Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | MANUELA MACHADO | ||
Descritores: | CONFISSÃO DA DÍVIDA CONFISSÃO DO DEVEDOR CONFISSÃO EXTRAJUDICIAL DOCUMENTO PARTICULAR CONTRATO DE MÚTUO FORMA NULIDADE | ||
Nº do Documento: | RP202406201029/22.3T8PVZ.P1 | ||
Data do Acordão: | 06/20/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | REVOGADA | ||
Indicações Eventuais: | 3. ª SECÇÃO | ||
Área Temática: | . | ||
Sumário: | I - A declaração constante de um documento escrito na qual uma pessoa se confessa devedor perante outra em razão de uma determinada causa constitui uma confissão extrajudicial escrita em documento particular. II - Nos termos do n.º 1 do artigo 376.º do Código Civil, o documento particular cuja autoria esteja reconhecida por confissão dos réus que admitiram que o documento foi subscrito por eles, faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, sem prejuízo da arguição e prova da falsidade do documento. III - Acresce que nos termos do n.º 2 do citado artigo 376.º, também se consideram provados os factos compreendidos na declaração na medida em que forem contrários aos interesses do declarante. IV - Declarada a nulidade do contrato de mútuo por falta de forma, o mutuário está obrigado a restituir o capital mutuado, com juros de mora a contar da citação, como consequência da declaração de nulidade. (da responsabilidade da Relatora) | ||
Reclamações: | |||
Decisão Texto Integral: | Apelação 1029/22.3T8PVZ.P1 Acordam na 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto: I - RELATÓRIO AA e BB intentaram ação declarativa sob a forma de processo comum, contra CC e marido, DD, pedindo a condenação dos réus a pagarem-lhes €250.000,00, acrescidos de juros vencidos no valor de €8.100,00, ou subsidiariamente, a declaração de nulidade do contrato de mútuo que é causa de pedir do pedido principal e a condenação dos réus a restituírem-lhes o mesmo valor de €250.000,00. Para tanto alegaram, em suma, que os réus emitiram uma confissão de dívida no valor peticionado, com fonte em mútuo celebrado por si e por EE, de quem são únicos e universais herdeiros. Os réus apresentaram contestação, alegando que apenas receberam dos autores o valor de €30.000,00, no que se reporta à declaração junta aos autos. No mais impugnaram a factualidade alegada pelos autores e as conclusões de direito, concluindo pela improcedência da ação. * Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença, onde se decidiu: “Pelo exposto decide-se: A) Julgar a presente acção parcialmente procedente e, em consequência, declarar nulo o contrato de mútuo descrito em c) dos factos provados e, em consequência, condenar os réus a pagar aos autores trinta mil euros (€30.000,00), acrescidos de juros, contados desde a citação até integral pagamento, à taxa legal para juros civis; B) Julgar a presente acção improcedente no restante e, em consequência, absolver os réus do restante pedido contra si formulado. Custas por autores e réus, na proporção do decaimento, que se fixa em 88,38% para os autores e 11,62% para os réus.”. * Não se conformando com o assim decidido, vieram os autores interpor o presente recurso, que foi admitido como apelação, a subir nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo, formulando as seguintes conclusões: “1 – Nunca os RR./recorridos impugnaram as assinaturas nem o conteúdo do mesmo. 2 – Um documento particular cuja autoria (assinatura) não se encontra impugnada, tem o valor probatório previsto no artigo 376.º, nº 1, do Código Civil, ou seja, faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, sem prejuízo da arguição e prova da falsidade do documento. 3 – Portanto, aceitando a assinatura do documento e as consequências legais disso, em concreto fazendo aquele prova plena, cumpria aos RR. provar que o que lá dizia era falso, porque, afinal, só tinham recebido €30.000,00 de €250.000,00. 4 – Apenas se limitaram a impugnar, a dizer que não receberam mas não juntaram qualquer documento de valor e probidade equivalente à tal “confição de dívida”. 5 – Aliás, nem se percebe bem como é que o Tribunal, com base num mesmo documento de €250.000,00 entende que €220.000,00 não são devidos mas €30.000,00 já o são … 6 – O depoimento da ré não tem qualquer credibilidade, por si, e pelo curriculum de processos de dívidas que acumula. 