Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
6035/22.5T8VNG-F.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARTUR DIONÍSIO OLIVEIRA
Descritores: NULIDADES PROCESSUAIS
ARGUIÇÃO
PRAZO
RECURSO EXTRAORDINÁRIO DE REVISÃO
Nº do Documento: RP202407106035/22.5T8VNG-F.P1
Data do Acordão: 07/10/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – As nulidades processuais, inclusivamente nulidade ou a falta da citação do réu, apenas podem ser arguidas por via incidental na pendência do processo, ou seja, até ao trânsito em julgado da respectiva decisão final.
II – Após o trânsito, aqueles vícios só podem ser invocados em sede de recurso extraordinário de revisão, nos termos previstos no artigo 696.º do CPC, ou em sede de oposição à execução, nos termos previstos no artigo 729.º, al. d), do mesmo código.
III – Não é possível convolar, ao abrigo do disposto no artigo 193.º, n.º 3, do CPC, a arguição incidental de uma nulidade processual, que visa uma decisão interlocutória, num recurso extraordinário de revisão, que apenas pode visar a sentença transitada em julgado.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 6035/22.5T8VNG-F.P1

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório
1. A..., com sede em ..., ..., ..., ..., Irlanda, veio intentar a presente acção especial tendo em vista a declaração da insolvência de AA, indicado como residência desta a Rua ..., ... Porto.
Por despacho de 21.07.2022 foi ordenada a citação da requerida, tendo a respectiva carta sido devolvida com a indicação “Objecto não reclamado”.
Por despacho de 10.08.2022 foi ordenada a citação através de agente de execução, a qual se frustrou em virtude de o imóvel se encontrar devoluto e se desconhecer o paradeiro da requerida (cfr. expediente junto em 28.09.2022).
Por despacho de 30.09.2022 foi ordenada a citação por intermédio da autoridade policial, a qual também se frustrou, mais uma vez em virtude de a habitação em causa estar devoluta e de não ter sido possível contatar telefonicamente a requerida nos números existentes nas bases de dados (cfr. cota de 12.01.2023 e ofício junto em 16.01.2023).
Em 04.02.2023, face às goradas tentativas de citação, o M.º Juiz a quo dispensou a audição da requerida, ao abrigo do disposto no artigo 12.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE).
Acto contínuo, proferiu sentença que declarou a insolvência da requerida, mais ordenando a sua notificação à insolvente, «nos termos do disposto na parte inicial do nº2 do art. 37º».
A secretaria deu cumprimento a esta notificação por carta registada com aviso de recepção (cfr. expediente junto em 06.02.2023), a qual foi devolvida com a indicação de que o receptáculo postal domiciliário (RPD) se encontrava cheio (cfr. expediente junto em 16.02.2023).
Mediante promoção do Ministério Público (MP), foi ordenada a citação edital da requerida por despacho de 21.03.2023, o que foi cumprido pela secretaria (cfr. expediente junto em 22, 23, 27 e 28.03.2023).
A requerida não deduziu embargos à insolvência nem recorreu ou reclamou da sentença que a declarou, tendo aos autos prosseguido os seus termos.
Por requerimento junto aos autos, por via electrónica, pelas 20:31:56 H do dia 19.12.2023, a requerida juntou aos autos procuração forense e requereu a associação do respectivo mandatário ao Citius o mais brevemente possível, por forma a este poder consultar todos os apensos.
Mediante requerimento apresentado no dia 02.01.2024, a requerida veio arguir a nulidade do despacho de 04.02.2023 que dispensou a sua citação e de todo o processado subsequente e requerer a sua citação.
No dia seguinte, 03.01.2023, a requerida apresentou novo requerimento, subscrito por si própria, com o mesmo objectivo.
Depois de ouvir a requerente e o MP (bem como de ordenar as consultas solicitadas no requerimento de 02.01.2024 e de, ad cautelam, sustar as diligências de liquidação do acervo da massa insolvente), o Tribunal a quo proferiu despacho em 27.01.2024, indeferindo a nulidade arguida pela requerida.
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Inconformada, a requerida apelou dessa decisão, formulando as seguintes conclusões:
«A- A recorrente, apresentou nos autos reclamação, invocando a sua falta de citação por não se terem verificado todos os pressupostos necessários a aplicação do disposto no art.º 12.º do CIRE.
B- Foi proferida, pelo Tribunal a quo, despacho que indeferiu a arguida nulidade.
