último normativo, devendo caber o novo julgamento ao mesmo Tribunal, não podendo, porém, nele intervir o Exmo. Juiz que proferiu a sentença recorrida, por para tal se encontrar legalmente impedido.

Razão por que irá ser concedido parcial provimento ao recurso interposto pelo arguido, ficando prejudicadas pela decisão ora proferida as demais questões suscitadas no recurso.
2.3. Responsabilidade pelo pagamento de custas

Uma vez que o recorrente não decaiu no recurso não é responsável pelo pagamento de custas (art.º 513.º, nº 1, do Código de Processo Penal).
3. DISPOSITIVO

Pelo exposto, concedendo parcial provimento ao recurso interposto pelo arguido, acordam os juízes da 2ª Secção Criminal (4ª Secção Judicial) deste Tribunal da Relação do Porto em determinar o reenvio do processo para novo julgamento, relativamente às questões de factos acima identificadas, nos termos dos art.ºs 410.º, n.º 2, alínea a), 426.º e 426.º-A do CPP, sem prejuízo do disposto no art.º 40º do mesmo diploma, e cumprindo-se se necessário for o disposto nos art.ºs 358º e 359º do CPP.

Sem custas


Porto, 2024-06-12
Francisco Mota Ribeiro
Maria Deolinda Dionísio
Paula Pires
__________________
[1] Cf., neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal
À luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Vol. II, 5ª Edição atualizada, UCP Editora, Lisboa, 2023, p. 314.
[2] Igual impossibilidade de comparência, teleologicamente, se verificaria, no caso de a mesma se dever a doença do arguido.
[3] Paulo Pinto de Albuquerque, Idem, p. 310.
[4] Oliveira Mendes, Idem, p. 1182; e ac. do STJ, de 15/12/2011, pº nº 17/09.0TELSB.L1.S1.
[5] Assim, Pereira Madeira, in Henriques Gaspar et al., Código de Processo Penal Comentado, Reimpressão da edição de fevereiro de 2014, Almedina, Coimbra, 2014, p. 1358.