7 – O montante em causa corresponde a quantias entregues e não em quantias a entregar. 8 – O depoimento da A. e do filho, também A., são os únicos coerentes e consentâneos com a experiência de vida, pois ninguém entrega, nem sequer possui em casa, uma tal quantidade de dinheiro. 9 – Por isso, mal andou o Tribunal ao avaliar a prova e ao dar como não provado que a autora AA ou EE tenham entregue aos réus, ao longo de vários anos mais €220.000,00 em dinheiro, que estes usaram em proveito comum do casal. 10 – A sentença recorrida viola os artigos 363.º, n.º 2, e artigo 376.º, n.º 1, do Código Civil. 11 – E, também, andaram mal os RR. porque conscientemente querem inverter a razão de ser e, por isso, agem com manifesta má fé, pelo que devem ser condenados em multa nunca inferior a 10.000,00 euros. Termos em que deve ser dado provimento ao recurso, anulando-se a sentença recorrida, e condenando-se os RR. como litigantes de má fé em multa e indemnização não inferior a 10.000,00 euros.”. Os recorridos apresentaram contra-alegações, concluindo pela improcedência da apelação e pela manutenção da sentença recorrida. * Após os vistos legais, cumpre decidir. * II - DO MÉRITO DO RECURSO 1. Objeto do recurso O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. arts. 635º, nº 4, 637º, nº 2, 1ª parte e 639º, nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil. Atendendo às conclusões das alegações apresentadas pelos apelantes, são as seguintes as questões a apreciar: - Se ocorre erro de julgamento, por errada apreciação das provas, e consequente alteração da decisão da matéria de facto; - Decidir se em conformidade, face à alteração, ou não, da matéria de facto e subsunção dos factos ao direito, deve ser alterada a decisão de direito; - Se os réus devem ser condenados como litigantes de má fé. * 2. Sentença recorrida 2.1. O Tribunal de 1ª Instância considerou provada a seguinte matéria de facto: a) Por escritura pública de 2 de Setembro de 2021, exarada de fls. 31ª 31, verso, no livro de notas para escrituras diversas n.º ...32, do Cartório Notarial de Vila do Conde de FF, com certidão junta como documento n.º 1 junto com a petição inicial, cujo conteúdo aqui dou por reproduzido, AA declarou nomeadamente, em simultâneo com a apresentação das correspondentes certidões, que EE falecera em 29 de Agosto de 2021, no estado de casado com a declarante, sucedendo-lhe como herdeiros a declarante e o seu filho, BB; (alínea a) dos factos assentes) b) Os réus apuseram as suas assinaturas no escrito junto como documento n.º 2 junto com a petição inicial, datado de 28 de Dezembro de 2020, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, do qual consta nomeadamente o título “declaração de confissão de dívida do empréstimo” e “ser devedores da quantia de duzentos e cinquenta mil euros e sem juros a AA”; (alínea b) dos factos assentes) c) Em momento anterior a 28 de Dezembro de 2020, EE entregou aos réus, a solicitação destes, €30.000,00 a título de mútuo. (alínea c) dos factos assentes) 2.2. E deu como não provado, o facto seguinte: - Que para além do descrito em c), a autora AA ou EE tenham entregue aos réus, ao longo de vários anos mais €220.000,00 em dinheiro, que estes usaram em proveito comum do casal. (resposta ao tema de prova 1) * 2.3. E motivou a decisão de facto, nos seguintes termos: “FUNDAMENTAÇÃO PROBATÓRIA O tribunal começou por confrontar-se com algumas falhas de plausibilidade de parte a parte nos argumentos usados. Os autores insistiram sempre na tese da entrega da quantia de €250.000,00 sem quaisquer juros, ao longo de vários anos, a solicitação sobretudo da ré CC. O empréstimo de uma tão avultada quantia sem qualquer contrapartida seria plausível, em face de regras experiência comum, num quadro de um relacionamento de grande confiança só compatível com uma forte relação de amizade. Um quadro destes, pelo menos no momento da realização do empréstimo, nunca esteve presente na alegação dos autores e ainda menos nos depoimentos de parte por si prestados, o que levou o tribunal a colocar bastantes dúvidas nesta versão “sem juros”. Já da banda dos réus o tribunal não deixou de notar uma carga excessiva nas advertências sobre anatocismo e criminalidade fiscal em reacção a depoimentos ou outras pretensões