C- Alegando entre outras coisas que: - “a M. Ilustre Mandatária da Insolvente juntou aos autos procuração Forense a 19.12.2023, - nesta data tomou conhecimento do vício ou poderia ter tomado caso houvesse agido diligentemente — mas apenas em 02.01.2024, introduziu o requerimento em apreço quando o prazo de 10 dias, que se desenvolveu ininterruptamente no período de férias judiciais, ante a natureza urgente dos autos (art.2 9./1 do CIRE), já se achava esgotado, revelando-se, dessa sorte, manifestamente extemporâneo”.
D- Ocorre que, o simples ato de junção de procuração não constitui uma intervenção relevante nos autos nos termos e para os efeitos previstos no art.º 189.º do C.P.C.
E- Apenas após a junção de procuração é que o Mandatário fica com acesso ao processo eletrónico.
F- O prazo para arguir alguma nulidade, apenas se inicia após o acesso eletrónico ao mesmo que ocorreu alguns dias após o envio de Procuração Forense.
G- Ora, com a junção aos autos de procuração por requerimento datado de 19/12/2023 não se pode, de modo algum, considerar sanada a falta de citação da requerida.
H- A falta de citação, foi arguida (02/01/2024), no prazo que dispunha para apresentar o recurso da sentença de declaração de insolvência (15 dias), o primeiro ato processual praticado depois de ter sido constatada a sua situação de revelia.
I- Caso assim se não entenda, a entender-se que o requerimento que deu entrada nos autos a (02/01/2024), foi apresentado no prazo que a recorrente dispunha para a oposição a Insolvência (primeiro ato processual praticado) prazo esse de (10 dias, ao qual acresce 3 dias úteis), o Tribunal a quo deveria ter considerado que aquele foi apresentado oportunamente.
J- O Tribunal a quo deveria ter considerado tempestiva e oportuna a arguição da referida nulidade nos termos em que o fez a aqui recorrente.
K- O Tribunal a quo, tomou, como certa a residência indicada, pela alegada credora, sem sequer ter promovido qualquer pesquisa, para se certificar se a morada indicada pela Requerente (A... Company), era a residência da recorrente, endereçou comunicações para a referida morada.
L- Não efetuou diligencias no sentido de apurar junto da base de dados da A.T e da Segurança Social e/ou junto de outros organismos IRN, qual a morada da recorrente.
M- No apenso da qualificação de insolvência, consta que de uma pesquisa efetuada à Base da segurança social, resultou que a morada da recorrente é “RUE ..., ... ...: ...”:
N- O Tribunal dispensou a audiência da recorrente (art.º 12.º do CIRE) e declarou a mesma insolvente.
O- Inexiste desconhecimento da morada da recorrente, porquanto, consta da base de dados da A.T e da Segurança Social, a indicação da morada correta da recorrente, e nunca esta foi citada na referida morada (RUE ..., ... ...: ...). Mais, a referida morada (RUE ..., ... ...: ...) consta ainda do apenso de qualificação da insolvência.
P- A norma do artigo 12.º do CIRE, ao permitir a dispensa de audiência do devedor aplicável, apenas quando as diligencias para a citação determinam um atraso anormal do processado.
Q- Omitida a audição, de qualquer das pessoas, quando a mesma se encontrava possível (mesmo que seja efetivamente desconhecido o seu paradeiro), o que não foi o caso, determinada nesse contexto, enferme de falta de requisitos legais, cometendo-se o vicio de falta de citação, que gera nulidade dos actos processuais subsequentes.
R- A morada da recorrente no estrangeiro, onde vive e reside, desde 2006, constava na base de dados da AT e da Segurança Social, bastando uma simples consulta dos mesmos, para obter tal informação.
S- Conforme o art.º 239, do CPC, tendo em conta, repita-se, os elementos dos autos, nem se evidenciando que a realização de tal diligência, por si só, pudesse acarretar uma demora excessiva, antes se evidenciando que esclareceria de forma eficaz a situação quanto à morada do devedor, permitindo o oportuno exercício do contraditório, nos termos normativamente consagrados.
T- A recorrente não estava, nem nunca esteve em paradeiro desconhecido, nem tão pouco se pode afirmar que foram realizadas diligências e tentativas adequadas para ser encontrada.
U- Pelo que se requer seja assim, revogada a decisão proferida e proferida outra que declare procedente a invocada nulidade por falta de citação, por não se terem verificado todos os pressupostos necessários a aplicação do disposto no art.º 12.º do CIRE.