probatórias dos autores, transmitindo ao tribunal uma impressão de preocupação de obstar a alegações de factos ou produção de prova através destas advertências. Uma impressão geral de aversão a grandes revelações. A versão dos autores tinha um nada desprezível princípio de prova no escrito a que alude a alínea b) dos factos provados. Os réus apuseram a sua assinatura numa declaração em que afirmavam uma dívida de um empréstimo naquele valor, o que apontava como natural que um valor bastante substancial lhe tivesse sido entregue, embora com a reserva da possibilidade forte de aquela declaração incluir montantes de juros ou outro tipo de retribuição, e portanto não apontar para uma entrega daquele valor total. Em declarações de parte, a ré CC sustentou a versão da contestação. Recebeu apenas €30.000,00, para o que lhe foi exigido firmar aquela declaração, na expectativa de receber mais €200.000,00, que nunca lhe foram entregues. Na narração de detalhe, o depoimento foi marcado por uma atitude nervosa, com excessivo e preocupado contacto visual com o seu ilustre mandatário que não transmitiu uma impressão de grande fiabilidade. Já o réu DD teve um depoimento mais descontraído, mas demonstrou um conhecimento menos detalhado do negócio, que teria sido estipulado pela sua mulher, que apenas lhe trouxe o escrito para assinar em casa. Incorreu em algumas confusões de pormenor sobre o negócio que não infundiram no entanto no tribunal uma ideia de um depoimento preparado, artificial ou pouco impressivo. A conjugação destes depoimentos com o escrito foram os elementos probatórios essenciais, perante os quais o tribunal não logrou objectivar, pela positiva, uma convicção sobre a alegada entrega de €200.000,00 ao longo do tempo. Fazê-lo com um tão reduzido acervo probatório equivaleria, em termos práticos, e através de raciocínio probatório, a valorar o escrito referido em b) como confissão de dívida, em violação do art. 458.º, n.º 2, do CC. As declarações de parte dos são um meio de prova de valia muito limitada para sustentar uma convicção probatória favorável aos próprios declarantes. Salvo em casos muito excepcionais, as simples declarações de parte não apoiadas em outros meios de prova serão insuficientes no desiderato probatório. No caso concreto, havia no entanto um princípio de prova consistente no escrito referido em b), que poderia ser complementado com declarações de parte consistentes. A autora AA revelou um conhecimento das entregas de dinheiro por si sustentadas pouco preciso e impressivo, transmitindo a ideia que o essencial do seu conhecimento destas entregas de dinheiro se baseava no escrito que encontrou no cofre do marido. Falou de recordações concretas já antigas, referindo que desde 2016 era sobretudo o seu marido que fazia as entregas. As referências a entregas de dinheiro que fez nem sequer resultavam claras se referidas a este escrito de confissão de dívida ou a um outro mencionado no art. 4.º da petição inicial. O autor BB teve um depoimento com tensão emocional e carregado de uma revolta por sentimento de injustiça. Enunciou diversas entregas de dinheiro do seu pai desde o ano 2000, umas presenciadas por si, outras por ouvir dizer, mas com valores que, mesmo somados, não atingiam o valor objecto do pedido. Demonstrou no entanto uma razão de ciência ainda mais débil que a da sua mãe, por ter deixado de habitar com os seus pais há vários anos. Estas declarações não foram assim suficientes para um complemento eficaz ao escrito referido em b) em termos probatórios.”. * 3. Do erro de julgamento Nas conclusões de recurso vieram os apelantes requerer a reapreciação da decisão de facto, em relação ao facto julgado como não provado, com fundamento em erro na apreciação da prova. O art. 640º do CPC estabelece os ónus a cargo do recorrente que impugna a decisão da matéria de facto, nos seguintes termos: “1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. 