V- Foram violados os artigos 3º; 12º e 292 do CIRE e os artigos 225º, nºs 1 e 2, als. b) e c); 226º; 227º; 228º, nºs 1, 5 e 7; 229º, nº 1; 231º; 232º, nºs 1, 2 e 4; 615º, nº 1, al. c), todos do CPC».
Terminou pugnando que, na procedência do recurso, a decisão recorrida seja revogada e substituída por outra que declare procedente a invocada nulidade por falta de citação, por não se terem verificado todos os pressupostos necessários à aplicação do disposto no art.º 12.º do CIRE.
O MP e a requerente responderam a esta alegação, pugnando pela total improcedência do recurso.
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II. Fundamentação
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, como decorre do disposto nos artigos 635.º, n.º 4, e 639.º do Código de Processo Civil (CPC), não podendo o Tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (cfr. artigo 608.º, n.º 2, do CPC). Não obstante, o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do citado diploma legal).
Tendo em conta o teor das conclusões formuladas pelo recorrente, importa decidir se deve ser julgada tempestiva e procedente a arguição da nulidade do despacho que dispensou a citação da requerida ao abrigo do artigo 12.º do CIRE.
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A factualidade a considerar na apreciação do presente recurso corresponde às ocorrências descritas no relatório deste aresto.
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A decisão recorrida indeferiu a arguição da nulidade do despacho que dispensou a citação da requerida por duas razões: a intempestividade daquela arguição e a verificação dos pressupostos de que o artigo 12.º do CIRE faz depender aquela dispensa.
Para fundamentar a referida intempestividade, argumentou que decorreram mais de 10 dias entre a data em que a insolvente juntou aos autos procuração forense (19.12.2023) e, por essa via, tomou conhecimento do alegado vício ou poderia ter tomado se houvesse agido diligentemente, e a data em que apresentou em juízo o requerimento em apreço (02.01.2024).
Embora não discordemos da afirmação da intempestividade da arguição da nulidade do referido despacho interlocutório, não podemos subscrever a argumentação esgrimida na decisão recorrida para fundamentar essa conclusão.
Desde logo porque, ainda que considerássemos que a requerida tomou ou podia ter tomado conhecimento, se tivesse agido diligentemente, do vício que veio arguir, no dia em que juntou aos autos a procuração forense, o prazo de 10 dias para arguir esse vício – que a decisão recorrida extrai do disposto nos artigos 199.º, n.º 1, e 149.º, n.º 1, do CPC, mas que encontra melhor apoio no entendimento que preconiza a aplicação das regras da falta de citação à dispensa indevida dessa citação ao abrigo do artigo 12.º do CIRE (neste sentido vide o ac. do TRL, de 13.07.2023, proc. n.º 12494/22.9T8SNT-D.L1-1, disponível em www.dgsi.pt, onde se pode encontrar a demais jurisprudência citada sem indicação da fonte) e, nessa medida, nos artigos 187.º, al. a), 189.º, 198.º, n.º 2, e 149.º, todos do CPC – teria terminado no dia 29.12.2023, o que nos levaria a concluir que o requerimento em questão tinha sido apresentado no primeiro dia útil subsequente (tendo em conta que 30 e 31 de Dezembro corresponderam a um fim-de-semana e 1 de Janeiro foi feriado nacional), pelo que se impunha dar cumprimento ao disposto no artigo 139.º, n.º 6, do CPC.
De todo o modo, não vemos como se possa afirmar que a requerida tomou ou podia ter tomado conhecimento do vício que veio arguir, no próprio dia em que juntou aos autos a procuração forense.
É actualmente pacífico na jurisprudência dos tribunais superiores que, no caso de processos sujeitos a tramitação electrónica, a mera junção aos autos de procuração forense não garante o acesso ao processo electrónico, o qual depende ainda de um acto da secretaria – a associação do respectivo mandatário no sistema Citius (neste sentido vide, a título de exemplo, o já citado ac. do TRL, de 13.07.2023) – o que, no presente caso, foi expressamente solicitado no requerimento por via do qual foi junta a procuração.
Desconhecemos quando foi efectivada esta associação electrónica. Mas podemos afirmar com toda a segurança que não o foi no próprio dia 19.12.2023, visto que a procuração foi junta pelas 20:31:56 H desse dia, como consta do respectivo formulário, ou seja, quando a secretaria já se encontrava encerrada. Assim, na melhor das hipóteses, o acesso electrónico ao processo foi concedido à mandatária constituída pela requerida no dia 20.12.2023. Nestes termos, nada nos permite afirmar que a requerida ou a sua mandatária tivessem tomado ou, sequer, pudessem ter tomado conhecimento do vício em causa antes desta data. Mas se é assim, concluímos que o requerimento de 02.10.2024 foi apresentado dentro dos 10 dias posteriores.