2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte: a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes; b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes. 3. […]” O mencionado regime veio concretizar a forma como se processa a impugnação da decisão de facto, reforçando o ónus de alegação imposto ao recorrente, o qual terá que apresentar a solução alternativa que, em seu entender, deve ser proferida pela Relação em sede de reapreciação dos meios de prova. Recai, assim, sobre o recorrente, o ónus, sob pena de rejeição do recurso, de determinar os concretos pontos da decisão que pretende questionar, ou seja, delimitar o objeto do recurso, motivar o seu recurso através da transcrição das passagens da gravação que reproduzem os meios de prova, ou a indicação das passagens da gravação que, no seu entendimento, impunham decisão diversa sobre a matéria de facto, a fundamentação, e ainda, indicar a solução alternativa que, em seu entender, deve ser proferida pelo Tribunal da Relação. No caso concreto, o julgamento foi realizado com gravação dos depoimentos prestados em audiência, sendo que os apelantes impugnam a decisão da matéria de facto com indicação do ponto de facto alvo de impugnação, indicam a prova a reapreciar, bem como a decisão que sugerem, mostrando-se, assim, reunidos os pressupostos de ordem formal para proceder à reapreciação da decisão. Tal como dispõe o nº 1 do art. 662º do CPC, a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto “(…) se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”, o que significa que os poderes para alteração da matéria de facto conferidos ao tribunal de recurso constituem um meio a utilizar apenas nos casos em que os elementos constantes dos autos imponham inequivocamente uma decisão diversa da que foi dada pela 1ª instância. No presente processo, como referido, a audiência final processou-se com gravação da prova produzida. Segundo ABRANTES GERALDES, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, pág. 225, e a respeito da gravação da prova e sua reapreciação, haverá que ter em consideração que funcionando o Tribunal da Relação como órgão jurisdicional com competência própria em matéria de facto, nessa reapreciação tem autonomia decisória, devendo consequentemente fazer uma apreciação crítica das provas, formulando, nesse julgamento, com inteira autonomia, uma nova convicção, com renovação do princípio da livre apreciação da prova. Assim, compete ao Tribunal da Relação reapreciar as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, face ao teor das alegações do recorrente e do recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados. Cabe, ainda, referir que neste âmbito da reapreciação da prova vigora o princípio da livre apreciação, conforme decorre do disposto no art. 396º do Código Civil. E é por isso que o art. 607º, nº 4 do CPC impõe ao julgador o dever de fundamentação da factualidade provada e não provada, especificando os fundamentos que levaram à convicção quanto a toda a matéria de facto, fundamentação essencial para o Tribunal de Recurso, nos casos em que há recurso sobre a decisão da matéria de facto, com vista a verificar se ocorreu, ou não, erro de apreciação da prova. Posto isto, cabe analisar se assiste razão aos apelantes, na parte da impugnação da matéria de facto, quando pretendem que o único facto dado como não provado na sentença recorrida, seja considerado como provado. O facto em causa tem o seguinte teor: “Que para além do descrito em c), a autora AA ou EE tenham entregue aos réus, ao longo de vários anos mais €220.000,00 em dinheiro, que estes usaram em proveito comum do casal.”. Sendo que o facto descrito em c) considerou provado que “Em momento anterior a 28 de Dezembro de 2020, EE entregou aos réus, a solicitação destes, €30.000,00 a título de mútuo.”. Como resulta destes dois factos, em conjugação com o facto provado sob a alínea b), o Tribunal recorrido, apenas considerou ter-se provado o empréstimo de € 30.000,00, dos € 250.000,00 que são referidos na declaração/confissão de dívida que os réus admitem ter assinado. Vejamos: Ouvida a prova gravada e analisados os documentos dos autos, resulta que: Os réus admitem ter assinado o documento onde se confessam devedores da quantia de € 250.000,00; A ré admite ter sido a própria a escrever o conteúdo de tal documento; Desse documento consta que a dívida é resultante de empréstimo; Os réus admitiram, nas suas declarações de parte, terem recebido € 30.000,00 por conta desse empréstimo, referindo a ré que os recebeu no dia em que entregou o documento de confissão de dívida assinado. Por sua vez, os autores, também em declarações de parte, disseram que o valor que consta do documento referido, é o total de vários empréstimos em dinheiro, que foram feitos ao longo dos anos. Ora, confrontando as declarações de parte dos autores e dos réus, somos forçados a concluir que a versão dos factos apresentada pelos réus/recorridos não merece credibilidade, desde logo porque nenhuma outra prova existe que vá ao seu encontro, sendo, ainda, certo que as regras da experiência comum não permitem acreditar que alguém assina uma declaração/confissão de dívida, de um valor como o que está em causa, se não tiver recebido ao quantia correspondente. Já as declarações dos autores são corroboradas pelo teor do documento em causa, sendo que as afirmações de que o valor total do empréstimo resulta de vários empréstimos em dinheiro, feitos ao longo dos anos, acaba mesmo por ser confirmado pelas declarações dos réus, os quais admitem terem recebido 30.000,00 euros, precisamente por conta do valor da dívida que confessaram (embora refiram que não chegaram a receber o restante, o que, como referido, não se afigura credível). A questão que se coloca está relacionada com a prova admitida no caso. Ora, de acordo com o disposto no art. 458.º do Código Civil, referido na fundamentação da decisão recorrida, “1. Se alguém, por simples declaração unilateral, prometer uma prestação ou reconhecer uma dívida, sem indicação da respetiva causa, fica o credor dispensado de provar a relação fundamental, cuja existência se presume até prova em contrário.”. Contudo, nos termos do nº 2 do mesmo preceito, “A promessa ou reconhecimento deve, porém, constar de documento escrito, se outras formalidades não forem exigidas para a prova da relação fundamental.”. No caso, existe nos autos o documento escrito, assinado pelos réus, do qual consta a confissão de dívida e a causa dessa dívida, nomeadamente, empréstimos a favor dos réus. E sendo assim, entendemos que nem sequer tem aplicação no caso, o art. 458.º do CC, citado supra. Como se decidiu em acórdão desta mesma secção do Tribunal da Relação do Porto, proferido no processo 1771/21.6T8PVZ.P1, confirmado por acórdão do STJ de 08-02-2024, “A declaração constante de um documento escrito na qual uma pessoa se confessa devedor perante outra em razão de uma determinada causa constitui uma confissão extrajudicial escrita em documento particular. Na verdade, a confissão é o reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária (artigo 352.º do Código Civil). Nos termos do artigo 358.º do Código Civil a confissão extrajudicial, em documento particular, considera-se provada nos termos aplicáveis a este documento e, se for feita à parte contrária ou a quem a represente, tem força probatória plena. Nos termos do n.º 1 do artigo 376.º do mesmo diploma, o documento particular cuja autoria esteja reconhecida, como aqui sucede, uma vez que por confissão dos réus se provou que o documento foi subscrito por eles, faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, sem prejuízo da arguição e prova da falsidade do documento. Nessas circunstâncias, a declaração confessória faz prova plena do facto confessado, ex vi artigos 352.º, 358.º, n.º 2, 375.º, n.º 1, e 376.º do Código Civil. Essa prova plena só pode ser revertida mediante a arguição e prova da falsidade do documento ou através de meio de prova que demonstre não ser verdadeiro esse facto (artigo 347.º do Código Civil). Acresce que nos termos do n.º 2 do citado artigo 376.º, também se consideram provados os factos compreendidos na declaração na medida em que forem contrários aos interesses do declarante. Por outras palavras, a prova plena abrange não apenas a existência da declaração escrita, como ainda o facto declarado, isto é, no caso concreto, que os réus devem à aqui autora a quantia de € 71.480 a título de empréstimos que esta lhes concedeu. A prova plena não é uma prova invencível, inultrapassável. Ao contrário do que sucede quando existe uma presunção legal do facto com a natureza de presunção inilidível, nos termos do artigo 347.º do Código Civil, a prova legal plena pode ser contrariada, mas somente por intermédio de meio de prova que mostre não ser verdadeiro o facto que dela for objecto, sem prejuízo de outras restrições especialmente determinadas na lei. Entre essas restrições conta-se o n.