Todavia, sem prejuízo da exposição antecedente, salta à vista que a arguição da falta ou da nulidade da citação – tal como de qualquer outra nulidade processual – já não podia ser feita no momento em que a ora recorrente o fez, visto que já havia transitado em julgado a sentença que declarou a insolvência da requerida.
Nos termos do disposto no artigo 198.º, do CPC, as nulidades a que se referem os artigos 186.º e 193.º, n.º 1, só podem ser arguidas até à contestação ou neste articulado (cfr. n.º 1 daquele artigo 198.º); as nulidades previstas nos artigos 187.º e 194.º do mesmo código, onde se incluiu a falta de citação do réu, podem ser arguidas em qualquer estado do processo, enquanto não devam considerar-se sanadas (cfr. n.º 2) – o que, no caso de falta citação do réu, ocorre se este intervier no processo sem arguir logo aquela falta (cfr. artigo 189.º do CPC). Quanto às outras nulidades, dispõe assim o artigo 199.º: se a parte estiver presente, por si ou por mandatário, no momento em que forem cometidas, podem ser arguidas enquanto o ato não terminar; se não estiver, o prazo para a arguição conta-se do dia em que, depois de cometida a nulidade, a parte interveio em algum ato praticado no processo ou foi notificada para qualquer termo dele, mas neste último caso só quando deva presumir-se que então tomou conhecimento da nulidade ou quando dela pudesse conhecer, agindo com a devida diligência.
Em qualquer caso, as nulidades processuais apenas podem ser arguidas na pendência do processo, ou seja, até ao trânsito em julgado da respectiva decisão final, não sendo outro o alcance da expressão “em qualquer estado do processo” utilizada no artigo 198.º, n.º 2, do CPC. Como se escreve no ac. do TRG, de 10.09.2020 (proc. n.º 102/11.8TBVLP.G1), «quando a lei se refere a qualquer estado do processo remete para a sua pendência, ie, afirma que estas podem ser arguidas ou conhecidas oficiosamente na primeira instância até à sentença final e se desta se interpuser recurso, podem sê-lo no tribunal de recurso. Esta posição tem sido consensual na doutrina e jurisprudência, quer face ao Código de Processo Civil anterior, quer ao atual, convergindo no sentido de que por “qualquer estado do processo” se tem que entender “até ao trânsito em julgado da decisão que ponha termo à ação”, pois que após o trânsito deixa de ser possível o conhecimento de qualquer questão no âmbito do processo, uma vez que a partir desse momento se esgota o poder jurisdicional do juiz, nos termos do artigo 613º nº 1 do Código de Processo Civil».
Visto de outra perspectiva, tanto a falta como a nulidade da citação visam salvaguardar o direito de defesa do réu, dando-lhe a oportunidade de se poder defender num processo que ainda pende, não tendo cabimento depois de a instância ter sido extinta, nos termos do artigo 277.º, al. a), do CPC.
Compreende-se que assim seja, tendo em conta o valor e o alcance do caso julgado, definidos nos artigos 619.º e seguintes do CPC, e as consequências daí decorrentes, maxime a inalterabilidade da sentença transitada em julgado, assentes em razões de certeza e segurança jurídica, que se sobrepõem à justiça do processo, excepto nos casos em que a sentença seja passível de recurso extraordinário de revisão.
Esta leitura do regime das nulidades processuais é inteiramente corroborada pelo regime do recurso extraordinário de revisão, designadamente pelo disposto no artigo 696.º do CPC, onde são elencadas, de forma taxativa, as situações passíveis de fundamentar a revisão de uma decisão já transitada em julgado, incluindo-se nesse elenco os casos em que o processo tenha corrido à revelia, por falta absoluta de intervenção do réu, e se mostre que faltou a citação ou que esta é nula – cfr. al. e)-i).
Na verdade, a circunstância de a lei incluir a falta e a nulidade da citação entre os fundamentos do recurso extraordinário de revisão, que pressupõe a existência de uma decisão transitada em julgado, demonstra que aqueles vícios, por si só, não obstam a este trânsito, entendido como a insusceptibilidade de recurso ordinário (cfr. artigo 628.º do CPC). Mas demonstra igualmente que, após o trânsito, aqueles vícios deixam de poder ser arguidos por via incidental, só podendo ser invocados em sede de recurso extraordinário de revisão. Entendimento diverso retiraria qualquer sentido à norma daquele artigo 696.º.