º 2 do artigo 393.º do Código Civil, segundo o qual quando o facto estiver plenamente provado por documento ou por outro meio de prova com força probatória plena, como a confissão, não é admissível a prova por testemunhas. Por outro lado, também n.º 1 do artigo 359.ºdo Código Civil estabelece que a confissão, nomeadamente a extrajudicial, pode ser declarada nula ou anulada, nos termos gerais, por falta ou vícios da vontade, acrescentando no n.º 2 que o erro, desde que seja essencial, não tem de satisfazer aos requisitos exigidos para a anulação dos negócios jurídicos. Perante isso, os réus tinham a necessidade de afastar essa prova plena, o que podiam fazer por uma de duas vias: demonstrado que o facto confessado na declaração não é verdadeiro; demonstrado que a confissão (a declaração) enferma de um vício gerador da respectiva nulidade ou anulabilidade (v.g. ter sido obtida por coacção ou dolo). Apurado que a declaração junta com a petição inicial tem o valor de confissão extrajudicial com força probatória plena do facto constante da declaração de confissão (anota-se que o afastamento da previsão do artigo 458.º do Código Civil já implicava a exclusão do óbice consagrado no n.º 2 desta disposição que, de todo o modo, conforme se explicou, não estaria demonstrado), uma vez que pelos réus não foi alegada a existência de qualquer vício da confissão susceptível de determinar a respectiva nulidade ou anulabilidade, o facto do ponto 8 só pode ser julgado não provado se se concluir os réus lograram demonstrar que o mesmo não é verdadeiro. Não era a autora que tinha de provar esse facto, eram os réus que tinham de provar que o mesmo não era verdadeiro, sob pena de ele ter de ser julgado provado por confissão. Ora a prova dessa falsidade ideológica pura e simplesmente não foi feita. Os réus, com efeito, não produziram nenhum meio de prova suplementar, sendo certo que para isso deparavam-se com as limitações atrás assinaladas. Os seus depoimentos e declarações de parte são insusceptíveis de gerar essa demonstração, desde logo porque para demonstração da falsidade de uma confissão nunca poderiam ser aceites as declarações do próprio confessor … contrárias à confissão, na medida em que isso seria contrário aos princípios probatórios vigentes entre nós, ao destruir as preocupações de segurança que estão na génese do regime jurídico que atribui valor de confissão, com força probatória plena, às declarações de factos desfavoráveis. Mas ainda porque, no caso, as contradições entre os réus foram de molde a retirar-lhes a credibilidade que seria indispensável à demonstração da falsidade do que antes declararam por escrito. Nesse contexto, afigura-se-nos que assiste razão à recorrente e que devidamente analisado o documento junto com a petição inicial e apurado o seu valor jurídico, o tribunal não pode deixar de julgar provado que a quantia global mutuada e em dívida ascendeu ao montante assinalado no documento de € 71.480.” Concordamos inteiramente com esta decisão, proferida em processo idêntico ao dos autos (mesmo muito idêntico, já que são as mesmas, as partes), pelo que se mostra perfeitamente provado que a declaração de dívida que consta do documento junto aos autos, e assinado pelos réus, não nos deixa dúvidas do valor da dívida dos réus aos autores, o que justifica a alteração da matéria de facto, eliminando-se o facto não provado e passando esse facto não provado a constar do facto provado c), o qual passa a ter a seguinte redação: c) Em momento anterior a 28 de dezembro de 2020, e ao longo de vários anos, EE e a autora AA entregaram aos réus, a solicitação destes, a quantia global de € 250.000,00 (duzentos e cinquenta mil euros), a título de mútuo, que estes usaram em proveito comum do casal. Procede, assim, a impugnação da matéria de facto. * 4. Decisão de Direito Os apelantes discordam da sentença proferida em 1ª Instância, que dizem ter feito uma desadequada subsunção jurídica dos factos e aplicação do direito, pelo que, alterada a matéria de facto nos termos que pretendem, se impõe a consequente alteração da decisão de mérito. Posto isto, tendo em conta as posições das partes, não há dúvidas de que estamos perante um contrato de mútuo, nos termos definidos no artigo 1142.