Deste modo, mais do que de uma mera intempestividade, podemos falar de uma verdadeira inadmissibilidade legal: após trânsito em julgado da decisão que ponha termo à acção, a invocação da falta ou da nulidade da citação só poderá ocorrer em sede de recurso de revisão, nos termos previstos no artigo 696.º do CPC, ou em sede de oposição à execução, nos termos previstos no artigo 729.º, al. d), do mesmo código, não sendo admissível argui-la em sede de incidente suscitado nos autos.
Neste sentido, para além dos acórdãos antes citados, vide, a título de mero exemplo, os seguintes arestos: ac. do STJ, de 13.05.2003, proc. n.º 03A1065; acórdãos do TRL, de 13.05.2004, proc. n.º 571/2004-2, e de 29.09.2020, proc. n.º 7365/16.0T8LRS-A.L1-7; ac. do TRC, de 21.05.2013, proc. n.º 475-B/1999.C1; acódãos do TRG, 01.09.2020, proc. n.º 1654/19.0T8BCL.G1, e de 23.09.2021, proc. n.º 575/10.6TBEPS.G1.
No caso em apreço, depois de ter sido dispensada a citação da requerida, ao abrigo do artigo 12.º do CIRE, foi proferida sentença a declarar a insolvência daquela.
Esta sentença veio a ser notificada à requerida por via edital, não tendo esta deduzido embargos à insolvência, interposto recurso ordinário ou reclamado da mesma no prazo previsto na lei, pelo que esta sentença transitou em julgado, nos temos previstos no artigo 628.º do CPC, sendo certo que a própria secretaria atestou a ocorrência deste trânsito em 08.05.2023, conforme certidão datada de 16.06.2023.
Perante este trânsito em julgado, a única forma processualmente válida para a requerida invocar a falta ou a nulidade da sua citação e, por essa via, obter a anulação da sentença era, como dissemos, o recurso extraordinário de revisão (não tendo aqui aplicação o disposto no artigo 729.º do CPC), não sendo legalmente inadmissível a arguição da nulidade num incidente deduzido no próprio processo declarativo.
Aqui chegados, coloca-se, naturalmente, a questão de saber se estamos perante um erro na qualificação do meio processual que incumba ao tribunal corrigir oficiosamente, ao abrigo do disposto no artigo 193.º, n.º 3, do CPC.
Nos termos desta disposição legal, o erro na qualificação do meio processual utilizado pela parte é corrigido oficiosamente pelo juiz, determinando que se sigam os termos processuais adequados.
Esta norma foi introduzida no CPC na revisão operada pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Julho. Na proposta de Lei n.º 113/XII, que a antecedeu, referiu-se o seguinte a respeito desta inovação: «Ainda em consonância com o princípio da prevalência do mérito sobre meras questões de forma, em conjugação com o assinalado reforço dos poderes de direcção, agilização, adequação e gestão processual do juiz, toda a atividade processual deve ser orientada para propiciar a obtenção de decisões que privilegiem o mérito ou a substância sobre a forma, cabendo suprir-se o erro na qualificação pela parte do meio processual utilizado e evitar deficiências ou irregularidades puramente adjectivas que impeçam a composição do litígio ou acabem por distorcer o conteúdo da sentença de mérito, condicionado pelo funcionamento de desproporcionadas cominações ou preclusões processuais».
Por sua vez, diz-se o seguinte no sumário do acórdão do TRG, de 07.03.2019 (processo n.º 2305/17.2T8VNF-A.G1, integralmente disponível em www.dgsi.pt): «1 – Ocorrendo erro no meio processual utilizado pela parte impõe-se a convolação, oficiosa, para os termos processuais adequados - cf. n.º 3, do art. 193.º, do CPC. 2 – Tal convolação, com os limites naturais – pois que não pode operar caso existam obstáculos intransponíveis, como é o caso de ter já decorrido o prazo previsto para o ato convolado –, visa evitar que, por meras razões de índole formal, deixe de ser apreciada uma pretensão deduzida em juízo, em prejuízo da justa composição dos litígios (…)».
A jurisprudência tem respondido negativamente à questão da possibilidade de convolar a arguição incidental de uma nulidade processual, ou o recurso ordinário do despacho que indefere aquela arguição, num recurso extraordinário de revisão (embora essa possibilidade pareça ser admitida, em termos abstractos, no já citado ac. do TRG, de 23.09.2021).