º do Código Civil, que prescreve que “Mútuo é o contrato pelo qual uma das partes empresta à outra, dinheiro ou outra coisa fungível, ficando a segunda obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade.”. Face à alteração da matéria de facto, provado ficou que os autores, ou o falecido marido e pai dos autores, foram entregando quantias em valor não concretamente determinado, ao longo de anos, aos réus, que atingiu o total de € 250.000,00 (duzentos e cinquenta mil euros), que estes confessaram dever, nos termos expostos supra, pelo que lhes cabe restituir esse valor, uma vez vencido o crédito, sendo que na declaração de dívida constava um prazo para a restituição. A forma do contrato de mútuo vem regulada no art. 1143.º do Código Civil, que estabelece que o contrato de mútuo de valor superior a € 25.000 só é válido se for celebrado por escritura pública ou por documento particular autenticado, e o de valor superior a €2.500 só é válido se for celebrado por documento assinado pelo mutuário. A quantia global que os autores emprestaram aos réus, como já referido, ascende a €250.000,00, sendo que o documento em que os réus confessam a dívida é um documento particular assinado por ambos. Contudo, provado ficou também que esse valor foi sendo entregue aos réus ao longo de vários anos, em quantias não concretamente apuradas, pelo que se desconhece se foi violada a forma exigida legalmente para a contrato de mútuo. De qualquer modo, ainda que se considere que os mútuos feitos ao longo do tempo possam, em parte, ser nulos por falta de forma, nos termos do art. 220.º do Código Civil, nomeadamente o mútuo do valor de € 30.000,00 admitido pelos réus, o certo é que, ainda que o mútuo esteja ferido de nulidade por inobservância de forma, daí não se segue que os Réus devessem ser absolvidos da restituição da totalidade do valor em dívida, pois, conforme jurisprudência pacífica do STJ, declarada a nulidade do contrato de mútuo o mutuário está obrigado a restituir o capital mutuado, com juros de mora a contar da citação, como consequência da declaração de nulidade, (cfr., entre outros, os acórdãos de 19.05.2005, P.05B1200, de 08.04.2010, P. 363/07, de 08.05.2013, P. 3229/09, disponíveis em www.dgsi.pt). Procede, assim, o recurso. * 5. Litigância de má fé Pretendem os recorrentes, ainda, que os recorridos sejam condenados como litigantes de má fé, em multa e indemnização não inferior a € 10.000,00, limitando-se, para o efeito, a dizer que “andaram mal os RR. porque conscientemente querem inverter a razão de ser, e, por isso, agem com manifesta má fé”. Destinando-se o recurso a apreciar as questões decididas pelo Tribunal de 1.ª Instância, e não tendo sido aí decidida, ou sequer invocada, a litigância de má fé, nada há a decidir quanto a isso. Contudo, isso não exclui a possibilidade de haver litigância de má fé na fase do recurso. Ora, face ao disposto no art. 542.º do CPC, a condenação de uma parte como litigante de má fé consubstancia um juízo de censura sobre a sua atitude processual, estando em causa um uso manifestamente reprovável do processo ou dos meios processuais, com as finalidades mencionadas no preceito referido. Tendo sido arguida a litigância de má fé nas alegações de recurso, cabe conhecer dessa questão, mas circunscrevendo-se a apreciação à litigância de má fé na fase do recurso, ou seja, ao que os recorridos defendem na resposta ao recurso. No caso, os recorridos, nas suas contra-alegações, baseiam-se apenas no afastamento do valor probatório do documento, acompanhando a decisão recorrida. Não se vê, assim, que sejam de condenar como litigantes de má fé, já que não se afigura ocorrer alguma das situações previstas no art. 542.º do CPC, pelo que, sem necessidade de outras considerações, improcede o pedido. * * III - DISPOSITIVO Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação procedente, revogando a decisão recorrida e, em substituição, condenar os réus/recorridos a pagarem aos autores/recorrentes, a quantia de € 250.000,00 (duzentos e cinquenta mil euros), acrescida de juros de mora, à taxa legal, a contar desde a citação. Julgam improcedente o pedido de condenação dos recorridos como litigantes de má fé. Custas a cargo dos recorridos (art. 527.º, nºs 1 e 2 do CPC). Porto, 2024-06-20 Manuela Machado Ana Luísa Loureiro Aristides Rodrigues de Almeida |