No sentido da inadmissibilidade da convolação se pronunciaram, anda antes da entrada em vigor da actual redação do artigo 193.º, n.º 3, do CPC, os já citados acórdãos do STJ, de 13.05.2003, e do TRL, de 13.05.2002.
Esta jurisprudência invoca, em defesa da sua tese, o princípio do dispositivo ou da disponibilidade do objecto, actualmente ínsito nos artigos 3.º, n.º 1, e 5.º, n.º 1, do CPC, e os limites da condenação impostos pelo actual artigo 609.º, n.º 1, do CPC (nos termos do qual a sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objeto diverso do que se pedir), afirmando que “a sentença deve sempre corresponder à demanda, determinando-se por ela na sua espécie e medida” (Rosenberg), que a “correspondência necessária entre o pedido e o resultado” configura um limite absoluto aos poderes do tribunal (Chiovenda) e que há um “dever de congruência” entre a sentença e o pedido (de que falam os autores espanhóis), concluindo que é «monopólio das partes a conformação da instância, nos seus elementos objectivos e subjectivos».
No mesmo sentido, já após a entrada em vigor do referido artigo 193.º, n.º 3, se pronunciaram os acórdãos do STJ, de 22.09.2021 (proc. n.º 373/15.0T8AMT-D.P1.S1) e o já citado acórdão do TRG, de 10.09.2020.
Mantendo a mesma linha de argumentação, invoca-se agora o princípio da auto-responsabilidade das partes, escrevendo-se no primeiro destes acórdãos que «[o] artigo 193º, nº 3, do Código de Processo Civil, tem por objecto o erro cometido pela parte na utilização de um meio processual no decurso de determinada instância, havendo lugar à actuação oficiosa do tribunal no sentido do aproveitamento dos actos que a parte haja indevidamente qualificado desde que o seu conteúdo seja adequável ao meio concreto de que deveria ter-se socorrido. (…) Ora, o recurso extraordinário de revisão, genericamente previsto nos artigos 627º, nº 2, e 696º a 702º do Código de Processo Civil, reveste, em termos estruturais, uma natureza especial e particular que o aproxima de uma acção declarativa, obedecendo, por conseguinte, a princípios que não se confundem com os que subjazem à natureza e tramitação do recurso ordinário» ou, acrescentamos nós, do incidente de arguição de uma nulidade processual.
Assim, conclui-se no mesmo acórdão que «[a] hipotética postura oficiosa do juiz ao convolar um meio específico de tutela noutro totalmente diferente revelar-se-ia contra o que a própria parte entendeu e decidiu na altura, bem como em oposição com a forma como processualmente actuou, querendo uma coisa totalmente diferente e contraditória com o que o tribunal, agora e tardiamente, se proporia motu proprio oferecer-lhe».
Não vemos qualquer razão para nos afastarmos desta jurisprudência.
Na verdade, não vislumbramos como seria possível convolar um requerimento que visa atacar, por via da nulidade, uma decisão interlocutória, num recurso extraordinário que só poderia visar a decisão final transitada em julgado. Tendo a recorrente ignorado a sentença que declarou a sua insolvência, a citação edital da mesma e o respectivo trânsito em julgado, restringindo toda a sua actividade processual a atacar uma decisão interlocutória – ainda que pretendendo, por essa via, obter a anulação de todo o processado posterior, incluindo da sentença – não vemos como proceder à equacionada convolação sem violar o princípio do dispositivo. De resto, o recurso extraordinário de revisão não configura um incidente da instância, nem se insere na tramitação da acção onde foi proferida a sentença visada por aquele, antes se configurando uma nova acção.
Por tudo quanto ficou exposto, ainda que com argumentos inteiramente distintos, importa confirmar a decisão recorrida, de indeferimento da nulidade arguida pela ora recorrente.
Por conseguinte, a recorrente deverá suportar os custos da apelação assim julgada improcedente, nos termos do disposto no artigo 527.º do CPC.
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Sumário (artigo 663.º, n.º 7, do CPC):
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III. Decisão
Pelo exposto, os Juízes do Tribunal da Relação do Porto julgam totalmente improcedente a apelação e, consequentemente, mantêm a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.
Registe e notifique.
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Porto, 10 de Julho de 2024
Artur Dionísio Oliveira
Maria Eiró
Rodrigues Pires